ocupações urbanas na cidade do rio de janeiro

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Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro
de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
OCUPAÇÕES URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO:
O DIREITO À MORADIA EM QUESTÃO
FALBO, Ricardo Nery
Université Paris 2; Professor Adjunto de Sociologia Jurídica – UERJ
[email protected]
FALCÃO, Monique
Mestre em Direito – UERJ; Professora assistente e pesquisadora – USU
[email protected]
RESUMO
O avanço do capitalismo tem produzido a distinção entre sociedades global e industrial quanto
ao fundamento de produção de sociedades modernas ocidentais. O Rio de Janeiro, politicamente
administrado desde a década de 90 segundo princípios e práticas do empreendedorismo urbano,
vem sendo palco de uma relação dialética específica entre sociedade global e direitos humanos.
Neste trabalho, os governos, de um lado como atores políticos, e a produção de bem-estar da
sociedade, de outro lado como contexto normativo democrático de mediação entre política e
vida social, serão confrontados enquanto condições materiais de efetivação de direitos
fundamentais. Duas ocupações urbanas existentes no centro do Rio de Janeiro nos anos 2000
serão a base empírica apresentada para o estudo dos efeitos concretos das normas jurídicas e
políticas públicas de urbanização da cidade. Do ponto de vista teórico-metodológico, este
trabalho opera o deslocamento do direito do campo tradicional para o campo da investigação
empírica e sua ressignificação enquanto “processo” social.
Palavras-chave: Urbanização. Gentrificação. Ocupações Urbanas. Movimentos Sociais.
ABSTRACT
The advance of the capitalism has been producing differences between global and industrial
societies for the fundament of the production of modern occidental societies. Politically
administrated since the 90s under practices and principles of urban entrepreneurship, Rio de
Janeiro lives a dialectic and specific relationship between global society and human rights. In
this work we face government acts and its normative context as the follow: one side, the
government as an politic actor and the welfare for society and, on the other side, the normative
democratic context of mediation between politics and social life, them both will be put face to
face as material conditions of effectuation of fundamental rights. Two urban occupations
existing in center of Rio de Janeiro in 2000s will be the empirical basis to study the concrete
effects of legal norms and public politics of urbanization in the city. This study allows us, in the
end, in a theoretical and methodological way transfer the science of law from traditional field to
the empirical investigation field.
Key-words: Urbanization. Gentrification. Urban Occupations. Social Movements.
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INTRODUÇÃO
Este trabalho parte da ideia geral segundo a qual toda situação de crise ou de
mudança social termina por revelar processos e estruturas sociais em formação (IANNI,
1992: 11). A crise do socialismo e a expansão do capitalismo no mundo na segunda
metade do século XX ilustram esta ideia geral. Ainda de modo geral, o avanço do
capitalismo tem produzido a distinção entre sociedade global e sociedade industrial
quanto ao fundamento da produção destas sociedades. Esta se caracterizando pelo uso
de fontes de energia; aquela, pela qualidade do conhecimento e pelo processamento da
informação (CASTELS, 1989: 17).
Como a sociedade global é considerada como sendo realizada no espaço local
das cidades globais, estas cidades são consideradas como sendo mercados
multinacionais, de empresas e de governos, mas também como locais de produção pósindustrial para os fluxos da economia global (SASSEN, 1998:36). E fazem parte da
morfologia da sociedade global e da cidade global os direitos humanos. Afinal, o avanço
do capitalismo tem sido identificado com a expansão dos direitos humanos com o fim
do mundo bipolar caracterizado pela Guerra Fria, e os direitos humanos têm sido
reconhecidos como condição de expansão do capitalismo quanto ao caráter
emancipatório que lhes tem sido atribuído.
De forma específica, a relação dialética que articula sociedade global e direitos
humanos será abordada segundo a problematização da efetivação do direito à moradia
na cidade do Rio de Janeiro enquanto lugar-chave da economia global que, desde a
década de 1990, tem sido politicamente administrada de acordo com os princípios e as
práticas do empreendedorismo urbano. De um lado, os governos locais, municipais,
serão considerados como atores políticos que, ao contribuírem para processo de
globalização do capitalismo, participam também do processo de produção do bem-estar
social local (BORJA, CASTELLS, 1997:15). De outro lado, a própria produção do
bem-estar da sociedade no âmbito das cidades será considerado no contexto
democrático tanto da delegação da responsabilidade formal como através de formas de
mediação da política e da vida social, com ênfase especial no papel desempenhado pelos
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direitos fundamentais (HÄBERLE:1997: 36).
