UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E TURISMO CURSO: COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO A indústria pop japonesa e as idols: consonâncias e rompimentos na carreira de Hamasaki Ayumi André Luiz Maia Lima Orientador: Thiago Soares João Pessoa 2013 ANDRÉ LUIZ MAIA LIMA A indústria pop japonesa e as idols: consonâncias e rompimentos na carreira de Hamasaki Ayumi Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal da Paraíba para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Thiago Soares João Pessoa 2013 André Luiz Maia Lima A indústria pop japonesa e as idols: consonâncias e rompimentos na carreira de Hamasaki Ayumi Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba, apresentado à banca examinadora como exigência para obtenção do título de Bacharel. João Pessoa/PB,_____ de ______________ de2013 Aprovação:_________________________________ BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Prof. Matheus Andrade ______________________________________________ Profª. Lívia Cirne ______________________________________________ Prof. Thiago Soares (Orientador) AGRADECIMENTOS Primeiramente, é necessário agradecer à minha mãe, Stelamaris Vieira de Lima Silva, por ser o alicerce que foi pedra fundamental para a construção de quem eu sou hoje, além de toda a minha família, com tios, avós e primos. Dito isto, queria muito agradecer aos professores que passaram pela minha vida acadêmica e que contribuíram de maneira incalculável na minha formação enquanto profissional, a começar pelo meu querido orientador Thiago Soares, estendendo meus agradecimentos a Luiz Antônio Mousinho, Lívia Cirne, Victor Braga e Norma Meireles, que me adotou como aluno “não-oficial” de suas disciplinas de Rádio. Aos meus colegas da classe inicial que saíram antes de mim, mas que estão presentes e aparecem na minha memória cada vez que piso na Universidade, o meu muito obrigado. Agradeço muito a Anne, Gemma, Kiu, Suelen, Camila,Cadu, Vitor, Allan, Sayonara, Tuany, Rammom e Rafinha.Àqueles que conheci pelos corredores da UFPB e salas de aula, Lays, Isadora, Diva, “aquele abraço”. Entretanto, me permito registrar aqui Taty (ao que tudo indica, minha eterna parceira de projetos), Deyse, Ysabelly e Hévilla, as amigas que estiveram do meu lado em todos os momentos de estresse e de muitos momentos de alegria. Obrigado, Yaroslávia, por sempre me cobrar a começar o TCC! Não posso jamais esquecer de William e Wallace, amizades que surgiram no âmbito profissional, mas que rapidamente passariam a incorporar o meu círculo de amizades. Também queria registrar o meu eterno agradecimento a Juneldo, meu chefe que é mais que um chefe, um amigo que sei que posso contar, assim como meus colegas de trabalho. Lidiane, Vanessas, Neide, Jane, Cleane, Rafinha (de novo!), Teresa, Cairé, Nádya, Herbert, não esqueço de vocês. Também quero lembrar os meus companheiros de ensino médio, Ernani, Camila, Fernando, Amanas, levo vocês comigo, mesmo à distância. À Olga Alves, um agradecimento especial, pois, sem você, eu nunca teria conhecido o tema deste trabalho. E, por fim, mas não menos importante, toda a gratidão do mundo a Vinicius Ferreira Mendes, meu “co-orientadornão-oficial”, daqueles que a gente não precisa conhecer em carne e osso para saber o que é uma amizade verdadeira. RESUMO O seguinte estudo pretende observar os fenômenos da indústria cultural japonesa através da culturaidol e seus desdobramentos nos produtos musicais e audiovisuais da cantora Hamasaki Ayumi. A partir deles, será feita uma análise das temáticas apresentadas pela performance de Hamasaki neste cenário, a fim de observar de que maneira eles referenciam o feminino e como este é representado. Também será observado como estes produtos problematizam a figura feminina japonesa, em um apanhado que vai desde a construção da figura da gueixa, passando pelos moldes propostos pela cultura idol e de que maneira Hamasaki se utiliza dessa estética para subvertê-la. Palavras-chave: cultura pop japonesa, música japonesa, idol, representação da mulher, análise de produto audiovisual. ABSTRACT This study aims to observe cultural industry phenomena from Japanthrough idol culture and its aftermath in music and audiovisual products of singer Hamasaki Ayumi.From them, it will be analyzed themes displayed by Hamasaki’s performance in that scene, to look how it point out the female image and how it is represented. Will be also observed how these products problematize the Japanese female image, in a summary which starts since the construction of geisha image, passing by molds purposed by idol culture and how Hamasaki uses that aestethics to subvert it. Keywords: Japanese pop culture, Japanese music, idol, female representation, audiovisual product analysis. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................07 1 O JAPÃO, A IDENTIDADE POP E SEUS DESAFIOS ........................................09 1.1 A era dos idols..........................................................................................15 1.2 O J-Pop disputa atenção com o K-Pop......................................................23 2A FIGURA FEMININA NA CULTURA JAPONESA...........................................29 2.1A mulher na indústria fonográfica nipônica.....................................................36 2.2 Possíveis influências ocidentais.......................................................................46 2.2.1 Amuro Namie...........................................................................................47 2.2.2 Utada Hikaru............................................................................................52 2.2.3 Hamasaki Ayumi......................................................................................54 3 TEIA DE INFLUÊNCIAS: HISTÓRICO DA IDOL JAPONESA E OS REFLEXOS NA CARREIRA DE HAMASAKI AYUMI.........................................61 3.1 Background nipônico.......................................................................................61 3.2 A identidade e o feminino na carreira de Hamasaki Ayumi............................69 3.2.1 Controle...................................................................................................69 3.2.2 A mulher a sexualidade...........................................................................74 3.2.3 Identidade................................................................................................79 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................83 REFERÊNCIAS.............................................................................................................85 INTRODUÇÃO A cultura pop japonesa vem sendo objeto de estudo de alguns pesquisadores da comunicação brasileira, abordando principalmente a animação, os quadrinhos e a produção fílmica do país. Também temos estudos relacionados à penetração destes produtos culturais no Brasil, em análises de fandoms e da cultura cosplay. Entretanto, uma contribuição sobre a música japonesa e a produção cultural relacionada é incipiente. Visto isso, este estudo tem como principal objetivo observar, através do repertório musical e audiovisual da cantora japonesa Hamasaki Ayumi, consequências de uma cultura bastante singular do Japão, osidols. Ao longo dos próximos capítulos, será destrinchado o histórico dessa indústria cultural sui generis, a concepção histórica do feminino japonês, através da gueixa, apontamentos de possíveis influências ocidentais que reconfiguraram a lógica midiáticanipônica e, por fim, uma análise do audiovisual de Hamasaki Ayumi, sob três eixos temáticos. Ao analisarmos a trajetória de artistas femininas e falarmos do conceito de gueixa e seu lugar na sociedade, é inevitável que falemos da representação social do feminino. Conceitualmente, as representações sociais são organizações de imagens, construídas com base na realidade, que são compartilhadas no ambiente social, trazendo o microcosmo de um comportamento domiciliar para o macro da teia social, são “modalidades de conhecimento práticoorientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e ideativo em que vivemos” (SPINK apud KOPP, 2006, p. 2). A forma como esse tipo de modelo é disseminado se dá de diversas maneiras e, hoje em dia, os meios de comunicação de massa são os grandes responsáveis por sua difusão. (...) as representações sociaissãocampos socialmente estruturados nainterface de contextos sociais de curto e longo alcances históricos. (...) o contexto social de longo alcance foi denominado imaginário social. (...). O imaginário social seria, assim, o conjunto cumulativo das produções culturais, que circulam numa determinada sociedade sob formas as mais variadas: iconografia, literatura, canções, provérbios, mitos. (SPINK apud KOPP, 2006, p. 2) Neste contexto, podemos encapsular as gueixas como figuras presentes no imaginário popular, que desaguam na figura das idols do século XX. Ao tratarmos da análise de produtos dos meios de comunicação de massa, podemos nos ancorar através do conceito de performance. Segundo Janotti (2006), a performance musical pressupõe não só uma relação entre intérprete e ouvinte, mas sim entre produto e consumidor, uma lógica de mercado. Assim, podemos defini-la como um processo de produção de sentido e consequentemente, de comunicação, que pressupõe regras formais, ritualizações ecomportamentos mercadológicos partilhados por produtores, músicos e audiência, direcionando certas experiências frente aos diversos gêneros musicais. (JANOTTI, 2006, p. 10) Além disso, os Estudos Culturais, corrente que surgiu inicialmente na Inglaterra logo após a Segunda Guerra Mundial, nos ajuda a compreender melhor como identidades e significados sociais e culturais são compreendidos na lógica da cultura de massa.Hennigen (2002) aponta que, nos últimos anos, essa vertente vem direcionando seu interesse em questões como a subjetividade e a identidade, além de observar as reverberações de textos culturais e midiáticos que se direcionam ao domínio privado e doméstico. A cultura tem, na contemporaneidade, papel constitutivo de todosos aspectos da vida social. Os seres humanos utilizam sistemas ou códigosde significado para interpretar, organizar e regular sua conduta, enfim, paradar sentido às próprias ações assim como às ações dos outros: são suas culturas. (HENNIGEN, 2002, p. 50) 1O JAPÃO, A IDENTIDADE POP E SEUS DESAFIOS Associado principalmente à culinária ou a fatos fora do que é considerado “comum” no Ocidente, o Japão ao longo das últimas décadas apresentou ao