558 “O CANTO LIVRE DE NARA”O ENGAJAMENTO POLÍTICO E A BUSCA PELAS “RAÍZES” DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NO OBRA DE NARA LEÃO ENTRE 1964 ATÉ 1969 Daniel Lopes Saraiva1 Resumo: Este artigo aborda uma das vertentes do debate sobre a Música popular Brasileira, trabalhando mais especificamente com a intérprete Nara Leão, cuja carreira iniciou-se no fim dos anos 1950 até 1989 (ano de seu falecimento). Nesta pesquisa iremos focar os 10 primeiros LP´s gravados pela intérprete entre 1964 e 1969. Esses LP´s marcam a primeira fase da carreira de Nara Leão, pois ainda em 1969 ela parte para o autoexílio em Paris, junto com seu então marido, o cineasta Cacá Diegues, essa mudança de país ocorre durante os anos de chumbo do regime militar. Nara, que sempre declarou ser contra os militares no governo, passa a ser um possível alvo do governo, uma vez que vários artistas já haviam sido exilados e torturados. Trabalharemos no artigo o engajamento da cantora e a busca desta pelas “raízes” da Música Popular Brasileira, Nara mostra em sua obra um Brasil com diversos problemas sociais e sem liberdade de expressão e com uma multiplicidade de cultura até então encoberta. Palavras-chave: Nara Leão, Música,Engajamento. Introdução: A Trajetória de Nara Leão Nara Lofego Leão nasceu em 19 de Janeiro de 1942, em Vitória. Quando tinha apenas um ano, seus pais Jairo e Tinoca Leão, mudaram-se para o Rio de Janeiro. Apesar de ser uma família de classe média, Nara ressaltava que ela e sua irmã Danuza foram criadas sem aqueles valores tradicionais da classe, fator esse que futuramente lhe possibilitaria tornar-se cantora. Sua trajetória musical começou cedo, quando, aos doze anos, passou a estudar violão com o professor Patrício Teixeira. Em uma época em que eram poucas 1 Aluno do programa de mestrado em história da Universidade Federal de São João del-Rei 558 559 as mulheres de classes mais altas que tocavam violão – pois o músico era estigmatizado como “vagabundo” – é fácil imaginar o que falariam de uma jovem cantora. Entretanto, isso não era problema para seu pai, pois foi ele quem a matriculou nesse curso.(CABRAL.2001,pp.9-17) Desde muito jovem, participava de rodas de violão na casa de conhecidos, com Roberto Menescal, do qual havia se tornado amiga em função da música. Em 1958, com a gravação de Chega de Saudade, a Bossa Nova tornouse conhecida nacionalmente e os shows em universidades e bares com a turma da Bossa aumentavam com rapidez. (CABRAL.2001,p.22) Segundo seus criadores, a Bossa Nova seria uma mistura de tradição e modernidade, a junção de elementos do bolero, jazz e samba, uma mistura de gêneros com uma interpretação mais contida, condizente com os lugares de inicio da bossa, apartamentos e barzinhos. A Bossa Nova se torna então um movimento com todas essas características. (NAPOLITANO.2007,pp.67-80) Diferentemente do que muitas vezes é dito, aquilo que mais tarde se convencionou chamar Bossa Nova não havia sido iniciado no apartamento de Nara Leão, pois isso seria desconsiderar centenas de profissionais que, desde pelo menos 10 anos antes, já vinham contribuindo para o que o autor Ruy Castro chama de “a modernização da música brasileira”. Entretanto, não se pode subestimar a importância deste espaço para o movimento, já que foi aí que nasceram várias composições e se programaram shows que carregariam a marca Bossa Nova.(CASTRO.2008,PP.11-22) Aqui identificamos um exemplo de quão moderno era Jairo Leão, pois permitia que essas reuniões ocorressem em sua casa, coisa não muito comum naquela época para o pai de uma garota. Nara, que sempre negava o título de musa da Bossa Nova, foi a inspiradora de várias canções desse movimento como Lobo bobo, O barquinho, Nós e o mar, entre outras, compostas em grande parte por Ronaldo Bôscoli, seu namorado na época e considerado um dos lideres do novo estilo. (MACIEL;CHAVES.1994,p.154) Entretanto, Nara não gravou Bossa Nova em seu inicio, ainda que tenha participado dos primeiros shows, sua capacidade como cantora era muitas vezes questionada por membros do grupo. em sua biografia, Bôscoli diz que Nara ficava sempre em segundo plano no grupo da Bossa Nova, isso devia a opinião de João Gilberto sobre a voz da cantora, para ele Nara 559 560 semitonava(Desafinava) .