Neste sentido, proceder-se-á à distinção entre direitos fundamentais e direitos
humanos, e entre direitos positivados e direitos humanos, quanto à ideia de discurso que
permite distinguir a realidade “direito” das “aspirações” (BOBBIO, 1992:15-16) ou das
“afirmações” produzidas sobre o direito (FALBO, 2011:02-14). Esta distinção constitui
condição teórico-metodológica fundamental da análise do direito à moradia como
direito social constitucionalmente reconhecido. Ela permitirá ainda a análise do direito à
moradia com base no arcabouço institucional referido à Constituição Federal Brasileira,
à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o Estatuto da Cidade, e o Plano Diretor da
Cidade do Rio de Janeiro, considerando o direito urbanístico brasileiro aqui descrito
com base em sua estrutura normativa republicana e federativa, pós CF\88, em atenção
ao método tradicional de pensamento jurídico, lógico e formal, antecedente e
pretensamente determinante para a construção da realidade social.
A análise normativa do direito à moradia como direito social, direito esse que
opera como condição da produção de justiça social e que legitima a soberania do Estado
nacional brasileiro, será confrontada com a gestão da cidade do Rio de Janeiro segundo
o modelo histórico vigente que consiste em administrar a cidade como uma empresa no
contexto pós-fordista. Esse confronto define a condição fundamental de análise do
arcabouço institucional, quanto à sua possibilidade de efetivação, e da estrutura do
Estado, quanto à sua capacidade e seu poder políticos de consecução de políticas
urbanas voltadas para a realização de programas sociais e a urbanização de forma
democrática.
Entre a política dos governantes (nacional e municipal) e o imperativo da
economia global, a realidade social no contexto do direito à moradia será abordada
quanto a duas Ocupações de prédios públicos abandonados na zona central e portuária
da cidade do Rio de Janeiro. Isto será feito com o objetivo de conhecer a situação de
fato da relação que articula política (Estado, município) e economia (fluxos econômicos
globais, cidade global). Estas Ocupações - Chiquinha Gonzaga e Quilombo das
Guerreiras - são algumas das ocupações que foram removidas como conseqüência de
políticas de reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, políticas essas implementadas
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desde o governo do Prefeito César Maia (1993) e que procuram tornar a capital
fluminense espaço mais atrativo para investimento do capital internacional. Assim, além
do processo de gentrificação que criam, as intervenções do poder público - em parceria
com o poder privado e através da realização de obras de requalificação urbanística e
modernização do espaço urbano historicamente degradado - têm procurado “reinventar”
a cidade por meio da remoção dos assim considerados “obstáculos” ao processo de
modernização da modernidade.
Do ponto de vista econômico, este processo é o mesmo processo de
modernização do capitalismo (COMPANS, 2004), que, historicamente avançando de
forma global, produz seus efeitos de forma local nos espaços das cidades. Assim, o
processo de modernização do capitalismo revelaria o protagonismo das cidades na
ordem econômica global (HARVEY, 1994) e permitira pensar modelo específico de
gestão urbana denominado de “empreendedorismo competitivo” (BORJA, CASTELLS,
1996).
Do ponto de vista teórico-metodológico, o que se pretende realizar neste
trabalho é o deslocamento da reflexão do direito do campo tradicional onde o fenômeno
jurídico é abordado de forma dominante como “produto” normativo para o campo da
investigação empírica onde o direito é compreendido também como “processo” social.
Esta mudança quanto à concepção de direito importa orientação quanto à realização da
pesquisa empírica e envolve dimensões tanto políticas quanto sociais da realidade onde
o direito é construído com a participação social e coletiva de indivíduos que agem na
prática de acordo com a visão que possuem do direito e segundo contexto históricosocial determinado. No entanto, a condição para pensar o direito e pesquisar o direito
como realidade processual supõe a definição social do destinatário do direito como
sujeito histórico que se reconhece como tal e que transforma sua situação e seu meio
ambiente.
Sem a realização desta condição, o direito do sujeito - agora rompido de sua
relação com o sujeito do direito para tornar-se apenas direito - continuará sendo pensado
e pesquisado apenas como produto. A conseqüência que daí decorre para o mundo do
direito é a sua incapacidade teórica de análise conjuntural de contextos históricos e
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sociais específicos e, por conseguinte, de compreender o direito na sua relação com a
realidade tanto político como social.
