O DISCURSO DAS FINANCIADORAS DE CRÉDITO

Propaganda
O DISCURSO DAS FINANCIADORAS DE CRÉDITO1
Bárbara Cristina Gallardo2
UNEMAT/TANGARÁ DA SERRA
Introdução
Este trabalho faz um estudo do discurso de seis financiadoras de crédito que
atuam na cidade de São Paulo desde o ano de 2004, quando o governo autorizou o
desconto em folha de empréstimos feitos a aposentados e pensionistas do INSS. O
objetivo desta análise é investigar as ferramentas lingüísticas e o discurso ideológico
que permeiam o texto produzido por elas. Para isso, são usados os conceitos da Análise
Critica do Discurso (ACD) e do discurso da mídia apresentados por N. Fairclough
(1989, 1993,1994, 1995), van Dijk (1996, 1998), e os conceitos de transitividade de M.
A.K. Halliday (1994). A conclusão sugere que através de estratégias lingüísticas, de um
discurso híbrido (informação+publicidade), da apropriação do discurso do governo, e da
inclusão/exclusão de fatos, as financiadoras atraem clientes sem comprometerem sua
imagem, naturalizando a idéia de ‘pedir empréstimo’, até que ela faça parte do status
quo.
1. Esboços de teoria
Após o governo autorizar o empréstimo aos aposentados e pensionistas do
INSS com juros mais baixos, e com desconto direto em folha, os bancos e financiadoras
de crédito começaram uma verdadeira batalha para atrair clientes. A escolha por esse
tipo de propaganda ocorreu devido ao seu surpreendente sucesso. A disputa por clientes
pode ser analisada através da mídia, meio que possibilita o acesso a um número maior
de pessoas ao texto publicitário.
As propagandas são criadas através de um conjunto de discursos ideológicos
que permeiam a sociedade. Elas são um reflexo das práticas sociais e podem, tanto
contribuir para a mudança de valores culturais e identidades, como reproduzir e
1
Este trabalho foi apresentado em forma de comunicação no XVIII ENPULI XXXIII SENAPULLI que
ocorreu na UECE, de 12 a 16 de junho de 2005.
2
Professora da UNEMAT – Câmpus de Tangará da Serra
perpetuar relações sociais já existentes. Fairclough (1995, p. 194) afirma que a mídia
tem o poder de influenciar decisões governamentais e partidárias, conhecimentos,
valores, relações e identidades sociais. Seu estudo torna-se assim justificável, já que
“constituem versões da realidade que dependem da posição social, interesses e objetivos
de quem os produz”.
Como as relações dessas mudanças discursivas, sociais e culturais não são
claras a todas as pessoas envolvidas (FAIRCLOUGH, 1989), a área de interesse da
ACD, de acordo com van Dijk (1998, p. 372), é a de explicitar “abusos de poder, isto é,
quebra de leis, regras e princípios de democracia, igualdade, e justiça por parte daqueles
que controlam o poder”. Van Dijk (1998, p. 373) afirma ainda que “poder e domínio são
geralmente organizados e institucionalizados, e que podem ser ideologicamente
sustentados e reproduzidos pela mídia”.
Fairclough (1993) sugere que um estudo completo da relação dialógica entre
língua e sociedade seja feito através de um quadro analítico constituído de três
dimensões interdependentes: prática social, prática discursiva e texto. Assim, na análise
a seguir são usados conceitos de transitividade e coerência para explicitar significados
presentes no texto; verificados os eventos que
permearam o surgimento dessas
propagandas (prática social); e investigadas as vozes presentes em seu discurso através
de conceitos de intertextualidade (prática discursiva).
A análise ideacional (ou seja, como o texto é representado no mundo, de
acordo com as escolhas léxico-gramaticais usadas), é baseada no conceito de dois
processos marcantes tanto nas propagandas de televisão quanto nos folhetos distribuídos
nas ruas: o relacional e o material. Eles fazem parte dos seis processos principais do
sistema da transitividade, da gramática sistêmico funcional de Halliday (1985,1994). De
acordo com esse sistema, é possível analisar a percepção de mundo das pessoas através
do modo como elas usam a linguagem. Halliday (1994, p.106) afirma que “a linguagem
capacita seres humanos a construir uma figura mental da realidade, fazer sentido do que
acontece ao seu redor e dentro deles”.
