Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente

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Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente
(Par une reprise de la prudence: le juge prudent)
Francisco Gérson Marques de Lima
Doutor, Professor da UFC, Procurador Regional do Trabalho na 7ª
Região, tutor do GRUPE-Grupo de Estudos e Defesa do Direito do
Trabalho e do Processo Trabalhista
Resumo: O texto cuida da Prudência, qualidade humana estudada pela
Filosofia clássica, quando foi confundida com Sabedoria. A Prudência é
uma virtude aplicável ao Direito, orientando o jurista a escolher a melhor
opção para obter a solução mais adequada ao conflito. Pode-se afirmar que
ela é uma virtude-meio, enquanto a justiça é uma virtude-fim. Na sua
utilização, o intérprete pode se valer de vários métodos e critérios de
interpretação, inclusive para criar direitos. Daí observar-se que o Juiz
Prudente possui as qualidades apropriadas para a jurisdição de eqüidade e
para qualquer atividade em que se busque a solução excelente dos
conflitos.
Palavras chave: Prudência. Interpretação. Justiça.
Résumé: Le texte soigne de la Prudence, qualité humaine étudiée par la
Philosophie classique, quand il a été confondu avec Sagesse. La prudence
est une vertu applicable au droit. Elle donne au juriste la possibilité de
choisir la meilleure option pour obtenir la solution la plus appropriée aux
conflits. On peut dire que c'est une vertu-moyen, tandis que la justice est
une vertu-fin. Lors de son utilisation, l'interprète peut en tirer parti des
diverses méthodes et des critères d'interprétation, y compris la création de
droits. On remarque qu’un juge dit prudent possède des qualités
appropriées à la juridiction de l'équité et à toute activité dans lesquelles on
cherche l´excellence dans la solution des conflits.
Mots-clés: Prudence. Interprétation. Justice.
1. Jurisdição de eqüidade e processo de princípios
De há tempos faz-se a distinção entre jurisdição de direito e jurisdição de eqüidade,
sendo a primeira caracterizada pela aplicação da norma (rectius, do direito positivo, das
normas-regras) pré-existente ao litígio, e a segunda pelo poder conferido ao juiz de criar
direito in concreto, segundo conveniências de justiça e do que seja eqüânime. Naquela, o
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magistrado tece juízo de estrita legalidade, enquanto nesta ele, por almejar a justiça do caso
concreto, pode ultrapassar a barreira da moldura do direito positivado. Na primeira, o
magistrado é um intérprete do legislador, ao passo que na jurisdição de eqüidade ele
interpreta, cria, aperfeiçoa e confere a maior carga possível de justiça à solução do litígio.
A contribuição do pós-positivismo, neste ponto, foi trazer para a discussão a
recorribilidade decisiva aos princípios, como espécies normativas do mesmo sistema,
conquanto sem levar o discurso para o âmbito, propriamente, da eqüidade.
José de Albuquerque Rocha presenteia a doutrina com a seguinte lição:
“Por conseguinte, jurisdição de direito é aquela em que o juiz estabelece a norma do caso
concreto em conformidade com a lei. E jurisdição de eqüidade é aquela em que o juiz recebe o poder
de formular a regra do caso concreto segundo a sua própria consciência.
Na jurisdição de eqüidade, o juiz funciona como legislador. Portanto, a eqüidade implica conferir
ao juiz o poder de legislar. Isto traz conseqüências quanto às exigências de certeza e segurança do
direito que, para alguns, constituem o valor último do direito.
Daí a preocupação da doutrina de demarcar o poder de eqüidade do juiz, elaborando os
diferentes tipos de eqüidade, para em função deles interpretar as normas que autorizam o juiz a
decidir com base nela.
(...)
A eqüidade é um recurso de integração do ordenamento que, para tanto, se vale do poder criativo
do juiz. Na eqüidade, o juiz atua como fonte de formação do direito, que não se confunde com a
fonte formal, que é forma de expressão do direito. Por isto, não se identifica com a analogia, nem
com os princípios gerais do direito, que são métodos de encontrar a norma a partir do próprio
ordenamento jurídico. Daí porque se diz que a eqüidade é um método de integração do
ordenamento, que recorre a fontes estranhas ao ordenamento, no caso o juiz, ao passo que a analogia
e os princípios gerais do direito são métodos de integração do ordenamento que recorrem às fontes
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do próprio ordenamento”.
As críticas assacadas a esta dicotomia entre jurisdições, com carga maior à jurisdição
de eqüidade, deve-se muito à sua suposta expressão do confronto histórico entre direito
positivo e direito natural. Quando a doutrina associou, de alguma forma, na primeira
metade do século XX, o direito positivo à jurisdição de direito e o direito natural à
jurisdição de eqüidade, abriu o flanco para que correntes de pensamento se posicionassem
contra a insegurança dos processos abertos, que possibilitavam ampla liberdade ao
magistrado. Para regimes totalitários, p. ex., não importava nem era conveniente a
discussão sobre justiça, eqüidade ou sobre o tipo de garantias adequado à tutela de direitos,
pois o necessário era a segurança jurídica, protegendo o debate sobre a justiça do próprio
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regime. A lei garantiria a ordem e se bastava a si mesma, sendo refutada a atividade crítica
e criadora do juiz. O procedimento deveria ser austero, rigoroso, com pouca flexibilidade.
Foi este o contexto em que nasceu o Código de Processo Civil (CPC) de 1939, como, de
resto, a legislação processual codificada em vários países.
O próprio pós-positivismo, inicialmente, tentou superar as dualidades, desafio que
venceu apenas em parte. Deveras, a proposta pós-positivista de sobrepujar antigos
conceitos dicotômicos (ex., direito positivo x direito natural, justiça x segurança) não foi
bastante para vencer a força dos tempos, vendo-se compelida a se adaptar para lidar com
realidades duais, antípodas, na compreensão do todo. Ou seja, combateu o dualismo,
propondo o sincretismo; mas se rendeu ao ecletismo, miscigenando elementos que fossem
compatíveis. E foi assim que a complexidade dos modelos processuais resistiu, para
conviver não mais em regimes de exclusão, mas de complementaridade, em que um
respeita a predominância do outro e o espaço de atuação de cada um. Daí porque, até hoje,
ainda se vêem tão nítidas as distinções entre tipos de jurisdição e de modelos processuais,
porém cada um desempenhando suas funções específicas.
A farsa totalitária, no Brasil do Estado Novo, todavia, recebeu os influxos das idéias
socialistas, o que permitiu traçar uma jurisdição de eqüidade para dirimir os conflitos do
trabalho. Na realidade, um invólucro para a sobrevivência do modelo econômico, mas que
continua a render bons frutos, melhores, no mínimo, do que na jurisdição de direito ou no
processo de estrita legalidade. De fato, a jurisdição de direito não é a mais apropriada para
a tutela de direitos sociais inerentes ao trabalho humano, cujos litígios envolvem
necessariamente um nítido hipossuficiente, o trabalhador, e a riqueza do quotidiano
apresenta novidades quase diárias, que a legislação não acompanha; bem ainda, falta-lhe a
abertura necessária para procedimentalizar judicialmente os conflitos coletivos derivados
das relações laborais.
O art. 127, CPC/1973, em vigor, reza que “o juiz só decidirá por eqüidade nos casos
previstos em lei”. Vale dizer: o uso da eqüidade, no campo civil, é excepcional e, para
tanto, necessita de lei que autorize, especificamente, o seu emprego. Logo, o Processo
Civil é instrumental da jurisdição de direito. Para Ada Pellegrini Grinover e co-autores,
“no processo penal o juízo de eqüidade é a regra geral (individualização judiciária da pena
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– CP, art. 42); também nos feitos de jurisdição voluntária, em que o juiz pode ‘adotar em
cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna’ (CPC, art. 1.109)”.2
Por outro lado, a CLT-Consolidação das Leis do Trabalho autoriza, senão determina,
que os operadores do Direito do Trabalho recorram à eqüidade, para a obtenção do justo
equilíbrio entre as partes; vale dizer, adota a jurisdição de eqüidade.3 À guisa de
demonstração, transcrevem-se alguns artigos do Diploma Consolidado, a respeito:
“Art. 8.º As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou
contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros
princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com
os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou
particular prevaleça sobre o interesse público.”
