TéCNICAS CIRúRGICAS Uretrostomia Perineal Técnica cirúrgica e Considerações MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA Serv. de Urologia Reconstrutora | Hospital Universitário Pedro Hernesto | RJ Introdução O cenário das reconstruções complexas da uretra é composto por muitas técnicas e refinamentos. As primeiras técnicas de reconstrução uretral tratavam-se das técnicas estagiadas, onde a primeira etapa consistia na uretrostomia perineal (UP). Atualmente, a maioria das estenoses uretrais pode ser corrigida em tempo único usando retalhos e/ou enxertos, porém as técnicas estagiadas ainda mantêm espaço importante nas reconstruções complexas 1. A indicação da UP deve ser uma decisão conjunta, entre o urologista e o paciente. Diversos aspectos devem ser discutidos na sua indicação: 1- Doença uretral complexa; A UP deve ser considerada uma opção sempre que nos deparamos com a necessidade de submeter o paciente a um procedimento cirúrgico de maior complexidade. As condições mais comumente envolvidas no cenário das reconstruções 26 UROLOGIA ESSENCIAL V.6 N.1 JAN JUN 2016 complexas são: Estenose de uretra extensa (“Pan Uretral”), Balanite xerótica, Hipospadias multioperadas, radioterapia pélvica e história de falha em uretroplastias anteriores 2. 2- Risco cirúrgico elevado; Apesar de tratar-se de um procedimento delicado, a UP é comparativamente rápida e simples em relação às uretroplastias complexas (por ex.: reconstruções estagiadas), expondo pacientes que apresentam risco cirúrgico elevado a menor chance de intercorrências. Fatores como tempo de duração da cirurgia, retorno precoce as atividades cotidianas e cuidados simples com curativo cirúrgico podem tornar a uretrostomia perineal um procedimento interessante. 3- Idade avançada e baixa expectativa de vida; Grandes esforços em restaurar a micção pelo meato uretral na glande devem ser ponderados neste grupo de pacientes. Questões como a micção na posição www.urologiaessencial.org.br “sentada” e as questões estéticas associadas à UP parecem ter menor importância nessas circunstâncias, favorecendo uma melhor aceitação em relação à UP. 4- Preservação da estética peniana: O tratamento das doenças da uretra podem ocasionar deformidades genitais. Queixas referentes à estética genital são especialmente presentes ao lidarmos com pacientes portadores de hipospádias 3. A UP preserva a região genital de manipulações sucessivas e não interfere diretamente na atividade sexual, se não pelo impacto psicológico da presença do orifício perineal e pelas questões relacionadas à ejaculação por este orifício. 5- Decisão do paciente; Diante múltiplas falhas em abordagens cirúrgicas, não só enfrentamos um cenário sucessivamente desfavorável à reconstrução uretral, mas também com um impactante estresse psicológico envolvido na historia da patologia. Nesse ambiente, a UP trata-se de uma opção por interromper o curso de cirurgias de alta complexidade, intervalos de espera para “maturação” de enxertos, entre outras questões envolvidas. Mesmo diante a estenose da UP, sua manipulação é potencialmente mais simples se comparada a revisões de uretroplastias, o que pode favorecer a decisão por realizar-se a UP. Avaliação Pré-operatória Após estadiamento adequado do “status” uretral, alguns pontos devem ser avaliados quando optamos por realizar a UP. 1- CAPACIDADE VESICAL: Avaliamos a capacidade vesical antes da realização de qualquer procedimento uretral. Pacientes portadores de estenose de uretra comumente apresentam bexiga de baixa capacidade. Para esta condição, outras táticas são discutidas, como a ampliação vesical associada a um conduto eferente. 2- CÁLCULOS VESICAIS: Cálculos vesicais são comuns nessa população, e na sua presença, são tratados previamente ou no mesmo ato operatório. 3- ESCLEROSE DE COLO VESICAL: Na presença da esclerose do colo vesical, a UP está contraindicada como tratamento isolado. 