O processo material é o processo de ação, ou seja, um ator age sobre um
objeto. Na sentença “Você correu a vida inteira atrás de dinheiro”, “você” é o ator,
“correr atrás” o processo, e “dinheiro” o objeto. Dependendo da sentença, podem ainda
haver um beneficiário para quem algo é oferecido, ou um cliente, para quem são feitos
os serviços, como no exemplo, “A Bankaysser irá até você”, onde “Bankaysser” é o
agente, e “você” o cliente.
No processo relacional “algo ou alguém é dito ‘ser’ alguma outra coisa” (id.,
p.119). Ele é dividido em três subcategorias: Intensiva, “cifra é dinheiro” (Banco
Schahin), circunstancial, “não precisa nem sair de casa” (ServCred), e possessiva,
“agora (você) tem crédito” (Unibanco). Em cada subcategoria, há um modo atributivo e
um identificador. No modo atributivo, o participante envolvido é o ‘portador’ de uma
qualidade atribuída a ele (um atributo). Por exemplo, em ‘Cifra é sossego’, ‘sossego’ é
um atributo do portador ‘Cifra’. No modo identificador, o participante envolvido é um
elemento identificado que tem uma identidade compreendida através do identificador.
Por exemplo, em “Você é aposentado ou pensionista do INSS?” (Banco Cacique),
‘aposentado ou pensionista do INSS’ é o identificador do identificável ‘você’.
2 A pretensão da análise
Os exemplos a seguir foram retirados de folhetos de propaganda que são
distribuídos na cidade de São Paulo, e referem-se ao modo atributivo do processo
relacional. As financiadoras Morada, Cifra, G&E, Citifinacial e Finasa apresentam-se
da seguinte maneira:
1- Aqui, o tutu é sopa.
2- Cifra é dinheiro. Cifra é sossego.
3- G&E é dinheiro fácil e rápido
4- G&E é mais valor pra você.
5- O Citifinancial é o meu número.
6- O Crédito Pessoal Finasa é rápido, é simples, é rápido.
A subcategoria Intensiva estabelece uma relação de igualdade entre as
entidades. Assim, nos exemplos 1 a 6 as financiadoras apresentam-se como sinônimo de
dinheiro. As afirmações são feitas como se ‘sossego’, ‘fácil’, ‘rápido’, ‘simples’, ‘mais
valor pra você’ = ‘empréstimo’ fizessem parte do senso comum. Essa é uma estratégia
de manipulação usada pelo discurso da mídia com o objetivo de mudar o conceito das
pessoas em favor de interesse próprio (van Dijk, 1998). Assim como em qualquer outro
discurso, o discurso da mídia escolhe o que incluir e o que excluir (Fairclough, 1995), e
faz, nos casos analisados com que a idéia de ‘empréstimo = saldar uma dívida entrando
em outra, ou ainda comprometer rendas futuras por vários meses’ fique totalmente
camuflada.
A coesão textual realça a análise feita através do processo relacional, devido a
associação de palavras e expressões repetidas de foram exaustiva. Se considerarmos as
relações de igualdade que essas construções apresentam e suas funções, de acordo com
a análise acima das sentenças 1 a 6, podemos sugerir que a intenção da propaganda é
vincular o ato de ‘pedir dinheiro emprestado’ a uma imagem positiva e natural (fácil,
rápido, simples, sossego, sopa, mais valor pra você). Os marcadores coesivos fazem
parte do processo de manipulação do leitor; funcionam de maneira dinâmica, com o
intuito de naturalizar as associações apresentadas (FAIRCLOUGH, 1994).
Outra característica do texto coesivo encontrada no texto das propagandas é o
uso de ‘colocações’ (uso freqüente de algumas palavras com outras, de modo que soem
corretas):
7- Cred Amigo – o Crédito Pessoal para aposentado e pensionista do INSS.
8- PanAmericano – o banco amigo do aposentado.
9- Crédito Merecido - Empréstimo Facilitado Aposentados e Pensionistas.
10- Tutu, o melhor amigo do bolso dos brasileiros.
11- Morada. A receita do empréstimo descomplicado.
Embora as colocações sublinhadas não sejam encontradas em dicionários
especializados, elas são criadas pelo produtor do texto, e fazem parte do processo de
construção ideológica da mensagem. O objetivo é fazer com que o intérprete interiorize
essa associação. Esse objetivo é atingido quando a propaganda cumpre a sua função:
fazer com que os aposentados peçam dinheiro emprestado.
Os próximos dois exemplos referem-se a subcategorias intensiva e possessiva,
e ao modo identificável. A grande maioria das financiadoras apresentam a mesma
estrutura discursiva:
12- Você que é aposentado ou pensionista do INSS agora tem crédito. E não é num
banco qualquer. É no Unibanco.
