Apostila 2005s1 - Blog Profissional de Márcio Renato Guimarães

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HISTÓRIA DO PORTUGUÊS DO BRASIL*
SOBRE A “INFLUÊNCIA” INDÍGENA
TUPI ANTIGO
(sumaríssima descrição gramatical)
FONOLOGIA
DO TUPI ANTIGO
1.VOGAIS:
Vogais Orais
altas
médias
baixas
anteriores
centrais
posteriores









Vogais Nasais
altas
médias
baixas
anteriores
centrais
posteriores









2. CONSOANTES
Modo de Articulação
oclusivas
orais
pré-nasaliz.
Ponto de Articulação
labiais
alveolares
velares
glotais













aproximantes



tepes (batidas)



fricativas
3. ALOFONIA E OUTROS FENÔMENOS FONÉTICOS:
1. As consoantes pré-nasalizadas ocorriam em variação livre com suas contrapartes
nasais, com exceção da velar:
//  //
tembi’u ou temi’u, “comida”
//  //
nde ou ne, “tu”
Apostila elaborada pelo Professor Márcio Renato Guimarães (UFPR/SCHLA/DLLCV) para uso exclusivo na
disciplina HL 397 – Língua Portuguesa V – do curso de Letras. Boa parte do material aqui foi copiado de outras
obras, casos em que há indicação da fonte. A apostila não resume toda a matéria da disciplina – existe uma
bibliografia auxiliar, que aprofunda alguns pontos. Além disso, aquilo que é dito em sala e passado no quadro é
considerado matéria dada. Não esqueçam de vir para as aulas com caderno e caneta.
*
2. A aproximante anterior nasalizada ocorria em variação livre com a oclusiva nasal
velar:
//  //, geralmente antes de vogal nasal:
kunhã, “mulher”
nhãndu, “aranha”
3. A aproximante posterior labializada poderia aparecer como oclusiva velar labializada em
início de palavra:
//  //: gûirá ou ûirá, “passaro”
4. Quando uma sílaba terminada em y for seguida por outra iniciada por vogal, o y
pode se mudar em yg, que se pronuncia []:
y + ara = yara ou ygara, “canoa”
5. Quando precedidos de prefixo terminado em vogal, o t inicial de algumas raízes muda para
r:
xe + tub = xerúb, “meu pai”
4. O ALFABETO TUPI:
Consoantes: b, d, g, gû, k, m, mb, n, nd, ng, nh, p, r, s, t, x, ‘.
Vogais: a, e, i, o, u, y; a, e, i, o, u, y.
Semivogais: î, û.
Chave de leitura:
x sempre soa //
r sempre soa //
b soa //
nh soa //
‘, em guarani, puso (lê-se pussô), soa //
y soa //
4. CORRESPONDÊNCIAS ENTRE TUPI E GUARANI:
1. O guarani não possui palavras terminadas em consoante muda (para exemplos, ver
quadro). O mesmo, segundo o padre Anchieta (1595) acontecia com o tupi do sul
(São Vicente). Segundo se pode ver em Montoya (1639, apud Rodrigues, 1945:
343), o guarani preservava o /k/ final em algumas palavras sonorizado.
ex. og (tupi oka), “casa”, cutúg (tupi kutuk), “furar”.
2. Existe uma certa flutuação entre // e //, com uma séria tendência à substituição
do primeiro pelo segundo. No entanto, o // se mantém em algumas palavras:
ex.: hetá, “muitos”, teçá, “olho”, aheci, “eu asso”, quaraçi, “sol”, yaci, “lua”, rehé,
“por”, çóó, “animal” (exemplos de Ruíz de Montoya, 1639, apud Rodrigues, 1945: 341).
O mesmo fenômeno, segundo Rodrigues, ocorre em outras línguas da família tupiguarani, como o tembé e o guajajara.
3. O guarani transformou a aproximante anterior nasalizada // em velar nasal //.
ex. tupi îundiá-y, “rio do bagre”, guarani ñundiá-kuara, “toca do bagre”
4. Oclusiva bilabial seguida da semivogal anterior no tupi corresponde a velar mais semivogal
(ver quadro).
