514 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 4, Dezembro, 1999 Calculo da Distribuic~ao de Cargas na Banda de Conduc~ao em Junc~oes Semicondutoras: um Exerc cio de Fsica (Computacional) (Calculation of the charge distribution in the conduction band in a semiconductor junctions: a (computational) physics exercise) Adenilson J. Chiquito Departamento de Fsica, Universidade Federal de S~ao Carlos Rodovia Washington Luiz, Km 235, CP 676, CEP 13565-905 S~ao Carlos - S~ao Paulo Recebido em 25 de Janeiro, 1999 Neste trabalho, e descrito um modelo eletrostatico para o calculo do perl da banda de conduc~ao em heteroestruturas semicondutoras. Procedimentos numericos simples abordados em cursos de Fsica Computacional s~ao utilizados para descrever algumas caractersticas de estruturas semicondutoras como a forma da banda de conduc~ao quando dois materiais diferentes s~ao unidos. In this work, we describe the use of physical concepts in the development of a electrical model for explain the behavior of semiconductor junctions. General numerical procedures used in Computational Physics courses are applied to semiconductor structures in order to describe some aspects of charge distribution in the conduction band of an heterostructure. I Introduc~ao Apos a invenc~ao do transistor em 1948 [1], a pesquisa em semicondutores foi uma das areas da Fsica que mais se desenvolveram. Na decada de 70 o conceito de heteroestrutura, ou seja, a uni~ao de materiais diferentes deu outro grande impulso a Fsica mas de um modo geral, inuenciando n~ao somente a area de semicondutores. O grande desenvolvimento das heteroestruturas se deve a facilidade de controle das propriedades eletricas e opticas em consequ^encia da exibilidade da estrutura das bandas [2, 3]. O desenvolvimento dos dispositivos eletr^onicos baseados em heteroestruturas alcancou seu atual estagio de sosticac~ao, em grande parte, gracas a uni~ao entre experimentos reais e experimentos computacionais (simulac~oes). Simulac~oes numericas dos comportamentos eletrico e optico de dispositivos semicondutores constituem-se em uma ferramenta muito util para o estudo dos fen^omenos fsicos que se relacionam com as propriedades destes dispositivos, uma vez que a determinac~ao da resposta de um sistema semicondutor a aplicac~ao de uma excitac~ao externa (por exemplo, campo eletrico) pode ser comparada com resultados experimentais. A descric~ao de uma situac~ao experimental especca atraves de metodos numericos pode ser algo complicado, dependendo basicamente da complexidade e-mail: [email protected] do sistema estudado e da exatid~ao do modelo teorico usado. Por outro lado, o processo de implementac~ao do modelo teorico na descric~ao de um dado sistema e um exerccio rico em conceitos fsicos e principalmente, permite a aplicac~ao deles em situac~oes praticas. Para falarmos de junc~oes semicondutoras ou de um modo geral, de semicondutores, necessitamos de um passo anterior que e o conhecimento do conceito de bandas de energia dos materiais: consideremos um sistema de dois atomos, os quais est~ao separados por uma dist^ancia muito maior que o raio de cada um deles. Todos os nveis eletr^onicos deste sistema s~ao duplamente degenerados com relac~ao a troca de partculas. Por exemplo, um eletron que esta no nvel 1s de um destes atomos tambem pode ocupar o nvel 1s do outro atomo: ha duas func~oes de ondas distintas com a mesma energia, ou degeneresc^encia dupla. Em seguida, aproximando os atomos progressivamente n~ao e mais possvel desprezar a interac~ao entre eles: a degeneresc^encia e quebrada e assim aparecem dois nveis com autofunc~oes e energias distintas. A extens~ao deste raciocnio e imediata: num sistema de tr^es atomos todos os nveis s~ao triplamente degenerados, com quatro atomos os nveis apresentam degeneresc^encia de ordem quatro, e assim por diante. Se considerarmos n atomos proximos, cada nvel at^omico sera Adenilson J. Chiquito expandido em n nveis distintos. Como consequ^encia do grande numero de atomos presentes em um cristal (n 1023) e do arranjo periodico destes atomos formando a rede cristalina, os estados energeticos que descrevem o cristal se organizam de forma peculiar atraves do surgimento de faixas contnuas destes estados, porem limitadas e separadas uma das outras por faixas