4- INCONTINÊNCIA URINÁRIA: Pacientes com alteração dos mecanismos de continência (esfíncter interno e externo) podem não apresentar perda urinária devido à concomitante estenose de uretra. Estes pacientes devem ser cuidadosamente avaliados e orientados antes de qualquer intervenção cirúrgica. 5- INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO: A urinocultura positiva é um achado comum nos pacientes portadores de estenose de uretra. Na sua ocorrência em pacientes assintomáticos, não contraindicamos a realização da UP. Utilizamos antibioticoprofilaxia venosa (quinolonas ou cefalosporinas de 2ª geração) na indução anestésica, sendo mantida por 48 hrs. Técnica operatória Diferentes técnicas de uretrostomia são descritas na literatura 4,5,6. De forma geral, elas devem ser realizadas em posição de litotomia, objetivando expor a uretra bulbar e realizando abertura longitudinal da face ventral da uretra, deixando a luz uretral exposta. A técnica mais utilizada na atualidade segue os conceitos das descrições de Blandy em uretrosplastias estagiadas, com utilização de retalho de pele local. V.6 N.1 JAN JUN 2016 UROLOGIA ESSENCIAL 27 TéCNICAS CIRúRGICAS URETROSTOMIA PERINEAL | TÉCNICA CIRÚRGICA E CONSIDERAÇÕES MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA Posição de litotomia Planejamos o local onde pretendermos realizar a abertura da uretra com base na uretrocistografia. Quando a uretra anterior encontra-se integralmente comprometida, realizamos a uretrostomia em região mais proximais, em direção à uretra membranosa. Para este fim, utilizamos o posicionamento de litotomia forçada. FIGURA 2 Retalho de pele espesso mobilizado. A espessura do retalho é fundamental para garantir boa vascularização. Incisão em trapézio ou ´U´ invertido A incisão na pele é planejada para confecção do retalho de pele que será levado a alcançar a uretra. As referências da base do trapézio são as tuberosidades isquiáticas. O Ápice do trapézio é estendido até a junção períneo-escrotal. O ápice deve ter aproximadamente 3cm de largura, permitindo anastomose ampla com a uretra proximal (Figura-1). Este retalho é levantado junto ao tecido gorduroso subcutâneo, sobre e respeitando a integridade do musculo bulbo esponjoso, garantindo assim boa vascularização (Figura-2). Para estenoses muito posteriores, preparamos retalhos longos. Caso a uretra bulbar seja parcialmente sadia, podemos ser econômicos quanto ao comprimento do retalho de pele. FIGURA 1 Marcação na pele dos limites da incisão para confecção do retalho de pele. Exposição da uretra bulbar Abertura do musculo bulbo esponjoso em sua linha média (Figura-3). A linha média é facilmente identificada pela posição das fibras musculares e pela contração ao estimulo elétrico. Iniciar sua secção em sua inserção ao fim da uretra bulbar facilita esta tarefa. O músculo bulbo esponjoso é rebatido lateralmente expondo assim a adventícia esponjosa do bulbo. Uretrotomia Incisão a frio dos tecidos esponjoso e mucoso da uretra, em sua face ventral, ate alcançar a luz. Esta incisão deve ser ampla, com 4 a 6cm de comprimento (Figura-4). A abertura longitudinal da uretra, sem secciona-la, preserva a placa uretral dorsal, e assim, mantêm o fluxo retrogrado vascular proveniente da artéria dorsal, o que parece influenciar positivamente os resultados da uretrostomia perineal 2. Devemos ser cuidadosos 28 UROLOGIA ESSENCIAL V.6 N.1 JAN JUN 2016 URETROSTOMIA PERINEAL | TÉCNICA CIRÚRGICA E CONSIDERAÇÕES MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA FIGURA 3 Uretra bulbar exposta. O musculo bulboesponjoso foi mobilizado lateralmente após incisão em sua linha média. Foi realizada fixação do m. bulboesponjoso a pele para facilitar a manipulação da uretra. TéCNICAS CIRúRGICAS para não incisar a face dorsal da uretra inadvertidamente. Em uretras sadias, esta tarefa é relativamente simples, mas pode ser desafiador quando a uretra bulbar encontra-se doente, tendo sido submetida a procedimentos cirúrgicos anteriores. Avaliação da uretra proximal Após identificar a luz uretral, realizamos ampliação da abertura até alcançar a porção sadia da uretra. Alcançar a uretra livre de