Do ponto de vista metodológico, os procedimentos aqui utilizados encontram
sua fundamentação na visão de método que supõe, de modo dialético, a articulação
entre processo e produto na explicação do direito. Desta forma, a investigação empírica
do direito no contexto das Ocupações mencionadas fora conduzida segundo os
princípios e práticas do trabalho de campo e da análise da conversação e das práticas da
linguagem na chave da etnometodologia de Harold Garfinkel (1974)1, bem como de
acordo com a observação empírica de seu pesquisador. Centrada na análise psicossocial,
esta abordagem teórico-metodológica privilegia a explicação das ações coletivas e dos
atores sociais através das ações dos indivíduos e permite a investigação dos movimentos
sociais quanto a seus membros e a suas realizações práticas na vida cotidiana. Com
ênfase na linguagem cotidiana e no senso comum prático, a etnometodologia entende
que as descrições do social feitas por seus membros, no momento mesmo em que elas
são manifestadas, se constituem em partes do próprio social que é descrito. Esta
metodologia constitui tentativa de superação das dicotomias tradicionais de que se vale
o direito para conhecer o direito de forma independente de sua relação com mundo. Ela
instaura a condição de possibilidade de reconciliar a teoria com a prática, o pesquisador
com seu objeto de investigação e, assim, pensar o direito na relação que articula
processo e produto.
1
Teórico-metodologicamente, os conceitos construídos pelos integrantes das ocupações puderam ser
agrupados num instrumento social e racional de análise empírica que permitiu a observação da coesão do
grupo a partir do conceito metodológico de “accoutability” e “reflexibility” de Harold Garfinkel:
“Ethnomethodological studies analyze everyday activities as members’ methods for making those same
activities visibly-rational-and-reportable-for-all-practical-purposes, ie, “accountable”, as organizations of
commonplace everyday activities. The reflexivity of that phenomenon is a singular feature of practical
actions, of prectical circumstances, of common sense knowledge of social structures, and of practical
sociological reasoning. By permiting us to locate and examine their occurrence the reflexivity of that
phenomenon establishes their study.” (GARFINKEL, 1967: vii).
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1.
CONSTRUÇÃO
LÓGICO-FORMAL
DA
REALIDADE
JURÍDICA,
ECONÔMICA E SOCIAL
O direito urbanístico no Brasil se apresenta positivado em três esferas
normativas federativas: federal, estadual e municipal. No plano constitucional, a
Constituição Federal prevê tanto o dever do Estado em incentivar o desenvolvimento
econômico e urbano, como direito à moradia como direito social, com natureza jurídica,
portanto, de norma programática. No plano legislativo infra-constitucional, as normas
positivam diretrizes para a construção da política pública necessária para efetivação do
direito à moradia e de urbanização da cidade. Os princípios norteadores presentes nessas
normas preconizam o desenvolvimento com base no estímulo à iniciativa privada, à
participação popular e à redução do déficit de moradia como instrumentos tanto de
exercício democrático, redução de desigualdades e, portanto, efetivação de direitos
humanos, como de desenvolvimento econômico e urbano.
Do conjunto desses elementos normativos é possível deduzir a norma constitucional
que impõe a compatibilização entre iniciativa privada, direito individual de propriedade,
organização econômica da cidade e efetivação do direito à moradia como direito
fundamental e dever fundamental do Estado. As políticas públicas de urbanização e
habitação são a materialização, na realidade social, do dever fundamental do Estado
quanto à concretização da habitação. A natureza jurídica do direito fundamental social à
moradia, enquanto norma constitucional programática, impõe ao Estado o dever de
materializar condições econômicas e sociais diretas para que o povo exerça o direito
fundamental à habitação. Instrumentalizando normativamente este direito social, o art.
23, IX da CF/88 impõe a todos os entes federados a competência administrativa comum
para promover programas de construção de moradias e melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico.
Já no campo infraconstitucional legislativo, a norma nacional prevalente que
regulamenta diretrizes gerais a serem aplicados a todos os entes federados é o Estatuto
da Cidade – Lei 10.257/2003. E, ainda no legislativo, em nível municipal, o Plano
Diretor é elaborado a fim de materializar, para cada município, os critérios específicos e
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econômicos para zoneamento urbano das atividades econômicas e residenciais ali
desenvolvidas.
Os fundamentos constitucionais de livre iniciativa e direito individual da
propriedade, de um lado, e condicionamento do uso da propriedade conforme interesse
público e estatal, de outro lado, são a base nas quais o Estatuto da Cidade e o Plano
Diretor desenvolvem critérios para as políticas públicas de moradia e desenvolvimento
econômico local. Essa compatibilização entre direito individual de propriedade, direito
fundamental social à moradia e interesse público é reflexo dos objetivos fundamentais
constitucionais referentes à garantia do desenvolvimento nacional e redução das
desigualdades sociais e regionais (CR/88, art. 3º).