de energias proibidas. As faixas de energias permitidas s~ao as chamadas bandas de energia. Na gura 1 temos a representac~ao esquematica da discuss~ao acima. Note que entre as faixas de estados permitidos existe um intervalo sem estados eletr^onicos, chamado de \gap" (intervalo proibido) de energia. Dessa forma podemos caracterizar, a grosso modo, os diferentes materiais em condutores (se n~ao ha gap ou se e muito pequeno) e isolantes (se o gap e grande). Os semicondutores apresentam gaps com energias da ordem de alguns eV, apresentando tanto caractersticas de condutores como de isolantes, em funca~o de par^ametros externos (temperatura, campo eletrico, etc). Figura 1. Conforme os atomos se aproximam, a degeneresc^encia dos nveis at^omicos e quebrada e as energias s~ao distribudas em um numero de nveis igual ao numero de atomos do sistema. Note que as bandas de energia assim formadas podem se cruzar, e se estes nveis estiverem ocupados, teremos um solido com comportamento metalico. Neste trabalho, usaremos simulac~oes numericas para a determinac~ao do perl da banda de conduc~ao caracterstico de duas estruturas semicondutoras: a primeira e formada por um semicondutor uniforme (GaAs) e a outra, uma heteroestrutura (GaAs=AlGaAs). Nas sec~oes 2 e 3, discutiremos como resolver o problema do calculo do perl da banda de conduc~ao utilizando conceitos fundamentais como a equaca~o de Poisson. Na sec~ao 4, ser~ao discutidos os metodos numericos empregados e a implementaca~o dos calculos. Finalmente, ser~ao apresentados os resultados e discuss~oes juntamente com a conclus~ao. 515 II Modelo eletrostatico para a distribuic~ao de cargas Para desenvolver nosso modelo, temos que escolher as quantidades fsicas que s~ao importantes para a descric~ao do potencial eletrico numa estrutura semicondutora. Neste trabalho trataremos apenas a banda de conduc~ao, uma vez que considerac~oes e ideias analogas podem ser igualmente aplicadas a banda de val^encia. Quando falamos em um dispositivo eletr^onico, necessariamente temos que considerar a exist^encia de contatos eletricos que permitam a ligac~ao do material semicondutor que constitui o dispositivo com o mundo externo, como por exemplo um circuito experimental para a determinac~ao das propriedades eletr^onicas do semicondutor. Estes contatos s~ao geralmente construdos com lmes metalicos depositados sobre o semicondutor[5]. Dois tipos basicos de contatos podem ser utilizados [1]: os contatos ^ohmicos ou lineares e os contatos reticadores (contatos Schottky). Vamos considerar o caso simples de um contato metal-semicondutor (MS) do tipo reticador, no qual o semicondutor e uniforme (gura 2). Para a descric~ao de um sistema no qual existem cargas, um caminho possvel e a utilizac~ao da equaca~o de Poisson: d2 (x) = (1) dx2 "s onde e o potencial eletrostatico, e a densidade de cargas distribudas no sistema e "s e a constante dieletrica. E razoavel tratar apenas uma direca~o porque o campo eletrico sob o metal do contato eletrico e uniforme e perpendicular a superfcie [4]. Neste trabalho assumiremos que os semicondutores s~ao do tipo n, ou seja, os portadores de carga s~ao os eletrons. Na gura 2 esta o diagrama da evoluc~ao das bandas de energia no espaco real (energia dist^ancia) para uma junc~ao MS no caso de um contato reticador. Quando n~ao est~ao em contato (gura 2a), as bandas s~ao planas e cada material possui um potencial qumico bem denido; colocados em contato, tem incio um processo de busca de equilbrio (situaca~o na qual o nvel de Fermi e contnuo atraves de toda a estrutura) atraves da troca de partculas entre os dois materiais. Se as partculas trocadas n~ao tivessem cargas, nada ocorreria com as bandas de conduc~ao dos dois materiais. Como os eletrons possuem carga, a separac~ao espacial entre eles produz um campo eletrico que curva as bandas (gura 2b) criando uma regi~ao desprovida de eletrons, conhecida como regi~ao de deplec~ao. Para que a equac~ao de Poisson descreva o perl (em energia) da banda de conduc~ao, precisamos estabelecer uma relac~ao entre a energia dos eletrons na banda de 516 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 4, Dezembro, 1999 conduc~ao (Ec) e o potencial (x). Note que o potencial varia com a posic~ao, o que implica numa correspondente variac~ao da