HISTÓRIA DO PORTUGUÊS DO BRASIL* SOBRE A “INFLUÊNCIA” INDÍGENA TUPI ANTIGO (sumaríssima descrição gramatical) FONOLOGIA DO TUPI ANTIGO 1.VOGAIS: Vogais Orais altas médias baixas anteriores centrais posteriores Vogais Nasais altas médias baixas anteriores centrais posteriores 2. CONSOANTES Modo de Articulação oclusivas orais pré-nasaliz. Ponto de Articulação labiais alveolares velares glotais aproximantes tepes (batidas) fricativas 3. ALOFONIA E OUTROS FENÔMENOS FONÉTICOS: 1. As consoantes pré-nasalizadas ocorriam em variação livre com suas contrapartes nasais, com exceção da velar: // // tembi’u ou temi’u, “comida” // // nde ou ne, “tu” Apostila elaborada pelo Professor Márcio Renato Guimarães (UFPR/SCHLA/DLLCV) para uso exclusivo na disciplina HL 397 – Língua Portuguesa V – do curso de Letras. Boa parte do material aqui foi copiado de outras obras, casos em que há indicação da fonte. A apostila não resume toda a matéria da disciplina – existe uma bibliografia auxiliar, que aprofunda alguns pontos. Além disso, aquilo que é dito em sala e passado no quadro é considerado matéria dada. Não esqueçam de vir para as aulas com caderno e caneta. * 2. A aproximante anterior nasalizada ocorria em variação livre com a oclusiva nasal velar: // //, geralmente antes de vogal nasal: kunhã, “mulher” nhãndu, “aranha” 3. A aproximante posterior labializada poderia aparecer como oclusiva velar labializada em início de palavra: // //: gûirá ou ûirá, “passaro” 4. Quando uma sílaba terminada em y for seguida por outra iniciada por vogal, o y pode se mudar em yg, que se pronuncia []: y + ara = yara ou ygara, “canoa” 5. Quando precedidos de prefixo terminado em vogal, o t inicial de algumas raízes muda para r: xe + tub = xerúb, “meu pai” 4. O ALFABETO TUPI: Consoantes: b, d, g, gû, k, m, mb, n, nd, ng, nh, p, r, s, t, x, ‘. Vogais: a, e, i, o, u, y; a, e, i, o, u, y. Semivogais: î, û. Chave de leitura: x sempre soa // r sempre soa // b soa // nh soa // ‘, em guarani, puso (lê-se pussô), soa // y soa // 4. CORRESPONDÊNCIAS ENTRE TUPI E GUARANI: 1. O guarani não possui palavras terminadas em consoante muda (para exemplos, ver quadro). O mesmo, segundo o padre Anchieta (1595) acontecia com o tupi do sul (São Vicente). Segundo se pode ver em Montoya (1639, apud Rodrigues, 1945: 343), o guarani preservava o /k/ final em algumas palavras sonorizado. ex. og (tupi oka), “casa”, cutúg (tupi kutuk), “furar”. 2. Existe uma certa flutuação entre // e //, com uma séria tendência à substituição do primeiro pelo segundo. No entanto, o // se mantém em algumas palavras: ex.: hetá, “muitos”, teçá, “olho”, aheci, “eu asso”, quaraçi, “sol”, yaci, “lua”, rehé, “por”, çóó, “animal” (exemplos de Ruíz de Montoya, 1639, apud Rodrigues, 1945: 341). O mesmo fenômeno, segundo Rodrigues, ocorre em outras línguas da família tupiguarani, como o tembé e o guajajara. 3. O guarani transformou a aproximante anterior nasalizada // em velar nasal //. ex. tupi îundiá-y, “rio do bagre”, guarani ñundiá-kuara, “toca do bagre” 4. Oclusiva bilabial seguida da semivogal anterior no tupi corresponde a velar mais semivogal (ver quadro). 