13- Você é aposentado ou pensionista do INSS? Então tem um empréstimo préaprovado pra você, no banco Cacique.
A mensagem persuasiva embutida nos exemplos acima faz parte da estratégia
de marketing, muito comum no discurso da propaganda. X é incluído a um grupo Y
dentro da sociedade em que vive, por isso tem o mérito de possuir um ‘benefício’. Não
usufruir da ‘vantagem’ oferecida é como se sentir excluído da sociedade a que pertence.
Van Dijk (1998, p. 372) afirma que “o poder envolve controle” e que grupos poderosos
(a mídia, por exemplo) podem não somente limitar a ação de grupos sem acesso ao
poder, mas também influencia-los.
Fairclough (1994) afirma que a investigação do contexto sociocultural em que
o evento discursivo acontece é outro aspecto fundamental para o entendimento de um
evento discursivo. Essa investigação faz parte da prática social e preocupa-se com a
estrutura social que envolve questões de poder e ideologia em relação ao domínio
social, e as mensagens transmitidas na ocasião em que o evento discursivo acontece.
Levando-se em consideração o contexto social e os acontecimentos e notícias
da época em que o evento discursivo foi lançado (em maio de 2004), verificamos que a
propaganda baseou-se no anúncio do governo autorizando a cobrança de taxas de juros
mais baixas para os empréstimos feitos por aposentados e pensionistas do INSS. O
governo ainda autorizou que o desconto das parcelas fosse feito direto em folha de
pagamento.
Além disso, pesquisas de controle da população divulgadas pelo jornal Folha
de São Paulo e pela revista Veja, publicadas em 2004 revelaram que os brasileiros estão
vivendo mais, e que atualmente, a o dinheiro da aposentadoria é muitas vezes a única
fonte de renda em muitos lares brasileiros. A valorização do idoso é outro fator novo no
contexto social brasileiro. Desde 2001, tem se verificado o surgimento de várias
atividades dedicadas exclusivamente a população idosa, como por exemplo, viagens,
programas de exercícios físicos, e cursos em universidades (UNATIS).
Os fatos presentes no contexto da prática social ajudam a entender melhor a
análise da prática discursiva discutida a seguir. Essa prática investiga a origem da
produção de textos e de discursos bem como os aspectos sociais envolvidos em sua
interpretação.
O primeiro aspecto relevante da propaganda das financiadoras de crédito em
relação ao seu contexto social é o de que elas se apropriam do discurso do governo,
criando a imagem de amigas (“O banco amigo do aposentado”) e salvadoras
(“SuperCrédito INSS”, “SUPER Omni”) dos aposentados. Esta é uma das
características do conceito da intertextualidade (Kristeva, in FAIRCLOUGH, 1994) cuja
definição baseia-se no fato de que toda declaração contém vestígios de uma declaração
anterior. Na mensagem a seguir, por exemplo,
‘Você correu a vida inteira atrás de dinheiro e agora parou. Então nada mais justo que
parar de correr também atrás de dinheiro. Você que é aposentado ou pensionista do
INSS agora tem crédito. E não é num banco qualquer, não: é no Unibanco.’
o banco usa uma lei do governo em seu discurso (aposentado ou pensionista
do INSS agora tem crédito), e acrescenta sua voz (nada mais justo que correr atrás de
dinheiro), na tentativa de merecer a confiança do público alvo e vender o que ele
apresenta como ‘benefício’. Podemos observar que mesmo a mensagem ‘vocé que é
aposentado... agora tem crédito’ é manipuladora, (característica comum da estratégia de
marketing), pois mediante comprovação de renda e consulta ao SPC/SERASA,
trabalhadores em geral sempre tiveram crédito.
Mensagens de apoio como ‘então nada mais justo que parar de correr atrás de
dinheiro também’ atraem o público, pois por fazer parte do discurso informal, facilita a
aceitação do produto. Fairclough (1994) salienta que o discurso híbrido (mistura de
informação e publicidade) tornou-se uma nova tendência nos textos da mídia em geral.
Na primeira sentença do exemplo acima, o banco apresenta um fato real através de uma
metáfora. Na próxima, ele se solidariza com o aposentado. Em seguida, ele dá uma
informação, (como se fosse um fato inédito), e por último promove seu nome como
sendo o mais adequado para fornecer o serviço.
O processo material (ação) é apresentado por meio de imperativos. As
operadoras usam sua situação privilegiada para ordenar a ação do público alvo,
determinando as atitudes que eles devem tomar. Os aposentados são sempre os atores
dos processos materiais presentes nos folhetos analisados, com exceção do processo
oferecemos no exemplo 14, a seguir:
Faça seu Crédito Pessoal Finasa e ganhe uma Caneca Finasa Brasil.