doença é de fundamental importância no sucesso do procedimento 7. Avaliamos a uretra proximal com instrumento calibrado como o “Benique” (Figura-4). A uretra posterior deve ter calibre amplo, acima de 30Ch, e devemos nos certificar que não há doença residual nesta porção. Empiricamente, a palpação da uretra proximal deve encontrar uma mucosa e tecido esponjoso igualmente macios ao toque. FIGURA 4 Benique 60 introduzido em direção à bexiga pelo orifício proximal da uretrostomia para avaliação do calibre da uretra proximal. Espongioplastia Alcançado o limite proximal da uretrostomia, o próximo passo é a realização da espongioplastia, que consiste da sutura hemostática das bordas do tecido esponjoso laterais à mucosa uretral previamente aberta. Esta etapa previne a formação de hematoma e favorece boa cicatrização das margens muco-cutâneas (Figura-5). Maturação da uretrostomia O ápice do retalho de pele (em trapézio, ou U invertido) é mobilizado até a margem mucosa proximal da uretrostomia. A face posterior dessa anastomose é realizada de forma a permitir unir a pele à mucosa uretral sem tensão. Esta etapa é mais facilmente alcançada passando-se os pontos do plano posterior antes de amarra-los. Em geral, três pontos parecem ser o bastante, mas devemos utilizar quantos pontos forem necessários para unir as bordas e coapta-las (Figura-5). Utilizamos preferencialmente fios absorvíveis monofilamentares sintéticos 4.0 (PDS ou Monocryl), A manipulação dos tecidos deve ser delicada. V.6 N.1 JAN JUN 2016 UROLOGIA ESSENCIAL 29 TéCNICAS CIRúRGICAS URETROSTOMIA PERINEAL | TÉCNICA CIRÚRGICA E CONSIDERAÇÕES MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA FIGURA 5 Anastomose da face posterior da UP levando o ápice do retalho de pele à extremidade mucosa da uretra. Em detalhe, aspecto das extremidades do tecido esponjosoque foi submetido à espongioplastia. Prosseguimos a sutura entre o retalho de pele e a mucosa uretral aproveitando ao máximo a largura do ápice do retalho desde que não haja tensão (Figuras 6 e 7). Fechamento da pele As margens da placa uretral restantes são suturadas as bordas laterais da pele, tarefa esta que é possível ser realizada sem qualquer dificuldade na maioria dos casos (Figura-8). Casos haja tensão para esta aproximação, podemos utilizar retalhos do escroto através de uma incisão na linha media. Cuidados imediatos e seguimento Ao termino do procedimento, deixamos cateter uretral foley 16Ch fixado contra o abdome. O curativo é realizado com pomada contendo antibiótico e que não contenha corticoides (por ex.: neomicina+bacitracina) e fixado por esparadrapo sobre gaze estéril de forma compressiva em “X” – do glúteo a parede abdominal. 30 UROLOGIA ESSENCIAL V.6 N.1 JAN JUN 2016 FIGURA 6 O ápice do retalho de pele é sequencialmente anastomosado as bordas laterais do orifício uretral. URETROSTOMIA PERINEAL | TÉCNICA CIRÚRGICA E CONSIDERAÇÕES MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA TéCNICAS CIRúRGICAS FIGURA 7 Utilização de toda a amplitude do ápice do retalho na anastomose muco-cutânea. FIGURA 8 Aspecto final da uretrostomia perineal após anastomose das extremidades da pele as margens da mucosa uretral. Os pacientes recebem alta após 48 h e permanecem com cateter vesical de demora por 7 a 10 dias. Orientamos cuidados quanto a evitar que a sonda fique pendente, o que pode ocasionar isquemia da face ventral da uretra anastomosada. No momento da retirada do cateter, realizamos fluxometria livre e exame direto do orifício para nos certificarmos de sua patência e das condições do ápice do retalho de pele. Na ocorrência de deiscência, mantemos CVD até a cicatrização em 2ª intenção ter ocorrido. Consultas de acompanhamento são realizadas a cada 03 meses no 1º ano, onde realizamos anamnese direcionada a sintomas miccionais (obstrutivos, irritativos, incontinência, etc.), exame direto do orifício, além de discutirmos questões relativas à satisfação geral em relação ao procedimento. Na ausência de sintomas, não existe necessidade de calibração