energia eletr^onica na banda de conduc~ao (gura 2b): Ec (x) = EF , q(x) (2) com q sendo a carga elementar e EF o nvel de Fermi. Continuando, devemos agora determinar qual e a densidade de carga (= (x), por unidade de volume), a qual e composta por eletrons na banda de conduc~ao e pela carga dos doadores ionizados. As concentrac~oes de portadores s~ao determinadas normalmente atraves da estatstica de Fermi-Dirac (ou Boltzmann); no nosso caso porem, a analise e mais complicada porque a energia eletr^onica depende da posic~ao, como mencionado acima. Assumimos que o semicondutor e do tipo n e assim, a distribuic~ao de eletrons livres na banda de conduc~ao e dada por [6]: n(x) = Z 1 EC g(E; x)f (E; x)dE (3) onde g(E; x) e a densidade de estados e f (E; x) e a bem conhecida func~ao de ocupaca~o de Fermi-Dirac (na refer^encia [7] e dada uma derivaca~o completa da distribuica~o de Fermi-Dirac e s~ao analisados varios casos limites interessantes para ambas g(E ) e f (E )). Figura 2. (a) metal e semicondutor como sistemas separados; (b) quando estes dois sistemas s~ao unidos, a troca de cargas entre os dois curva as bandas de energia proximo a interface. Somente as bandas do semicondutor se curvam, a princpio, porque o campo eletrico gerado pela troca de cargas n~ao consegue penetrar no metal, sendo blindado pela grande numero de eletrons no metal. Note que estamos trabalhando com um diagrama de energia em func~ao da dist^ancia. Neste esquema, B e a altura da barreira Schottky, m e a func~ao trabalho do metal e e a eletroanidade do semicondutor. Computando a carga lquida, devemos considerar tambem os atomos doadores1 que est~ao ionizados apresentando, portanto, carga diferente de zero. Assumiremos ainda, que os doadores est~ao distribudos uniformemente atraves de toda a estrutura. Na seca~o 3 sera discutida a utilizac~ao de dopagem n~ao uniforme em heteroestruturas, um procedimento usual na construca~o de dispositivos semicondutores o qual busca otimizar algumas das propriedades destes. Com esta contribuica~o, consideramos todas as fontes de carga no nosso sistema [8] e nalmente podemos escrever a equaca~o de Poisson, completa: d2(x) = (x) = q n(x) , N + d dx2 "s "s (4) Nd+ representando o numero de doadores ionizados. Esta e a forma geral para a equac~ao de Poisson numa estrutura semicondutora, seja formada por camadas de semicondutores diferentes ou n~ao2. Temos ainda um ponto a considerar: matematicamente, para a soluc~ao de uma equac~ao diferencial de segunda ordem necessitamos de duas condic~oes iniciais para iniciar os calculos, como o potencial e sua derivada (campo eletrico num dado ponto); por outro lado, como a equaca~o (4) esta acoplada a uma situac~ao fsica real, existem condic~oes de contorno que devem ser satisfeitas. Na interface MS (x = 0), o potencial (x) tem um valor bem determinado, dado pela altura da barreira Schottky B (gura 2). No interior do semicondutor (x = 1), a neutralidade de carga deve existir e assim o campo eletrico deve ser nulo. Portanto, as duas condic~oes de contorno para nosso problema s~ao: (x = 0) = B d(x) dx x,!1 = 0 (5) (6) Note que (5) e (6) n~ao coexistem no mesmo ponto do eixo x (veja gura 2) o que n~ao nos impede de utiliza-las como \condic~oes iniciais". Isto cara mais claro quando desenvolvermos o metodo numerico para a soluc~ao da equac~ao de Poisson. 1 Doadores s~ ao atomos de impurezas colocados intencionalmente em um cristal semicondutor com o objetivo de trazer o nvel de Fermi proximo a banda de conduca~o, fornecendo eletrons extras ao semicondutor. Veja por exemplo, as refer^encias [2], [4] ou [6]. 2 Isto e valido desde que n~ao existam descontinuidades nas bandas de conduc~ao e val^encia. Estas descontinuidades causam o aparecimento de pocos de potencial que connam portadores e a grosso modo, mudam localmente a dimensionalidade do gas eletr^onico connado. Adenilson J. Chiquito 517 III Junc~ao metal-semicondutor com uma heteroestrutura Inicialmente precisamos denir uma heteroestrutura semicondutora: e a uni~ao entre dois semicondutores diferentes, basicamente. Na gura 3 temos um esquema do diagrama de bandas de energia para dois semicondutores (de gaps diferentes) isolados (a) e para uma junc~ao em equilbrio (b). Dois efeitos devem ser considerados quando os semicondutores s~ao