mundo uma crescente indústria de cultura popular, através de diversos produtos e artistas ligados ao cinema, à música e à televisão. O país, que sempre foi conhecido por figuras tradicionais de sua cultura, como a gueixa e o samurai, agora passa a ser levado aos quatro cantos do mundo através de produtos eletrônicos, sob marcas como a Sony, a Panasonic e a Semp Toshiba, mas, ainda mais importante, através de seus produtos culturais. Dentre os meios mais difundidos no mundo ocidental, está a moda (com o modo peculiar que alguns jovens japoneses se vestem), a produção cinematográfica (tendo como maiores expoentes o diretor Akira Kurosawa, de Os Sete Samurais,e franquias de filmes de terror adaptadas para o cinema americano, como O Grito e O Chamado), os doramas1, as novelas do país, videogames, como Mario Bros.,Sonic, Pokémon, Street Fighter e Final Fantasy,omangá e o anime, histórias em quadrinhos e animações japonesas, respectivamente. Entretanto, a indústria pop japonesa não surgiu espontaneamente, ela foi o resultado de uma série de esforços do governo japonês em requalificar a imagem do país aos olhos do mundo, após a derrota da Segunda Guerra Mundial. Era preciso tornar o Japão moderno e atualizado, já que a educação durante a guerra seguia o modelo 1 Diferentemente do esquema diário do Brasil, normalmente as novelas japonesas são semanais, com curta duração, entre 9 e 13 episódios, lançados a cada estação do ano. Algumas delas também são baseadas em mangás, como HanaYoriDango e GreatTeacherOnizuka, mas alguns dos grandes sucessos do gênero, como 1 Litre of Tears e DenshaOtoko são baseados em livros. nacional-militarista, exaltando o patriotismo e incentivando a xenofobia, evitando tudo o que fosse gaikoku (estrangeiro), em específico a cultura norte-americana. Com o fim do embate militar, o american way of life passou a ser assimilado pelos japoneses, através dos produtos audiovisuais, mashavia uma necessidade de se criar seus próprios ídolos. A partir de moldes americanos, ocorreu uma “antropofagia” da indústria cultural americana, atribuindo-lhe características essencialmente nipônicas. Notadamente a influência do mangaká, nome que se dá aos desenhistas de mangá, Osamu Tezuka (1928-1989) desenvolveu a indústria de mangás a partir dos anos 50, com publicações como Astro Boy, A Princesa e o Cavaleiro e Black Jack. Mangá significa “história em quadrinhos” em japonês, e é resultado da união dos ideogramasman (humor, algo que não é sério) e gá (imagem, desenho). Assim, para os japoneses toda e qualquer história em quadrinhos, independente de ser japonesa ou não, é chamada de mangá porque simplesmente essa é a palavra que em japonês designa “quadrinhos”. (SATO, 2007, p. 58) Na era feudal japonesa, os desenhos em sequência já eram chamados de mangá, mas o conceito moderno de quadrinhos japoneses só veio a se consolidar após os esforços de Tezuka em institucionalizar uma indústria de quadrinhos, durante a década de 50, quando foram lançados alguns de seus trabalhos mais expressivos, como Astro Boy (1952-68) e A Princesa e O Cavaleiro (1953-56), tendo como principal inspiração Walt Disney2. A maior contribuição para a personalidade japonesa dos quadrinhos foi a estética, como, explicitada, por exemplo, nos olhos grandes e expressivos dos personagens. Nagado (2011) explica que, Nem todo mangá tem os famosos olhos grandes e brilhantes que tantos amam. Os primeiros mangás nem tinham essa característica, que acabou se tornando a mais facilmente reconhecível dos quadrinhos e animações japonesas. Quem começou isso foi o pioneiro do moderno mangá, Osamu Tezuka, na década de 1940. Os motivos foram vários. Tezuka era fã de um teatro tradicional chamado Takarazuka, que é 2 Disponível em http://www.tcj.com/tezuka-osamu-and-american-comics/. Acesso em 27 jul. 2013. interpretado somente por mulheres (em contraposição ao masculino Kabuki) e no qual as atrizes usam fortes maquiagens para realçar os olhos. O criador do Astro Boy também adorava animações Disney, em especial o Bambi (de 1942) e seus olhos verticais e cheios de brilho e sentimento. Esses olhos dão muita expressividade às figuras e permitem que, mesmo num quadrinho pequeno em uma página, seja fácil identificar o que se passa com o personagem. A resposta para a questão inicial é que olhos grandes são expressivos e o mangá é um meio onde a expressividade é uma característica essencial. (NAGADO, MATSUDA, GOES, 2011, p. 11) A consequência foi uma segmentação e categorização, que captou a atenção de várias parcelas da sociedade, como os jovens meninos (shounen) e meninas (shoujo), jovens adultos homens (seinen) e mulheres (jyousei) ou mesmo por temáticas, como a pornografia (hentai) ou ainda por romances homossexuais masculinos (yaoi) e femininos (yuri). Figura 1 – Estética do mangá Fonte: http://img2.blogs.yahoo.co.jp/ybi/1/89/cb/norioetochance/folder/987896/img_987896_33033863_7?1374 639117 Com o tempo, a indústria de quadrinhos se tornou uma das mais rentáveis do entretenimento japonês, tendo uma participação respeitável no mercado editorial japonês, ocupando a fatia de 25% das publicações daquele país em 2011, além de se expandir para o exterior de maneira expressiva, em mercados como os Estados Unidos, lucrando até US$ 300 mi anualmente3. Paralelamente, o mercado de animações, em sua maior parte baseadas nas histórias publicadas, também se desenvolveu de uma maneira igualmente rentável. Segundo Sato (2007), anime significa animação em japonês. É a forma contraída pela qual os japoneses escrevem a palavra em inglês (animation), da qual deriva a versão de sotaque nipônico,animeeshon. Parte integrada da cultura e do cotidiano japonês, alguns dos nomes mais comuns a serem citados fora do país são Pokémon, Dragon Ball, Saint Seiya (conhecido no Brasil como Os Cavaleiros do Zodíaco) e até mesmo a franquia multimídia Hello Kitty, popularizada no Ocidente muito mais por sua marca em diversos produtos e acessórios que pela animação. Entretanto, animes como Sazae-san, no ar desde 19694 com quase sete mil episódios exibidos5, se tornaram marcos da cultura pop japonesa, podendo ser comparados em impacto e presença no cotidiano dos japoneses às novelas brasileiras. Nagado (2011) recapitula um bom exemplo de como os quadrinhos exercem uma influência em diversas camadas da sociedade japonesa, com o caso do mangá sobre boxe Ashita no Joe (Joe do Amanhã), escritopor AsaoTakamori (Ikki Kajiwara) e desenhadopor Tetsuya Chiba. A história, publicada entre o final dos anos 60 e o começo dos anos 70, gira em torno de Joe Yabuki, um jovem irresponsável e envolvido em brigas que encontra no boxe uma chance de ascensão social. “A sérieganhou tamanha força, que os jovens dasclasses menos favorecidas do Japão passaram a adotar Joe como ídolo e modelo de esperança,tratando-o quase como uma pessoa real” (NAGADO, MATSUDA GOES, 2011, p. 16). 3 Texto completo disponível em http://www.wipo.int/wipo_magazine/en/2011/05/article_0003.html. Acesso em 27 jul. 2013. 4 Disponível em http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Manga/SazaeSan?from=Main.SazaeSan. Acesso em 27 de jul. 2013. 5 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_anime_series_by_episode_count#cite_noteanimage-200909-1. Acesso em 27 jul. 2013. Figura 2 – Ashita no Joe Fonte: http://us.cdn003.fansshare.com/photos/ashitanojoe/ashita-no-joe-1508859896.jpg Tão real que até mesmo um funeral foi organizado após um dos acontecimentos da história. Em março de 1970, foi publicada, no auge do sucesso do mangá,a cena da morte do principal rival de Joe, Rikiishi. O fato causou comoção generalizada, que inspirou o artista de vanguardaShuji Terayama, fã de boxe e da série, a criar uma cerimôniafunerária em homenagem ao personagem morto. Cerca de 700 pessoas compareceram à cerimônia, com roupas pretas, flores e incensos. Apesar de mais de 30 anos após o término da publicação, o próprio mangá reverberou nesta década após a grande crise econômica, quando foi usado estrategicamente por empresas japonesas como um exemplo de superação. Para corroborar esse fato, a editora Kodansha iniciou em 2009 a republicação do mangá original nas páginas da revista semanal Gendain, título que tem como alvo um público masculino adulto formado em sua maioria por funcionários de empresas do meio corporativo, os famosos salaryman. O objetivo declarado da editora é usar o mangá para levantar o moral desses leitores, muito abalado após a crise econômica de 2008. Em fevereiro de 2011, uma versão live-action para cinema foi lançada, com o cantor e ator Tomohisa Yamashita como Joe e YûsukeIseya como o rival Rikiishi. Se é verdade que algo é real desde que se acredite em sua existência, pode-se dizer que Joe Yabuki está mais vivo do que nunca. (NAGADO, MATSUDA, GOES, 2011, p. 16) Da mesma forma, o mercado fonográfico acompanhou esse desenvolvimento. Antes do fim da Segunda Guerra Mundial, a chamada rokyokuou ryukoka (literalmente, música popular) era famosa no país, com letras que contavam histórias através de uma narrativa, similar à balada do classicismo alemão6,além de assimilar certos aspectos da música clássica ocidental. Cantada com o acompanhamento do shamisen, um instrumento de cordas típico japonês, se tornou um gênero popular vindo das ruas da região de Kansai7, ilha que abriga a capital Tóquio. Na década de 30, o país passou a se abrir para a música estrangeira contemporânea, principalmente as chansons francesas e o jazz, através das escolas de dança em grandes cidades, ensinando passos de foxtrot e rumba, substituindo as valsas europeias. No meio da década de 40, uma onda xenofóbica forçou o fechamento dessas escolas, que voltaram só após o término da guerra, trazendo o jazz de volta às rádios, estilo popular entre os militares americanos da ocupação. Neste período, nasceu o que se chama de kayoukyoku (literalmente, música cantada com letra), que pode definir toda e qualquer música que caia no gosto popular japonês até hoje, tratando-se de uma música produzida entre o pop ocidental e o tradicional japonês. A partir da década de 1960, grupos começaram a incorporar o rock em seu som, influenciados principalmente pelo sucesso global dos britânicos The Beatles, The Rolling Stones e do cantor americano Bob Dylan. Chamados de group sounds, alguns dos nomes de destaque do gênero são The Tigers e The Carnabeats. Ao longo das décadas seguintes, a fusão da sonoridade japonesa com as tendências ocidentais se tornou cada vez mais diversa. 