2
Alguns exemplos de correspondência entre tupi e guarani
(apud Rodrigues, 1986)
Conceito
Tupi
Guarani
“pedra”
itá
itá
“tatu”
tatú
tatú
“mão dele”
ipó
ipó
“mão
dele
opó
opó
mesmo”
“pé dele”
ipý
ipý
“pé
dele
opý
opý
mesmo”
“eu
e
ele
orokér
oroké
dormimos”
“eu dormi”
akér
aké
“eu
e
ele
oro‟é
oro‟é
dissemos”
“eu disse”
a‟é
a‟é
“eu o quis”
aipotár
aipotá
“você o quis”
ereipotár
ereipotá
“eu fiquei”
apytá
apytá
“você ficou”
erepytá
erepytá
“eu
e
ele
oropytá
oropytá
ficamos”
“eu sairei”
apweráb
akwerá
“eu
o
aiopwán
aiokwã
ultrapassei”
“eu corri”
aián
aiã
“eu o escutei”
asenúb
ahenú
“eu
o
asa‟áng
aha‟ã
experimentei”
MORFOSSINTAXE
1. Derivação Nominal:
1.1. Ordem nome + adjetivo:
y
+ panem
+a
rio
+ imprestável + (NOM)
itá
pedra
+ porang + a
+ bonita + (NOM)
1.2. Construção genitiva (adj. adn. restr. + nome)
îakaré + y
jacaré + rio
“rio do jacaré”
3
nhundiá (guarani; tupi = îundiá) + kuara
bagre
+ toca
“toca do bagre”
1.3. Sufixo –ba (= “lugar de”)
anhanga + ba (guarani: -va)
“lugar do diabo”
1.4. Sufixo –a (NOM): nominalizador; todo substantivo (incluindo infinitivos) em tupi
termina em vogal. Se o tema terminar em consoante, ele recebe o sufixo –a. Todo infinitivo,
em tupi, é, funcionalmente, um substantivo:
nhe‟engsó
(a-nhe‟eng, “eu falo”) nhe‟enga
(a-só, “eu vou”)
só
“o falar, a fala”
“o ir, a ida”
Seki (2000: 107) denomina o sufixo –a do Kamaiurá (uma língua da família tupiguarani) de marcador do caso nuclear: “o sufixo de caso nuclear opera em distintos níveis
sintáticos, relacionando o nome a outro elemento na locução, ou ao predicado na oração. O
sufixo de caso “nuclear” tem também a função de indexar, isto é, de identificar o radical como
nome.”
1.5. Sufixo –pe “em, para” [LOCATIVO]:
„y kûá-pe
siri „y-pe
tatu „y-pe
“na foz do rio, para a foz do rio”
“no rio do siri, para o rio do siri”
“no rio do tatu, para o rio do tatu”
1.6. Indefinido posposto: -etá “muitos, muitas”:
pak(a)-etá
gûyrá-ting(a)-etá
“muitas pacas”
“muitos pássaros brancos (i.e., garças)”
1.7. O interrogativo –pe:
abá–pe
mamõ–pe
“quem? (abá, „gente‟)
“onde? (mamõ, „para fora‟)
Alguns nomes de origem tupi-guarani
“rio da tartaruga”
karambé-y
kapibar-y
“rio
do
bagre”
îundiá-y
yby-peb-a
do yby-porang-a
nhundiá-kûara “toca
bagre”(guar.)
y-guaçu
y-ting-a
y-un-a
“rio grande”
“rio branco”
“rio preto”
y-pirang-a
yba-y
itá-ting-a
“rio vermelho”
“rio do mato”
“pedra branca”
tatu-kûara
pirá-kûara
itá-un-a
“toca do tatu”
“toca do peixe”
“pedra preta”
ybytyr-un-a
ybyty-porang-a
jakaré-y
“rio do jacaré”
jaguar-y
“rio da onça”
tejú-gûasu
“rio da capivara”
“terra plana”
“terra bonita”
“morro preto”
“morro bonito”
pindá-monhang-aba “lugar
de
fazer
anzóis”
“lagarto grande”
2. Conjungação verbal:
4
2.1. Pessoa e número: o tupi distingue dois tipos de “primeira pessoa” do plural,
inclusiva e exclusiva:
oré abá “nós (incl.) somos índios”
inclui o ouvinte (eu + tu)
îandé abá
“nós (exc.) somos índios”
exclui o ouvinte (eu +ele)
“A gente”: (Navarro, 1998: 18) “O pronome pessoal asé é usado quando queremos nos
referir à 1ª, 2ª e 3ª pessoas, isto é, com sentido do indefinido –se do português em: Vive-se bem
aqui.” leva o verbo na 3ª pessoa:
Asé
o-ikobé, asé
o-manó
a gente 3-viver, a gente 3-morrer
“a gente vive, a gente morre”/”vive-se, morre-se”
O tupi não distingue o singular do plural na terceira pessoa, nem nos pronomes nem
nos verbos:
a‟é o-só
“ele foi/eles foram”
A rigor, o tupi não a’e não é um pronome pessoal de terceira pessoa, antes é o
demonstrativo aquele(s).
2.2. Classes de verbos (e de pronomes)
Pessoa
1ª S
2ª S
3ª S
1ª P(excl.)
1ª P.(incl.)