“Art. 766. Nos dissídios sobre estipulação de salários, serão estabelecidas condições que,
assegurando justos salários aos trabalhadores, permitam também justa retribuição às empresas
interessadas”.
Art. 852-I: “§ 1º O juízo adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime,
atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”.
“Art. 868. Em caso de dissídio coletivo que tenha por motivo novas condições de trabalho e no qual
figure como parte apenas uma fração de empregados de uma empresa, poderá o Tribunal
competente, na própria decisão, estender tais condições de trabalho, se julgar justo e conveniente,
aos demais empregados da empresa que forem da mesma profissão dos dissidentes”.
“Art. 869. A decisão sobre novas condições de trabalho poderá também ser estendida a todos os
empregados da mesma categoria profissional compreendida na jurisdição do Tribunal”. (grifos do
autor).
Luis Recaséns Siches vê a eqüidade não como um recurso extraordinário para
suavizar a aplicação de certas leis. Segundo ele, “devemos reconhecer que deve ser o
‘procedimento ordinário’ para tratar com todas as leis. Se o legislador o proibiu alguma
vez, isto não tem nenhum alcance, não pode tê-lo. O legislador tem poder para ab-rogar ou
derrogar uma lei e ditar novas normas. Tem inclusive poder para aclarar em termos gerais
o sentido e o alcance que quis dar a uma lei sua anterior; porém, entenda-se bem, em
termos gerais, com o qual o que faz é ditar uma espécie de legislação complementar.
Porém, se fala de métodos de interpretação emite, então, palavras que se as deve levar o
vento”.4
Entretanto, apesar da abalizada lição do filósofo, o ordenamento brasileiro se deixou
consumir pelo uso apenas extraordinário da eqüidade, só a permitindo nos casos de
autorização legal. E é neste sentido que se tem compreendido, ao extremo, o Estado de
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Direito, cujas normas são legitimadas pelo processo legislativo apropriado, originando-se
de um Poder, o Legislativo, que as elabora por autorização do povo, que nele confiou
referida tarefa pelo voto popular.5
Todavia, todavia! A pá de terra do pós-positivismo não foi suficiente para soterrar a
chama da eqüidade nem conseguiu expurgar os ideais do procedimento adequado à
obtenção da decisão justa. Pelo contrário, a discussão e o ideário de justiça resistiram às
tentações, mesmo tendo que se adaptar aos novos tempos.
Não estão ultrapassados os debates sobre a eqüidade. Eles são como a reposição das
energias do corpo humano: adormecem por algum tempo e voltam, depois, para alentar o
homem. Só para conjurar situações recentes, é de se mencionar que a eqüidade tem sido
invocada no que o Processo Civil pretende ser de mais moderno, o formalismo-valorativo;6
e como fundamento para a relativização da coisa julgada, a qual se escuda no resgate do
“justo” e no respeito à “hierarquia constitucional”. É bem verdade, também, que o
argumento da justiça, invocado para a flexibilização da coisa julgada, recebeu uma
lastimável distorção, no Brasil, porquanto serviu muito mais para negar direitos
fundamentais e desfazer conquistas já consolidadas do que para cumprir a pauta da
dignidade humana na via judiciária.7
A eqüidade é a tônica do Direito do Trabalho, ramo extremamente compromissado
com a justiça social, tanto no campo coletivo quanto no individual. Nos dissídios coletivos
da Justiça do Trabalho, o Tribunal pode criar novas condições de trabalho e de salário, o
que evidencia aplicar a jurisdição de eqüidade.8 De fato, esta é uma postura criadora do
Tribunal, consubstanciada em vários dispositivos da CLT, de que se destacam os arts. 8º,
766, 868 e 869, há pouco transcritos. Destarte, o emprego da eqüidade já se encontra
autorizado, genericamente, pelo sistema consolidado, formando sua substância,
diversamente do modelo civilista. E o Processo do Trabalho, portanto, instrumentaliza uma
jurisdição de eqüidade. É um processo aberto, flexível, teleológico; enfim, um processo
de princípios, e não de legalidade. Esta harmonia entre o tipo de jurisdição e o modelo
processual respectivo é fundamental para a operacionalização e o sucesso pretendidos no
seu funcionamento.
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Na realidade, destacam-se três fatores, que precisam comungar dos mesmos
objetivos: o modelo de jurisdição, o tipo de processo e o perfil da magistratura. A
incompatibilidade de um deles é suficiente para comprometer todo o sistema. No presente
estudo, põe-se em análise de Filosofia do Direito a jurisdição de eqüidade, o processo de
princípios e o juiz prudente.
A modalidade de jurisdição não é definida pelo modelo processual. Pelo contrário:
ela é que define o sistema processual adequado à função que desempenhará. Portanto, não
se pode dizer que jurisdição de direito seja aquela que aplica o Processo Civil, mas, sim,
que o Processo Civil é um tipo de processo que instrumentaliza a jurisdição de direito,
pois, ao lado dele, há, dentre outros, o processo eleitoral e o processo licitatório perante a
Administração Pública, que também são processos de legalidade. Então, cabe ao estudioso
descortinar a espécie de jurisdição para, em seguida, definir e compreender o tipo de
processo adequado a ela. Se este já existe concomitantemente à jurisdição eleita, o
intérprete há de compreender os laços que unem ambos e primar pela harmonização
intrínseca, ciente da instrumentalidade de um ao lado da finalidade da outra, numa relação
de utilidade e de determinância.
Pode até ser que se detecte a modalidade de jurisdição pelo instrumental que a
processualiza, mas isto não pode inverter a fonte de determinância. Trata-se de um recurso
investigativo aplicável no descortinamento de uma realidade, porém apenas complementar
a outros métodos científicos, como o de apreciar o objeto, a finalidade, os sujeitos e o tipo
apropriado de funcionamento do órgão jurisdicional.
Os processos de princípios requerem melhor fundamentação das decisões judiciais,
eis que não basta indicar o texto legal sobre o qual se escuda nem isto é, muitas vezes,
possível, posto lacunoso ou inadequado in concreto. O magistrado precisa explicar à
sociedade a razão de ter escolhido esta ou aquela solução para o caso, dentro das
possibilidades de que dispunha, para chegar à eqüidade.9 Mesmo a escolha de um princípio
em detrimento de outro, a compatibilização de vários deles ou a adequação principiológica
necessita de um profundo juízo de ponderação, balanceamento, proporcionalidade e
razoabilidade. Que o magistrado, então, demonstre à sociedade o tirocínio utilizado,
tentando convencê-la do acerto de sua opção e de ter, com isto, encontrado a melhor
solução para a consecução da justiça do caso concreto.
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Convence a característica fundamental exigida do magistrado que busca a eqüidade
e, mais amplamente, a justiça social: o Prudente. Esclareça-se o significado desta virtude e
sua importância para o Direito, especialmente para o Direito Processual do Trabalho e, de
forma mais ampla, para a jurisdição de eqüidade. O tema é importante, pois, de fato, a
ciência e a filosofia ajudam em muito a encontrar a melhor opção entre os dilemas ou entre
as diversas questões que se apresentam.
2. A Prudência
O que é Prudência?
Inicialmente, o conceito a ser dado é o de Filosofia e, de resto, de Filosofia do
Direito, como arte ou virtude de obter os melhores resultados da melhor forma possível,
num determinado tempo e em certo local, a partir das circunstâncias que se apresentam.10
Neste processo de escolhas, utilizam-se várias outras virtudes, métodos e técnicas. Requer
um juízo amadurecido e experiente, sagaz, racional e sensível (oriundo dos sentidos), com
base na Sabedoria, podendo ir além do racionalismo puro, que é limitado. Lalande adverte
que a palavra prudência é quase sinônima de sabedoria, “pelo menos de sabedoria
prática”;11 ela requer do homem sábio as soluções práticas, sensatas e, também, justas.
Portanto, “Prudência” não pode ser confundida com o sentido gramatical hodierno de
“cautela”, moderação, comedimento, precaução.12 Estes elementos não expressam sua real
dimensão. A Prudentia persegue o prático, o útil, o necessário, o melhor dentre as
circunstâncias postas em julgamento; nisto se diferencia da Sapientia, de conteúdo muito
mais contemplativo. De toda sorte, reconhece-se que, com freqüência, ambas as virtudes
são confundidas pelo uso popular, às vezes até como sendo a prudência uma parte
integrante da sabedoria, por ter esta conteúdo mais amplo (praticidade + contemplação).