No plano legislativo nacional, o Estatuto da Cidade, em seus dois grandes objetivos
normativos, previstos no art. 2º, discrimina critérios legais, valores democráticos
(incisos IV, V e VI), participação popular e cooperação entre governos e iniciativa
privada (incisos II e III) para a preservação do presente e futuro e articula deveres de
Estado e direitos do particular sob a forma de instrumentos jurídicos de intervenção do
Estado na propriedade e de condicionamento do uso econômico do solo urbano. Com o
objetivo de estabilização democrática de acesso e uso ao solo urbano, existem, ainda,
instrumentos “integrantes de um urbanismo popular” (SUNFELD, S\D:58), o que leva
parte da doutrina (SAULE Jr. (2004: 218) a sustentar que as normas do estatuto da
cidade devem sobrepor-se ao Código Civil para fins de defesa do direito à moradia no
que tange à proteção – ou sua flexibilização – do direito de propriedade privada,
fundando-se em princípios de especialidade e função social da propriedade.
Em nível municipal, o Plano Diretor materializa a ordenação da cidade conjugando
duas esferas: a formal, com base nos critérios do estatuto da Cidade, e a material, com
base nas peculiaridades econômicas, ambientais, geográficas e sociais do município e
conta com instrumentos específicos2 democratizantes de acesso à cidade, prevê
promoção da universalização do acesso ao saneamento básico, recuperação, reabilitação
e conservação dos espaços e prédios livres públicos e do patrimônio construído em
2
Lei de Uso e Ocupação do Solo (PLC 33/2013), a Lei de Parcelamento do Solo (PLC 29/2013) e os
Códigos de Obras, Edificações, Licenciamento e Fiscalização, e Ambiental (PLC 31, 32 e 30 de 2013).
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áreas degradadas ou subutilizadas, Há previsão, ainda, de aproveitamento de terrenos
ociosos ou subutilizados principalmente para fins habitacionais ou como espaços livres
de uso comunitários, parques, áreas verdes e de lazer.
A concretização política desta realidade normativa se deu com o Projeto
denominado Porto Maravilha que criou a Operação Urbana Consorciada da Área de
Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro (LC 111\2011),
cuja finalidade, conforme site oficial, é promover a reestruturação local, por meio da
ampliação, articulação e requalificação dos espaços públicos da região, visando à
melhoria da qualidade de vida de seus atuais e futuros moradores e à sustentabilidade
ambiental e socioeconômica da área. A natureza jurídica destas operações é de parceria
público-privada, na modalidade de concessões administrativas, instrumento jurídicopolítico instituído nos anos 90 no direito brasileiro com o objetivo de descentralizar
políticas públicas, atribuindo sua execução à iniciativa privada (DI PIETRO, 2008:07)
Institucional e juridicamente, corporificando as operações previstas na LC
111/2011, foi criada pela LC municipal 102, a Companhia de Desenvolvimento Urbano
da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), com natureza jurídica de sociedade por
ações de economia mista, controlada pelo Município do Rio de Janeiro (art. 1º). Ela é
responsável por promover direta ou indiretamente o desenvolvimento da Área de
Especial Interesse Urbanístico – AEIU – da Região do Porto do Rio, e tem o objetivo de
articular o diálogo entre órgãos privados e públicos e a Concessionária Porto Novo.3
3
http://portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/4315. Este projeto teve início no governo municipal de
César Maia, início dos anos 90, com o objetivo de elevar o Rio de Janeiro à categoria de cidade global e
fez parte de uma agenda reformista de recuperação da cidade da crise econômica e social que vinha
enfrentando desde a década de 70 (COMPANS, 2005). O governo do Prefeito Eduardo Paes, a partir do
final dos anos 2000, intensificou os projetos de concretização do Plano Diretor do Rio de Janeiro, sendo o
Porto Maravilha um destes projetos. No campo habitacional, os projetos de habitação por interesse social
foram concretizados em programas do poder executivo, de desapropriação e remoção, realocação de
famílias, concretizados no programa Minha Casa Minha Vida e outros programas de financiamento,
subsídios tributários e indenização.3 Como objetivo expresso de regularização fundiária, prevê o Projeto a
necessidade de “reconhecer e garantir a posse, conceder ao morador o título de propriedade ou de
concessão individual ou coletivo”.
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2. AÇÃO SOCIAL CONTRA A REALIDADE JURÍDICO-POLÍTICA
A partir da compreensão fundada na teoria crítica do direito, segundo a qual a norma
jurídica material é construída a partir da realidade social (HORKHEIMER, 1974:23), as
práticas cotidianas são retratadas, neste trabalho, como fonte material da norma jurídica.
Isto se dá na medida em que a estrutura de demandas formuladas por estes grupos conta
com argumentos, conceitos e propostas políticas fundadas em necessidades sociais e
econômicas individuais, organizadas racionalmente sob a forma de um “coletivo” capaz
de assumir posição de ação e reação social frente ao normativismo imposto pelo Estado.