2ª P
3ª P
1ª Classe
syk- “chegar”
ixé a-syk
endé ere-syk
a‟e o-syk
oré oro-syk
îandé îa-syk
pe‟e pe-syk
a‟e o-syk
2ª Classe
pytu- “respirar”
xé pytu
nde pytu
i pytu
oré pytu
îandé pytu
pe pytu
i pytu
2.3. Verbos descritivos: as abordagens mais tradicionais dos verbos tupis classificam
alguns itens lexicais como “adjetivos”. A opinião de Seki (2000: 67), no entanto, para o
Kamaiurá, língua em que os “adjetivos” se comportam como em tupi, é de que não existem,
propriamente, adjetivos. São, antes, verbos, que expressam conceitos expressos em português e
em outras línguas indo-européias pelos adjetivos. Seki propõe a denominação verbos descritivos
para tais itens (verbos da 2ª Classe das descrições tradicionais do tupi). Eles não recebem
prefixos, e são acompanhados de um grupo especial de pronomes (pronomes de 2ª Classe).
taba+porang+a
taba + bonita + (NOM)
(taba bonita)SN
5
taba i porang
(taba 3 bonita)S
“a taba é bonita”
2.4. Construções predicativas nominais: o tupi não tem verbo cópula. Predicativos
nominais se constroem sem qualquer verbo de ligação:
iandé abá
nós(incl.) índio
“nós somos índios”
pe‟e peró
vós português
“vós sois portugueses”
kunumi Pedro
menino NP
“o menino é Pedro”
2.5. O verbo “existencial” tyb-: os verbos descritivos do tupi costumam ser
intransitivos. O verbo existencial tyb- (“ter”, “haver”, “existir”) se constrói com objeto direto:
I tyb
kunhã
3 EXIST
mulher esta
“tem mulheres nesta casa”
ikó
ok-y-pe
casa-LOC
I tyb
tugûy
akûeî-pe
3 EXIST
sangue aquele-LOC
“tem sangue lá”
Como todo verbo tupi, o infinitivo funciona como um nome, ou antes, um sufixo
derivador de nomes: tyba, “ajuntamento”, “coletivo”. Na formação de topônimos, este item
foi bastante produtivo, em geral utilizando-se a regra da anteposição do complemento nominal
restritivo (genitivo):
kuryi-tyb-a
pinhão-EXIST-NOM
“lugar onde tem muito pinhão”
butia-tyb-a
butiá-EXIST-NOM
“lugar onde existe muito butiá”
ûará-tyb-a
guará-EXIST-NOM
“lugar onde existe muito guará”
(NOTA: guará, tipo de íbis com as penas avermelhadas)
karagûata-tyb-a
caraguatá-EXIST-NOM
“lugar onde existe muito caraguatá”
6
(NOTA: caraguatá, grande bromélia com folhas espinhosas)
2.6. Construções transitivas: os verbos transitivos recebem dois prefixos: um indicando
a pessoa do sujeito, outro indicando a pessoa do objeto:
a-nde-îuká
1s-2s-matar
“eu te mato”
2.7. Ordem canônica: aparentemente o tupi preferia a ordem OV (objeto+verbo):
tembi‟u a-î-monhang
comida 1s-3s-fazer
“eu faço comida”
- a ordem VO era também possível, o que coincide com a constatação quase universal
de que línguas SOV permitem ordem mais livre:
a-î-monhang tembi‟u
1s-3s-fazer comida
- era, porém, mais comum a incorporação do objeto no verbo, no mesmo lugar do
prefixo indicando a pessoa do objeto:
a-tembi‟u-monhang
1s-comida-fazer
Compare-se com os exemplos abaixo, do chukchi, uma língua do nordeste da Sibéria
(Spencer, 2003, cap. 5):
a. ytlyg-e tym-nene-t qaa-t
pai-ERG matou-3SG/3PL veado-ABS/PL
b. ytlyg-yn qaa-tym-g‟e
pai-ABS veado-matou-3SG
3. Possessividade:
Em tupi, não é todo substantivo que pode ser acompanhado de pronome possessivo.
Isso porque não é qualquer coisa que podia ser entendida, para os tupis, como passível de ser
possuída. Os substantivos se dividiam em possuíveis e não-possuíveis. A mesma relação se
dava com um nome e modificadores de genitivo (que indicam possuidor).