O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (CCIC), de 2005, indaga: O que é a
prudência? E, em seguida, responde: “A prudência dispõe a razão para discernir em todas
as circunstâncias o nosso verdadeiro bem e a escolher os justos meios para o atingir. Ela
conduz às outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida” (nº 380). É a prudência que
distingue o ato de coragem, situado entre a covardia e a temeridade, entre a frouxidão e o
açodamento, entre a ação e o impulso, entre o heroísmo e a insensatez. “A prudência não é
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nem o medo nem a covardia. Sem a coragem, ela seria apenas pusilânime, assim como a
coragem, sem ela, seria apenas temeridade ou loucura”.13
Prudência é a virtude de realizar a melhor escolha para a consecução dos objetivos
eleitos. É uma das quatro virtudes da Antigüidade, ao lado da coragem, da temperança e da
justiça. Ao mesmo tempo em que ela orienta o agir humano na prática das outras virtudes,
ela evita os fiascos, norteando o momento, o local, a forma e a dimensão para o exercício
das demais. Por isso, diz-se que desempenha um papel instrumental, de meio, orientativo
das demais virtudes. Ou seja, sua função é temperar ações14 e orientar a prática das demais.
Quantos males são e foram, ao longo da história, praticados em nome do Bem? Quantos
crimes foram cometidos em nome do Amor e da Justiça? E de qualquer outra virtude?
Muitos, com certeza. Tinha-se o fim, o objetivo, mas a atrocidade foi cometida pela falta
da Prudência. Faltou um bom senso no emprego dos meios que deveriam levar à
consecução do objeto virtuoso.
André Comte-Sponville explica-a, didaticamente:
“A maioria dos nossos governantes quer o bem do país e o nosso. Mas como realizá-lo? É o que os
opõe, e nos opõe. Vejam-se os pais, quase todos querem o bem dos filhos. Mas isso, infelizmente,
nunca basta para ser bons pais! É preciso também saber como educar os filhos, como fazer de fato o
bem deles ou como ajudá-los a fazer o próprio bem. Querê-lo é o mínimo. Mas por qual caminho
chegar lá? A verdadeira questão, quase sempre, concerne aos meios, não ao fim. O que fazer e
como? É o que o amor gostaria de saber e não basta para determinar. Amar não dispensa ninguém de
ser inteligente. É o que torna a prudência necessária. Virtude intelectual, dizia Aristóteles: é a arte de
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viver e de agir da maneira mais inteligente possível”.
Sponville menciona que o médico deseja a cura, mas não lhe é dito tudo quanto deva
fazer para consegui-lo. E arremata: “A prudência não delibera sobre os fins, observava
Aristóteles, mas sobre os meios. Ela não escolhe o objetivo; ela indica o caminho,
enquanto nenhuma ciência ou técnica baste para tal. É uma espécie de sabedoria prática
(phrónesis), sem a qual nenhuma sabedoria verdadeira (Sophia) seria possível”.16
Nicola Abbagnano divide a sabedoria em prudentia e sapientia. A primeira refere-se
à “conduta racional das atividades humanas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da melhor
maneira. Não é o conhecimento de coisas elevadas e sublimes, afastadas da humanidade
comum, o que é expresso por sapientia, mas o conhecimento das atividades humanas e da
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melhor maneira de conduzi-las. A superioridade atribuída à prudentia [sobre] a sapientia
demonstra a interpretação fundamental que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é
típico do conceito de filosofia como contemplação pura; o primado concedido à prudentia
expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo”. Desse ponto de vista,
prossegue o autor, citando Aristóteles, a prudentia é “hábito prático e racional que diz
respeito ao que é bom ou mau para o homem”.17
Platão, no entanto, achava a prudentia superior à sapientia, em razão dos efeitos
práticos da primeira para a vida humana. Essa discussão varou as várias correntes
filosóficas, alternando-se na supremacia ora de uma ora de outra. Aristóteles considerava
prudente aquele que soubesse discernir o que é bom e útil, deliberando sobre o possível e o
realizável, à luz da razão e da escolha da ação. Destarte, segundo ele, a prudência é uma
disposição racional sobre a ação, tendente à realização do bem, não só pessoal, mas
voltado à família e à Pólis; por este motivo apontava Péricles como o melhor exemplo de
homem prudente, porque exercia o governo não apenas para si mesmo, mas para a família
e para o bem da cidade.18 Após Aristóteles, todavia, prevaleceu o ideal de sabedoria
prática, que veio a ser retomada por Kant, o qual lhe sobrepôs a moral e o dever, de
conteúdo absoluto.19 Bem, mas isto já é outro assunto, cuja abordagem levaria a um desvio
do propósito desta breve investigação.
3. O Juiz Prudente e o juízo prudencial
Juiz Prudente é o que age segundo a Prudência. O emprego de técnicas de
interpretação (proporcionalidade, razoabilidade, balanceamento...) ajuda o Juiz Prudente a
lograr seu objetivo, mas não se confunde com a essência deste sujeito; não é bastante para
defini-lo. Tais critérios simplesmente fazem parte do instrumental técnico de que ele pode
se utilizar para alcançar seu propósito, que é o de escolher bem, o de optar pela melhor
resposta aos problemas que lhe são submetidos.
Juízo prudencial é o exercido pelo
aplicador da norma para chegar à solução mais apropriada, com justiça e efeitos práticos
efetivos, desejados, acertados. Assim, a prudência indica o caminho, mas, para percorrê-lo,
necessita caminhar, dar passos, saltar obstáculos. Para isto é que servem as técnicas ou
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critérios interpretativos, sempre orientados pela razão, pelo bom-senso, pela sensibilidade
do hermeneuta.
Se o juízo prudencial recomenda que, numa disputa dos pais, por exemplo, é melhor
haver guarda compartilhada dos filhos, isto será demonstrado em análise dos testes de
razoabilidade, harmonização, balanceamento, proporcionalidade etc., desde que aptos a
atingirem a eqüidade, que é o objetivo natural deste tipo de querela. Estes meios
intelectuais são reivindicados após a constatação da situação fática, o que se dá por meio
das provas jungidas aos autos e das percepções do magistrado arguto. Como arremate de
todo o processo hermenêutico, sobrevém o juízo prudencial, dosando e escolhendo o
melhor critério para a melhor solução do conflito. Em situação tão complexa, averiguará a
conveniência do compartilhamento, as condições emocionais dos envolvidos, a capacidade
dos pais, o amor filial e paternal, a sustentabilidade da situação, os reflexos emocionais etc.
São fatores que nenhuma legislação do mundo pode indicar, peremptoriamente, para a
solução a ser dada, a não ser confiando ao magistrado, por sua inteligência e sensibilidade,
tão difícil tarefa.
O uso da escolha prudencial, ou, mais apropriadamente, do juízo prudencial, ocorre
antes ou depois do emprego de um dos critérios de interpretação jurídica? Responde-se: às
vezes antes, noutras depois e, não se pode descartar, durante o processamento
hermenêutico. Assim ocorre porque, em determinadas situações, mais simples, a prudência
já aponte para a solução a ser dada ao conflito, de tal forma que isto definirá o critério a ser
empregado. Em outras ocasiões, mais complexas, recomenda-se que sejam utilizados os
diversos critérios, jungidos ao caso concreto, a fim de se vislumbrar, ao final, a solução
mais adequada. E em situações mais específicas, de antemão não enquadráveis na primeira
hipótese, o hermeneuta põe em campo os diversos critérios sendo que, durante o teste
intelectual, antecipe e defina um que seja apropriado para solucionar mais sensatamente o
conflito. Estas são situações que, aparentemente difíceis e complexas, deixam a cortina
cair, durante o desafio intelectual, para evidenciar sua singeleza.
A prudência é a virtude, e o juízo prudencial a sua atividade, para o que pode se valer
dos mais variados instrumentos. Por vezes, a própria escolha de um instrumento específico,
o adequado, já é um ato de opção prudencial. Foi o que ocorreu no episódio bíblico, em
que Salomão ameaçou talhar em dois pedaços uma criança e dividi-la com as duas
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mulheres, que a reivindicavam na condição de mães. Na realidade, foi uma artimanha para,
apelando ao sentimento materno, descobrir quem era a verdadeira mãe e, portanto,
entregar-lhe a criança sã e salva. Um instrumento inteligente que alcançou resultado
satisfatório, eis que a mãe verdadeira se revelou na manifestação de amor, disposta a
renunciar ao filho para vê-lo inteiro e vivo, mesmo que aos cuidados da outra mulher.
