Euclides fundou a geografia trágica Gilles Lapouge (*) PARIS_ A guerra mais feroz do século 19 aconteceu no Brasil, no coração do sertão. O sertão que se estende pelo interior do Estado da Bahia é um fim de mundo. Ele é freqüentado pelo sol e o diabo. Não é um bom lugar para uma guerra que se quer fazer conhecida. A de Canudos passaria despercebida se um jovem jornalista de gênio não tivesse posto seu nariz naquela solidão. Esse jornalista, repórter do Estado, chamava-se Euclides da Cunha. Ele escreveu a Ilíada desta “Tróia de taipa”, o vilarejo de Canudos. Naquele fim de século, Canudos não é grande coisa: cinqüenta palhoças, talvez, e céus em brasa. Lá, alguns miseráveis vivem como se agoniza, até o dia em que surge um alucinado, Antônio Conselheiro. Pessoas desse tipo pululam no sertão. Antônio Conselheiro é com dificuldade um messias mais perfeito que os outros. No começo, ele logra seu mundo. Filho de um comerciante do Ceará, ele é um jovem severo, sábio e um pouco terno. Casa-se, faz pequenos serviços, como comerciante, escrivão, solicitador. Sua mulher o engana com um policial, e Antônio desaparece no sertão. Quando ressurge, após dez anos de noite; tem a cabeça, os miolos e as maneiras de um profeta. É um homem barbudo, sem jeito, feio, sem aparência, uma sombra, e com olhos revirados. Mas esses olhos fascinam. Homens e mulheres seguem Antônio. O bando decide erguer em Canudos uma Jerusalém. Ele não descansa. Cada dia, doze casas santas saem da terra maldita. A República acaba de substituir o Império, ela tem necessidade de ordem. Ora os pobres do Conselheiro fomentam a desordem. A República decide esmagar o profeta. Quer ensinar os desmiolados do fim do mundo a morrer; e eles morrem, mas é estranho, os soldados vencedores tomam a pólvora, como que enfeitiçados. O Brasil se exaspera, mas o vilarejo de Canudos volta á suas tarefas domésticas. A cidade de Deus prospera. Logo haverá cinco mil e duzentas casas. O sertão enlouqueceu. Rumo aos casebres santos convergem vaqueiros, beatos, prostitutas, jagunços. A Bahia envia então outros soldados, que são novamente derrotados pelos vagabundos. Loucos de Deus_ Desta vez é o Rio de Janeiro que treme. Um exército com canhões Krupp e metralhadoras Nordenfelt cerca Canudos. Os loucos de Deus o arrasam. Eles têm escopetas de uma outra época, mas tomam a precaução de carregá-las com contas de rosário que fazem maravilhas. Abatem os soldados exclamando “Viva o bom Jesus!”. Entre as escaramuças, batem os sinos dos crepúsculos e das ressurreições. Uma última expedição é organizada em1897. Um monstruoso exército abate-se sobre o vilarejo de Canudos. Conselheiro morre. Os soldados da República, tão imundos então como os jagunços, entregaram-se a carnificina. Degolam, estripam todos os prisioneiros. Isso os fez rir A caatinga torna-se avermelhada, cheia de crânios e ossos. Na toca devastada restam quatro defensores, dos quais um velho e uma criança. Cinco mil soldados os atacam e os matam. Canudos não está mais neste mundo. Canudos está no céu. Geografia mártir_ Euclides escreveu um livro barroco e luminoso, que cativa e surpreende a cada episódio, que hesita entre a tolice e o gênio, Para começar ele nos inflinge 150 páginas sobre a geografia e a geologia do Nordeste. Cunha estava imbuído do cientificismo de sua época e da teoria dos climas. Sua idéia é que a guerra de Canudos e o personagem de Conselheiro são simples produtos de um sol inclemente e uma terra infeliz. Ele acha que uma geografia mártir devia engendrar um povo mártir. Alguns sorrirão com essas ingenuidades. Eles se enganariam em pular essas páginas. Mesmo fastidiosas elas são magníficas. Inventam nova disciplina, a geografia trágica. Há coisa mais estranha. Euclides republicano encarniçado, enfático e desdenhoso, homem da ordem e do progresso, apreciador da matemática como seu nome o inclina, imbuído enfim da superioridade das raças arianas, detesta os habitantes do sertão e os discípulos do Conselheiro. Profere injúrias contra os negros e os índios. Mais ainda, contra os mestiços, mamelucos, mulatos, cafuzos ou caboclos, que acrescentam á “tolice” dos negros a demência dos sangues impuros. Os mestiços são degenerados, malucos, convulsivos