colocados em contato: como t^em gaps diferentes, a junc~ao originara uma descontinuidade (Ec) nos pers das bandas de conduc~ao e de val^encia ao longo da direca~o x; partculas (portadores) migram de um para outro material ate que a condic~ao de equilbrio seja alcancada com o curvamento das bandas na regi~ao da interface (note aqui a semelhanca com a junca~o MS). Assim, na interface, temos: EC 1 = EC 2 , EC ; (7) com EC 1 e EC 2 representando o perl da banda de conduc~ao para os materiais de cada lado da interface (x = xinter ). Considerando contatos eletricos nesta estrutura, o perl do potencial desde a interface com o metal ate o interior do semicondutor e semelhante ao apresentado na gura 3c. Toda a discuss~ao sobre a equac~ao de Poisson continua valida para cada parte da heteroestrutura: nossa tarefa agora e acoplar as soluco~es da equac~ao de Poisson na interface (x = xinter ) atraves das condic~oes de contorno para o potencial e para o campo eletrico. Os potenciais e suas derivadas, para cada lado da junc~ao, est~ao relacionados de acordo com: com + = , + d , + "+ dx+ = ", ddx inter (8) (9) = qEc Os subscritos +,, indicam os lados esquerdo e direito da interface e inter e a densidade de carga supercial acumulada na interface. A primeira condic~ao (equaca~o (8)) diz respeito a continuidade do potencial, enquanto que a segunda (equac~ao (9)) estabelece que o campo eletrico na interface e descontnuo se houver acumulaca~o de carga na regi~ao da interface. Nos consideraremos o caso em que inter e nulo, para simplicar a utilizac~ao da condic~ao de contorno (9). De maneira geral, inter n~ao e nulo (ver sec~ao 4) e nesta regi~ao ocorre quantizac~ao do movimento eletr^onico na direc~ao de crescimento da estrutura (direca~o x, na gura 3). Esse assunto, muito rico em conceitos fsicos, sera discutido futuramente. Figura 3. (a) dois semicondutores separados, caracterizados pelo seus respectivos potenciais qumicos e energia dos gaps; (b) quando unidos, ocorre troca de cargas e o sistema caminha para a situac~ao onde ha um potencial qumico medio; (c) junc~ao metal-heteroestrutura. Como ja citado, nossos calculos consideram que a dopagem das estruturas e uniforme. Entretanto, e interessante notar que em dispositivos como o apresentado esquematicamente na gura 3c, faz-se uso de dopagem n~ao uniforme para incrementar algumas propriedades destas estruturas. O movimento de cargas paralelo a interface entre os dois semicondutores (gura 3c) e quase livre, sendo limitado em parte pelo espalhamento coulombiano (interac~ao entre os atomos doadores ionizados e os eletrons) e pelo espalhamento por f^onons [6]. Para diminuir o espalhamento coulombiano, temos que separar as cargas positivas (doadores ionizados) das negativas (eletrons), colocando os doadores a uma dist^ancia apropriada da interface: para isto, e includa no semicondutor de maior gap uma camada espacadora n~ao dopada (regi~ao delimitada por xspacer na gura 3c): os eletrons da regi~ao x < xspacer dopada, s~ao transferidos para a interface e cam separados espacialmente dos doadores ionizados por um dist^ancia igual a xinter ,xspacer (alternativamente, pode-se incluir uma camada dopada no semicondutor de gap maior n~ao dopado). Com a inclus~ao desta barreira espacial, o espalhamento coulombiano pode ser praticamente eliminado e a mobilidade eletr^onica aumenta signicativamente [10]. A largura da camada espacadora deve ser cuidadosamente determinada, pois se for muito grande torna-se difcil a passagem de eletrons da regi~ao doadora para a interface. Para os nossos calculos a inclus~ao da camada n~ao dopada pode ser facilmente realizada 518 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 4, Dezembro, 1999 se dividirmos o semicondutor de gap maior em duas regi~oes que s~ao id^enticas, diferindo apenas pela dopagem. Assim para levar em conta a camada n~ao dopada, a equac~ao de Poisson deve considerar a dopagem nula se xspacer < x < xinter. IV Soluc~ao da equaca~o de Poisson Construdo o modelo, temos que implementa-lo computacionalmente visto que a soluc~ao analtica para a equac~ao de Poisson neste sistema somente pode ser realizada em alguns casos limites (por exemplo, quando usamos a distribuic~ao de Boltzmann). Uma pratica comum quando da soluc~ao de equac~oes que descrevem sistemas