Contudo, foi um instrumento intelectual criado por quem conhecia a alma humana e tinha
plena convicção do tamanho do amor maternal. Com certeza, porém, o mesmo expediente
não teria serventia se estivessem presentes a mãe de sangue e uma mãe adotiva, a qual
criara afeição ao rebento da outra, pelos meses ou anos de convivência com a criança.
Então, o artifício astucioso haveria de ser substituído por outro; e a Prudência teria de se
valer de meio mais apropriado, eficaz e útil. Pelo porte de sua inigualável sabedoria, posta
freqüentemente em prática (a prudência), Salomão sabia disso; e, por certo, não escolheu a
dita artimanha aleatoriamente; fê-lo com plena ciência e segura convicção.
A idéia de juiz Prudente supera, em muitos aspectos, a concepção do Juiz Hércules,
cunhada por Dworkin, por ser aquela mais fluida, flexível e deixar que o intérprete se
expresse humanamente, com a sensibilidade do espírito indefinido, que, unindo sentimento
e razão, é apto a retirar do rosto, sozinho, a venda que encobre a verdade e ser tocado pela
Revelação. No mais, é preparar o juiz para ser prudente, o que se dá mediante a educação
de sua alma, a qualificação profissional e os exemplos práticos da vida.
O Juiz Hércules, de Dworkin, foi concebido em alusão ao semi-deus grego Hércules,
filho do olímpico Zeus e da mortal Alcmena. A força, a bravura e o heroísmo mitológicos
são substituídos, na visão de Dworkin, por um sujeito (juiz) sábio, com conhecimento
amplo, dotado de extrema sensibilidade social, jurídica e política, paciência e sagacidade
sobre-humanas. Mas é um magistrado limitado, inserido no sistema da common law, preso
às suas normas expressas e aos seus princípios positivados (explícitos ou implícitos), de
onde extraiu suas características jurídicas, que se baseia nos valores norte-americanos para
solucionar os conflitos. Logo, não pode possuir conhecimento universal, cuja vasta cultura
e valores possam ser aceitos por outras nações, ou, ao menos, que possam ter incursão nos
sistemas que privilegiam os direitos sociais ou o direito natural. Enfim, é um magistrado
limitado aos valores norte-americanos, operador de um modelo que não é aceitável por
outras culturas.
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Gérson Marques
Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente
E, de fato, diz Dworkin:
“Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero
que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua
jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos
jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos
tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso
em juízo”.
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Como se depreende deste trecho, Hércules não constrói o direito do nada; apenas o
declara, retirando-o do arcabouço normativo, do contexto principiológico; ou seja,
descobre o direito e o expressa. Deste modo, preserva a separação dos poderes e resolve a
questão da irretroatividade da norma. A força criativa judicial está, exatamente, em extrair
a solução adequada partindo dos elementos normativos supostos e pressupostos.
O semi-deus (Hércules) imaginado por Dworkin serve, apenas, para demonstrar o
tipo de juiz de que a sociedade necessita no sistema norte-americano, isto é, alguém com
conhecimentos excepcionais e que os saiba aplicar, por extraí-los da vivência social. É um
magistrado que conhece os precedentes judiciais, a história dos cases, a mentalidade
jurídica do povo. A concepção de Dworkin, repita-se, foi pautada no sistema da common
law (mais precisamente, dos EUA), numa perspectiva liberal, em modelo social bastante
distinto do brasileiro e sob o manto de um sistema constitucional consolidado há mais de
200 anos. Sua contribuição é para a teoria do Direito e não para a teoria da justiça, o que
fica a cargo de Rawls e outros doutrinadores.21
É uma teoria racionalista, conquanto procure evitar os dogmas do jusnaturalismo e
do positivismo estrito; daí receber, por muitos, a alcunha de pós-positivista. Exatamente
por isto comete mais um equívoco, na medida em que não reconhece a sensibilidade do
intérprete, gigante em sua espiritualidade, como fator complementar à racionalidade.
Dworkin acaba limitando o homem à razão terrena e, assim, retira o que de mais belo há na
criatura de Deus: a intuição e os valores superiores, alguns dos quais se encontram acima
do próprio Direito.22
Sim, é preciso ser humano para se compreender o tamanho da humanidade. Que
outro ser compreenderia suas angústias e sua divindade? Algum bruto entenderia a dor da
litigância processual? Algum autômato se sensibilizaria com as dificuldades de um direito
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não satisfeito? Que outro vivente discerniria melhor o sofrimento da alma? Ou o abalo de
um dano moral? Ou o extrapolamento da condição de hipossuficiência dos mais fracos? Só
um magistrado humano, espiritualmente humano, tem a aptidão para compreender,
profundamente e em múltiplas dimensões, a dor pela perda de um filho, o sofrimento pela
falta de salários não pagos e a angústia de não conviver com a família. Mas, também, só
ele pode medir os limites jurídicos para assegurar um processo justo e evitar as soluções
apaixonadas aterradoras, inconsistentes.
François Ost desenvolveu artigo doutrinário no qual apresentou a classificação de
três tipos de magistrados: o Júpiter, o Hércules e o Hermes. O primeiro (Júpiter) é um juiz
dogmático, positivista, típico do direito codificado, que adota o modelo hierarquizado
normativo de Kelsen, priorizando a lógica formal sobre o sentimento e restringindo-se a
encontrar a solução dos casos no próprio Direito. Para ele, o juiz é a bouche de la loi (a
boca da lei) e o ordenamento é pleno. O segundo (juiz Hércules) é expert na prática
jurisprudencial, recorrendo aos princípios, na fórmula já defendida por Dworkin. E, o
terceiro (juiz Hermes), também reportado por Dworkin, fixa-se na interpretação da lei em
função da vontade do legislador, sendo o porta-voz do legislativo, seu mediador perante o
povo. Mas aí não há, propriamente, um diálogo, pois a palavra legal nada mais é do que
um monólogo, uma ordem que violenta, sendo o juiz o inquisitor.23
É, porém, uma classificação incompleta, porque não justifica o juiz criativo,
encarregado de aplicar a eqüidade, de buscar soluções fora do Direito positivado.
Apresenta, apenas, modelos fechados, de juízes sem liberdades, arautos da legalidade ou da
experiência jurisprudencial. Vale dizer, perfis típicos da jurisdição de Direito e de
processos de legalidade estrita.
Justamente para suprir esta lacuna é que se faz referência, neste estudo, ao Juiz
Prudente. De fato, só o juiz prudente é capaz de bem atuar na jurisdição de eqüidade, que
autoriza a criação de direito, e de manejar adequadamente o instrumento jurisdicional
apropriado a esta tarefa, o processo de princípios, que é mais flexível do que o processo de
legalidade estrita e permite maior liberdade ao magistrado.
4. Tangenciando a criação do direito: realismo e sociologismo jurídicos
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Se é certo que, na jurisdição de eqüidade, o juiz pode criar direitos e manejar com
maior liberdade o processo, é preciso verificar como ele o faz e de onde retira sua
legitimidade para fazê-lo.
Na ótica de Vigo, o juiz retira criativamente sua solução não apenas da lei, mas do
Direito ou ordenamento jurídico, no qual se incluem, de maneira destacada, os princípios
jurídicos e os valores.24 Ao fim, o objetivo da atuação prática e da hermenêutica é a justiça,
em todas as suas feições. Por isto, Vigo defende:
La tarea prudencial judicial abocada a deliberar, juzgar e imperar sobre lo justo concreto, debe
estructurarse con la forma global de un silogismo prudencial, práctico o deliberativo, que en realidad
comprende habitualmente un sinnúmero de silogismos que terminan conformando um macrosilogismo. Nos sumamos así a las corrientes descalificadoras de los que pretenden silogismos
teóricos, científicos o demostrativos por parte de los jueces. Aquella forma silogística Del saber
25
prudencial posibilita que se ejerza sobre el mismo algún control de logicidad.
Para chegar à eqüidade, a qual consiste na solução justa do conflito [judicial], o
magistrado precisa de elementos, de opções, de instrumentos mais amplos e diversificados.