6 http://pt.wikipedia.org/wiki/Balada. Acesso em 28 jul. 2013. “During the first half of the 20th century, rokyoku, a form of narrative song became popular throughout Japan. Featuring the shamisen, it was a kind of street music that emerged in the Kansai region”. Texto completo disponível em http://www.farsidemusic.com/historyJa.html#enka. Acessoem 28 jul. 2013. 7 Figura 3 – Sakamoto Kyu Fonte: http://www.sound-track.net/file/34/File0415.jpg O som da kayoukyoku começou a ganhar contornos mais pop com o surgimento de artistas como The Peanuts e o cantor e compositor Sakamoto Kyu, que ganhou notoriedade com a canção Ue wo muite arukou, em 1963, atingindoo topo da Billboard Top 100, principal parada de sucessos americana dos Estados Unidos, com o título de Sukiyaki. Mas foi a partir da década de 70, com o surgimento de agências de talentos como a Johnny & Associates, Inc., que uma nova configuração foi instituída na música popular japonesa: os idols. 1.1 A era dos idols Jovens recrutados por essas agências passavam por treinamentos, que incluíam aulas de dança, canto e interpretação para atuarem das mais diversas maneiras, escolhidos por serem considerados carismáticos e atraentes para a população. O termo foi cunhado após a exibição nos cinemas japoneses do filme da musicista francesa Sylvie Vartan, intitulado Cherchez l’idole (Em busca de um ídolo), intitulado em terras nipônicas como Aidoru wo sagase. A partir daí, aidoru (idol) passou a ser um termo utilizado para um tipo específico de celebridade. Figura 4 – Dupla Pink Lady Fonte: http://img5.blogs.yahoo.co.jp/ybi/1/04/b3/masaya8877/folder/1313756/img_1313756_19969764_10?115 9139549 Adolescentes entre 15 e 16 anos eram contratados por agências de talentos, onde recebiam salário fixo normal, alçados ao estrelato participando de grupos musicais, atuando em filmes, novelas (intitulados tarento, do inglêstalent) e estrelando campanhas publicitárias. Aoyagi apud Craig (2000) explica que a aparência dos idols era apenas um pouco mais bonitaque a média, para conseguir empatia do público que, por considerálos com uma aparência semelhante à sua, eles poderiam, com esforço, se tornar um8. A dupla Pink Lady conseguiu notoriedade, assim como artistas como Hiromi Go (da Johnny’s), WadaAkiko e três cantoras chamadas de Hana no ChūsanTorio (Trio das Flores do Terceiro Ano do Ensino Médio, em tradução livre), formado por Sakurada Junko,Mori Masako e Yamaguchi Momoe.Dentre elas, Momoe alcançou grande sucesso até decidir se aposentar para se casar, em 1980. 8 Japanese idols, on the other hand, typically depict images that are "fairly standard." Their appearance and ability are above average, yet not so much so as to alienate or offend the audience—just enough to provide their fans with the sense that they too can be stars if they try hard enough. Figura 5 – Hana no ChūsanTorio Fontes: http://eagletakanosekai.up.d.seesaa.net/eagletakanosekai/image/01BEBBBBD2B3A4C9F72L.JPG?d=a0, http://page.freett.com/mpl/box/box004.jpge http://m.iphotoscrap.com/Image/278/1222464802.jpg Na década seguinte, com o surgimento de estrelas como Nakamori Akina e Seiko Matsuda, alguns dos maiores nomes do pop idol, os artistas que não se enquadravam no estilo passaram a se intitular enka, uma espécie de kayoukyoku mais lenta, com uma estética mais tradicionalista, onde os cantores normalmente vestem quimonos (roupas típicas japonesas) e têm como principal característica a técnica vocal com longos vibratos ao fim de cada frase.Mas a década foi mesmo dos idols. Chamada de “Era de Ouro dos Idols no Japão”, era possível ver, ao longo da década de 80, quarenta a cinquenta novos idols surgirem a cada ano, desaparecendo rapidamente dos holofotes9. No final dos anos 80, o termo J-Pop passou a se consolidar como caracterização mais generalizada dos atos de música popular contemporânea, abarcando tanto idols como artistas populares que não se configuravam no enka, como o trio (hoje duo) Dreams Come True. Após a morte de um dos ícones da música enka, Misora Hibari, em 1989, vários artistas da kayoukyoku foram incorporados automaticamente ao gênero, mesmo sem mudarem significativamente seu estilo musical, o que causou uma série de confusões, como a canção Himawari, de Maekawa Kiyoshi, composta pelo cantor pop Fukuyama Masaharu, classificada como uma canção enka sem nenhum motivo específico. Com a chegada dos anos 90, o J-Pop se tornou cada vez mais uma branding, estimulada por agências como a Beinge as produções de pop eletrônico do compositor Tetsuya Komuro. As paradas de hits dos três primeiros anos foram dominadas por 9 http://www.farsidemusic.com/historyJa.html#enka. Acesso em 28 jul. 2013. artistas da Being, como Tube, B.B.Queens, Zard, Wands, Deen e o duo B’z, este último estabelecendo um novo recorde de singles consecutivos em primeiro lugar, desbancando o recorde antes conquistado por Seiko. O aquecimento da indústria fonográfica, com o aumento crescente de vendas de CDs, contribuiu para que muitos artistas atingissem a marca de dois milhões de cópias vendidas. Em 1994, Tetsuya Komuro resolveu investir na carreira de produtor musical, instituindo uma era dominada por suas criações. A Komuro Family era formada por artistas e idols que cantavam as composições dance e techno de TK, como é conhecido no mercado japonês. Atos como TRF, Hitomi, globe, Suzuki Ami e Amuro Namie emplacaram cerca de 20 hits compostos por Komuro, que foi responsável pelas vendas de 170 milhões de CDs com seus artistas. Figura 6 – Komuro Family Fontes: http://cdn.mkimg.carview.co.jp/minkara/userstorage/000/005/303/548/b02ac2c51f.jpg, http://cdn.natalie.mu/images/music/ja/sp-trf/photo16.jpg e http://blog-imgs45.fc2.com/u/t/s/utsurome/2012102401.jpeg Isso pavimentou o surgimento de outros grandes sucessos do pop japonês dos anos 2000: Utada Hikaru, responsável pelo disco mais vendido da história do Japão, First Love, com mais de 7 milhões de cópias vendidas, e Hamasaki Ayumi, objeto deste estudo, a cantora solo com o maior número de discos vendidos da história do país, com mais de 50 milhões de cópias vendidas só no mercado nipônico. Sua carreira, por sinal, é curiosa por contar com algumas peculiaridades desde a gênese da figura pública de Hamasaki. Já tendo trabalhado como modelo fotográfica, atriz em alguns filmes e novelas com papéis secundários e até mesmo com uma tentativa fracassada de seguir a linha do hip-hop (em 1995, com o EP NOTHING FROM NOTHING), Ayumi estreou de fato na música em 1998, com o single poker face, através da gravadora AvexTrax, uma das mais importantes do mercado fonográfico japonês. Figura 7 – Capa de First Love, de Utada Hikaru, oálbum mais vendido do Japão Fonte: http://i623.photobucket.com/albums/tt318/ChosenWorld/Japan%20Music/1FirstLove.jpg Só que, antes de falar sobre Ayumi, é preciso contextualizar mais profundamente o que se chama de J-Pop. O termo, como citado anteriormente, abarca uma série de gêneros dentro da denominação, além das mais diversas modalidades. Canções mais lentas, normalmente com piano e cordas podem ser encontradas, ao mesmo tempo em que músicas dançantes com refrãos grudentos são classificadas com o mesmo “rótulo”. Além dos títulos, uma característica do J-Pop é inserir frases e palavras em inglês em meio aos versos em japonês, uma tentativa de estilizar o gênero, que também, ao utilizar caracteres arábicos, varia a capitulação para maior impacto das palavras (ex. isthis LOVE?, de Hamasaki Ayumi, storia, de Kalafina ou ainda MY HEART DRAWS A DREAM, do grupo L’Arc~en~Ciel), com o objetivo de diferenciá-los da kayoukyoku. Além de cantores e cantoras solo, é notório o número de grupos femininos e masculinos como o SMAP, formado por cinco homens, em atividade desde 1991 não só na música, mas atuando em novelas, estrelando comerciais, participando de campanhas das mais diferentes formas e apresentando programas na TV japonesa, onde entrevistam, promovem jogos e até mesmo cozinham, sendo um molde para outros grupos idol subsequentes, como Arashi, NEWS, e KAT-TUN. Figura 8 – O grupo idol AKB48 Fonte: http://ch723.net/uploader/images/ch723_169.jpg Os grupos femininos também são figura recorrente no cenário pop nipônico, como AKB48 e Morning Musume, na atualidade, e SPEED, na década de 90. Há também cantores-compositores, como YUI, Onitsuka Chihiro, Utada Hikaru, Hirai Ken, aiko, miwa, ayaka, Otsuka Ai e performers como Amuro Namie e Koda Kumi. Apesar de existir uma divisão entre J-Pop e J-Rock, este último com subgêneros como o visual kei10, uma miríade de estilos pode ser abarcada pelo primeiro, como hiphop, eletrônica, disco, reggae, folk, latina e muitas outras variações de músicas que são traduzidas para a lógica do pop japonês. Além disso, artistas enquadrados no J-Rock ou em estilos como hardcore e heavy metal também se tornaram muito populares, como as bandas L’Arc~en~Ciel e X JAPAN, tornando ainda mais cinzenta a região do que é JPop e o que não é. 10 “Visual Kei (estilo visual), ou Visual Rock, é um movimento musical que surgiu no Japão na década de 80.