fsicos e tornar adimensionais todas as quantidades envolvidas nos calculos evitando assim, erros numericos quando s~ao tratadas constantes innitesimais como a constante de Planck [9]. Vamos reescrever a equac~ao (4) numa forma mais conveniente (ver equac~ao (2)), denindo: x) u(x) = EF ,kTEc(x) = q( (10) kT A substituic~ao da equac~ao (10) na equac~ao de Poisson (equaca~o 4) fornece: kT d2u = q n(x; u) , N + (u) (11) d q dx2 "s Da mesma forma, as condic~oes de contorno nas interfaces (eqs. (5), (6), (8) e (9)) devem ser reescritas aplicando-se as mesmas transformaco~es: B (12) u(x = 0) = qkT q ( cte ) du ( x ) u(1) = kT ; dx =0 x,!1 u+ = u, + qkT du+ = du, dx dx considerando, por simplicidade que (13) (14) (15) "+s ",s (16) (a igualdade entre as constantes dieletricas e razoavel para sistemas GaAs=AlGaAs, como o que sera tratado aqui [10]). Nosso problema reduziu-se a resolver a equac~ao (11) por um metodo numerico qualquer. Entretanto, para otimizar os procedimentos numericos ao maximo podemos escolher mais cuidadosamente aquele a ser usado. Novamente sera tratado o caso de um contato MS no incio e depois a discuss~ao sera estendida a uma heteroestrutura. Um metodo interessante e o das diferencas nitas: vamos discretizar o problema, ou seja, montar uma grade de valores para a func~ao u(x); desde a interface MS ate um ponto no interior do semicondutor, e com espacamento dado por x. N~ao conhecemos os valores intermediarios de u(x) e por isso temos que usar um procedimento pelo qual, partindo de uma das condic~oes de contorno, o ponto imediatamente seguinte seja calculado, e assim por diante. Usando uma expans~ao em serie de Taylor, a derivada de segunda ordem presente na equac~ao (11) pode ser colocada em termos das diferencas entre os valores da func~ao u(x), espacados por x: c d2u = u(x + x) , 2u(x) + u(x , x) dx2 x2 (17) e assim, a equaca~o (11) ca: u(x + x) , 2u(x) + u(x , x) = q n(x; u) , N + (u) (18) d x2 "s A discretizac~ao da equac~ao diferencial (11) deu origem a um sistema de N equac~oes acopladas, que podem ser representadas como uma matriz. Para ilustrac~ao, vamos considerar N = 5: u(1) = umetal=semic u(1) , 2u(2) + u(3) = "(2) x2 s (3) u(2) , 2u(3) + u(4) = " x2 s Adenilson J. Chiquito 519 u(3) , 2u(4) + u(5) = "(4) x2 s u(5) = u1 ou 2 6 6 6 6 4 1 1 0 0 0 0 ,2 1 0 0 0 1 ,2 1 0 0 0 1 ,2 0 0 0 0 1 1 32 76 76 76 76 54 2 3 umetal=semic u(1) 6 7 u(2) 7 66 "(2)s x2 u(3) 77 = 66 "(3)s x2 u(4) 5 4 "(4)s x2 u(5) u1 3 7 7 7 7 7 5 (19) d onde umetal=semic e u1 representam os potenciais na interface MS e no innito, respectivamente. Note que a matriz esta colocada numa forma tridiagonal, na qual somente tr^es diagonais n~ao s~ao nulas. Matrizes deste tipo podem ser resolvidas ecientemente, usando-se metodos compactos como o da eliminac~ao de Gauss (no caso de equac~oes lineares) ou, por exemplo, o metodo Newton para sistemas n~ao lineares. Em nosso caso, as equac~oes s~ao todas n~ao lineares, uma vez que a densidade de carga depende do potencial (veja equac~ao (11)) e somente um metodo iterativo, que a cada iterac~ao atualiza todas as quantidades envolvidas no problema em func~ao do resultado nal do passo anterior, pode fornecer resultados corretos. No ap^endice A esta resumida a ideia do metodo de Newton quando aplicado na resoluca~o de sistemas de equaco~es. Novamente, todo o desenvolvimento acima permanece valido no caso de uma heteroestrutura. A unica diferenca e a inclus~ao de uma interface na regi~ao do semicondutor. Isto pode ser feito de varios modos, como por exemplo, incluir a descontinuidade das bandas diretamente na discretizac~ao da equac~ao de Poisson, tornando o modelo mais compacto, e ligeiramente mais difcil para a implementac~ao. No nosso caso, foi adotada uma forma mais direta para resolver o problema da interface, mas que consome mais tempo: o sistema foi separado em dois outros, cada um abrangendo um semicondutor diferente (veja a gura 3). Dessa forma, podemos igualmente aplicar o metodo de discretizaca~o para as duas camadas e impor que o potencial em x = xinter para ambas seja coerente com as condic~oes (14) e (15). O procedimento geral para o calculo pode ser assim resumido: 1 xamos a temperatura do sistema e o valor da altura da barreira Schottky, a largura das camadas e a dopagem da estrutura (ND+ ); em seguida calculamos atraves da equaca~o (12), o valor do potencial reduzido umetal=semic na interface MS; 2 calculamos o valor do potencial reduzido no in- nito, considerando o nvel de Fermi como refer^encia. Para isso, pode-se supor que os eletrons da banda de conduc~ao no interior do semicondutor estejam sujeitos a distribuic~ao de Boltzmann e assim, u1 = , ln( NNC+ ), sendo NC e o numero D de estados na banda de conduc~ao (isso e valido se NC > ND+ [5]); 3 escolhemos um valor para o potencial, digamos u = uteste , (um valor apropriado seria ; por exemplo) em x = xinter, ja que a priori, n~ao o conhecemos; 4 integramos a equac~ao de Poisson desde x = 0, com u = umetal=semic ate x = xinter com u = uteste , ; em seguida, partimos para o outro lado e integramos desde x = 1 ate x = xinter onde coq locamos u+ = uteste , , kT ; 5 testamos a condic~ao (15) dentro de uma precis~ao previamente estipulada. Se n~ao for vericada (o que normalmente acontece), escolhemos um novo valor para uteste , , voltamos ao passo 3 e repetimos o procedimento subsequente ate que a condica~o acima seja vericada. Este procedimento necessita de varias iteraco~es ate que a desejada precis~ao seja alcancada. O resultado do calculo e a forma do potencial reduzido u(x) ao longo da estrutura, que pode ser transformado no potencial real ((x)) mediante o uso da equac~ao (10). Usando agora a equac~ao (2) conseguimos, nalmente, determinar a forma do perl da banda de conduc~ao. Finalmente, vamos aplicar os calculos descritos acima em estruturas reais, como as representadas na gura 4a: a primeira e uma estrutura simples com apenas um tipo semicondutor (GaAs); a outra e uma heteroestrutura formada por duas camadas de semicondutores diferentes (AlGaAs e GaAs). O perl da banda de conduc~ao calculada como funca~o da coordenada x podem ser vista, para as duas estruturas, na gura 4b. 520 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 4, Dezembro, 1999 Figura 4. (a) Amostras usadas para os calculos; (b) Perl da banda de conduca~o para a amostra de GaAs (linha pontilhada) e para a heteroestrutura de AlGaAs=GaAs (linha solida), ambas denidas na gura 4a. Note a descontinuidade na banda de conduc~ao da heteroestrutura, representando a diferenca das energias do gap dos dois materiais. A descontinuidade na banda de conduc~ao da junca~o AlGaAs=GaAs esta ampliada no esquema em destaque; (c) Pers de distribuic~ao eletr^onica calculada usando o potencial eletr^onico para a amostra de AlGaAs=GaAs e experimental, usando medidas de capacit^ancia. A forma do fundo da banda de conduc~ao para a heteroestrutura (linha solida na gura 4b) mostra um comportamento interessante na regi~ao da interface entre as camadas de GaAs e AlGaAs: nesta posica~o, as cargas est~ao sujeitas a um potencial aproximadamente triangular (veja o esquema em destaque na gura 4b). Quando o tamanho desta regi~ao e comparavel ao comprimento de de Broglie para os portadores ( 100 A), este potencial triangular se comporta como um poco de potencial qu^antico. Dessa forma, nossa suposic~ao de que a carga acumulada na regi~ao da interface n~ao necessitava ser levada em conta para o calculo do perl da banda de conduc~ao e valida apenas numa primeira aproximaca~o quando efeitos qu^anticos podem ser desprezados. Por outro lado, quando n~ao e possvel despreza-los, devemos considerar que as cargas est~ao localizadas em nveis de energia discretos, originados pelo connamento qu^antico. Para o correto tratamento deste problema temos que resolver de forma auto-consistente as equaco~es de Schroedinger e Poisson: a carga da regi~ao do connamento, que deve ser computada pela equac~ao de Poisson, depende da presenca de eletrons na regi~ao do poco determinada pela equaca~o de Schroedinger; por sua vez, a equac~ao de Schroedinger depende da forma do potencial connante, calculado pela equac~ao de Poisson. Este problema e relativamente complicado fugindo do objetivo deste trabalho; podemos considerar o modelo usado como semi-classico por n~ao levar em conta as contribuic~oes qu^anticas na interface entre os dois semicondutores. Na gura 4c temos a distribuic~ao dos eletrons por unidade de volume ao longo da coordenada x para a heteroestrutura. E interessante notar que a concentrac~ao de cargas na regi~ao da interface