De posse deles, utilizará a Prudência e, logo, obterá a melhor solução para o caso. Tais
elementos dispersam-se pelo Direito e disseminam-se nas regras de justiça. Carente de
justiça, a sociedade quer que o juiz os encontre e faça a melhor opção. Para atingir os
objetivos, recomenda-se que ele construa pontes, interligue realidades, explore os valores
sociais, desvende o desejo humano, realize a felicidade, a paz; que recorra à lei, aos
princípios, aos valores, ao conhecimento multicultural; que leia, interprete, colmate, crie,
projete; que aprecie o manancial histórico, econômico, filosófico, sociológico, religioso...
Mas que dê, ao final, a tutela mais justa ao jurisdicionado.
Para encontrar a justa decisão – e há situações em que mais de uma decisão pode ser
justa, sendo difícil a análise do grau do que seja mais justo ou menos injusto26 – o
magistrado está autorizado pelo próprio ordenamento a ultrapassar os contornos da
moldura do direito expresso. Sob o ponto de vista didático, é possível dizer-se que o
quadro emoldurado (legado kelseniano que ora se invoca) funciona, na jurisdição de
eqüidade, não como uma prisão, mas como um centro de gravidade. Assim, quando o
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magistrado necessita sair dele para decidir da forma mais justa, vê-se “puxado”, “atraído”,
e não pode se distanciar muito, sob pena de se perder no espaço fictício e não encontrar
mais o caminho de retorno. Por mais que saia da moldura – o que só ocorrerá em casos
indispensáveis – , deve ficar em sua periferia, pois não pode “rasgar” o ordenamento nem
romper com os valores jurídicos, tão caros à sociedade. Proferida a extraordinária decisão,
deve retornar às suas origens imediatamente. A ruptura do liame gravitacional levaria à
ilegitimidade do julgador e à ditadura do Judiciário. Tal ruptura também não se verificará
se o juiz, afastando um determinado dispositivo específico infeliz ou inoperoso da lei, no
caso concreto, tendente a ocasionar um prejuízo social relevante, aplicar outros
dispositivos ou princípios do sistema. Porém, tudo de modo racional, razoável e
cabalmente justificado à sociedade, que fiscaliza seu agente de justiça. A inobservância
particularizada da lei não implica violação do Estado de Direito se as razões e os objetivos
forem abraçados pelo mesmo Estado, que autorize o magistrado a assim proceder; e se, ao
fim, a sociedade demonstrar aptidão para aceitar a solução judicial. E se este
comportamento judicial se generalizar, sob o desejo e a aceitação tranqüila da sociedade,
maior será a legitimidade dos magistrados.
Em cada situação concreta, o magistrado há de encontrar a melhor resposta, pautado
pelo senso de justiça, o qual, conforme já afirmado neste artigo doutrinário, manifesta-se
em maior evidência nos princípios, por serem a fonte mais sólida de valores. E como fazêlo? Pela Prudência, pela Sabedoria prática. Não há, para tanto, regras rígidas nem fórmulas
externas à percepção e ao sentir humanos. Somente o caráter humano mais ideal orientará
a solução mais justa. E, na sua aplicação prática, na discussão que despertará, é que a
sentença provará a todos que passou ou não pelo teste da justiça.
As soluções racionais e os métodos de interpretação fomentados pelo racionalismo,
como o princípio ou critério da razoabilidade, o primado da proporcionalidade, o
balancing, o da harmonização, além dos clássicos e de outros de somenos relevância, hão
de receber, também, um influxo natural do sentir humano. Não de qualquer sentire nem de
qualquer forma, mas como fruto do que se exercite e se pratique, uma qualidade humana
que precisa ser trabalhada, desenvolvida.
Outras faculdades são necessárias a tal agir do julgador: sua liberdade, sua
independência e seu poder de decidir. Deveras, sem liberdade e independência para
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perscrutar a melhor solução para o caso e sem poderes para aplicar a verdadeira justiça, a
melhor solução, o Bem, não poderá utilizar a Prudência. Como fazê-lo ou de que valeria?
A Prudência possui como pressupostos a existência de multiplicidade de opções, a
liberdade para escolher a mais justa delas e o poder imanente ao juiz para impor sua
decisão. Por isso, ao juízo prudencial, à jurisdição de eqüidade e ao processo de princípios
são incongruentes sistemas rígidos, de ordenamentos fechados, e de institutos como a
súmula vinculante.
Encontram-se registros históricos das ondas de atuação jurisprudencial e do papel
criador do juiz, em antagonismo às correntes formalistas. Aquelas possuem teor mais
social e político, enquanto estas exaltam o normativismo jurídico. Dentre as primeiras,
elejam-se, para um rápido comentário, as envolvidas com o sociologismo jurídico, muito
embora se pudessem citar as doutrinas do direito livre, do direito achado na rua, etc., que
pregavam expressamente o caráter secundário da norma, na medida em que cabia ao juiz
encontrar a melhor solução para o conflito, mesmo contra legem, sempre protegendo os
mais fracos e encontrando respostas socialmente apropriadas.
Sustentada judicialmente por Holmes e Cardozo, magistrados da Suprema Corte dos
EUA, a jurisprudência sociológica encontrou em Roscoe Pound (1870-1964) seu
doutrinador de maior expressão, que começou a defendê-la publicamente em trabalhos
datados ainda de 1908. Mas a doutrina não teve fôlego para ultrapassar a primeira metade
do século XX. Ao que tudo indica, sua sobrevivência foi malograda por falta de um
método científico consistente, eis que, em sua essência, combatia justamente a metodologia
jurídica de então. Destarte, enquanto o Direito buscava se firmar como ciência e, portanto,
tinha de se adaptar à metodologia científica, era contraditório que se adotasse uma doutrina
cujo método não era aceito cientificamente. Assim, os padrões científicos esvaziaram-na.
Por cima, sob o ponto de vista processual, defrontava-se com o fato de que os interessados
no resultado do conflito não tinham oportunidade de, antes da decisão, examinar os dados
de que possivelmente se valeria o julgador – de resto, nem ele próprio o saberia com
antecedência. Em face da imensa subjetividade, em meio a tantas variáveis possíveis, entre
as mentais do intérprete e as fáticas, ficariam os interessados alheios ao processo
intelectual e argumentativo do julgamento, da construção do convencimento, sem o prévio
direito de defesa e de co-participação processual.
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Luís Recaséns Siches compara esta escola com a alemã Jurisprudência de Interesses,
“pero con una precedencia cronológica respecto de esta, y con matices originales, así como
con una influencia muy vigorosa y de enorme alcance no sólo sobre el pensamiento
jurídico anglosajón, sino también sobre el desenvolvimiento efectivo del Derecho positivo
en los países de lengua inglesa”.27
A
jurisprudência
sociológica
norte-americana
(Sociological
jurisprudence),
indigitada como escola precursora do realismo jurídico, defrontou-se com o idealismo
jusnaturalista e, ao mesmo tempo, com os dogmas juspositivistas. Focando o direito na
sociedade, refutou o jusnaturalismo, no que ele afirmava quanto a direitos pressupostos à
socieade e ao Estado; e, ao mesmo tempo, objetava ao normativismo/formalismo (típico da
jurisprudência analítica) o argumento de que a concepção lógico-conceitual do sistema
jurídico, num quadro silogístimo, é irreal e inapropriado aos escopos sociais. Roscoe
Pound defendia expressamente a necessidade de instrumentos para que, pelas decisões, os
magistrados fizessem o melhor para a sociedade. Com isto, mudou o foco hermenêutico,
que migrou da aplicação da norma (normativismo) para a “satisfação dos interesses sociais
mais relevantes”. A pretensão era que fosse alcançado o máximo/melhor com o mínimo
possível, tudo voltado ao bem social.