É uma mistura de diversas vertentes musicais como rock, metal e, muitas vezes, uso de instrumentos relacionados à música clássica, tais como violino, violoncelo, órgão, cravo e piano”. Extraído de http://animenmaa.blogspot.com.br/2012/06/visual-kei.html. Acesso em 20 ago. 2013. Figura 9 – Rock japonês Fontes: http://i.pinger.pl/pgr156/12a30db50029dabd48945955/L'Arc+En+Ciel.jpg e http://blogs.suntimes.com/music/xjapan.jpg O termo, por sinal, foi cunhado por uma rádio japonesa, a J-Wave, que passou a segmentar sua programação, no início dos anos 90, com blocos de música dedicados exclusivamente às produções japonesas. Algumas das principais gravadoras do país, como a supracitada AvexEntertainment Inc., Warner, Universal, EMI e Sony Music Japan e agências como a Johnny’sEntertainment e o Hello!Project são alguns dos principais agentes do mercado japonês. Com a popularização da TV a cabo, na mesma época em que o J-Pop se consolidava enquanto marca, canais passaram a dedicar boa parte ou a totalidade de sua programação a videoclipes e transmissões ao vivo (ou de gravações posteriormente lançadas em DVD e Blu-Ray), sendo os de maior destaque o SPACE SHOWER TV e o MUSIC ON! TV, além da subsidiária japonesa da MTV, com programas sobre a cultura pop local e programação de entretenimento. O WOWOW, na área da música, se especializou em transmissões de shows. Além disso, a música também aparece na TV aberta através dos programas semanais de apresentações musicais, os mais tradicionais sendo o Music Station, ocupando o horário nobre da sexta-feira na Asahi TV, Countdown TV (ou simplesmente CDTV), no início das madrugadas de quarta para a quinta-feira da TBS, e Music Japan, no horário das onze da noite do canal estatal NHK. No final do ano, especiais musicais apresentam uma longa lista de atos que se destacaram no cenário da música ao longo do ano, como o Best Artist, do canal NTV, o Best Hit Kayousai, do YTV, e o FNS Kayousai, do canal FNS. Normalmente transmitidos próximo às festividades do Natal e do Ano-Novo, eles se juntam ao Music Station Super Live e o CDTV especial de fim de ano, que também trazem normalmente uma setlist similar. O último dia do ano é marcado pelo Kōhaku Uta Gassen, produzido pela estatal NHK, já em sua 64ª edição no ano de 2013, trazendo além dos destaques do ano, alguns artistas que caíram no gosto da população com idade mais avançada, oriundos da efervescência da kayoukyokue enka. Ayumi Hamasaki, que completou em 2013 quinze anos de carreira, vem desde 2008 sendo o ato de abertura do programa, considerado um dos mais prestigiados da TV. Apesar do declínio de vendas nos últimos cinco anos, ela concentra em suas mãos alguns recordes e conquistas. Hoje, ela figura, com mais de 50 milhões de cópias de seus discos vendidos, entre a lista dos artistas japoneses mais influentes da história, sendo a artista solos feminina com mais singles em primeiro lugar e também a com as maiores vendas. Sua aparência e modo de vestir lhe deram status de trendsetter fashion na década passada, estendendo sua presença por toda a Ásia. Em janeiro de 1999, Ayumi estreou com o álbum A Song for ××, que foi um sucesso comercial, chegando ao primeiro lugar dos rankings, vendendo mais de um milhão de CDs, recebendo posteriormente o Japan Gold DiscAward como Melhor Nova Artista. Depois, as vendas subiram substancialmente, atingindo o pico em seu terceiro álbum, Duty, no ano de 2000, com quase 3 milhões de cópias, seguido pela primeira coletânea da carreira, A BEST, em 2001, atingindo a marca de 4 milhões e se tornando o sexto álbum mais vendido da história do Japão11. Figura 10 – Capa do A BEST Fonte: http://teamerayu.web.fc2.com/images/cd/album/album/04.jpg 11 A BEST, 2001, 6, 4,301,353.http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_best-selling_albums_in_Japan. Acesso em 1 set. 2013. A revista Time destacou que sua música e sua imagem em constante mudança são algumas de suas maiores armas na indústria, aliadas às letras de suas músicas, escritas por ela mesma, que possuem muitas vezes um caráter autobiográfico. Também é conhecida por realizar shows grandiosos, onde é diretamente envolvida na direção e produção artística, sendo muitas vezes comparada com Madonna, já citada por Hamasaki como uma de suas principais influências. Seus videoclipes e músicas também abordam temáticas normalmente não muito usuais no cenário japonês, como o empoderamento da mulher (Sexy little things,my name’s WOMEN, Beautiful Fighters), a cultura gay (Lady Dynamite, GREEN), respeito à diversidade (how beautiful you are), e mesmo comentários sobre a indústria musical (alterna, 1 LOVE, Sparkle). 1.2 O J-Pop disputa atenção com o K-Pop Ao mesmo tempo em que a indústria de música pop japonesa se consolidava em torno do termo J-Pop, em um país vizinho, a Coreia do Sul, o K-Pop também foi outra nomenclatura que passava a definir os produtos midiáticos musicais populares naquele país, a partir da metade dos anos 90. Apesar de não possuir a mesma influência que o JPop, alguns artistas coreanos foram crescendo e tendo repercussão fora de seu país de origem. Com a chegada do século XXI, através das plataformas virtuais como o YouTube, foi possível disseminar seus trabalhos de uma maneira mais contundente tanto pelos países vizinhos da Ásia e no próprio Japão (a chamada Korean Wave) como romper as barreiras do continente asiático e atingir o público europeu, americano e da América Latina, que já tinham contato com o J-Pop em maior ou menor grau, devido às comunidades de imigrantes japoneses e seus descendentes em países como o Brasil. O K-Pop passou a ser pautado pelas agendas do jornalismo do Ocidente, tendo como ápice até então o sucesso de Psy, rapper sul-coreano responsável pelo hit Gangnam Style, que virou notícia nos principais portais do mundo, inclusive no Brasil, ao atingir a marca de 1 bilhão de visualizações no YouTube12. Mas, o que tornou o KPop tão popular nos últimos cinco anos? E o J-Pop, que espaço ele ocupa nessa disputa que envolve além da cultura, meandros da economia. Martel (2010) destaca em um dos capítulos de seu livro Mainstream – A guerra global das mídias e das culturas que existe um fenômeno muito característico na Ásia, onde o Japão e a Coreia do Sul protagonizam uma dominação cultural através de seus produtos midiáticos, como os animes e mangás, no caso específico do Japão, os dramas coreanos e doramas japoneses, as novelas que são populares em muitos países asiáticos e, claro, a música, que muitas vezes é traduzida e formatada dependendo da necessidade de cada mercado em específico. Por anos, a música pop japonesa fez e ainda faz bastante sucesso em toda a Ásia, sendo difundida na China através da pirataria, que deu uma dimensão muito maior de disseminação dentro da chamada “China continental”, através da cópia de CDs, DVDs e até mesmo fitas cassetes, muito populares no interior do país. Além disso, outro fenômeno ajudou a divulgar as canções japonesas no território chinês, as cover songs. A empresária Yoyo, do roqueiro chinês Cui Jian, afirma em Martel (2010, p. 282) que o pop de origem estrangeira entra através de Hong Kong e Taiwan, onde são retrabalhados, traduzidos para o mandarim, reempacotados e redistribuídos na China continental na forma de covers. Só que, ao invés de esperarem a iniciativa de artistas e produtores chineses de reempacotarem essas canções, o que diferenciou os produtores culturais coreanos dos japoneses foi que os primeiros passaram a criar, sob sua regulamentação direta, produtos do tipo exportação que pudessem agradar os públicos dos diferentes países. Martel dedica um trecho do capítulo de seu Mainstream sobre a disputa entre os gêneros musicais pop coreanos e japoneses para falar sobre o fenômeno da cantora. 12 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/12/gangnam-style-chega-1-bilhao-de-acessos-noyoutube.html. Acesso em 10 ago. 2013. É também o caso de BoA, a superestrela sul-coreana que canta em coreano para o público coreano, em japonês para os jovens de Tóquio (ela é bilíngue), em inglês para os de Cingapura e Hong Kong, e que aprendeu a cantar em mandarim para agradar à juventude de Taipé. A partir de Taiwan, seus discos são distribuídos na china, onde ela é uma estrela, de Xangai a Shenzhen. [...] BoA é atualmente uma das maiores cantoras transasiáticas, e ninguém parece achar estranho que uma coreana, bilíngue em japonês, comece de repente a cantar em mandarim. Pelo contrário, os chineses acham “cool”. (MARTEL, 2010, p. 282) O grupo sul-coreano Super Junior e suas diversas units também são lembrados por Martel, que se readequam tanto em formação quanto em linguagem dependendo do mercado. Enquanto o Super Junior M cantam em mandarim na China, o Super Junior também canta em japonês no mercado nipônico paralelamente ao grupo original, que canta em coreano em seu país de origem. “Com essas diferentes combinações, o grupo pode se apresentar em praticamente qualquer lugar da Ásia numa língua nacional entendida pelo público”. Figura 11 – Cantora sul-coreana BoA Fonte: http://i99.ltalk.ru/25.media.tumblr.com/tumblr_mbcn2pUius1ry39bko6_1280.png Esse fenômeno foi replicado por um sem número de grupos, como as garotas do Kara e das Girls’ Generation, as últimas tendo nomes específicos para cada país (So Nyuh Shi Dae, ou simplesmente SNSD, na Coréia, ou Shoujo Jidai, no Japão). Entretanto, a disputa (principalmente entre os chamados netizens, os “cidadãos da internet”) entre J-Pop e K-Pop teve um recrudescimento a partir da chamada Korean Wave, que tomou conta do mercado japonês, no final da primeira década desde século, sendo marcada pelo sucesso de BoA, que fez seu primeiro lançamento no Japão em 2001, com o disco LISTEN TO MY HEART. O grupo DongBangShin Ki, também conhecido como Tohoshinki, também decidiu se aventura por terras nipônicas, conseguindo estabelecer uma série de recordes nunca antes alcançados por artistas estrangeiros, como o primeiro single em primeiro lugar no ranking Oricon de vendas (PurpleLine), o maior número de vendas de um single na primeira semana, desbancando o recorde anterior de Elton John, com o lançamento de BREAK OUT!(255,917 cópias vendidas) e o álbum com o maior número de discos vendidos na primeira semana por um artista estrangeiro, com BEST SELECTION 2010, vendendo 412,861 cópias13. Esses resultados pavimentaram o caminho que posteriormente alguns grupos trilharam no Japão, como os já citados anteriormente SNSD e Kara, que também quebraram recordes e se consolidaram como uma novidade no cenário japonês, dando ainda mais espaço para os grupos coreanos nos charts japoneses. Martel (2010) observa esse fenômeno como um sucesso devido ao mesmo motivo de BoA e Super Junior (que, curiosamente, não foi tão bem sucedido no Japão quanto outros grupos) sob o prisma do idioma: Na brincadeira de gato e rato, os coreanos passaram a promover seus artistas de K-Pop em japonês no Japão, assim adquirindo vantagem sobre os japoneses, que inicialmente não queriam ceder na questão da língua: com isso, o J-Pop quase acabou sofrendo as consequências. Mas os japoneses voltaram a se aprumar com suas próprias armas. Concursos de “idols”, séries de televisão, telefonia (MARTEL, 2010, p. 287) O pesquisador se refere principalmente ao fenômeno chamado AKB48, um grupo idol formado pelo produtor musical Akimoto Yasushi, que atualmente conta com 93 membros, todas meninas com menos de 20 anos, divididas em diversos grupos e subgrupos que atualmente detém o recorde de vendas de singles por um grupo feminino de toda a história do ranking Oricon no Japão. A partir de 2009, quando conseguiu o primeiro single na primeira colocação da Oricon (RIVER, sendo o segundo single mais vendido do país naquele ano) o grupo simplesmente dominou as paradas, chegando a vender mais de 1,5 milhão de cópias por single, em grande parte auxiliadas por uma 13 Informações disponíveis em http://www.generasia.com/wiki/Tong_Vfang_Xien_Qi. Acesso em 13 ago. 2013. legião de fãs fieis, que chegavam a fazer absurdos, como um deles, que comprou 5500 cópias14 de Everyday, Katyusha, vigésimo terceiro single do