(MACIEL;CHAVES.1994,pp.170-171) Em entrevista ao autor desse artigo, Roberto Menescal confirma que a intérprete não era muito valorizada como cantora . A Nara... Ela era um pouco... Era considerada o mascote do grupo. Como a gente protegia a Nara, era mais moça, mais jovem, e a gente protegia muito ela – até a ponto de prejudicála. Quer dizer, a gente não... “Nara, canta aquele samba”. Ela tomava nota de tudo, então ela era meio gravadora da época, e a gente não dava o valor que devia dar. (MENESCAL.2011) Nos anos de 1962 e 1963, ocorreu uma cisão na Bossa Nova e duas linhas se firmaram: a Jazzística e a Nacionalista. A primeira continuava com os temas cantados desde o inicio da Bossa Nova – amor, sol, flor – e não fazia críticas ao regime militar. Já a segunda tinha uma letra mais engajada e, além de criticar o regime, cantava as mazelas sociais do povo. Entretanto, as duas conservaram o modo intimista de interpretar as canções. Nara, que, desde que havia rompido com Ronaldo Bôscoli se aproximara da linha nacionalista, resolveu lançar seu LP em 1964, a convite de Aloysio de Oliveira, pela gravadora Elenco. Contrariando o esperado, gravou sambistas como Cartola e Zé Kéti. Essa linha nacionalista passaria a ser chamada de engajada pelos críticos musicais da época. Nara já havia gravado uma participação no LP de Carlos Lyra e estava cada vez mais próxima do que se considerava como esquerda. E, ao se aproximar desta vertente, Nara passou a questionar as letras bossanovistas, que, segundo ela, não condiziam com a realidade do povo. (CABRAL.2001,pp.54-57) Com essa atitude, muitos de seus antigos companheiros de Bossa ficaram bem chateados, e a reconciliação só viria em 1971, em seu LP Dez Anos Depois. (CABRAL.2001,pp.143-147) Em seu segundo disco, Nara continua cantando a música engajada e nacionalista, destacando as mazelas do país, e também composições que se referem à vida humilde do cidadão brasileiro. Apesar de manter alguma referência à Bossa Nova em seu estilo de cantar, que seria considerado, junto com o de João Gilberto, o padrão do estilo musical: um canto em baixo volume, muitas vezes acompanhada apenas do violão (marcante em toda a sua carreira), e um repertório predominantemente engajado, à base de sambas. Esse LP foi lançado após o golpe militar, e a partir daí, Nara se tornou um 560 561 referencial contra a ditadura, em suas músicas, falas e interpretação.(NAPOLITANO.2007,p.112) Este segundo disco, intitulado Opinião de Nara, foi ouvido pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, que teve então a ideia de fazer um show para abrir o Teatro Arena, criado das cinzas do Centro Popular de Cultura (CPC). Para o espetáculo foram convidadas três pessoas que bem representavam as diferenças sociais brasileiras: João do Vale, o homem nordestino do campo; Zé Kéti, o malandro urbano do morro e Nara Leão, a menina da Zona Sul do Rio de Janeiro. A estreia do show Opinião ocorreu no dia 11 de dezembro de 1964, com muito sucesso, tanto de público quanto de crítica. Em meio às brincadeiras, o show fazia duras críticas à ditadura e, por isso, o teatro era lotado com meses de antecedência. (CABRAL.2001,p.78) No início de 1965, com problemas na voz, Nara precisou abandonar o show, tendo então a ideia de fazer uma viagem pelo Brasil para conhecer a música de outras regiões. Para ocupar seu lugar, sugeriu o nome da jovem Maria Bethânia, que tinha conhecido em uma viagem à Bahia. Já nessa época, Nara descobria novos talentos, característica que marcaria toda sua carreira. (CABRAL.2001,pp.81-85) Nara ainda participaria de outro espetáculo que tinha como eixo a crítica à ditadura – Liberdade, Liberdade, em 1965, com a presença não só da cantora, como também dos atores Paulo Autran e Tereza Rachel. O roteiro, assinado por Millôr Fernandes e Flavio Rangel, traz uma compilação de