Recaséns Siches observa outras máximas da jurisprudência sociológica norteamericana, como “la tarea interpretativa es siempre algo más que mero buscar y descubrir
un sentido” e “la actividad judicial comprende siempre una valoración”. Além disso,
sustentavam seus defensores, que “al analizar la conducta judicial, es necesario distinguir
entre los procesos mentales conscientes y los subconscientes; y que los segundos – los
subconscientes – en ocasiones ejercen una influencia decisiva”.28 Quanto ao sistema de
fontes, a escola reivindicou o recurso às fontes extrajurídicas, por efeito da contribuição da
sociologia, da economia e da política. E, na medida em que o juiz podia criar direito, ele
teria de recorrer a algo fora do ordenamento jurídico, embora com ele compatível. Mesmo
dentro do Direito, tal critério de aplicação se fazia necessário, por força do reconhecimento
dos conceitos indeterminados, que requeriam delimitação do magistrado, em sua
subjetividade racional.29 De seu turno, a mesma doutrina jurisprudencial patrocinava que o
intérprete antecipasse, mentalmente, os efeitos de sua decisão, a fim de cogitar
previamente de seu acerto ou desacerto, de sua justiça ou injustiça.
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Integrante da mesma escola, Benjamin Cardozo sustentava que o juiz, em suas
decisões, tinha de valorar diversos direitos e interesses que se contrapunham, a fim de
verificar o melhor para a sociedade. Para tanto, o raciocínio silogístimo ficava em segundo
plano, pois a escolha axiológica seria influenciada por “instintos herdados, crenças
tradicionais e convicções adquiridas e por sua idéia geral da vida e sua concepção das
necessidades sociais”.
O nome jurisprudência sociológica se opunha, em verdade, a jurisprudência
mecânica, denominação irônica e depreciativa utilizada por Roscoe Pound para expressar o
silogismo hermenêutico, em cuja prisão intelectual se enclausurava o intérprete. A mesma
escola, ao chamar a atenção para o papel social da jurisprudência, defendia maior tempo na
educação de advogados e juízes, os quais deveriam adquirir conhecimentos de economia,
sociologia e política.
Conforme dito há pouco, a jurisprudência sociológica esteve enraizada nas origens
do realismo jurídico, o qual combatia o método dedutivo nos julgamentos e, contrapondose, adotava o método indutivo (do particular para o geral), sob o argumento de que, na
realidade, o juiz primeiro decide – no seu íntimo – e, só depois, extrai do ordenamento
jurídico os fundamentos da decisão. Os dedutivistas fincavam-se em silogismos, como
fruto do racionalismo iluminista, manifestando-se tanto nos teóricos da única decisão
correta (ex., Dworkin, anos após o debate atingir seu auge) quanto nos que abraçaram a
tese das várias decisões possíveis desde que dentro da moldura jurídica (ex., Kelsen). Para
o realismo, o juiz é quem, de fato, cria o direito, cabendo ao legislador transformá-lo em
previsão textual. Assim sendo, a função judicante é muito mais importante do que a
legislativa.
Contudo, este modo de pensamento levou ao decisionismo, com tendências a uma
liberdade descomunal do juiz, que deixava o sistema desprovido da segurança apregoada
pelo positivismo.
Esta possibilidade de o juiz ultrapassar o campo legal ou mesmo de julgar contra a lei
acarretou forte reação do positivismo, escudado na segurança jurídica e, sob a perspectiva
científica, no método. A consciência livre do intérprete encontrou oposição ferrenha, pois
abria as portas para a ditadura do judiciário.
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Citam-se como arautos do realismo jurídico Ehrlich, Alf Ross, Olivecrona, Jerome
Frank e Wendel Holmes, dentre outros. Pode-se dizer que tal corrente de pensamento
apresentava várias dissensões internas, conquanto houvesse de comum, em seu bojo, o
empirismo e o combate ao dogmatismo-silogístico do direito. Os realistas não admitiam
qualquer explicação metafísica ou que se apelasse para a transcendência do Direito ou com
direitos pressupostos (provenientes da natureza ou de uma divindade), por isso se diz
freqüentemente que o realismo jurídico, apesar de tudo, identificava-se muito mais com o
juspositivismo do que com o jusnaturalismo. Bastava-lhe a declaração judicial, pelos
magistrados, para que se tivessem direitos, consubstanciados na realidade fática, empírica,
constatável pelos juízes e por eles definida. Demais disso, só a norma, considerada em si
mesma, não é suficiente para ser eficaz nem significa que os juízes lhe darão o alcance e o
conteúdo pretendido pelo legislador. Afinal, há normas que caem em desuso, as que nunca
são aplicadas, as que têm seu curso modificado etc. Então, o trabalho jurisprudencial,
atento à experiência sociológica, é que define, efetivamente, as decisões.
Estas foram discussões travadas na primeira metade do século XX, em que
prevaleceu o positivismo, que, depois, foi seqüenciado pelo pós-positivismo. As doutrinas
sobre a ampla liberdade na atividade judicial, sobre o construcionismo jurídico (ou
criacionismo jurídico), receberam a alcunha de decisionismo, denominação que atraiu um
sentido pejorativo, confundindo-se com a ditadura judiciária. No entanto, sobreviveu um
instituto, que conseguiu burlar a vigilância dos positivistas ou que foi por eles tolerado,
como meio de sobrevivência do sistema: a jurisdição de eqüidade, conquanto em caráter
excepcional de atuação do Direito. E, com ela, instrumentos específicos de aplicação do
Direito.
É sabido que as escolas de pensamento se caracterizam por um grupo de pensadores
que compartilham dos mesmos pontos de vista sobre alguma tese científica, com aceitação
por várias outras pessoas, que, exatamente por isto, passam a comungar dos mesmos
raciocínios; normalmente, as escolas apresentam uma uniformidade no método que seus
integrantes adotam. Nem sempre tais integrantes possuem as mesmas virtudes ou possuem
o mesmo grau de inteligência, estágio de conhecimento ou outros atributos pessoais. Elas
são formadas por grupos de pessoas, unidas pelos mesmos laços intelectuais, pelas mesmas
tendências científicas. Para que exista uma escola de pensamento é preciso haver um
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núcleo teórico comum, em torno do qual convirjam consensos entre os membros
integrantes, embora se constatem divergências em pontos periféricos à tese central.
No Direito, as escolas não têm se formado em torno das virtudes, senão de técnicas,
métodos ou objetivos específicos.30 É hora de elas reconhecerem as virtudes para utilizálas. E, em seu labor, empregarem algum método adequado à consecução de um fim
virtuoso, podendo – quem sabe – divergirem na virtude a ser eleita. Dentro da concepção
de virtudes-meios e de virtudes-fins, pode-se dizer que a Prudência se enquadra na
primeira categoria, enquanto a Justiça pertence à segunda.
Os valores da sociedade podem esconder uma situação de injustiça, que só a história
e o desenvolvimento humano descortinarão, graças a mentes extraordinárias, capazes de
romperem o véu comum, que a todos encobre. Exemplo disso são as clássicas
discriminações e desigualdades entre sexos, entre raças e entre opções sexuais, que por
muito tempo foram aceitas como legítimas, toleradas e até estimuladas. De fato, o
intérprete justo teve que, rompendo os valores culturais locais de uma determinada época,
avançar para estabelecer o tratamento isonômico. Em ocasiões deste naipe, ele recebe uma
luz que o impele para além do meio em que vive e o faz enxergar outras verdades,
revelando-lhe a injustiça do que a sociedade aceita como certo.31 E deixa de contemplar as
sombras da caverna para ver os verdadeiros objetos, incumbindo-lhe levar consigo a
sociedade iludida, para pô-la na sua devida consciência. Logicamente, esta ruptura não
pode ser brusca nem de tal profundidade que estarreceria a sociedade, a qual, exatamente
por isto, não aceitaria a solução hermenêutica. Em face do centro gravitacional, de que se
falou neste trabalho, o hermeneuta poderia sair para a periferia normativa e social – mas só
um pouco, não se distanciando da força centrípeta ou do halo gravitacional – para,
respaldando-se em valores mais gerais – igualmente aceitos pela sociedade – , aplicar a
justiça. E a repetição destas decisões podem influenciar o legislador para a elaboração de
novas normas ou alteração das já existentes, além de trazer para o bojo do Estado
discussões sociais da mais alta relevância. Aliás, tais decisões podem mudar o
comportamento da própria sociedade, como vem acontecendo por força da jurisprudência
sobre danos morais e sobre os assédios (moral e sexual). Também aqui se tem uma
atividade criadora do juiz.