2 Alguns exemplos de correspondência entre tupi e guarani (apud Rodrigues, 1986) Conceito Tupi Guarani “pedra” itá itá “tatu” tatú tatú “mão dele” ipó ipó “mão dele opó opó mesmo” “pé dele” ipý ipý “pé dele opý opý mesmo” “eu e ele orokér oroké dormimos” “eu dormi” akér aké “eu e ele oro‟é oro‟é dissemos” “eu disse” a‟é a‟é “eu o quis” aipotár aipotá “você o quis” ereipotár ereipotá “eu fiquei” apytá apytá “você ficou” erepytá erepytá “eu e ele oropytá oropytá ficamos” “eu sairei” apweráb akwerá “eu o aiopwán aiokwã ultrapassei” “eu corri” aián aiã “eu o escutei” asenúb ahenú “eu o asa‟áng aha‟ã experimentei” MORFOSSINTAXE 1. Derivação Nominal: 1.1. Ordem nome + adjetivo: y + panem +a rio + imprestável + (NOM) itá pedra + porang + a + bonita + (NOM) 1.2. Construção genitiva (adj. adn. restr. + nome) îakaré + y jacaré + rio “rio do jacaré” 3 nhundiá (guarani; tupi = îundiá) + kuara bagre + toca “toca do bagre” 1.3. Sufixo –ba (= “lugar de”) anhanga + ba (guarani: -va) “lugar do diabo” 1.4. Sufixo –a (NOM): nominalizador; todo substantivo (incluindo infinitivos) em tupi termina em vogal. Se o tema terminar em consoante, ele recebe o sufixo –a. Todo infinitivo, em tupi, é, funcionalmente, um substantivo: nhe‟engsó (a-nhe‟eng, “eu falo”) nhe‟enga (a-só, “eu vou”) só “o falar, a fala” “o ir, a ida” Seki (2000: 107) denomina o sufixo –a do Kamaiurá (uma língua da família tupiguarani) de marcador do caso nuclear: “o sufixo de caso nuclear opera em distintos níveis sintáticos, relacionando o nome a outro elemento na locução, ou ao predicado na oração. O sufixo de caso “nuclear” tem também a função de indexar, isto é, de identificar o radical como nome.” 1.5. Sufixo –pe “em, para” [LOCATIVO]: „y kûá-pe siri „y-pe tatu „y-pe “na foz do rio, para a foz do rio” “no rio do siri, para o rio do siri” “no rio do tatu, para o rio do tatu” 1.6. Indefinido posposto: -etá “muitos, muitas”: pak(a)-etá gûyrá-ting(a)-etá “muitas pacas” “muitos pássaros brancos (i.e., garças)” 1.7. O interrogativo –pe: abá–pe mamõ–pe “quem? (abá, „gente‟) “onde? (mamõ, „para fora‟) Alguns nomes de origem tupi-guarani “rio da tartaruga” karambé-y kapibar-y “rio do bagre” îundiá-y yby-peb-a do yby-porang-a nhundiá-kûara “toca bagre”(guar.) y-guaçu y-ting-a y-un-a “rio grande” “rio branco” “rio preto” y-pirang-a yba-y itá-ting-a “rio vermelho” “rio do mato” “pedra branca” tatu-kûara pirá-kûara itá-un-a “toca do tatu” “toca do peixe” “pedra preta” ybytyr-un-a ybyty-porang-a jakaré-y “rio do jacaré” jaguar-y “rio da onça” tejú-gûasu “rio da capivara” “terra plana” “terra bonita” “morro preto” “morro bonito” pindá-monhang-aba “lugar de fazer anzóis” “lagarto grande” 2. Conjungação verbal: 4 2.1. Pessoa e número: o tupi distingue dois tipos de “primeira pessoa” do plural, inclusiva e exclusiva: oré abá “nós (incl.) somos índios” inclui o ouvinte (eu + tu) îandé abá “nós (exc.) somos índios” exclui o ouvinte (eu +ele) “A gente”: (Navarro, 1998: 18) “O pronome pessoal asé é usado quando queremos nos referir à 1ª, 2ª e 3ª pessoas, isto é, com sentido do indefinido –se do português em: Vive-se bem aqui.” leva o verbo na 3ª pessoa: Asé o-ikobé, asé o-manó a gente 3-viver, a gente 3-morrer “a gente vive, a gente morre”/”vive-se, morre-se” O tupi não distingue o singular do plural na terceira pessoa, nem nos pronomes nem nos verbos: a‟é o-só “ele foi/eles foram” A rigor, o tupi não a’e não é um pronome pessoal de terceira pessoa, antes é o demonstrativo aquele(s). 2.2. Classes de verbos (e de pronomes) Pessoa 1ª S 2ª S 3ª S 1ª P(excl.) 1ª P.