grupo. Mesmo não conseguindo o mesmo número de cópias físicas, os atos coreanos conseguiam igual popularidade entre os japoneses. Entretanto, um conflito político acabou afetando diretamente a indústria cultural. O impasse entre Japão e Coreia do Sul em relação à posse das ilhas Dokdo (ou Takejima, para os japoneses, disputa similar às Ilhas Malvinas/Falkland, entre Argentina e Inglaterra) causou um recrudescimento da rivalidade entre países, que já estiveram em guerra, mas agora se tornaram aliados devido a interesses políticos e econômicos, respingando no fenômeno da Korean wave15. Mas, independente das questões políticas ou da penetração do K-Pop no Japão, a disputa entre os dois gêneros se dá também no modo de pensar o mercado externo. O Japão dá preferência ao mercado interno, que há décadas é autossuficiente e vive em um crescimento que é inversamente proporcional ao resto do mundo, constatada através da notícia recente alertando para o fato de que o Japão ultrapassou os Estados Unidos em vendas do mercado musical pela primeira vez, se tornando a maior indústria do ramo no mundo16, indo na direção contrária ao declínio da economia, que recentemente perdeu para a China o posto de segunda maior potência econômica do planeta17. A Coreia do Sul, em contrapartida, ainda se consolida enquanto potência industrial cultural, em grande parte à sua recente ascensão econômica, porém já deu mostras de utilizar a sua música como uma ferramenta de exportar sua cultura, principalmente através da internet. O K-Pop tem recebido apoio financeiro do governo coreano como uma espécie de embaixador da cultura contemporânea do país, chegando até mesmo a anunciar construções de arenas capazes de acomodar shows de artistas locais18. Além disso, 14 http://yonasu.com/akb48-fan-buys-5500-copies-of-new-single/. Acesso em 13 ago. 2013. http://www.globalpost.com/dispatch/news/regions/asia-pacific/japan/120831/japan-disputed-islands-kpop-south-korea. Acesso em 14 ago. 2013. 16 http://www.abs-cbnnews.com/business/tech-biz/04/09/13/japan-surpasses-us-worlds-biggest-recordedmusic-market. Acesso em 14 ago. 2013. 17 http://www.adelaidenow.com.au/business/china-overtakes-japan-as-second-largest-economy/storye6frede3-1225906268257. Acesso em 14 ago. 2013. 18 http://www.allkpop.com/article/2012/09/south-korean-government-announces-plans-to-build-anofficial-15000-seat-k-pop-performance-venue. Acesso em 14 ago. 2013. 15 empresas globalmente conhecidas como a Samsung também criaram estratégias de divulgação ao redor do mundo, exibindo em suas TVs de alta definição videoclipes de artistas coreanos, algo facilmente identificável em uma ida a qualquer loja de eletroeletrônicos que venda produtos da marca. Algumas diferenças notáveis nessa dicotomia entre Japão e Coreia podem ser vistas, como o modo como as gravadoras lidam com a internet e com a pirataria. Com a ainda constante venda de CDs e DVDs no Japão (normalmente, singles e álbuns físicos são lançados em várias versões, inclusive CD+DVD, incluindo os videoclipes das faixas promocionais do CD), são raros os perfis em sites como YouTube que disponibilizam os PVs (de Promotional Videos) na internet, preferindo serviços para dispositivos móveis como o Mu-mo e o BeeTV. Essa medida só torna o mercado mais fechado em relação ao grande público do exterior, que só teria acesso (ignorando a pirataria) a esses produtos através dos canais de televisão, no caso dos países asiáticos. Em contrapartida, os MVs (Music Videos) coreanos são disponibilizados por canais oficiais das gravadoras no site de vídeos, o que torna a difusão mais fácil, sendo possível alcançar qualquer país do mundo. Isso se deve à natureza do mercado coreano, que é baseado fortemente nas vendas digitais, o que torna a publicação no YouTube um excelente divulgador, ao invés de “tirar” as vendas da gravadora, como no Japão. Por fim, apesar das disputas internas, o crescimento do K-Pop ao redor do mundo vem chamando atenção do Japão, que recentemente, através de seu Ministério de Economia, Turismo e Indústria, criou o Comitê de Internacionalização de Indústrias Criativas, que teria a função de pensar estratégias de globalização para aspectos da cultura pop japonesa, com o investimento governamental similar ao que a Coreia do Sul vem fazendo. O que pode se deixar como reflexão de antemão é que, com o exemplo recente de Gangnam Style, o pop coreano pode ganhar mais espaço nas agendas do mundo inteiro e realmente se tornar um segmento de nicho consolidado. Se o J-Pop terá alguma resposta direta a essa expansão, os próximos anos desta década podem dar uma resposta mais conclusiva. 2A FIGURA FEMININA NA CULTURA JAPONESA Quando se fala de qualquer tipo de referência à figura feminina da mulher japonesa, a imagem mais comum associada por estrangeiros é a da gueixa. Sua figura é representativa do imaginário estrangeiro ao conjunto de imagens que falam pelo Japão, algo similar à passista de escola de samba (ou, indo mais profundamente, à mulata curvilínea), usando a mesma lógica. Apesar da confusão que os ocidentais fazem e acreditam que gueixas são prostitutas, elas nãotinham relações sexuais com seus clientes, tendo como principal função entretê-los com dança, música ou mesmo com uma simples conversa. Figura 12 – Gueixa Fonte: http://0.tqn.com/d/asianhistory/1/0/d/I/-/-/2010KyotoGeishaKoichiKamoshidaGetty.jpg Entretanto, o que a gueixa representa de fato na cultura nipônica? A construção de seu nome dá um indício sobre isso. A palavra é composta de dois kanji, os ideogramas japoneses,gei (芸), que significa "arte", e sha (者), significando "pessoa" ou “aquele que pratica", ou seja, o significado mais aproximado seria “artesã” ou “pessoa que faz arte”. Há uma confusão no Ocidente entre gueixa e yuujô, a prostituta, creditando o trabalho da primeira de maneira equivalente à segunda. O fascínio pela figura das moças com rosto pálido como a neve e batom vermelho vivo pelos europeus se deu pela metade do século XIX, quando houve a abertura dos portos japoneses para as potências orientais, um momento em que houve uma troca não só econômica, mas cultural. Em artigo de Sato (2006), ela conta que pesquisadores de literatura, poetas, teatrólogos e colecionadores de arte passaram a ter um interesse pelas xilogravuras ukiyo-e, conhecidas como “retratos de um mundo flutuante”, se tornando muito populares na Europa. Figura 13 – Ukiyo-e com ilustração de gueixa Fonte: http://www.muian.com/muian04/04yoshitoshi05316.jpg Vendidas avulsas ou compiladas em forma de livro sanfonado, a imagem de gueixas era constante nas pinturas, ganhando até um “estilo” próprio, o bijinga(desenho de mulher bela). Histórias contadas por viajantes eram vistas como aventuras exóticas, que despertavam bastante interesse, como a que inspirou o compositor Giacomo Puccini, em 1904, a criar a ópera Madame Butterfly19. Trata-se da história da gueixa Cho-cho (borboleta, em japonês), que se apaixona por um oficial americano, Pinkerton, em missão no seu país. Eles têm uma relação amorosa e ela acaba tendo um bebê mestiço, algo que despertou a ira dos japoneses, que a discriminam. O oficial é chamado de volta aos Estados Unidos, enquanto Cho-cho aguarda que ele retorne, para que finalmente possam constituir família. Entretanto, ele 19 http://www.metoperafamily.org/metopera/season/synopsis/madama-butterfly. Acesso em 24 ago. 2013. volta casado com uma americana, o que é um golpe fatal para o psicológico, que acaba se suicidando. A ficção e diferenças culturais fizeram com que a ideia que o ocidente tem das gueixas seja distorcida, pouco correspondendo com a realidade. Muitos, principalmente os incultos, acham que uma gueixa nada mais é do que uma exótica prostituta de luxo – algo que choca os japoneses, que as consideram refinadas guardiãs das artes tradicionais. Para os japoneses, achar ou tratar uma gueixa como se ela fosse uma mera garota de programa é uma atitude que revela não só falta de critério, mas de cultura e “berço” de quem assim age. Na sociedade japonesa, a gueixa é objeto de admiração e respeito. Elas dão status aos lugares que vão e às pessoas com quem se relacionam – um status que é mais ligado à tradição que à moda.(SATO, 2006, p. 6). Para entender melhor, é preciso se debruçar um pouco na história, retornando à era feudal japonesa, onde os xoguns (o equivalente aos senhores feudais do feudalismo europeu) da família Tokugawa criaram uma série de medidas de controle civil para mantê-los no poder. No século XVII, instaurou-se a Era Edo (1603 – 1867), onde as hierarquias eram rígidas, impossibilitando que membros de estamentos inferiores ascendessem socialmente, além de repudiar qualquer tipo de influência externa, como a religião cristã, o que culminou com o fechamento dos portos e a proibição de comercialização com estrangeiros, imergindo o Japão em dois séculos de isolamento. As mulheres, nesse cenário, também sofreram privações. Não podendo exercer profissões, com exceção de auxiliares de agricultura e de comércio bancados por seus maridos, sem remuneração específica, a situação delas se agravou em 1629, com a proibição de mulheres de atuarem, tornando o kabuki20uma atividade exclusiva masculina, na qual os homens também interpretavam o papel de mulheres. As que não tinham marido ou família se rendiam à prostituição como forma de subsistência. A palavra foi originalmente utilizada para dar nome a comediantes e instrumentistas que se apresentavam em festas particulares durante o século XVII. Assim, as primeiras gueixas não foram mulheres, mas homens. Os otoko-geisha (artistas masculinos) eram especializados em entreter pequenas plateias em festas, dançando, cantando contando histórias e piadas. Como os palcos estavam proibidos às mulheres, as festas privadas tornaram-se os únicos lugares 20 http://pt.wikipedia.org/wiki/Kabuki. Acesso em 24 ago. 2013. onde as mulheres podiam tocar música, dançar e cantar, e assim surgiram as onna-geisha (artistas femininas). (SATO, 2006, p.10). Só que as onna-geisha e as yuujou frequentavam os mesmos locais em que as festas aconteciam. Donos de pousadas e de casas de chá ofertavam suas serviçais, muitas vezes de maneira forçada, que à noite exerciam o trabalho de prostituição, com o nome de “serviço de travesseiro”. Enquanto isso, egressas do kabuki, as gueixas ganharam a fama de prostitutas por muitas dançarinas do teatro se prostituírem e se envolverem em escândalos com samurais na capital do país, Edo. A situação permaneceu nebulosa até o século XVIII, quando medidas oficiais do governo regulamentaram