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Mas, se o intérprete pode sair do campo normativo e, por vezes, até do quadro
cultural posto na sociedade, para dar um salto evolutivo, até que ponto ele pode se
distanciar do centro gravitacional? O halo é formado pelos valores superiores, pelas
virtudes, de que se destaca a justiça. Não a justiça estatal, porque esta já se encontra
emoldurada pelo ordenamento; mas a justiça suprema, a verdadeira. Estes valores
compõem a atmosfera, apesar de, também, a exemplo dos raios solares, penetrarem cada
espaço do planeta imaginário. A existência neste planeta depende dos raios que alguma
fonte, ainda pouco compreendida pela humanidade, irradia. É o bom senso e o fluido
virtuoso que animam a alma humana, o sentimento e a boa ação, que orientam e definem
os limites do sobrevôo hermenêutico.
Usar de eqüidade não é sinônimo de romper o Estado de Direito nem de rasgar as leis
ao bel prazer de um intérprete irresponsável. É, sim, encontrar a solução justa para o caso
sub judice, pois o próprio sistema jurídico admite inúmeras fórmulas de fazer justiça dentro
dele. Cabe ao intérprete investigar, perscrutar, perquirir, esquadrinhar, devassar os limites
do Direito para obter a melhor resposta possível. De todo modo, se o sistema for
excepcionalmente lacunoso, a sociedade precisa que o Estado responda às suas
necessidades, julgando o conflito. Não um julgamento qualquer, mas justo, devidamente
fundamentado e exposto à sociedade, o que é mais imperioso nestas condições do que
quando o juiz invoca uma norma positivada, já expressa no ordenamento e aprovada por
representantes diretos do povo, cuja legitimidade é, por si só, presumida.32
No campo trabalhista, de onde o magistrado retira a legitimidade ao criar direitos, o
que é muito comum no plano do direito coletivo? Ora, a criação do direito provém de um
juízo prudencial, o que confere legitimidade social, já que a sociedade almeja a obtenção
da justiça. Assim, no esforço por encontrar a justiça social e, concretamente, a eqüidade, a
atividade apresenta uma natural tendência à legitimação desta importante parcela do
Judiciário. Por sinal, é possível generalizar que a legitimidade de qualquer órgão do
Judiciário está em aplicar a justiça. É este o valor que a sociedade busca ao demandar o
Judiciário. Só os movidos pela cupidez e por outros anti-valores procuram o Judiciário para
obter resultados diversos, que não os justos.
Já Verdú procura encontrar um elo de legitimação do julgador e do sistema
normativo, que precisam estar em consonância com a sociedade. Para tanto, recorre a uma
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perspectiva psicologizada, para compreender o sentimento que assola o povo e a
compreensão que este tem de sua Norma Maior. A Constituição e a sociedade hão de estar
ligadas por um sentimento anímico (o constitucional). Neste contexto, resumidamente,
pode-se dizer que o Juiz Prudente, na solução de conflitos de caráter constitucional, pode
demandar a melhor forma possível para atingir o que a sociedade espera e seja justo,
mesmo quando a norma constitucional for omissa. Ele procurará fundamentar suas
decisões no sentimento de Constituição. E é desta mesma maneira que superará os
conflitos e tensões constitucionais, indo além da frieza do texto normativo, na busca pelo
ideário social. A teoria de Verdú admite uma margem considerável de subjetivismo, o que
acontece, também, com o exercício da Prudência. Os contornos são a vinculação com a
sociedade e o compromisso de bons resultados práticos, no emprego da psicologia coletiva
e do racionalismo crítico. A legitimidade do constituinte e do intérprete que cria norma ou
que encontra novas soluções constitucionais reside justamente aí.
5. Conclusão
Em Dworkin, o uso da razão se limita à revelação do Direito. Para o Juiz Prudente,
típico da jurisdição de eqüidade, o uso da razão pode levar, também, à criação de direitos.
Pode-se esclarecer o seguinte:
•
A jurisdição de eqüidade tem por finalidade atingir a justiça in concreto;
•
O processo de princípios é método processual mais adequado do que o processo
de legalidade estrita para o exercício da jurisdição de eqüidade;
•
Na jurisdição de eqüidade, o magistrado deve primar pela Prudência,
escolhendo o melhor caminho para atingir mais perfeitamente a justiça;
•
Como o aplicador da norma precisará compreender o sistema normativo, além
dos aspectos políticos, econômicos e sociológicos, haverá de se debruçar sobre
o Direito integral, completo, no processo hermenêutico;
22
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Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente
•
No processo hermenêutico, o agente responsável fará uso dos critérios e
métodos de interpretação que a Prudência lhe recomendarem, observando a
finalidade a que se presta o papel do intérprete;
•
Tanto mais legítima será a decisão se ela for carregada de justiça e o magistrado
demonstre o iter que percorreu para chegar à dita conclusão, convencendo a
sociedade do seu acerto;
Deste modo, tem-se que o Juiz Prudente, por sua liberdade, força criadora e
propensão à aplicação da justiça, é mais apropriado ao Direito, sobretudo à jurisdição de
eqüidade, cujo instrumental é o processo por princípios. Os resultados do juízo prudencial
são muito mais desejados ao âmago da sociedade, compatibilizando-se com o perfil de um
intérprete crítico e participativo.
No Direito brasileiro, pode-se afirmar que a jurisdição de eqüidade é amplamente
abraçada pela legislação trabalhista, que adota um processo aberto (de princípios), com
ampla liberdade na sua condução pelo magistrado. Então, é terreno fértil para que o Juiz
Prudente se manifeste quotidianamente, desvelando e criando novos direitos, o que é
facilmente constatável nos conflitos coletivos de trabalho, onde novas condições de salário
e de trabalho são estabelecidas pelos Tribunais pátrios.
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24
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NOTAS DE FIM:
1
ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 8ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 95-96.
Aristóteles já observara que o Direito legislado é formulado em palavras que têm pretensão universalizante.
Porém, certas coisas não conseguem se encaixar na abrangência universal, tanto nos casos havidos quanto
nos por haver. Luis Recaséns Siches fala, de seu turno, da possibilidade de injustiça quando a norma é
elaborada por legisladores embriagados pelo poder. Então, caberá ao hermeneuta interpretá-la corretamente
para extrair a justiça concreta, empregando, assim, a eqüidade (Filosofía Del Derecho. México: Editorial
Porruá, 2003, p. 654-655).
2
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini & DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 164. A par desta opinião, o tema da
fixação das penas é, muito mais, de Direito Penal (material) e, como sabido, o Processo Penal é
extremamente formal, legalista, a fim de resguardar, ao máximo, a liberdade. Qualquer tendência
flexibilizadora só é admissível para assegurar a liberdade; nada mais.
Citam-se, de todo modo, na jurisdição de direito, alguns casos em que a legislação civil autoriza o juiz a
utilizar a eqüidade: (a) art. 400, Cód. Civil, em que a fixação dos alimentos devidos aos ascendentes e
descentes, ou mesmo entre cônjuges, deve ser dimensionada conforme as necessidades do credor e as
possibilidades financeiras do devedor; (b) a guarda de filhos deve obedecer ao mais apropriado para a
criança, considerando a disponibilidade financeira, afetiva e de dedicação do pai ou da mãe (Lei nº 6.515/77,
art. 10, § 1º); (c) fixação de multas e astreintes, como nas obrigações de fazer ou não fazer (art. 461, CPC);
(d) fixação de honorários advocatícios sucumbenciais, a ser arbitrados pelo juiz (art. 20, CPC); (e) fixação da
indenização para reparar dano moral no caso de injúria, difamação ou calúnia (art. 953, parág. Único, Cód.
Civil).
3
Também pertencem a este modelo a jurisdição e o processo dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais
(estaduais e federais). As causas sobre pensão alimentícia e congêneres também recebem os influxos da
jurisdição de eqüidade, mas, no Brasil, elas se encontram na competência da Justiça Comum, fadada à
jurisdição de direito, de legalidade estrita.
4
SICHES, Luis Recaséns. Filosofía Del Derecho. México: Editorial Porruá, 2003, p. 655. Tradução livre.
5
Del Vecchio, contrariamente, defendia que os princípios e as máximas jurídicas definem o ideário de
justiça, não só nas relações individuais, “como também entre os indivíduos e o ente que em si os compreende
como suas partes, ou seja, o Estado; o qual está também subordinado à mesma idéia, e por tal motivo, na
medida em que correspondia à sua missão, pode com propriedade denominar-se Estado de justiça” (A
Justiça. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 108).