Dentre os moradores afetados pelas políticas públicas acima descritas estão os das
Ocupações Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras, ocupantes de prédios
públicos abandonados na Zona Portuária da Cidade do Rio de Janeiro, entre os anos
2000 e 2012 (FALBO, 2012; FALCÃO, 2015). São comunidades consideradas ilegais,
que ocuparam prédios públicos abandonados sem autorização legal e sem nenhum
embasamento jurídico pré-existente. As famílias integrantes foram removidas e
incluídas em programas habitacionais como Minha Casa Minha Vida, Aluguel Social e
programas de indenizações pela remoção forçada. Em entrevistas realizadas nas
referidas Ocupações, as falas de seus moradores reproduzem sentimentos de reação aos
mecanismos jurídicos do legislativo e do executivo que não foram implantados ou que,
uma vez implantados, não atendem a suas necessidades.
Nas Ocupações, o conceito de moradia por interesse social e os programas de
realocação não atendem aos objetivos pessoais e específicos das famílias. A noção de
cidadania está relacionada à ideia de pertencimento ao centro da cidade, de
pertencimento ao espaço público, ao exercício do trabalho, da moradia. O conceito de
cidade e cidadania, para as Ocupações, ultrapassa a organização formal viária, de
transportes e de zoneamento. Ele se caracteriza como conquista por trabalho e esforço
próprios diante do que os moradores das Ocupações consideram como sendo omissão
do Estado. Eles não reconhecem a legitimidade dos programas habitacionais e das
melhorias de políticas públicas, porque i) se consideram excluídos, na medida em que
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não preenchem requisitos legais necessários para usufruir dos programas e ii) as
condições e ofertas dos programas não atendem às suas necessidades específicas.
As Ocupações reagem às exigências normativas diante de sua impossibilidade em
cumprir normas específicas para a construção e reforma de imóveis e diante da
remoção, pelo Estado, de quem não cumpre tais normas para longe do centro da Cidade,
onde não acreditam não existir infra-estrutura necessária para dar continuidade a seus
objetivos pessoais.4 Outro exemplo de reação é o questionamento com o que consideram
descaso do Poder Público com as obras e programas voltados para realocação dessas
famílias. 5
Na medida em que essas Ocupações sequer se referem ao termo direitos
fundamentais e utilizam a categoria “cidadania” para justificar legitimamente a
permanência no prédio, observa-se um hiato entre as linguagens dos dois campos:
Estado e Realidade. Por seu turno, as Ocupações usam a categoria cidadania como
fundamento para participação direta e sem intermediários estatais na construção e
satisfação de suas necessidades imediatas, conforme possibilidades materiais e
econômicas disponíveis.6 Há compreensão expressa, portanto, da necessidade de “luta”,
de busca por exercício dos direitos fundamentais, ainda que sem apoio ou rejeição do
próprio Estado. O Estado é visto como omisso, e o direito, como legitimador das
condutas materiais, espontâneas de grupos sociais para exercício direto e sem
intermediários políticos e jurídicos de seus direitos previstos constitucionalmente.
O Estado, por sua vez, usa a linguagem referente à efetivação de direitos e
democracia participativa como fundamento das políticas públicas de concretização dos
4
Tá escrito na Constituição direito à moradia, mas por que não no centro? ”[...].” Tem que levar para
longe, esgoto acaba, dá infiltramento – Sepetiba. - Juvenal Alves de Lima Filho, 25/01/2011 (FALCÃO
L. 2015)
5
É possível resolver moradia – ainda tão fazendo as casas do livramento – mas depois o pessoal se
esquece, é pobre. A obra demora demais. Mas não querem terminar por interesse deles. – fazer hotel para
turista é mais vantajoso. Investimento com nossos impostos; quando compra qualquer coisa, a gente paga
imposto; camelô também paga imposto. Juvenal Alves de Lima Filho, 25/01/2011 (FALCÃO L. 2015)
6
Me vejo cidadão assim: foi uma luta, não comprei esse espaço, mas lutei, melhorei, limpei. A luta da
Ocupação Zumbi dos Palmares é por morar no centro da cidade, não necessariamente neste prédio.
Cidadania é trabalhar de alguma forma, conquistar, valorizar, não pensar no individual, é participar”[...] “
a força é de atitude. A partir de quando se conhece o direito, começa a lutar. Ele [o Direito] pode estar
escrito, mas tem que buscar. Tem que tomar atitude para esse direito acontecer. Antonia Ferreira dos
Santos, 27/01/2011. (FALCÃO L. 2015)
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critérios presentes no Estatuto da Cidade e Plano Diretor. O Estado procura impor sua
realidade normativa e política à realidade social, revelando a incompatibilidade da
norma jurídica com a realidade social para a qual está destinada 7 e justifica sua política
de remoções ao vinculá-la a uma participação popular, em nome das previsões da CERJ,
do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor, afirmando que há diálogo entre o Poder
Executivo e os integrantes das ocupações. Trata-se da chamada “remoção democrática”,
que se diferenciaria das remoções ocorridas no início do século, quando da Reforma
Pereira Passos8.