vários textos e canções sobre o assunto em voga, LIBERDADE. Suas críticas à ditadura ficaram famosas. Durante a ditadura militar, em várias ocasiões, a cantora expressou seu posicionamento contrário à condução da política brasileira e, em função disso, ficou durante muito tempo estigmatizada como cantora de protesto. Desde seu primeiro LP, Nara mesclava peças dos compositores Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, sambistas do morro, pouco conhecidos do público de classe média ou que experimentavam dificuldades em difundir seu trabalho, com outras de compositores em inicio de carreira. Foi ela primeira a gravar Chico Buarque, Sidney Miller e outros. Segundo Zuza Homem de Mello, ser gravado por Nara era um passaporte para o Olimpo da Música Popular Brasileira. (MELLO.2003,p.133) 561 562 Nara ainda participou da Tropicália, um movimento cultural em vários setores das artes plásticas, do cinema e da música. Sobre este movimento musical, Napolitano resume as ideias de Caetano: Na esfera especificamente musical, Caetano defendia a necessidade de incorporar materiais e técnicas que não se limitassem aos “gêneros convencionais de raiz”, nem ao campo folclórico, absorvendo inclusive as modas musicais internacionais e gêneros considerados "menores” na hierarquia cultural. A partir de 1967, esse projeto musical recebeu o nome de “som universal”. No plano da composição, Caetano comparou esse procedimento ao som da bossa nova, assumindo a utopia, latente no seu projeto,da “autonomização” de artistas e consumidores de arte em relação a imposições do mercado de bens culturais. (NAPOLITANO.2007,p.131) Nara, mesmo que não muito presente, ajudou na sua repercussão, por já ser uma cantora consagrada. O próprio Caetano Veloso coloca Nara como uma pessoa sem preconceito em relação ao Tropicalismo, diferentemente de seus companheiros de Bossa-Protesto. Para Caetano, “Nara representava a Bossa Nova em sua origem e liderava a virada para a música participante, era, portanto, a música brasileira em pessoa”. (VELOSO.1997,p.269) A cantora nada tinha contra a Jovem Guarda, que para muitos cantores, compositores e críticos, era a antítese do que deveria ser a música brasileira, seja pelas letras consideradas “vazias” ou pela influência norte-americana, e mesmo pelo que entendiam como a pouca capacidade de cantar de seus integrantes. Por esses motivos, o movimento era repudiado pela maioria dos setores da MPB, que consideravam a Jovem Guarda um movimento alienador. (NAPOLITANO.2007,pp.95-98) Chegou mesmo a compor e gravar várias versões de canções internacionais. Além disso, cantou música infantil, regional, samba, samba enredo, música romântica (o bolero Lindonéia é um exemplo), além de Bossa Nova, música engajada, etc. Nara contribuiu para a institucionalização da Música Popular Brasileira (mesmo não tendo noção disso), durante toda sua carreira, sem preconceito. O crítico musical Tárik de Souza, em um texto para a coletânea com toda a obra da artista lançada em 2002, tenta resumir seu perfil: Nara sabia para que, quando e como usar sua voz de soprano ligeiro com inclinação ao falsete. Descobriu novatos, renovou esquecidos, estabeleceu pontes com a vizinhança latina e com a protest song 562 563 americana, elegeu prioridades e abriu a mente da multidão que a ouvia. Cantou sempre com inteligência, sensibilidade e convicção. (TARIK..2002) Traçado então um pequeno perfil da intérprete, trabalharemos com a primeira fase da cantora que vai de 1964 até 1969, observando suas escolhas de repertório, busca pelas diversas vertentes musicais e seu engajamento político. A busca pelas “raízes” da Música Popular Brasileira e o engajamento político de Nara Para Marcos Napolitano os anos de 1964 e 1965 marcam a consolidação da tradição do samba na música popular brasileira, três intérpretes então tem destaque, seriam elas Nara Leão, Elis Regina e Elizeth Cardoso. Segundo o autor, de diferentes maneiras elas procuram seguir essa nova orientação estético/Ideológica caracterizada pela “subida ao morro” e pela “ida ao