6
Cfr. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil (proposta de um formalismovalorativo). São Paulo: Saraiva, 2009, passim; e MATTE, Fabiano Tacachi. Perspectivas do Processo Civil
atual, in http://jusvi.com/artigos/19051, acessado em 25/02/2010.
7
Cfr. TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: RT, 2005.
8
É com base em critérios sociais, econômicos e, sobretudo, de justiça que os Tribunais do Trabalho criam
normas coletivas, fixam reajustes salariais, estabelecem licenças remuneradas e auxílios financeiros em geral,
etc. Para chegar a esta conclusão, é bastante a leitura do art. 766, CLT, verbis: “Nos dissídios sobre
estipulação de salários, serão estabelecidas condições que, assegurando justos salários aos trabalhadores,
permitam também justa retribuição às empresas interessadas”.
9
Ronald Dworkin aprova a decisão por princípios nos casos difíceis, por entender que as regras jurídicas não
são bastantes nem as sugestões unicamente políticas se mostram aptas a resolverem ditos conflitos (Levando
os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, passim). Mas julgar por princípios não significa,
necessariamente, atingir o exato status de eqüidade, muito embora se reconheça que, dentre as normas
jurídicas, sejam os princípios que possuem maior carga axiológica de justiça.
25
Gérson Marques
Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente
10
Na linguagem leiga, coloquial, prudência significa cautela, ponderação, sensatez, precaução, sentimento
voltado a evitar riscos, perigos. Mas não é neste sentido que ora se a invoca. De fato, a título de exemplo, a
prudência, em seu sentido filosófico, convive com o perigo e os riscos, pois alguns destes precisam ser
enfrentados a fim de se obter melhores resultados, especialmente para o futuro. Para Cícero, citado por
Comte-Sponville, a palavra vem de providere, que significa tanto prever como prover (apud COMTESPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 40).
11
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 881,
verbete Prudência.
12
Em 1647 (Espanha), Baltasar Gracián teve aprovada sua obra nos meios católico e acadêmico (o que era
quase a mesma coisa), intitulada inicialmente Oráculo Manual e Arte da Prudência, que chegou à
modernidade apenas como A arte da Prudência, de larga reprodução, sendo bastante acessível, no Brasil, na
versão publicada pela Editora Martin Claret. Contudo, o sentido dado à prudência, aí, é de modo de vida,
cautelas para o bem-viver, em forma de conselhos e aforismos dirigidos ao homem, como frutos da
experiência dos mais velhos. Enfim, a obra é uma coletânea de frases, textos, pensamentos e aforismos sobre
experiências de vida.
13
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1996,
p. 41.
14
A moderação nos desejos individuais, pessoais, controlando vontades para o seu desfrute sadio, mas sem
deixar de gozar o que a vida oferece, é tema apreciado pela Temperança, outra virtude cardinal, distinta da
Prudência.
15
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 489-490,
verbete Prudência.
16
COMTE-SPONVILLE, ibidem.
17
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 863-864, verbete
Sabedoria, remetido por Prudência.
18
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e reinterpretação do pensamento
aristotélico. Barueri, São Paulo: Manole, 2003, p. 1066-1067.
19
Para Kant, seria “melhor faltar com a prudência do que faltar com seu dever, nem que seja para salvar um
inocente ou a si mesmo”. A isto se opõe Comte-Sponville: “Melhor é mentir à Gestapo do que lhe entregar
um judeu ou um resistente. Em nome de quê? Em nome da prudência, que é a justa determinação (para o
homem, pelo homem) desse melhor. É a moral aplicada, e o que seria uma moral que não se aplicasse? As
outras virtudes, sem a prudência, não poderiam mais que revestir o Inferno com suas boas intenções”
(Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, cit., p. 37 e 38).
20
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.165.
21
Por todos, vide crítica à teoria de Dworkin em: MARQUES DE LIMA, Francisco Meton. O Resgate dos
Valores na Interpretação Constitucional: por uma hermenêutica reabilitadora do homem como “sermoralmente-melhor”. Fortaleza: ABC/Fortlivros, 2001, p. 180 e ss.
22
O método científico é um modo de investigação racional, lógico, organizado e sistematizado, passível de
ser repetido em suas experiências e resultados, no qual se procura afastar subjetivismos e assegurar a
imparcialidade nas conclusões, que não podem ser aleatórios. Tamanha é sua relevância, que é apontado
como o principal fator que diferencia o conhecimento científico de outros conhecimentos. Erguida sobre o
método, a Ciência tradicional não contempla o conhecimento extra-sensorial nem as revelações que surgem
inesperada e inexplicavelmente do espírito humano. As evidências atuais, contudo, mostram a necessidade de
uma nova estrutura científica, com metodologia capaz de compreender e explicar fenômenos que a Ciência
tradicional não consegue fazê-lo.
Nesta linha de raciocínio, os critérios de certeza investigativa, na Ciência do Direito, já não satisfazem
plenamente os objetivos jurídicos. A busca pela verdade não é suficiente nem é sólida. Não é bastante a
defesa da segurança jurídica. A justiça, então, há de compor os objetivos do Direito. Para tanto, o método
científico não pode ser apenas o tradicional, o das ciências pretensamente exatas, porque a justiça requer
muito mais do espírito do que a simples racionalidade.
26
Gérson Marques
Por uma retomada da Prudência: o Juiz Prudente
23
OST, François. Cómo construir entonces El modelo de quien parece sustraerse a la modelización?
Disponível in http://direitoeliteratura.zip.net/arch2008-04-27_2008-05-03.html (acessado em 02/02/2010).
24
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretacion Constitucional. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 231.
25
VIGO, ob. Cit., p. 230.
26
Qual é o mais justo e prudente: (a) deixar a criança com os pais adotivos, de boa-fé, ou com os pais que a
perderam, involuntariamente, na maternidade? (b) em um litígio de miseráveis, deixar o empregado sem a
integralidade dos direitos trabalhistas ou fechar o comércio do patrão que, também, viva em penúria? Só a
prudência e a eqüidade poderão apontar, concretamente, a solução mais justa, exeqüível e adequada.
27
SICHES, Luis Recaséns. Nueva Filosofia de la Interpretación Del Derecho. México: Editorial Porruá,
1973, p. 67-68.
28
SICHES, Luis Recaséns. Nueva Filosofia de la Interpretación Del Derecho, ob. Cit., p. 70, 71 e 78.
29
Cfr. GARCÍA, Henrique Alonso. La interpretacion de la Constitucion. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1984, p. 541-543. Em sua obra, Alonso García generaliza as doutrinas realistas ou
sociológicas norte-americanas de jurisprudência empírica.
30
Luiz Antonio Rizzatto Nunes observa, com muita propriedade, “que a Ciência do Direito é em grande parte
uma Ciência Dogmática do Direito, na medida em que põe seu objeto – as normas jurídicas, quase que
totalmente escritas – e a parte dessas normas na sua investigação científica. Ainda que se possa caminhar de
um idealismo a um empirismo, qualquer desses métodos roda em volta das normas jurídicas, que são
elementos componentes do chamado sistema jurídico. Tal sistema tem por função regular os atos sociais, mas
são por regras de interpretação – técnicas de interpretação – que se chega não só a conhecer o sistema, como
a aplicá-lo. E ainda que se possa falar em valores aplicáveis ao Direito, os métodos não se alteram na
descoberta e aplicação dos mesmos” (A intuição e o Direito: um novo caminho. Belo Horizonte: Del Rey,
1997, p. 219).
31
Só um sistema que permita ao intérprete esta liberdade de locomoção intelectual, numa atividade criadora e
descortinadora, é que se mostra tendencialmente adequado a aplicar a justiça real e encontrar soluções
satisfatórias acima das preconizadas pelo Direito posto. Obviamente, só em caráter excepcional o intérprete
sairá do positivado para assegurar outros valores.
32
Historicamente, projetou-se o magistrado francês Magnaud, chamado de o bom juiz Magnaud, que
defendia o uso freqüente da eqüidade, enquanto ele próprio militava em utilizá-la. Magnaud presidiu o
Tribunal de primeira instância de Château-Thierry (1889-1904), onde se destacou pelas idéias humanitárias e
por defender a predominância do valor justiça na solução dos conflitos, parecendo-lhe fundamental proteger
os sujeitos mais fracos em face dos mais fortes. A mordaz crítica que lhe foi assacada se deveu à enorme
subjetividade no critério definidor do que era ou não justo.
27
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