Observa-se com as falas de integrantes das ocupações que as reivindicações de
permanência no imóvel ou na região do centro da cidade não são atendidas, não são
consideradas como fruto de participação popular, nem são consideradas como deveres a
serem prestados pelo Estado.9 Mais que isso, essa incompatibilidade e não
reconhecimento geram a necessidade material de luta por construção do direito no
Centro, o que se reflete na busca de construção de um direito específico que não está
positivado, mas decorre das necessidades cotidianas da população.
As falas dos moradores das Ocupações são capazes de promover a compreensão
dessas necessidades como interpretações específicas, pelas Ocupações, das normas e
políticas públicas estatais aqui descritas. Isto significa, para eles, a construção de um
direito com base nas necessidades sociais cotidianas, identificadas pelos membros como
partes integrantes de uma coesão social racionalmente construída atendendo demandas
pessoais específicas que, por sua vez, se distanciam da realidade tal como construída ou
imposta normativamente. A realidade social não é, portanto, construída com os mesmos
7
A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro reconheceu que o perfil sócio-econômico dos moradores das
referidas Ocupações não se enquadrava nas exigências legais e afirmou, por exemplo, por ocasião da
remoção da Ocupação Quilombo das Guerreiras que: “Tivemos outras tentativas de invasão no Alemão e
na Cidade de Deus. A gente viveu isso agora na Região Portuária, no Quilombo das Guerreiras. A gente
tinha negociado há seis meses, o pessoal que estava lá saiu e ganhou casas novas, mas foi um tal de
família invadindo. Quando nós demos o aluguel social, ninguém apareceu porque todo mundo tinha renda
maior. Para mim, aquilo é uma ação organizada. Não estou dizendo que não tenham pessoas carentes,
mas a Prefeitura dispõe de canais adequados para a oferta de moradias. A gente não vai ficar passando a
mão na cabeça de quem ficar invadindo área de posse.” http://extra.globo.com/noticias/rio/pessoas-queinvadiram-terreno-da-oi-esperam-agora-os-programas-sociais-12101911.html#ixzz2yGUP0kIT
8
http://blog.indisciplinar.com/a-copa-contra-o-direito-a-cidade/
9
http://global.org.br/programas/comunidade-do-rj-resiste-a-remocao/
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elementos de interesses coletivos e econômicos estatais. Esta é a característica
específica da realidade social das Ocupações que se apresenta como reação às normas e
políticas públicas estatais.
A seguir, é apresentado o contexto histórico-social com base no qual as ocupações
arguem suas demandas materiais e articulam suas ações contra a realidade normativa
que lhes é imposta aprioristicamente.
3. SOCIEDADE GLOBAL E CIDADE GLOBAL: FUNDAMENTO PARA
GESTÃO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Situações de crise ou de mudança social são situações reveladoras de relações,
processos e estruturas sociais em formação, pouco conhecidos ou mesmo ignorados
(IANNI, 1992: 11). Considerando que a sociedade global não é realidade histórica
totalmente constituída - e sim processo em curso que coexiste com a sociedade
industrial (nacional) que se transforma -, a definição de situações críticas desta
sociedade constitui as condições de caracterização da sociedade global.
Cidade global - ao lado das zonas de processamento das exportações e dos
centros bancários offshore - é um dos lugares que simbolizam a globalização do
capitalismo. “As cidades globais são os lugares-chaves para os serviços avançados e
para as telecomunicações necessárias à implementação e ao gerenciamento das
operações econômicas globais. Elas também tendem a concentrar as matrizes das
empresas, sobretudo daquelas que operam em mais de um país” (SASSEN, 1998:3510).
Assim, do ponto de vista político, a cidade global - lugar estratégico de produção,
mercado e comando da globalização econômica - continua sendo também lugar dos
governos, com as mesmas prerrogativas das empresas multinacionais. Isto significa que
as características da globalização “incluem também mudanças na natureza dos Estados e
nos sistemas de Estados” (IANNI, 1992:24). Se, nas sociedades industriais, o papel dos
Estados e governos era o de proteger as economias nacionais, de modo a garantir níveis
10
A autora de As Cidades na Economia Mundial tinha por objetivo opor as cidades globais às
megacidades.
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adequados de emprego e de bem-estar social, nas sociedades globais, a prioridade é
quanto ao alinhamento e adaptação das economias nacionais às exigências da economia
global. A mudança de função dos Estados e dos Governos nacionais, colocados na
mesma situação de igualdade contratualista das empresas na sociedade e economia
globais, importa o reconhecimento da “crise dos Estados nacionais” e da
“deslegitimação do poder político nacional”, bem como do “novo protagonismo dos
governos locais” e do “[novo] papel das cidades na reestruturação capitalista”
(COMPANS, 2004: 37-76). Ela levanta também controvérsias políticas, ideológicas e
teóricas quanto a modelos de gestão da cidade no século XXI.