entre as camadas de AlGaAs e GaAs e pronunciada, fato esperado se olharmos para a forma peculiar do potencial nesta regi~ao. Note ainda, que na gura 4c, a distribuica~o apresenta proximo a interface MS uma regi~ao onde o numero de eletrons por unidade de volume e muito pequeno: esta e a regi~ao de deplec~ao citada na sec~ao 2, fruto da redistribuica~o de cargas nas proximidades desta interface. A ttulo de comparac~ao, a distribuica~o eletr^onica pode ser determinada experimentalmente atraves de algumas tecnicas como medidas de capacit^ancia ou suas derivadas e espectrocopia de massa de ons secundarios (SIMS) [12, 13, 14]. Na gura 4c (linha pontilhada), vemos a distribuic~ao eletr^onica para uma heteroestrutura semelhante a usada nos calculos. Resumidamente, a distribuic~ao experimental pode ser assim determinada: a capacit^ancia diferencial da junc~ao MS e medida para diferentes voltagens aplicadas ao sistema e ent~ao, podemos encontrar o perl de distribuic~ao de eletrons com ajuda das seguintes equac~oes [15]: C3 n(w) = qS" s dC ,1 dV w = "Cs S (20) (21) Adenilson J. Chiquito onde n(w) e a concentrac~ao eletr^onica na posica~o w medida a partir da interface MS, C e a capacit^ancia, S a area do contato Schottky. Com estas duas equaco~es podemos determinar qual e a concentrac~ao de eletrons num determinado ponto da estrutura (w) e qual e a dist^ancia deste ponto em relac~ao a interface MS. E interessante notar que todos os calculos anteriores foram realizados para um sistema isolado, sem a inu^encia de campos eletricos externos. Considere agora que aplicamos um potencial externo na junc~ao metal-heteroestrutura: havera uma variac~ao adicional na forma da banda de conduc~ao, dependendo essencialmente da intensidade e direc~ao do campo eletrico aplicado, como mostrado na gura 5a. Na gura 5b, aparece a distribuic~ao eletr^onica na heteroestrutura para tr^es voltagens aplicadas (VB ), mostrando claramente uma variac~ao sensvel no numero de eletrons localizados na interface AlGaAs=GaAs. Portanto, uma variac~ao no potencial aplicado a junc~ao metalheteroestrutura pode determinar a acumulaca~o ou o esvaziamento do poco triangular com eletrons. Esta e 521 a base de operac~ao de um transistor conhecido como HEMT (High Electron Mobility Transistor). Para compreender melhor esta situac~ao, vamos considerar a junc~ao metal-heteroestrutura como uma estrutura tridimensional (gura 5c). Analisando a estrutura deste ponto de vista, o poco de potencial e na realidade um canal condutor que se estende nas direc~oes z,y. Vamos inserir, como mostrado na gura 5c, dois contatos eletricos E e C nas bordas deste canal; o contato Schottky sera chamado de B. Aplicando um potencial entre os terminais E e C (VEC ), teremos uma corrente circulando pelo canal eletr^onico dependente do numero de eletrons presentes (lembre que j = nev [16]). Por outro lado, sabemos que a variac~ao do potencial aplicado no contato Schottky (B) controla a quantidade de eletrons no canal (gura 5c), e portanto, poderemos controlar a corrente entre C e E, pela variac~ao do potencial no terminal B: isto e o efeito transistor [1]. A alta mobilidade a que se refere a sigla HEMT , vem do fato dos eletrons moverem-se quase livremente no canal eletr^onico [17]. Figura 5. (a) Perl do banda de conduca~o para a junc~ao AlGaAs=GaAs em tr^es polarizac~oes diferentes. Note que para VB = ,0:5V n~ao temos mais um poco de potencial; (b) Distribuic~ao eletr^onica correspondente. Como o numero de eletrons na interface entre AlGaAs e GaAs depende do perl da banda de conduc~ao, para VB = 0:5V , aparece um aumento da quantidade de eletrons na regi~ao do AlGaAs, proxima a interface. Para VB = ,0:5V como era esperado, a concentraca~o eletr^onica no poco e muito pequena; (c) esquemas simplicados de um transistor HEMT , mostrando a congurac~ao dos terminais (B,C e E) e o diagrama de energia. V Conclus~ao Neste trabalho zemos um estudo dirigido do processo de modelamento de uma situaca~o fsica real como a dis- tribuic~ao de cargas em um material semicondutor, partindo de conceitos baseados na formac~ao das bandas de energia e usando ferramentas simples (equac~ao de Poisson). Para aplicar o modelo, foi introduzido o con- 522 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 4, Dezembro, 1999 ceito