sertão”. (NAPOLITANO.2007,pp.95-98) Nos anos citados pelo autor, Nara gravou 4 LP´s .E o que pode ser observado é que a intérprete grava diversas canções sobre o cotidiano do trabalhador, a vida sofrida no morro, a vida dura do retirante nordestino, os festejos populares. Mas de que forma ocorreu a aproximação da musa da Bossa Nova, menina da zona sul de Copacabana, desses temas? A cantora, depois do termino de seu noivado com Ronaldo Boscôli, aproxima de Carlos Lyra (seu amigo de longa data) e do cineasta Ruy Guerra, ambos participantes do CPC (Centro Popular de Cultura). O CPC foi fundado pela UNE (União Nacional dos Estudantes) e tinha como objetivo falar do povo, pelo povo, buscar as raízes do autêntico homem do povo, buscando uma identidade nacional; isso seria feito através da arte popular em diversas áreas: música, teatro, literatura, cinema, entre outras, e se juntariam nessa busca pelas raízes. (RIDENTI.2000,pp.102-108) Nara não chegou a fazer parte do CPC, mas manteve proximidade com vários integrantes do grupo, tais como Rui Guerra, Carlos Lyra, Sergio Ricardo, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, que compuseram diversas músicas que fizeram parte do seus primeiros LP´s. 563 564 Essa nova vertente da intérprete causou estranhamento da impressa. Roberto Menescal fala sobre as primeiras gravações de Nara E começa ali, a entrar ali, e começa, e descobre o morro, descobre o Zé Keti, descobre não sei o que... E se apaixona por aquelas coisas que a gente nem tomava conhecimento. A gente achava que era isso aqui e acabou-se. E ela começa a mostrar isso, e vira uma coisa interessante. Para a imprensa, a menina rica de Copacabana, cantando o morro... Subindo o morro e cantando o morro. Então, quer dizer, a importância, primeiro: ela na Bossa Nova foi muito importante, aí ela começa a descobrir o morro e trazer para o asfalto. Nara foi a pessoa que trouxe... Depois vem Clara Nunes, que joga com o samba assim, com as raízes. Mas Nara foi a primeira! Aí faz dois espetáculos: “Liberdade, Liberdade” e “Opinião” e ela com o pessoal do morro. Então a classe média brasileira começa a conhecer o samba, esse samba bonito, que a gente achava que só... [cantarola] “Lata d‟água na cabeça, lá vai Maria...”. Aí quando vê, “As Rosas Não Falam”, você começa, através dela, descobrir isso, e jogar com a nova MPB que vem por ali, que é Edu Lobo, Chico Buarque, ela começa. Ela se envolve com o tropicalismo. Então, Nara estava sempre na contramão. Tanto que Nara só foi gravar bossa nova em 1970, bossa nova “Dez Anos Depois. (MENESCAL.2011) Entretanto, com estranhamento ou não, Nara continuou gravando um repertorio composto por diversas críticas sociais. Um dos compositores que ganha destaque nas primeiras gravações da intérprete é o sambista do morro Zé Keti, nascido em 1921 no bairro de Inhaúma, no Rio de Janeiro. O sambista estava praticamente esquecido nos anos 1960, e as gravações de Nara chamam atenção para a obra do compositor, que participaria depois, junto com a intérprete, do espetáculo Opinião, e depois seria gravado por outros intérpretes. O que vale destacar é que o compositor compunha coisas do seu cotidiano, uma vida sem regalias e com muitas privações, e ainda com grande proximidade de festejos populares como o carnaval. (CABRAL,1982,pp.3-6) A música opinião, de Zé Keti, gravada por Nara no segundo LP, mostra porque até 1966 Nara seria considerada um referencial de resistência ao regime militar . Podem me prender, podem me bater Podem até deixar-me sem comer Que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não. Se não tem água, eu furo um poço Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa E deixo andar, deixo andar 564 565 Fale de mim quem quiser falar Aqui eu não pago aluguel Se eu morrer amanhã, seu doutor 2 Estou pertinho do céu... Essa canção pode ser observada de duas formas, a primeira, a vida de um morador do morro, que enfrenta diversas dificuldades e privações na sua vida no morro, mas no entanto ele não pretende sair de lá, entretanto, ao analisarmos o