A hipótese segundo a qual a “situação de integração financeira global tornou
literalmente impossível toda política monetária nacional, autônoma” (CASTELLS:
2002: 41-42) tem implicado o reconhecimento da crise de legitimidade dos Estados
nacionais quanto à sua capacidade de continuar exercendo controle sobre a economia,
principalmente sobre os mercados de capitais. Ao homogeneizar em escala planetária o
processo de mudança de acumulação do capital, a globalização financeira tem sido
identificada com o processo definidor da crise do modelo de regulação fordista
caracterizador dos Estados nacionais a partir do período do pós-guerra.
Assim, num contexto de desengajamento dos Estados nacionais em relação às
políticas sociais e urbanas, potencializado pela própria globalização, e de crise nos
setores tradicionais do mercado de trabalho e nas condições de vida, não haveria outra
forma de gestão para as grandes cidades senão através da competição capaz de atrair
capitais (HARVEY,1994).
A este modelo de gestão das cidades, chamado de empreededorismo urbano, é
possível contrapor o chamado modelo de “gestão democrática”. Este modelo supõe o
exercício da democracia para além do simples procedimento de representação. Ele se
fundamenta no diálogo com a população das cidades, que tem o direito e o dever de
participar do processo de formação das decisões políticas.
Afinal, “a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação da
responsabilidade formal” (HÄBERLE:1997: 36); “ ela se desenvolve também por meio
de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis
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cotidiana, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais”(Idem). Esta é
a hipótese segundo a qual a gestão democrática da cidade supõe o protagonismo político
de sua população no processo de definição e execução de políticas urbanas.
CONCLUSÃO
De um lado, a definição de cidade global como lugar-chave que representa o
local da globalização do capitalismo tem traduzido concepção teórica capaz de revelar
relações, processos e estruturas sociais em formação em qualquer parte do mundo desde
a segunda metade do século XX. De outro lado, desde a década de 1993, a gestão da
cidade do Rio de Janeiro tem-se orientado pela implementação da infra-estrutura
necessária ao desenvolvimento local do espaço urbano e à realização e controle das
operações econômicas globais. No entanto, o fato de não se reconhecer que a política
urbana adotada para a capital fluminense não constitua instrumento político de
realização do modelo teórico definidor de sociedade global e cidade global não significa
negar que a concepção de globalização não tenha estratégica e ideologicamente
fundamentado a gestão da Cidade do Rio de Janeiro desde os anos de 2009.
Ainda que não se afirme que o Rio Janeiro seja a realização histórica do modelo
teórico que define a categoria “cidade global”, o fato é que a capital fluminense tem
sido politicamente administrada segundo modelo de gestão que compreende a
organização e o funcionamento da cidade como empresa no contexto da modernização e
da globalização do capitalismo. Neste sentido, o empreendedorismo urbano que define o
modelo de gestão do Rio de Janeiro tem procurado tornar a cidade mais atraente ao
capital internacional e mais competitiva quanto a outras cidades no mundo por meio da
realização de obras públicas capazes de viabilizar o avanço do “projeto” do capital
global.
Assim, a reestruturação econômica da cidade tem revelado o protagonismo
político dos governantes locais desde a década de 1990 e refundado as relações de poder
entre o Estado Federal e o município do Rio de Janeiro, entre os governantes nacionais
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e locais. Essa mudança na estrutura política do País - ainda que não universalizável para
todas as áreas da vida social - tem sido a expressão de novo tipo de relação entre a
esfera política do governo e a esfera econômica de produção, entre o setor público, do
poder de subordinação, e o setor privado, do poder coordenação. Como meio de
realização das condições de viabilização do avanço do capitalismo que se globaliza no
espaço local de cidades determinadas - segundo características específicas (geográficas,
culturais, políticas, econômicas)-, as parcerias público-privada têm tornado o Estado e
os municípios, bem como seus governantes, em parceiros do capital global.
Este tipo de relação entre a política e a economia termina por atender às
exigências do fluxo econômico global, cuja satisfação depende da seleção política
quanto a cidades específicas e, dentro destas, quanto a áreas determinadas capazes
serem transformadas em lugares-chaves de direção e comando da economia global
quanto
a
necessidades
particulares.