(incl.) 2ª P 3ª P 1ª Classe syk- “chegar” ixé a-syk endé ere-syk a‟e o-syk oré oro-syk îandé îa-syk pe‟e pe-syk a‟e o-syk 2ª Classe pytu- “respirar” xé pytu nde pytu i pytu oré pytu îandé pytu pe pytu i pytu 2.3. Verbos descritivos: as abordagens mais tradicionais dos verbos tupis classificam alguns itens lexicais como “adjetivos”. A opinião de Seki (2000: 67), no entanto, para o Kamaiurá, língua em que os “adjetivos” se comportam como em tupi, é de que não existem, propriamente, adjetivos. São, antes, verbos, que expressam conceitos expressos em português e em outras línguas indo-européias pelos adjetivos. Seki propõe a denominação verbos descritivos para tais itens (verbos da 2ª Classe das descrições tradicionais do tupi). Eles não recebem prefixos, e são acompanhados de um grupo especial de pronomes (pronomes de 2ª Classe). taba+porang+a taba + bonita + (NOM) (taba bonita)SN 5 taba i porang (taba 3 bonita)S “a taba é bonita” 2.4. Construções predicativas nominais: o tupi não tem verbo cópula. Predicativos nominais se constroem sem qualquer verbo de ligação: iandé abá nós(incl.) índio “nós somos índios” pe‟e peró vós português “vós sois portugueses” kunumi Pedro menino NP “o menino é Pedro” 2.5. O verbo “existencial” tyb-: os verbos descritivos do tupi costumam ser intransitivos. O verbo existencial tyb- (“ter”, “haver”, “existir”) se constrói com objeto direto: I tyb kunhã 3 EXIST mulher esta “tem mulheres nesta casa” ikó ok-y-pe casa-LOC I tyb tugûy akûeî-pe 3 EXIST sangue aquele-LOC “tem sangue lá” Como todo verbo tupi, o infinitivo funciona como um nome, ou antes, um sufixo derivador de nomes: tyba, “ajuntamento”, “coletivo”. Na formação de topônimos, este item foi bastante produtivo, em geral utilizando-se a regra da anteposição do complemento nominal restritivo (genitivo): kuryi-tyb-a pinhão-EXIST-NOM “lugar onde tem muito pinhão” butia-tyb-a butiá-EXIST-NOM “lugar onde existe muito butiá” ûará-tyb-a guará-EXIST-NOM “lugar onde existe muito guará” (NOTA: guará, tipo de íbis com as penas avermelhadas) karagûata-tyb-a caraguatá-EXIST-NOM “lugar onde existe muito caraguatá” 6 (NOTA: caraguatá, grande bromélia com folhas espinhosas) 2.6. Construções transitivas: os verbos transitivos recebem dois prefixos: um indicando a pessoa do sujeito, outro indicando a pessoa do objeto: a-nde-îuká 1s-2s-matar “eu te mato” 2.7. Ordem canônica: aparentemente o tupi preferia a ordem OV (objeto+verbo): tembi‟u a-î-monhang comida 1s-3s-fazer “eu faço comida” - a ordem VO era também possível, o que coincide com a constatação quase universal de que línguas SOV permitem ordem mais livre: a-î-monhang tembi‟u 1s-3s-fazer comida - era, porém, mais comum a incorporação do objeto no verbo, no mesmo lugar do prefixo indicando a pessoa do objeto: a-tembi‟u-monhang 1s-comida-fazer Compare-se com os exemplos abaixo, do chukchi, uma língua do nordeste da Sibéria (Spencer, 2003, cap. 5): a. ytlyg-e tym-nene-t qaa-t pai-ERG matou-3SG/3PL veado-ABS/PL b. ytlyg-yn qaa-tym-g‟e pai-ABS veado-matou-3SG 3. Possessividade: Em tupi, não é todo substantivo que pode ser acompanhado de pronome possessivo. Isso porque não é qualquer coisa que podia ser entendida, para os tupis, como passível de ser possuída. Os substantivos se dividiam em possuíveis e não-possuíveis. A mesma relação se dava com um nome e modificadores de genitivo (que indicam possuidor). Possuíveis eram os termos que indicavam alguma relação entre pessoas (de parentesco, por exemplo), objetos produzidos culturalmente (machados, flechas, roupa), ou partes de um todo (partes do corpo, por exemplo): 7 xe akanga POSS1s cabeça “minha cabeça” yby kûara terra buraco “buraco da terra” nde POSS2s filho “teu filho” abati potyra milho flor “flor do milho” membyra xe aoba POSS1s roupa “minha roupa” tukana ti tucano bico “bico do tucano” A palavra para “filho/filha” variava em gênero, não correlação ao gênero da pessoa que era filho(a), como em português, mas com relação ao gênero do progenitor. Ta’yra é o filho/filha com relação ao pai; membyra é o filho/filha em relação à mãe: Kunhambeba ra‟yra Pindobusu “o filho de Cunhambeba é Pindobusu” Potyra membyra Îasy “a filha de Potira é Jaci” Potyra membyra Pindobusu “o filho de Potira é Pindobusu” Pequeno Vocabulário do Tupi Antigo abá: gente, índio abapé: quem? abaré: padre (a)pé: caminho (de) apyaba: homem ‘ara: mundo -ba: lugar onde -etá: muito(s) eté: verdadeiro gûasu: grande (xe) gûyrá: pássaro îaboti: jaboti, cágado iagûara: onça iakaré: jacaré iasapé: sapé (capim) îasy: lua ikobé: viver (a) ini: rede (de dormir) itá: pedra îundi’á: bagre îuru: boca îy: machado kapi'i: capim ka’á: mato kanga: osso katu: bom (xe) korok: velho(a) kûara: toca kûarasy: sol -kûera (-pûera): aquele que já foi kunhã: mulher kunumi: menino kururu: sapo kysé: faca mboia: cobra miri: pequeno momba’eté: honrar (a) morubixaba, tubixaba: chefe, cacique nem: fedorento nheèng: falar (a) nhu: campo oka: casa okara: pátio da aldeia paîé: pajé peb: chato (xe) pereb: ferida pererek: andar trôpego, saltitar peró: português pirá: peixe pirang: vermelho (xe) pora: habitante porang: bonito (xe) só: ir (a) sy: mãe taba: taba, aldeia takûara: taquara teîu: lagarto tembi’u: comida ting: branco (xe) tining: seco (xe) tipoî: pendurar (xe) tuba: pai tyb: tem, há, existe(m) tyba: ajuntamento, coletivo ubá: caniço, certo tipo de capim com colmos longos (ubá) un: preto (xe) urapara: arco u’uba: flecha ybaka: céu yba: árvore yby: terra ybyrá: pau, madeira ybytyra: morro, serra ygara: canoa ysypó: cipó ytu: cachoeira 8 Um exemplo de uma língua indígena não-tupi, para comparação – o Kaingang: Kaingang jãtã in rerir gãggrè jen Tupi urubu oka gûarasy teîu tembi‟u Glosa “urubu” “casa” “sol” “lagarto” “comida” Kaingang kri mi gãr py gru Tupi akanga îagûara abati mboî tukana Glosa “cabeça” “onça” “milho” “cobra” “tucano” EXEMPLOS DE TEXTOS EM TUPI: TUPÃ SY-ETÉ MÃE DE DEUS VERDADEIRA O Virgem Maria, Tupã sy-eté, abá-pe „ara pora o-îkó nde îabé? Ó Virgem Maria, mãe de Deus verdadeira, que habitante do mundo há como tu? Nde momba‟eté Tupã, nde r-aûsupa, nde ybyîa pupé pitang-amo o-upa. Tupana r-erupa, i por nde r-ygé. Abá-pe „ara pora o-îkó nde îabé? Honrou-te Deus, amando-te, dentro de tuas entranhas como criança estando (deitado). Levando a Deus (deitado), está cheio teu ventre. Que habitante do mundo Há como tu? São João pitang-i t-ygé-pe o end-aba-pe, nde r-ura andup-aba-pe, o-pó-o-por-i, Îesu, o îar-i kuapa aûnhenh~e. Abá-pe „ara pora oîkó nde îabé? São João nenenzinho, estando no ventre, ao perceber tua vinda, ficou saltando, Jesus, seu senhorzinho, reconhecendo imediatamente. Que habitante do mundo há como tu? N‟i tyb-i tugûy nde membyr-a‟-sá‟-pe. Endé, nde îybá-pe, Îesu ere-s-upir i poîa-miri nde kama pupé. Abá-pe „ara pora o-îkó nde îabé? Não houve sangue em teu parto. Tu, em teus braços, Jesus ergueste para alimentá-lo um pouco em teu seio. Que habitante do mundo há como tu? (JOSÉ DE ANCHIETA, IN: Navarro (1999: 411) 9