Escolha uma agência Morada, acrescente a simpatia dos nossos funcionários e
descanse alguns minutos.
Passe agora mesmo na Losango e faça seu Empréstimo Pessoal. Veja as vantagens
que oferecemos a você: Parcele seu empréstimo em até 15 vezes iguais*
(*encargos inclusos nas parcelas fixas)
Realize seus sonhos.
Aposentem suas preocupações.
Podemos observar que as financiadoras convocam os aposentados (por meio
de imperativos) a fazer empréstimos, e associam o ato da ação a um benefício. No
exemplo 12, o ator ganha uma caneca; no 13, ele descansa; no 14, ele ganha uma
vantagem: o parcelamento de seu empréstimo. Mesmo com os juros todos embutidos
nas parcelas, o discurso da financiadora Losango (14) é o de que ela oferece uma
vantagem ao cliente. A escolhas lexicais oferecemos e vantagem reforçam a idéia de
estar se adquirindo um benefício.
Os exemplos 15 e 16 seguem o mesmo padrão dos demais, mas chamam a
atenção por apresentarem processos materiais cobiçados pela maioria dos seres
humanos. Assim, podem camuflar melhor a idéia de que um empréstimo tem que ser
pago com juros e, no caso anunciado, retirado diretamente da conta corrente do
requerente.
De acordo com discurso das propagandas das financiadoras de crédito, elas são
alguma coisa (dinheiro, sossego, mais valor pra você), mas não atores explicitamente.
Elas impõem tomadas de atitude ao público alvo, mas nominalizam as suas próprias
ações, descaracterizando-as como agentes. Assim, fica somente implícito quem está
fazendo a outra parte do negócio como por exemplo, cobrar taxas e descontar as
parcelas diretamente da folha de pagamento. Essa nominalização geralmente apresentase em tópicos, como se fossem vantagens:
Parcelamento em até 36 vezes.
Desconto em folha.
Empréstimo sem consulta ao SPC/SERASA.
Juros muito menores que no cartão de crédito e no cheque especial.
Basta o número do benefício do INSS, seu RG, seu CPF e comprovante de residência.
Excelentes taxas.
Empréstimo com última parcela grátis.
Crédito para todos os aposentados, inclusive aqueles que recebem o benefício em
outros bancos.
Considerações finais
A análise buscou evidências a fim de mostrar como o texto da propaganda das
financiadoras de crédito persuade seu público alvo. Para isso, foram investigadas a
prática textual (aspectos lexicogramaticais que o direcionam), a prática social (contexto
sociocultural em que o texto está envolvido) e a prática discursiva (a origem dos textos),
e que fazem parte do quadro tridimensional sugerido por Fairclough (1994) para uma
análise completa de evento discursivo.
Através dos itens lexicogramaticais pôde-se perceber que as financiadoras de crédito
colocam-se como carregadoras de qualidades atribuídas a elas e por elas próprias, e
colocam o público alvo como atores exclusivos das ações presentes no texto. Elas ainda
incentivam um grupo a fazer um empréstimo pelo fato de ‘ser’ algo (aposentado e
pensionista do INSS), e não porque realmente precisam. O processo material que tem os
aposentados e pensionistas do INSS como agentes é colocado na forma de imperativos.
As financiadoras ainda nominalizam suas funções, distanciando-se assim das
responsabilidades do negócio.
O estudo da prática social mostrou que o discurso surgiu a partir de uma lei
promulgada pelo governo, autorizando a cobrança de taxas de juros mais baixas para
aposentados, e desconto direto em folha. Isso significa que não há inadimplência, e por
isso é um bom negócio para os bancos e para as financiadoras de crédito, que recebem
comissão por cliente conquistado.
A prática discursiva revelou que há um misto de informação e marketing no discurso
das financiadoras, transmitido através de uma linguagem informal, mesmo quando
referem-se a assuntos relacionados a economia, como por exemplo, os números das
taxas de juros e impostos embutidos.
A análise crítica do discurso pretende combater a ação de grupos mais
poderosos na sociedade sobre os de menor poder. Se o acesso a informações sem
influências nem sempre pode ser garantido, a ACD oferece ferramentas que investigam
as intenções reais contidas em um texto, contribuindo assim para o estabelecimento de
uma
conscientização geral, e conseqüentemente para o estabelecimento de uma
sociedade mais justa.
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