a prostituição, separando de vez as duas atividades. Em 1779, a gueixa foi reconhecida como praticante de uma profissão distinta da prostituição e foi criado uma espécie de cartório específico para registrá-las, chamado kenban. Algumas regras que as gueixas passaram a ter que seguir eram parecidas com as das prostitutas, como a obrigatoriedade de viver em casas, redutos, chamadosokiya (casas de gueixas), mas o sexo não fazia parte das habilidades que conotam a gueixa.Sato (2006) também faz questão de salientar que as prostitutas tinham prioridade em relação às gueixas na sociedade japonesa da época, pois a função e a situação delas já estavamdefinidas há tempos. Já as gueixas tinham regras impostas pelos kenban. Como artista, a gueixa precisava saber preceitos da música, dança, canto, literatura, recitar poemas e entreter. Até então, apenas as prostitutas eram as únicas que se sentavam ao lado dos homens à mesa, mas, com o tempo, as gueixas passaram a ser convidadas para conversar. Logo, o público delas foi se definindo: homens casados que participavam de festas, mas não estavam necessariamente interessados em sexo após comer. Por serem cultas, as conversas eram longas e agradavam a eles, que viam na gueixa uma relação diferente da que tinha em casa ou mesmo com a prostituta. As restrições do kenban moldaram não só a aparência, mas o que efetivamente a gueixa se tornou e é atualmente. Para ter condição de artista, as gueixas passaram a dedicar enorme tempo ao estudo e treinamento em artes, e passaram a ser valorizadas e remuneradas como entertainers. Proibidas de ter a aparência rica mais aperuada das prostitutas, as gueixas tornaram-se mestras da elegância, da beleza discreta e da sensualidade insinuada. Atrair os homens era, como ainda é, básico para elas formarem uma clientela, mas sexo não era, como ainda não é, a finalidade pela qual os japoneses contratavam uma gueixa – para isso existem as prostitutas. Diferentemente das prostitutas, gueixas podiam se recusar a ter sexo com um cliente, mas não se podia evitar que gueixas tivessem relacionamentos sexuais com seus próprios clientes (desde que não fosse cliente de uma prostituta, tudo bem). (SATO, 2006, p.10). Com o fim do xogunato e a reabertura dos portos para estrangeiros, causando uma célere ocidentalização e modernização do Japão, muitos costumes tradicionais foram abolidos, como a poligamia, para evitar constrangimentos com os gaijin(em tradução literal, “pessoa de fora”). Entretanto, as gueixas foram elevadas como uma das mais prestigiadas tradições nipônicas. Para Sato (2006), a Era Meiji (1868 – 1912) trouxe a elas um raro e inusitado prestígio, tornando-as símbolo de uma invejável independência, que as demais mulheres no Japão de então não tinham, tendo contato com políticos e empresários, conseguindo manter um estilo de vida pomposo e extravagante. Por seu status de elegância e beleza, elas podem ser chamadas de “ícones fashion” do século XIX no Japão, onde cada mínimo acessório, cada estampa que usavam se tornava uma febre, replicada pelas mulheres ditas “normais”, sendo as gueixas as responsáveis por perdurar o hábito de utilizar quimonos por muito mais tempo que os homens, que logo adotaram a indumentária ocidental. Já na primeira metade do século XX, a prosperidade econômica japonesa só beneficiou a classe, que passou a ter mais clientes, com o aumento do poder aquisitivo de políticos, industriais, banqueiros, empresários e a ascendente classe dos militares de alta patente, todos ávidos por serem entretidos por elas, que não cobravam barato, se tornando musas das artes para a elite. A vida de luxo inspirava muitas mulheres a seguir o ofício, mas era uma tarefa árdua, poucas conseguiam adentrar no reservado mundo das gueixas. Apesar disso, na década de 20, mais de 80 mil registros constavam no kenban, um recorde histórico. Se durante a Era Meiji as gueixas ditavam a moda, nesta época, a concorrência com o padrão de vida importado do Ocidente era acirrada. A popularização de bares à ocidental, que tocavam jazz e outros ritmos “de fora”,deram origem às jôkyus(garotas de cafés): moças que vestiam quimonos simples, do dia a dia, que serviam de garçonetes e de acompanhantes para os clientes. Figura 14 – Jôkyu Fonte: http://www.1101.com/edo/IMAGES/cafe/jokyu_ehagaki.jpg Para evitar que ocorresse algum tipo de confusão, toda e qualquer “modernização” foi abominada pelas gueixas, que se impuseram como resistência de uma prática tradicionalista, desprezando modas vindas do outro lado do globo. A seu favor, uma forte onda de nacionalismo, propulsionada pelo império japonês, valorizava tudo o que representava tradição. Mesmo com a escassez de alimentos durante a Segunda Guerra Mundial, as okiyas mantinham um padrão de vida luxuoso, atendendo a empresários e militares poderosos, o que gerou insatisfação por parte da população, que perecia com as políticas de cobrança de impostos cada vez mais altos. Em 1944, em uma atitude inesperada, foi decretado o fechamento de casas de chá e de bares, além de proibir que as gueixas pudessem exercer sua profissão. O que lhes restou foi trabalhar em fábricas, auxiliando na guerra. No ano seguinte, a situação delas foi reestabelecida, o que proibiu as gueixas de trabalhar como tal. Todas as mulheres – inclusive as gueixas – tiveram que ir trabalhar nas fábricas pelo esforço de guerra. Esta situação durou até outubro de 1945, quando o governo de ocupação americano autorizou a reabertura das casas de gueixas. Durante o período de ocupação americano no Japão, o desafio agora era conquistar novos clientes, no caso os estrangeiros, já que a maioria de sua antiga clientela faliu com a derrota. Para adaptar-se a esses novos tempos, elas se permitiram a aprender inglês e a cantar músicas americanas, causando um choque cultural grande21. Sato (2006), entretanto, explicita um dos casos que mais geraram problemas às gueixas neste período: os soldados e militares de baixa patente. Ao saber que gueixas compareciam às recepções e jantares dos oficiais, sem presenciar ou entender o que as gueixas exatamente faziam em tais ocasiões, soldados americanos passaram a achar que “gueixa” significava “prostituta” em japonês, e quando saíam à procura de mulheres – que nada mais eram que moças comuns famintas tentando sobreviver no caos do pós-guerra – perguntavam se elas eram uma “guíxa” (a pronúncia que usavam para “geisha”). Como normalmente a resposta era um aceno afirmativo com a cabeça, os soldados passaram a acreditar que as garotas que arranjavam eram “guíxas”, e com isso tornou-se popular no ocidente a idéia de que gueixas eram simples prostitutas com aparência exótica. (SATO, 2006, p.10). Com o fim da ocupação, em 1952, a prostituição foi proibida, com o fim dos bordeis. A atividade da gueixa, então, quase foi extinta, mas sobreviveu. No entanto, sua imagem foi manchada, pois agora as prostitutas ilegais queriam se passar por gueixas para conseguir prestígio e evitar punições legais. Mas o tempo fez com que o próprio governo, com o interesse de desfazer a imagem equivocada recém-adquirida pelas gueixas, passou a convidá-las para entreter grandes chefes de Estado que visitavam o país. Atualmente, gueixas podem se casar, mas não podem mais exercer o ofício depois disso. Casam-se normalmente com filhos ou netos de seus clientes, que arranjam esse tipo de união. Entretanto, a mulher japonesa casada deve, na visão do homem, priorizar sua vida doméstica, o que é uma tarefa difícil para as gueixas, criadas para dançar, tocar música em festas, vestindo quimonos caros. Portanto, preferem permanecer solteiras e viver nasokiya até morrerem. 21 Esse choque chegou a ser objeto de filmes produzidos em Hollywood nos anos 50, como A Casa de Chá do Luar de Agosto, de Daniel Mann, estrelado por Marlon Brando. http://en.wikipedia.org/wiki/The_Teahouse_of_the_August_Moon_(film). Acesso em 25 ago. 2013. 2.1A mulher na indústria fonográfica nipônica Observando o histórico das gueixas, paralelos podem ser traçados com a mulher e sua presença na indústria fonográfica. Talvez olhar para o contingente de idolsque são lançados todos os anos no mercado pode ser uma forma de análise. A gueixa nada mais é do que a idealização da mulher perfeita na visão masculina: bonita,carismática, com vários talentos, capaz de entreter o homem das mais diversas formas. A descrição pode muito bem ser aplicada às idols criadas pelas agências de talentos japonesas da modernidade. O produtor Tsunku, do Hello!Project, responsável por um dos grupos femininos de idol mais famosos do país, Morning Musume, afirmou em entrevista recente que a busca por uma idolvai além de um talento individual, mas sim o “pacote” completo22, da mesma maneira que uma gueixa. Tsunku referencia algumas das estrelas que já passaram pelo grupo, à exceção de Amuro Namie, que, em sua visão, possuíam o “quê” que as tornariam perfeitas para a função de idol.Outro quesito que faz parte do pacote é a performance midiática, na qual a jovem precisa ter um comportamento “perfeito” e exemplar, o que inclui a proibição de relacionamentos amorosos. Essa questão reforça ainda mais o paralelo entre a gueixa e a idol, pois, assim como muitas das gueixas serviam apenas a um homem, ser virtualmente “pura” e “intocada”, porém performatizar eroticidade também constrói sentido na concepção de uma idol. É como se, através da mídia massificada, aquela menina poderia servir como mulher idealizada de cada fã seu, sendo ao mesmo tempo “de todos”, mas também de ninguém. 