período que o disco foi lançado, podemos perceber que a ditadura já havia sido instaurada no Brasil, e Nara, como outros artistas, eram contrários aos militares no governo, que haviam fechado a UNE e o CPC. A frase eu não mudo de opinião pode então ser vista como uma resistência aos recentes acontecimentos no país, uma vez que ela era contraria ao regime e não pretendia mudar de opinião. Essa preocupação em cantar as diferentes vertentes de um só Brasil e passar uma mensagem com a canção fica evidente no encarte do Lp Opinião de Nara, com suas palavras ela define o porquê da escolha de um repertorio variado: Este disco nasceu de uma descoberta, importante para mim: a de que a canção popular pode dar às pessoas algo mais que a distração e o deleite. A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificarem num nível mais alto de compreensão. A música popular é um dos mais amplos modos de comunicação que o próprio povo criou, para que as pessoas contassem uma às outras, cantando suas experiências, suas alegrias e tristezas. É fato que, na maioria dos casos, esses sentimentos se referem a situações individuais, a que os compositores conseguem dar amplitude. Mas existem outros problemas, outras tristezas e outras alegrias, não menos profundas e não menos ligadas à vida de todo dia. E os compositores, como Zé Keti, João do Vale ou Sérgio Ricardo, entre outros, falam dessas coisas. Eles revelam que, além do amor e da saudade, pode o samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade. E quem sabe se, cantando essas canções, talvez possamos tornar mais vivos na alma do povo ideias e sentimentos que o ajudem a encontrar, na dura vida, o seu melhor caminho. (LEÃO,1964) O tema vida no morro é recorrente nos discos da intérprete, entretanto ele não é composto apenas por sambistas que lá viviam, o samba O Morro, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri(membros do então extinto CPC, e oriundos da classe média ), traz uma crítica explicita à vida no morro, vida que seria triste, e que precisaria de mudança: 2 “Opinião”, Zé Kéti,gravada no LP Opinião de Nara, gravadora PHILIPS,1964 565 566 Salve as belezas desse meu Brasil Com seu passado e tradição E salve o morro cheio de glória Com as escolas que falam no samba Da sua história Feio, não é bonito O morro existe Mas pede pra se acabar Canta, mas canta triste Porque tristeza E só o que se tem pra contar Chora, mas chora rindo Porque é valente E nunca se deixa quebrar Ah! Ama, o morro ama Um amor aflito, um amor bonito 3 Que pede outra história Importante ressaltar é que o CPC trouxe para os compositores da camada média intelectual brasileira a busca pelo popular, os temas que eles passam a abordar estavam dentro de um contexto diferente do que eles faziam parte. Nara tem muito desse elemento na sua obra, mesmo sendo de uma família abastada e com um alto nível intelectual,ela resolve cantar canções sobre um contexto diferente da sua vivência, isso passa a ser visto então como uma bandeira política, uma vez que ao cantar os problemas sociais do país ela expunha para a classe média brasileira (público atingido por ela) um retrato de um Brasil diferente que o governo militar trazia. Um Brasil atrasado, pobre, com grandes diferenças sociais, diferente do “Brasil em expansão” mostrado nas propagandas do regime militar. Outro compositor gravado por Nara que trazia em suas composições os problemas sociais era João do Valle, nascido em pedreiras no Maranhão em 1933, ele era o quinto de oito filhos, trabalhou desde cedo para ajudar em casa, mudou para o Rio de Janeiro em 1950, quando começa a ter suas canções gravadas. Em suas canções ele trata de problemas da seca, falta de terra, necessidade de reforma agrária, a vida dura do lavrador. (PINTO.1982,pp3-6) A música Sina de Caboclo, gravada por Nara em 1964, contém diversos desses problemas sociais citados, na canção ele canta a vida de um lavrador, fala da injustiça de ter que dividir o que ele planta com o proprietário da terra 3 “O Morro”,Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, gravado no LP NARA, gravadora Elenco,1964. 