Possuíveis eram os termos que indicavam alguma relação entre pessoas (de parentesco,
por exemplo), objetos produzidos culturalmente (machados, flechas, roupa), ou partes de um
todo (partes do corpo, por exemplo):
7
xe
akanga
POSS1s cabeça
“minha cabeça”
yby kûara
terra buraco
“buraco da terra”
nde
POSS2s filho
“teu filho”
abati potyra
milho flor
“flor do milho”
membyra
xe
aoba
POSS1s roupa
“minha roupa”
tukana ti
tucano bico
“bico do tucano”
A palavra para “filho/filha” variava em gênero, não correlação ao gênero da pessoa que era
filho(a), como em português, mas com relação ao gênero do progenitor. Ta’yra é o filho/filha com
relação ao pai; membyra é o filho/filha em relação à mãe:
Kunhambeba ra‟yra Pindobusu
“o filho de Cunhambeba é Pindobusu”
Potyra membyra Îasy
“a filha de Potira é Jaci”
Potyra membyra Pindobusu
“o filho de Potira é Pindobusu”
Pequeno Vocabulário do Tupi Antigo
abá: gente, índio
abapé: quem?
abaré: padre
(a)pé: caminho (de)
apyaba: homem
‘ara: mundo
-ba: lugar onde
-etá: muito(s)
eté: verdadeiro
gûasu: grande (xe)
gûyrá: pássaro
îaboti: jaboti, cágado
iagûara: onça
iakaré: jacaré
iasapé: sapé (capim)
îasy: lua
ikobé: viver (a)
ini: rede (de dormir)
itá: pedra
îundi’á: bagre
îuru: boca
îy: machado
kapi'i: capim
ka’á: mato
kanga: osso
katu: bom (xe)
korok: velho(a)
kûara: toca
kûarasy: sol
-kûera (-pûera): aquele que já foi
kunhã: mulher
kunumi: menino
kururu: sapo
kysé: faca
mboia: cobra
miri: pequeno
momba’eté: honrar (a)
morubixaba, tubixaba: chefe,
cacique
nem: fedorento
nheèng: falar (a)
nhu: campo
oka: casa
okara: pátio da aldeia
paîé: pajé
peb: chato (xe)
pereb: ferida
pererek: andar trôpego, saltitar
peró: português
pirá: peixe
pirang: vermelho (xe)
pora: habitante
porang: bonito (xe)
só: ir (a)
sy: mãe
taba: taba, aldeia
takûara: taquara
teîu: lagarto
tembi’u: comida
ting: branco (xe)
tining: seco (xe)
tipoî: pendurar (xe)
tuba: pai
tyb: tem, há, existe(m)
tyba: ajuntamento, coletivo
ubá: caniço, certo tipo de capim
com colmos longos (ubá)
un: preto (xe)
urapara: arco
u’uba: flecha
ybaka: céu
yba: árvore
yby: terra
ybyrá: pau, madeira
ybytyra: morro, serra
ygara: canoa
ysypó: cipó
ytu: cachoeira
8
Um exemplo de uma língua indígena não-tupi, para comparação – o Kaingang:
Kaingang
jãtã
in
rerir
gãggrè
jen
Tupi
urubu
oka
gûarasy
teîu
tembi‟u
Glosa
“urubu”
“casa”
“sol”
“lagarto”
“comida”
Kaingang
kri
mi
gãr
py
gru
Tupi
akanga
îagûara
abati
mboî
tukana
Glosa
“cabeça”
“onça”
“milho”
“cobra”
“tucano”
EXEMPLOS DE TEXTOS EM TUPI:
TUPÃ SY-ETÉ
MÃE DE DEUS VERDADEIRA
O Virgem Maria,
Tupã sy-eté,
abá-pe „ara pora
o-îkó nde îabé?
Ó Virgem Maria,
mãe de Deus verdadeira,
que habitante do mundo
há como tu?
Nde momba‟eté
Tupã, nde r-aûsupa,
nde ybyîa pupé
pitang-amo o-upa.
Tupana r-erupa,
i por nde r-ygé.
Abá-pe „ara pora
o-îkó nde îabé?
Honrou-te
Deus, amando-te,
dentro de tuas entranhas
como criança estando (deitado).
Levando a Deus (deitado),
está cheio teu ventre.
Que habitante do mundo
Há como tu?
São João pitang-i
t-ygé-pe o end-aba-pe,
nde r-ura andup-aba-pe,
o-pó-o-por-i,
Îesu, o îar-i
kuapa aûnhenh~e.
Abá-pe „ara pora
oîkó nde îabé?
São João nenenzinho,
estando no ventre,
ao perceber tua vinda,
ficou saltando,
Jesus, seu senhorzinho,
reconhecendo imediatamente.
Que habitante do mundo
há como tu?
N‟i tyb-i tugûy
nde membyr-a‟-sá‟-pe.
Endé, nde îybá-pe,
Îesu ere-s-upir
i poîa-miri
nde kama pupé.
Abá-pe „ara pora
o-îkó nde îabé?
Não houve sangue
em teu parto.
Tu, em teus braços,
Jesus ergueste
para alimentá-lo um pouco
em teu seio.
Que habitante do mundo
há como tu?
(JOSÉ DE ANCHIETA, IN: Navarro (1999: 411)
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