Independentemente
da
explicação
do
empreendedorismo urbano como resultante da história do capitalismo em sua fase
global e financeira ou como estratégia política da política de governos locais em
determinado momento histórico, o fato é que ela, em sua relação com a hegemonia dos
novos interesses econômicos globais, tem produzido conseqüências sócio-econômicas
dissolventes dos ideais de justiça social e democracia social na área social da habitação
e jurídico-políticas desestabilizadoras do arcabouço institucional legitimador de
políticas públicas voltadas para a consecução daqueles mesmos ideias.
A vantagem comparativa entre as cidades - e dentro das cidades - que orienta o
empreendedorismo urbano produz novas e maiores desigualdades para dentro das
cidades e entre as cidades de uma região - e entre esta e o conjunto do País - quanto ao
acesso à habitação. De um lado, como direito social constitucionalmente reconhecido
para todos, a habitação não tem sido produzida ou não tem sido reconhecida senão
segundo imperativos da economia global. Isto em função de sua natureza de norma
programática, que torna a eficácia deste direito dependente diretamente de políticas
públicas estatais que, por sua vez, somente são desenvolvidas materialmente segundo
valores, necessidades e interesses sócio-econômicos vigentes temporal e espacialmente.
Este fato questiona a natureza instrumental das normatividades que representam a
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Constituição Federal, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o Estatuto da Cidade,
o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro. Estas normas positivam a previsão de
participação popular, desenvolvimento econômico e acesso aos serviços públicos na
cidade, todos associados à redução de déficit de moradias. Mas, não há, entretanto,
nenhum critério sócio-político concreto que defina ou oriente esses instrumentos de
efetivação da política de urbanização. Eles definem a dimensão simbólica e
argumentativa que tem caracterizado a política de urbanização na cidade do Rio de
Janeiro. De outro lado, como área de atuação dos governos - e, por conseguinte, como
estratégia política-, ou como elemento invariável do próprio poder político- e, por
conseguinte, como estrutura do Estado e dos municípios-, a habitação tem orientado no
Rio de Janeiro políticas de urbanização de natureza segregacionista e de produção não
satisfatória de moradia social porque não produzida de modo democrático e de atuação
não satisfatória porque também não democrática quanto ao reconhecimento das
moradias populares representadas, por exemplo, pelas Ocupações de prédios públicos
abandonados na Cidade.
E, assim, o direito à cidade, como direito à habitação, tem sido direito
sistemática e universalmente não efetivado. E, assim, a violação do direito à habitação,
como direito social fundamental, tem reforçado a natureza discursiva dos direitos
humanos enquanto ideologia que instrumentaliza a luta política por emancipação em
relação ao Estado e ao município do Rio de Janeiro, e a seus governantes, quanto a
políticas de urbanas não democráticas e segregacionistas. No entanto, quanto à
percepção e a atuação dos moradores das Ocupações urbanas investigadas, o direito à
habitação não depende nem do que está estabelecido nas leis, códigos e constituições do
País nem mesmo da teoria, da ideologia ou da metodologia dos direitos humanos, que
sequer foram mencionados quando da realização do trabalho de campo. Para eles, o
direito à habitação supõe “luta pelo direito” concretizada, no aspecto material cotidiano,
em acesso e efetivação de atividades ordinárias do dia-a-dia, como trabalho, estudo,
acesso físico fácil a serviços de saúde, proximidade com trabalho e transporte e, no
aspecto político, no reconhecimento da legitimidade de suas reivindicações de
permanência no centro da cidade, pelo Estado e pela sociedade civil, independente do
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que esteja prescrito nas normas que discursivamente definem direito à moradia e
urbanização.
Ainda que através das falas dos membros das Ocupações seja possível
reconhecer que nem todos percebem e se orientam pela luta pelo direito à moradia da
mesma forma (o que demonstra a existência de dissensões e até mesmo conflitos dentro
das ocupações); ainda que este fato permita questionar as Ocupações enquanto
movimentos sociais definidos de acordo com a ideia de identidade ou de
homogeneidade interna absoluta; ainda que não seja possível produzir uma imagem
"ascética" das Ocupações com a afirmação de que o raciocínio sociológico prático é o
mesmo e único para todos os seus moradores e que a ordem interna das referidas
Ocupações não nem é frágil nem passível de cooptação por parte dos poderes públicos,
o fato é que o direito existe nas Ocupações segundo manifestação de outra concepção
acerca dele próprio, com base em uma visão não institucional e alicerçada no cotidiano
de seus moradores e nas suas ações na busca de satisfação de necessidades materiais; o
fato é que a coesão social não depende da regulamentação jurídica e institucional destes
agentes sociais da forma como pretende a tradição jurídico-política e suas instituições; o
fato é que os direitos humanos não figuram como argumento ou linguagem na luta pelo
direito à moradia; o fato é que as mudanças porque passa a cidade do Rio de Janeiro são
percebidas como sendo produtoras de mais desigualdade e exclusão no campo da
habitação.
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