566 567 que não planta nada, cita ainda os problemas da seca, faz referência à migração nordestina e à reforma agrária. Mas plantar pra dividir Não faço mais isso, não. Eu sou um pobre caboclo, Ganho a vida na enxada. O que eu colho é dividido Com quem não planta nada. Se assim continuar ,vou deixar o meu sertão, Mesmo os olhos cheios d'água E com dor no coração. Vou pró Rio carregar massa pros pedreiros em construção. Deus até está ajudando . está chovendo no sertão Mas plantar pra dividir Não Faço mais isso,não Quer ver eu bater enxada no chão, Com força, coragem, com satisfação ? É só me dar terra prá ver como é eu planto feijão, arroz e café vai ser bom prá mim e bom pró doutor Eu mando feijão, ele manda trator. Vocês vai ver o que é produção Modéstia á parte, eu bato no peito 4 Eu sou bom lavrador Essa é uma das tantas canções do compositor sobre os problemas na região nordeste do país. Durante entrevista ao jornal O Pasquim o compositor João do Vale foi questionado sobre como ele começou a escrever canções de protesto e por que, sua resposta elucida a questão : Olha, eu faço das coisas que eu vejo na minha região. E,engraçado, não era chamado de protesto.O Gonzaga gravava, a Marinês. O pessoal achava que eu estava cantando os problemas da região Depois, de um certo tempo para cá, eles vieram com esse nome de protesto, entendeu? E aí a turma acha isso, que eu faço música de protesto.(AUGUSTO;JAGUAR.2009,p.357) A resposta de João do Vale reafirma o que dissemos antes. Os compositores oriundos das classes menos abastadas cantavam sua vivência, os problemas que eles ou pessoas de seu convívio social viviam, suas músicas não tinham objetivo político, entretanto ao serem gravadas por outros artistas, essas canções ganham uma representação diferente. Uma mesma canção ganharia então uma interpretação diferente, uma vez que cada artista faz parte 4 “Sina do Caboclo”, João do Valle e J.B de Aquino,gravado no LP Nara,gravadora Elenco,1964 567 568 de um circulo social e pode atingir um público diferente. Chartier afirma que noção de representação: Permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns „representantes‟ marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHARTIER.1990,p.23) Ou seja, as músicas cantadas por Nara ganhavam uma resignificação, ganhando então um caráter político e contestador de uma dura realidade Brasileira. A intérprete fazia críticas ao governo não só cantando as mazelas sociais do país, mas também eu suas entrevistas para jornais e revistas da época, seu biógrafo Sergio Cabral narra uma passagem na qual, depois de dar uma entrevista, falando sua opinião sobre os militares no governo, a cantora teve problemas com os governantes . A partir de uma entrevista concedida ao diário de Notícias,em maio de 1966, Nara Leão passou a ser personagem principal das páginas políticas dos jornais brasileiros. Na entrevista, além de pedir a retirada dos militares do poder, punindo-os com a cassação dos seus direitos políticos, defendeu nada menos do que a extinção das forças armadas.”uma vez que os militares podem entender de canhão ou metralhadora e dada pescam de política”,disse ela, a Presidência da República deveria ser entregue “a um civil,que nacionalizaria as empresas, possibilitaria a formação de técnicos, o melhor nível da vida do operariado e o desenvolvimento econômico do país”, Justificou o fim das forças armadas, dizendo que “não servem para nada, como foi constatado na última “revolução”, quando o deslocamento das tropas foi prejudicado por alguns pneus furados. Numa guerrilha moderna, o nosso exército não serviria pra nada”...firmou que o exército gasta “muito dinheiro quando o Brasil precisa de mais escolas, professores, técnicos e hospitais” (CABRAL.2001,p.99) Essa foi uma das tantas entrevistas em que a cantora se manifestava contra o governo Militar, entretanto foi a entrevista que gerou maior repercussão, uma vez que alguns setores do exército queriam a prisão imediata da intérprete. Nara ficou muito