e esgotados. Psicóticos ou necrosados, eles perderam, ao longo das gerações, as virtudes dos brancos sem adquirir o vigor dos negros. São incuráveis. Não surpreende que esses homens disformes, preguiçosos, letárgicos e quase idiotas tenham se deixado levar pelo primeiro lunático que apareceu, erguendo-se contra a República e a Ciência, comportando-se como selvagens e imbecis! A eloqüência bárbara do Conselheiro não interessa em absoluto a Euclides. Ele suspeita desse tipo, que fala da “Idade do Ouro”, de ter sofrido influências judaicas, que horror! Com essas baboseiras, como ele consegue tornar o livro tão belo, tão inteligente? É que, ao escrevê-lo, vai se queimando a si mesmo. O livro trama seu próprio auto de fé. Cunha, no momento mesmo em que conta a epopéia de Canudos, descobre, sem se dar conta, ou antes com raiva, a intratável grandeza dos “incuráveis”, dos “degenerados”, dos “histéricos” de Canudos. Contra suas próprias certezas, consente que esses mulatos, que ele coloca no último lugar entre os homens, são heróicos e nobres. Descobre a beleza dos mestiços. Admira sua habilidade, sua generosidade, sua dignidade, sua glória e sua bela esperança. Uma violenta metamorfose opera-se diante de nossos olhos: o cientista de idéias secas adora o que pretende detestar. Seu canto de ódio torna-se um canto de amor por aqueles que acreditava desprezar. Belo como Goya_ Ao contrário, os soldados da República, que antes contavam com todos os favores, passam a ser infames. Cunha está repugnado com sua nulidade, sua covardia, sua crueldade e imbecilidade dos oficiais brancos, e mesmo pelo caráter vão desse combate duvidoso. “Esta guerra foi um crime”, ele acaba por reconhecer, com voz desesperada. O livro assume então o tom de um Te Deum, terno e comovente, à glória dos humilhados e ofendidos. O filósofo verboso é vencido pelo poeta que jazia em seu interior, e esse poeta é imenso. O longo relato da guerra de Canudos é belo como Hieronymus Bosch, belo como Goya. O poeta é brilhante, por exemplo quando descreve a cidade santa, da qual o próprio Conselheiro elaborou a planta. Não é uma cidade que os sertanejos construíram, mas uma ruína de cidade, um trapo ou um fantasma. Eles desenham um labirinto sem começo, nem fim, sem fio de Ariadne, um pardieiro grotesco e pré-histórico. Quando os soldados da República percebem o lamentável monumento são tomados de pavor. Sentem, confusamente, que ultrapassaram uma fronteira invisível, que saem da história e entram no domínio do informe. Não estão mais no mundo. A cidade santa é uma vala de Babel. No fim, os oficiais decidem esmagar os revoltosos com descargas de dinamite. Mas como destruir moradas de pó? As explosões quase soterram a cidade sobre sua própria lama. Nesse amontoado de escombros, os soldados enlouquecem, não encontram mais as saídas. São pegos na armadilha de sua vitória, enquanto no fundo das palhoças destruídas os sertanejos sobrevivem e lançam seus últimos tiros de rosário, “Intacta, a cidade santa era frágil. Transformada em escombros, ela torna-se formidável.” Crime fundador_ O livro é belo como o olhar cego de um vidente. Euclides da Cunha, que não quis compreender o profeta Conselheiro, tornou-se ele mesmo um profeta. Nas brumas resplandecentes do Nordeste, ele percebe os contornos que vão perturbar o século seguinte, o nosso. O “crime fundador” de Canudos prenuncia; todas as guerras que perpetraram e ganharam,nos últimos cinqüenta anos, os pobres e abandonados contra o exército britânico, francês, soviético ou americano. Essa frase escrita há um século não resume a fase da história militar na qual entramos: “O exército sente em sua força a razão de sua fraqueza”? Lá, no deserto supliciado, soava a “hora nova”, e já é o “tempo dos assassinos”. *Gilles Lapouge, jornalista e escritor, é autor de obras premiadas, como Les Folies Koenigsmark (Prêmio Goncourt de 1989) e Le bruit de la neige (Grande Prêmio de Ensaio da Sociedade de Letras de 1996). Além de ter morado no Brasil, é correspondente em Paris do jornal O Estado de S.Paulo. Em 2002 recebeu pelo conjunto de sua obra o Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa, uma das mais importantes premiações literárias.