de discretizac~ao de um sistema qualquer para que se possa utilizar metodos mais complexos de soluc~ao de equac~oes diferenciais, como o metodo de Newton. Apesar de um modelo simples, nossos resultados s~ao consistentes com os obtidos com modelos mais gerais e complexos. Ap^endice: Metodo de Newton y" = f (x; y; y0 ) (22) denida dentro do intervalo a x b e com y(a) = e y(b) = . Vamos supor que f (x; y; y0 ) e bem comportada e que portanto, possamos denir: @f fy = @f e f = (23) y @y @ y0 Usando a express~ao (17), podemos reescrever a equaca~o (22) como: 0 A equac~ao de Poisson pode ser escrita numa forma mais geral, como mostrado pela seguinte equac~ao: c y(xi + x) , 2y(xi ) + y(xi , x) = f x ; y(x ); y(xi + x) , y(xi , x) i i x2 2x (24) d com i = 1; 2; 3; :::N . Dessa forma, temos um sistema de N N equac~oes para ser resolvido, id^entico ao tratado na sec~ao 4. Para esta tarefa, podemos usar o metodo de Newton, que pode ser \facilmente" derivado. Quando queremos encontrar a raiz de uma equac~ao transcendental, por exemplo, podemos usar o bem conhecido metodo de Newton, no qual as razes s~ao obtidas por sucessivas iterac~oes da equac~ao abaixo: xi = x0 , ff0((xx)) (25) Analogamente, para achar as soluc~oes de um sistema de equac~oes podemos genera- lizar (25) escrevendo: G(x) = x , (x)F(x) (26) escolhendo (x) = J (x). Aqui, G(x) representa o conjunto de soluc~oes de F(x) = 0, assumindo (x) n~ao singular. A matriz J(x) e conhecida como matriz Jacobiana, muito usada em transformaco~es de coordenadas e calculos de integrais multidimensionais e pode ser escrita como: 2 J(x) = 64 @f1 (x) @x1 @f1 (x) @x2 ::: : : : @fn (x) @fn (x) ::: @x1 @x2 @f1 (x) @xn : @fn (x) @x2 3 7 5 (27) Evidentemente, a derivac~ao feita aqui n~ao e de maneira alguma formal, mas a analogia direta entre o processo de encontrar uma raiz ou um conjunto de razes permanece valida. A implementac~ao numerica e similar aquela usada no caso do metodo de Newton \escalar". References [1] \O transistor, 50 anos", Adenilson J. Chiquito e Francesco Lanciotti Jr., Rev. Bras. de Ensino de Fsica, 20(4), dezembro de 1998. [2] \Physics of Semiconductors and their Heterostructures", Jasprit Singh, McGraw-Hill series in electrical and computer engineering, New York (1993). [3] \Superredes: Harmonia das bandas cristalinas", E. C. Valadares, M. V. B. Moreira, J. C. Bezerra Filho e I. F. L. Dias, Ci^encia Hoje 6(35), setembro de 1987 e \Dispositivos em escala at^omica", E. C. Valadares, L. A. Cury e M. Henini, Ci^encia Hoje 18(106) (1995). [4] Na realidade, deveramos considerar a forma do campo eletrico nas bordas do contato, mas na pratica o di^ametro do contato e sempre escolhido para ser pequeno se comparado com a dimens~ao da amostra na qual foi depositado, ou seja, desprezamos completamente os efeitos de borda no contato. [5] \Physics of Semiconductors Devices", S.M. Sze, John Wiley and Sons, New York (1981). [6] \Solid State Physics"N.W. Ashcroft and N. D. Mermin, Saunders College Publishing, Fort Worth, (1976). [7] \Semiconductor Statistics", J. S. Blakmore, Dover Publications, New York (1987). [8] Como estamos tratando de uma estrutura com dopagem tipo n, desprezamos completamente o efeito dos buracos, que t^em uma densidade muito pequena para estas estruturas. [9] \O potencial de Lennard-Jones: aplicac~ao a moleculas diat^omicas", A. J. Chiquito e N. G. de Almeida, aceito para publicaca~o na Revista Brasileira de Ensino de Fsica. [10] \Doping in III-V Semiconductors", E. F. Schubert, Cambridge University Press, Cambridge (1993). Adenilson J. Chiquito [11] \Numerical Analysis", R. L. Burden and J. D. Faires, PWS-Kent, Boston (1989), captulo 11. [12] \Metal Semiconductors Contacts", E. H. Rhoderick and R. H. Williams, Clarendon Press, Oxford (1988). [13] P. Blood, Semiconductors Science and Technology 1, 1 (1986). [14] \Caracterizac~ao Eletrica de Estruturas Semicondutoras - CV Proling" Adenilson J. Chiquito, Dissertaca~o 523 de Mestrado, Universidade Federal de S~ao Carlos, marco 1997. [15] W. C. Johnson and P.T. Panousis, IEEE Trans. Elect. Devices ED-18(10), 965 (1971). [16] \Fsica", D. Halliday and R. Resnick, Livros Tecnicos e Cientcos Editora, Rio de Janeiro (1991). [17] \Quantum Semiconductor Structures", C. Weisbuch and Borge Vinter, Academic Press, Boston (1991).