assustada com toda repercussão e distribuiu uma nota para a imprensa dizendo que não quis incitar os civis contra 568 569 o exército, mas não deu nenhuma entrevista mudando de opinião. Vários artistas se manifestaram contrários a possível prisão da cantora, e temendo que um processo contra Nara pudesse prejudicar a imagem do regime, o ministro da justiça Men de Sá resolveu não abrir um processo contra ela, o que gerou forte irritação dos militares mais extremos e de alguns membros do governo. (CABRAL.2001,pp.99-107) O que pode ser obsevado é que, seja em suas gravações ou em suas entrevistas, Nara tinha uma preocupação social e política com o país, ela buscava em sua obra cantar diversos tipos de gêneros musicais, mas sempre preocupava em passar mensagens de cunho denunciatório, revelando os diversos problemas do país , como ela mesmo disse ao gravar o primeiro LP, que existia um mundo além do apartamento zona sul (CABRAL.2001,p.70), ao cantar expondo os problemas do país e ao dar suas opiniões contrarias a regime militar, Nara tira os brasileiros da classe média (público mais atingido pela intérprete) da zona de conforto, pois ela representava a classe média do país, que, em sua maioria, apoiava o regime militar, para ela sua obra tinha um caráter informativo, pois essa classe média muitas vezes não tomava conhecimento do que acontecia fora de suas casas. Um repertório engajado e posições contrárias ao regime militar fizeram com que Nara e seu então marido, o cineasta Cacá Diegues, partissem para o autoexílio em Paris no ano de 1969. Segundo Chico Buarque, Nara era um dos nomes mais citados durante os interrogatórios que ele era submetido, chegaram a anunciar que pretendiam enfiar um ferro quente nela. Era hora de mudar.(CABRAL.2001,p.140) Conclusão Foi mostrado brevemente nesse artigo é a relação da intérprete Nara Leão com a busca das raízes musicais brasileiras. Ao cantar diferentes gêneros musicais, a cantora mostra as diferentes facetas do nosso país. Ao expor os problemas sociais em suas gravações, Nara passa a representar um símbolo de resistência contra o regime militar, que queria mostrar um país rico e em franco processo de desenvolvimento. O discurso da intérprete reitera o seu caráter político, pois diversas vezes criticou o governo 569 570 vigente, quase causando sua prisão, o que fez com que a cantora se autoexilasse em 1969. Essa infinidade de temas cantados se dá na escolha do repertório desses 10 primeiros LP‟s, pois gravou uma diversidade grande de compositores de diferentes locais,com diferentes trajetórias de vida,de diferentes idades isso faz com que a obra da intérprete seja bem eclética . As canções gravadas por Nara geralmente trazem alguma mensagem informativa ou reflexiva, e é dessa forma que ela trabalha sua obra, na busca por uma música popular ligada às raízes culturais brasileiras, ideal esse parecido com o dos antigos membros do CPC, que cantavam os problemas da nação em um período que os militares dominavam o país. Nara até hoje é lembrada como uma artista engajada, que fazia parte da resistência contra o governo, entretanto ela não pode ser introduzida em apenas um gênero ou um grupo da música popular brasileira, uma vez que para ela toda música trazia uma mensagem e por isso ela cantou diversos compositores,gêneros,locais,festejos,religiões tudo que estava ligado com a vida do brasileiro.E esteve ligada à diversos movimentos musicais durante o período. Referências Bibliográficas AUGUSTO,Sérgio e JAGUAR org, O Pasquim- Antologia –Volume III-19731974,RJ,Editora Desiderata,2009 CABRAL, Sérgio. Nara Leão: Uma Biografia. Rio de Janeiro: ED. Lumiar, 2001. ---------------------História da Música Popular Brasileira:Zé Kéti e Monsueto,SP.ABRIL.1982 CASTRO, Rui. Chega de Saudade: A História e as Histórias de Bossa Nova. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. ____________________, Nara Leão. Coleção 50 Anos de Bossa Nova. Rio de Janeiro: MEDIA fashion, 2008. CHARTIER, Roger. A história cultural. 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