uretral ou de qualquer outra instrumentação. a não necessidade de qualquer manipulação uretral após o procedimento de UP. A estenose da UP pode ocorrer em qualquer momento após sua realização, desde o pós-operatório imediato até anos após sua realização. Nos diversos estudos presentes na literatura, diferenças no tempo de seguimento, características das estenoses, comorbidades e técnica cirúrgica utilizada dificultam comparação objetiva 8. Alguns fatores parecem influenciar as taxas de sucesso após a UP. Resultados As taxas de sucesso para UP variam de 70% a 100% 8. De forma geral, entende-se por sucesso, 1- Etiologia: A balanite xerótica afeta mais comumente a uretra pendular estando associada a altas taxas de recidiva em uretroplastias. Em contrapartida, quando optamos pela UP nesta condição, a uretra bulbar encontra-se comumente poupada. Este fato parece influenciar positivamente o resultado de sucesso de até 100% em séries onde a técnica foi empregada exclusivamente para esta condição. Estudos que avaliaram grupos de etiologia mais heterogênea (por ex.: idiopática, Hipospádias, iatrogênica, radiação) apresentam taxas de sucesso inferiores. V.6 N.1 JAN JUN 2016 UROLOGIA ESSENCIAL 31 Técnicas cirúrgicas Uretrostomia Perineal | Técnica cirúrgica e Considerações MIGUEL DE OLIVEIRA OSTA 2- Cirurgias Prévias: Pacientes já submetidos à uretroplastias, sendo posteriormente submetidos à uretrostomia por falha no tratamento primário, apresentam taxa de sucesso inferior se comparados a pacientes não submetidos à uretroplastias prévias. Ainda assim, pacientes com acometimento integral da uretra anterior e onde a doença se aproxima da área utilizada para a uretrostomia, tornam o procedimento tecnicamente mais difícil e com resultados de sucesso inferiores. 3- Radioterapia pélvica: A radioterapia pélvica está associada ao insucesso da uretrostomia perineal. Pacientes submetidos à radioterapia pélvica apresentam risco relativo elevadíssimo para estenose da UP 2. Além da estenose, outro acontecimento indesejável comumente descrito é a deiscência da anastomose. Na sua ocorrência, o tratamento conservador pode ser empregado, porém este evento parece estar relacionado e influenciar negativamente as taxas de sucesso 9. Outras complicações descritas são: hematoma na região do períneo, sepse urinária, celulite, fístula urinária, abcesso loco regional e Sd. de Fournier. Considerações A uretrostomia perineal é um conceito pioneiro no tratamento da estenose de uretra. A ideia de tratar-se de uma intervenção paliativa e temporária deve ser desconstruída. Recentemente, Barbagli e col. publicaram avaliação da qualidade de vida de pacientes submetidos à UP que revelou taxas de satisfação surpreendentes. Nessa avaliação, de 173 pacientes submetidos à UP temporária, 97.1% referiram estar satisfeitos ou muito satisfeitos. Durante planejamento da reconstrução, 73.4% desses pacientes optaram por não realizar o segundo tempo, permanecendo com a UP definitiva. Muitas questões parecem influenciar esta avaliação complexa e subjetiva. Pacientes em idade avançada, já acostumados à micção na posição “sentada”, parecem aceitar melhor a UP. Pacientes que participam ativamente da decisão, já cansados das múltiplas tentativas de correção por uretroplastias, da mesma forma, tendem a aceitar melhor a UP. Em contrapartida, fatores parecem influenciar negativamente a satisfação quanto a UP, entre eles: ocorrência de re-estenose, necessidade de manipulação da uretrostomia e a etiologia iatrogênica como causa inicial da doença uretral (estenose pós RTU-próstata, por exemplo). REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 32 Andrich DE, Mundy AR.. What is the best technique for urethroplasty? Eur Urol. 2008 Nov;54(5):1031-41. Myers JB, Porten SP, McAninch JW. The outcomes of perineal urethrostomy with preservation of the dorsal urethral plate and urethral blood supply. Urology. 2011 May;77(5):1223-7. Rynja SP, de Jong TP, Bosch JL, de Kort LM. 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