22 “If someone was a better singer, that doesn’t mean she would absolutely be a star. It is hard to be specific. If she has “it”, that naturally shines through her with no maintenance. Let’s say, if we had a 14year-old Amuro Namie with us right now, that would be very powerful. Like Tsuji, Kago, Goto, and Aya Matsuura had that sparkly stuff”. Extraído de http://www.en.barks.jp/news/?id=1000002841. Acesso em 31 ago. 2013. Figura 15 – Minegishi Minami antes e depois Fonte: http://i.imgur.com/o7CkO.jpg e http://wp.patheos.com.s3.amazonaws.com/blogs/christandpopculture/files/2013/02/Minamiminegishi2.jpg Um bom exemplo do que acontece com quem “quebra” essa regra está no ocorrido com Minegishi Minami, integrante do grupo idol AKB48, em fevereiro de 2013. Noticiada pelo mundo inteiro, inclusive em portais e agências de notícias brasileiros23, Minami, de 20 anos, pediu desculpas publicamente, através de um vídeo no YouTube, mostrando seu cabelo raspado, em autopunição por seu “mau comportamento”. Na metade do mês anterior, o tabloide Shunkan Bunshun publicou fotos dela saindo da casa do também cantor Shirahama Alan, insinuando que a cantora teria passado a noite na casa dele, uma atitude considerada reprovável pelo organizador do projeto Akimoto Yasushi, que a rebaixou para o posto de estagiária, como punição pelo "transtorno causado pelo escândalo". Apesar disso, é preciso salientar que idolsnão são os únicos modelos na indústria cultural pop japonesa. É possível encontrar mulheres bem-sucedidas nos mais diversos gêneros musicais, como o pop, rock, R&B e eletrônica. Algumas bateram recordes de vendas, popularidade e algumas registraram seus nomes na história do mercado japonês. Apesar de não ser do circuito pop, um dos nomes mais relevantes da figura feminina no país atende pelo nome de MisoraHibari, cantora de enka, estilo musical que disputava espaço no mercado japonês com a kayoukyoku durante as décadas de 70 e 80, influenciando uma série de artistas, tanto dentro de seu próprio estilo como no pop. 23 http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2013/02/01/estrela-pop-japonesa-raspa-a-cabeca-comoautocastigo-por-passar-noite-com-jovem.htm. Acesso em 31 ago. 2013. Figura 16 –Misora Hibari Fonte: http://pgm.miyazaki-catv.ne.jp/osusume/20110615_misorahibari.jpg Nascida Kato Kazue, iniciou sua carreira musical em 1949, aos doze anos, quando decidiu adotar o nome artístico de Misora Hibari (que significa “cotovia no céu belo”). Seu primeiro single, KappaBoogie-Woogie,lançado alguns meses depois de estrelar o filme Nodojiman-kyô Jidai, se tornando um sucesso, vendendo 450 mil cópias24. Rapidamente, Misora se tornou popular por estrelar diversos filmes e lançar frequentemente canções que caiam facilmente no gosto popular, como KanashikiKuchibue, que conseguiu se tornar um hit em escala nacional devido a sua execução em rádios. Sua carreira como atriz também foi prolífica, estrelando mais de 150 produções entre 1949 e 1971. Sua morte, em 1989, com apenas 52 anos, causou comoção nacional. Sua música mais famosa dentro e fora do Japão, Kawa no Nagare no you ni, foi eleita em 1997 pela TV estatal NHK como a Melhor Canção Japonesa de todos os 24 “Sherecordedherfirst single KappaBoogie-Woogie (河童ブギウギ ,Kappabūgiwūgi) for Columbia Records later thatyear. It became a commercial hit, selling more than 450,000 copies”. Disponível em http://www.antiwarsongs.org/artista.php?id=3322&lang=en&rif=1. Acesso em 25 ago. 2013. tempos, com mais de 17 milhões de votos25, sendo interpretada por músicos de todo o mundo, como Os Três Tenores e o Mariachi Vargas de Tecalitlan.Além disso, foi a primeira mulher na história a receber o KokuminEiyoshō, honraria dada pelo governo japonês como uma espécie de “honra ao mérito”, por dar esperança e encorajar os cidadãos japoneses após a Segunda Guerra Mundial. Apesar de ter vendido cerca de 68 milhões de cópias entre singles e álbuns ainda em vida26, seu nome não aparece na lista de maiores vendas, pois a instituição que a organiza, a Oricon Inc., foi criada apenas na segunda metade da década de 60, após o ápice de vendas de Misora. A lista da Oricon com os maiores vendedores de todos os tempos no Japão27 enumera as dez cantoras e grupos femininos que mais venderam desde aquela época até hoje. Segue abaixo a seleção delas (em agosto de 2013): 1 – Hamasaki Ayumi (50,034,000) Fonte:http://sp-m.mu-mo.net/image/jacket/37/AVCD-17037.jpg 2 – DREAMS COME TRUE (43,033,000) 25 http://www.larrykenny.com/enka/kawa.php. Acesso em 26 ago. 2013. 26 http://www.nytimes.com/1989/06/25/obituaries/hibari-misora-japanese-singer-52.html. Acesso em 26 ago. 2013. 27 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_best-selling_music_artists_in_Japan. Acesso em 26 ago. 2013. Fonte: http://samuraibeatradio.files.wordpress.com/2011/10/dctdwl2011_kei-ogata_ph.jpg 3 – Matsutoya Yumi(39,012,000) Fonte: http://www.ecolusso.jp/world_eco_repo/images/110418_yuming.jpg 4 – ZARD (37,045,000) Fonte: http://4.bp.blogspot.com/rhvFyse1rO0/TbahH74wrWI/AAAAAAAAAJ8/bnWBqdEAr8Q/s1600/zard_197025.jpg 5 –Utada Hikaru (35,000,000) Fonte: http://us.cdn003.fansshare.com/photos/utadahikaru/keep-tryin-promos-utada-hikaru165948393.jpg 6 – Amuro Namie (33,035,000) Fonte: http://stat.profile.ameba.jp/profile_images/20121224/23/e7/32/j/o128010241356358574057.jpg 7 – Matsuda Seiko (29,064,000) Fonte: http://livedoor.blogimg.jp/parisvupar/imgs/d/c/dc358373.jpg 8 – globe (28,093,000) Fonte: http://userserve-ak.last.fm/serve/_/28975247.png 9 – AKB48 (26,018,000) Fonte: http://ftpmirror.your.org/pub/wikimedia/images/wikipedia/th/a/a8/AKB482011.jpg 10 – Nakamori Akina(25,037,000) Fonte: http://buffalo.jp/products/pro-users/73/images/photo_02.jpg A partir destas 10 representantes, é possível apresentar um cenário da figura feminina da mulher no cenário japonês dos últimos 30 anos. Hamasaki traduz em uma linguagem pop através de músicas dentro de sua discografia com diversas influências, como baladas, hard-rock, rock sinfônico, enka, R&B, eletrônica e rock progressivo. O duo DREAMS COME TRUE e a cantora solo Utada Hikaru possuem influência pesada do R&B americano, adicionando características do estilo à fórmula do pop japonês, da mesma maneira em que Amuro Namie, após um período inicial da carreira, na segunda metade da década de 90. Figura 27 – Amuro Namie Fonte: Frame do clipe de YEAH-OH No começo dos anos 2000, Namie passou a trabalhar com o produtor americano Dallas Austin28, mudando radicalmente de estilo, com músicas influenciadas pesadamente pelo R&B e pelo hip-hop, auto intitulando seu gênero musical como “hippop”, em discos como STYLE (2003) e Queen of Hip-Pop (2005).Com a líder vocalista KEIKO, o grupo globe traz músicas de electropop e trance, além de um estilo de música eletrônica tipicamente japonês, o eurobeat. ZARD, liderado por Sakai Izumi, representa o pop rock na lista. Já Matsutoya Yumi é cantora e compositora, com músicas que fluem entre o pop, rock e jazz, estilos também trabalhados pelas também cantoras-compositoras BONNIE PINK, Otsuka Ai, Utada Hikaru e Shiina Ringo.Ringo, além da carreira solo, criou o muito bem-sucedido grupo Tokyo Jihen, se tornando bastante respeitada também dentro do gênero do rock japonês. 28 http://pt.wikipedia.org/wiki/Dallas_Austin. Acesso em 27 ago. 2013. Figura 28 – Tokyo Jihen, grupo liderado por Shiina Ringo Fonte: http://i.imgur.com/AbhIc.jpg Outro grupo de rock liderado por uma mulher que ganhou atenção é the brilliant green, com a presença da vocalista Kawase Tomoko, que também tem uma carreira solo, dividida em dois projetos individuais: Tommy February6 e Tommy Heavenly6. Com ironia e deboche, a primeira é uma personalidade kawaii (fofa), muito semelhante às idols de grupos de pop. Já Tommy Heavenly6 traz uma sonoridade mais rock, com influência visual das gothiclolita29. Figura 29 – Kawase Tomoko como Tommy February6 (à esquerda) e Tommy Heavenly6 (à direita) Fontes: http://postfiles8.naver.net/20120614_247/ujukokkiri_133963977859238wrB_JPEG/22978_3.jpg?type=w 2 e http://stat.profile.ameba.jp/profile_images/20120415/19/ea/63/j/o129614341334484084638.jpg 29 “Gothic Lolita is a gothic inspired Lolita sub-style. It is characterized by a darker clothing and makeup”. A cultura da gothicLolita, apesar de ser predominantemente feminina, foi difundida pelo cantor Mana. Extraído de http://lolitafashion.wikia.com/wiki/Gothic_Lolita. Acesso em 27 ago. 2013. O Do As Infinity, formado por Owatari Ryo, Nagao Dai e Tomiko Van, é um dos grandes grupos do rock e do pop japonês do início dos anos 2000 liderado por uma mulher. Van, a vocalista, conseguiu ganhar popularidade e visibilidade enquanto vocalista de um grupo de rock, sendo comparada a Kawase Tomoko, do the brilliant green, que teve o ápice da carreira na década anterior. Antes delas, o grupo REBECCA fez sucesso nos anos 80, liderado pela vocalista NOKKO, que também conseguiu uma expressiva carreira solo na década seguinte, se estabelecendo como um nome importante do rock japonês. Nomes como Shiina, Kawase, NOKKO e Tomiko abriram espaço para a cantora Ochi Shiho, mais conhecida pelo nome artístico de Superfly (uma homenagem à música homônima de Curtis Mayfield). Shiho é um dos nomes mais bem-sucedidos do rock feminino atualmente no Japão, com vendas sólidas e popularidade entre pessoas de diversas faixas etárias. Inicialmente, Superfly era um duo, em que Shiho dividia espaço com o guitarrista e compositor Tabo Koichi. Logo após Koichi decidir continuar apenas colaborando para Shiho enquanto compositor, Superfly teve seu primeiro grande sucesso, a balada Ai wo KometeHanataba wo, em 2006. Outro nome de destaque no rock é a cantora Tsuchiya Anna. Ex-integrante da banda Spin Aqua (que tinha entre seus integrantes o guitarrista IwaikeKaz, do grupo de rock dos anos 90 Oblivion Dust), ganhou notoriedade por sua carreira enquanto modelo fotográfica e alguns trabalhos como atriz, na comédia premiada Shimotsuma Monogatari. Na música, participou da trilha sonora do anime de sucesso NANA, ganhando notoriedade e sendo conhecida pelo público japonês por interpretar as canções da banda do personagem principal, uma cantora de rock. O R&B também apresentou nomes populares na última década. Após a introdução do gênero ao cenário japonês nos anos 90 por artistas americanos, as cantoras nacionais Utada Hikaru e Kuraki Mai aumentaram ainda mais a proporção do R&B no país. Na década seguinte, uma série de nomes foram projetados, inclusive femininos, como AI. Integrante de um coletivo de artistas que tinham como proposta traduzir a black music para o Japão (do qual Amuro Namie também se associou), o SUITE CHIC, ela ganhou destaque enquanto cantora solo, principalmente com suas baladas R&B, como seu hit Story, em 2005. Seguindo a linha de baladas R&B, uma explosão de artistas entre 2008 e 2010 dominou as paradas do Japão, como Aoyama Thelma, com o hitSoba niIruNe, em um dueto com o rapper SoulJa, Milliyah Kato, JUJU,JASMINE, BENI e NishinoKana, só para citar as que conseguiram se estabelecer no mercado mesmo com o declínio da hype R&B. Também encontramos mulheres em outros estilos menos usuais ao se associar ao Japão. A cantora lecca é influenciada diretamente pelo reggae, conseguindo destaque com álbum Power Butterfly, vendendo mais de 100 mil cópias. Já o grupo feminino ORESKABAND incorpora o estilo caribenho, influenciada pela Tokyo Ska Paradise Orchestra, outro grupo japonês que utiliza o ska. Quase um gênero à parte, as canções criadas como temas para animes, também chamadas de anison (de anime songs), também possuem presença feminina forte, sendo as mais famosas delas seiyuus, ou seja, dubladoras, uma profissão de destaque no show business japonês. Dentre elas, nomes como May’n, Hirano Aya, Sakamoto Maaya e Mizuki Nana se destacam. 2.2Possíveis influências ocidentais Figura 30 – Hamasaki Ayumi, Amuro Namie e Utada Hikaru. Fontes: http://sp-m.mu-mo.net/image/jacket/37/AVCD-17037.jpg, http://images.fanpop.com/images/image_uploads/Queen-Namie-queen-namie-amuro403962_593_768.jpg e frame do clipe detraveling Rastrear matrizes ou influências através de produtos audiovisuais trata-se de um reconhecimento de padrões e elementos estéticos detectáveis entre os dois elementos comparados. No caso da música pop, nós podemos nos ater a alguns aspectos em específico, como: sonoridade, analisando arranjo instrumental, arranjo vocal, pronunciação, tom de voz, timbre; plasticidade, ou seja, tudo o que for relacionado à imagem, como figurino, maquiagem, cenário, fotografia, iluminação, edição; e performance, que diz respeito à composição de cena, expressão fácil, corporal e gestual,coreografia, em suma, a postura do artista em palco. Ao abordar a cultura pop, são objetos passíveis de análise artistas que inscreveram seu nome dos anais da música por seu sucesso mercadológico, seu impacto cultural ou mesmo sua influência em artistas posteriores a eles. Pensando em figuras femininas do J-Pop nipônico, podemos selecionar três artistas que atendem a alguns ou mesmo todos os quesitos supracitados: Amuro Namie, Utada Hikaru e Hamasaki Ayumi. A análise procura partir do pressuposto que, ao conhecermos o surgimento da indústria cultural do Japão moderno, produtos culturais ocidentais exercem influência direta nos produtos culturais japoneses, podendo estabelecer a partir daí paralelos. Entretanto, o estudo também busca contribuir além, ao fazer um rastreamento, em cima das três artistas, de possíveis influências nipônicas de gerações anteriores em seus trabalhos. Ao confrontar artistas estrangeiros e nativos com suas produções, é possível observar de uma maneira mais ampliada como certos formatos e moldessão reproduzidos e até mesmo rompidos ao longo do tempo. 2.2.1Amuro Namie Dentre as principais influências ocidentais nos trabalhos de Amuro Namie, podemos apontar artistas da black music, com influência de R&B e hip-hop. É necessário destacar, antes de tudo, uma tendência que começa desde o início da carreira de Namie, em 1995, com o single Body Feels EXIT, e se acentua em seus trabalhos durante os anos 2000, principalmente a partir do disco de 2003, Style. Integrante da Komuro Family, grupo de artistas produzidos por Komuro Tetsuya, suas músicas já apresentavam traços e influências do R&B, como é possível perceber em Don’t wanna cry, seu terceiro single, em 1996, Dreaming I wasdreaming, do ano seguinte, e SOMETHING ‘BOUT THE KISS, de 1999, fruto da primeira parceria com o produtor americano de R&B Dallas Austin. Um dos principais nomes que levaram o gênero ao topo das paradas de sucesso do Japão é a cantora norte-americana Mariah Carey. Carey desfrutava de uma popularidade imensa ao redor do mundo inteiro, inclusive no Japão, chegando a estrelar comerciais e chegando a ser um dos países em que a norte-americana vendia mais discos fora do seu país de origem, inclusive emplacando canções que foram um fracasso nos Estados Unidos, como Glitter, de 200130, que chegou a vender 450 mil cópias no país, segundo a Billboard americana. Seu nome também figura na lista dos dez álbuns mais vendidos na história do país por artistas estrangeiros31, com a coletânea #1s, de 1999, com 2,800,000 cópias, além de aparecer na lista mais três vezes, com os discos Daydream, Merry Christmas, e Music Box. Observando a dimensão do trabalho de Carey em terras nipônicas e a gradual imersão de Amuro no R&B, outro indício é o videoclipe de Can you Celebrate?,de 1997, música de êxito comercial, atingindo a marca de 2 milhões de cópias vendidas, e o single mais vendido da história por uma artista feminina. Visualmente, é possível estabelecer paralelos com Vision of Love, single de estreia de Mariah Carey e um de seus maiores sucessos. 30 http://www.billboard.com/articles/news/78521/careys-glitter-sparkles-in-japan. Acesso em 31 ago. 2013. 31 Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_best-selling_albums_in_Japan#Top_ten_bestselling_albums_recorded_by_non-Japanese_artists. Acesso em 31 ago. 2013. Figura 31 – CAN YOU CELEBRATE?vs. Vision of Love Fonte: frames dos videoclipes de CAN YOU CELEBRATE?eVision of Love A princípio, a primeira relação entre os clipes é a fotografia, bastante semelhante. Algumas das cenas possuem a mesma paleta de cores, alternadas entre cores frias, azuladas, e tons pastel. Os cenários também são semelhantes, em sua maior parte ambientados em estúdio, porém com janelas que simulam um ambiente externo. O próprio gestual de ambas possuem semelhanças, guardadas às devidas proporções, pois o timing da música de Carey exige movimentos mais bruscos, entretanto, o modo com o qual ambas se expressam corporalmente são passíveis de comparação. Avançando um pouco mais em sua discografia, a partir do álbum Style, seu visual passa a ser acentuadamente americanizado, procurando emular a estética de artistas R&B e hip-hop americanos. Figura 32 – Visual americanizado Fonte:http://pds2.exblog.jp/pds/1/200702/05/72/f0106072_0471421.jpg e frame do clipe de SO CRAZY O álbum, lançado em 2003, está localizado temporalmente na época da ascensão da black music no mercado musical americano, a exemplo do ano seguinte, em que foi possível observar o Top 12 da Billboard sendo ocupado completamente por artistas de R&B e hip-hop, considerado o ápice dos gêneros no mainstream americano32. Dentre essa gama de artistas, Jennifer Lopez se aproxima do que Namie se propôs a fazer com Style e trabalhos subsequentes, por realizar uma mistura do R&B e do hip-hop com dance. Isso pode ser observado ao comparar canções como Jenny from the Block33 e If You Had My Love34, de Lopez, com SO CRAZY35 e ALARM36. Um indício dessa aproximação tanto visual quanto sonora é CAN’T EAT, CAN’T SLEEP, I’M SICK, de Amuro, em que o clipe se assemelha esteticamente com as cenas de dança de Get Right, de Lopez. 32 “In 2004, 80% of the songs that crowned the R&B chart did the same on the Hot 100. […] In the Hot 100's penthouse that year, all 12 songs that reached the top, from "Hey Ya!" to "Drop It Like It's Hot," were by persons of color (including that year's American Idol winner, Fantasia). This early-naughts period was the all-time peak for R&B and hip-hop on the Hot 100, and hence on Top 40 radio”.Extraído de http://blogs.villagevoice.com/music/2012/07/sales_slump_usher_chris_brown.php?page=2. Acesso em 31 ago. 2013. 33 http://www.youtube.com/watch?v=dly6p4Fu5TE. Acesso em 31 ago. 2013. 34 http://www.youtube.com/watch?v=lYfkl-HXfuU. Acesso em 31 ago. 2013. 35 http://www.youtube.com/watch?v=X6v3j4JpKtQ Acesso em 31 ago. 2013. 36 http://www.youtube.com/watch?v=6iTurnzaKpQ. Acesso em 31 ago. 2013. Figura 33 – CAN’T SLEEP, CAN’T EAT, I’M SICK vs. Get Right Fontes: imagens dos videoclipes de CAN’T SLEEP, CAN’T EAT, I’M SICK e Get Right Outra referência estética forte do R&B é Janet Jackson. Sua influência em artistas do mundo inteiro desde a década de 90 é notável, inclusive influenciando a própria Amuro que, na década de 2000, absorveu bastante do visual de Janet em sua fase mais voltada para o R&B e hip-hop. Figura 34 – Visuais similares de Janet Jackson e Amuro Namie Fontes: http://s11.postimg.org/nyeacv2g3/vedete_tatuate_8.jpg,http://images.fanpop.com/images/image_uploads/ Queen-Namie-queen-namie-amuro-403962_593_768.jpg, http://aziophrenia.ru/ward/music_collector/01/0001_amuro_namie_naked_live_style_2011_download/im ages/157_amuro_namie_naked_live_style_2011_01.jpg e http://lh6.ggpht.com/naskybeextralarge/SKyZzzs-aHI/AAAAAAAAAU4/Qqp7YYaT_-Q/s800/janetrock-witchu-w300.jpg Para tentar visualizar um exemplo de influência, pode-se analisar o videoclipe de Hide & Seek da japonesa e Rhythm Nationde Janet. Através dele, podemos ver aspectos que rememoram um ao outro, como o estilo de coreografia, a fotografia do videoclipe, o cenário, evocando o urbano através de uma simulação de tubulações de uma indústria, além do tema militar dos figurinos tanto de Amuro e Jackson quanto de seus respectivos dançarinos. Figura 35 – Hide & Seek vs. Rhythm Nation Fonte: cenas de Hide & Seek e Rhythm Nation. 2.2.2Utada Hikaru Bilíngue, nascida em Nova York, mas vivendo constantemente entre os Estados Unidos e o Japão, Utada cresceu absorvendo a cultura dos dois países. Seu primeiro álbum da carreira, First Love,lançado no Japão em 1999, apresenta uma influência muito forte do R&B contemporâneo, gênero que ganhou força na década de 90 com artistas como Mariah Carey, Boyz II Men, Babyface e Aaliyah. O som dos dois primeiros álbuns de Utada, escritos e compostos majoritariamente pela própria, que já declarou ter Aaliyah como uma de suas grandes influências37, pode ser facilmente relacionado com o estilo, em canções como Automatic, In My Room38, Distance39, com a presença forte de batidas do hip-hop e riffs de guitarra, como em Movin’ on without you e Wait & See, ou baladas com uma batida mais suave, como em First Love e Eternally40, que se assemelha ao estilo de One Sweet Day, parceria do Boyz II Men com Mariah Carey, por exemplo. Pode ser traçado um paralelo de suas músicas dos dois primeiros álbuns com as de Aaliyah, como Age Ain't Nothing But A Number e One In A Million. Entretanto, Utada não se restringiu apenas ao R&B. Já no segundo álbum, DISTANCE, a faixa Kettobase!41mostra uma influência direta do rock, influência de artistas como Freddie Mercury e Led Zeppelin, também citados como influência pela própria Hikaru. Kettobase! é uma fusão de eletrônica com rock, lembrando muito as duas versões de I Was Born To Love You, lançada na carreira solo de Freddie Mercury com uma roupagem mais eletrônica e adaptada para o estilo do Queen posteriormente. Figura 36 – Mudança de estética Fonte: frames dos videoclipes de First Love, Wait & See, Can You Keep A Secret?, FINAL DISTANCE, traveling e Passion 37 “Hikaru Utada has often said, "It was when I heard Aaliyah's ‘Age Ain't Nothing But a Number’ that I got hooked on R&B." It's not an overstatement to say Aaliyah is the root of Utada's R&B”. Extraído dehttp://www.emimusic.jp/hikki/gallery/main02_e.htm. Acesso em 31 ago. 2013. 38 http://grooveshark.com/s/In+My+Room/5cFn5V?src=5. Acesso em 28 ago. 2013. 39 http://grooveshark.com/s/DISTANCE/4NWAtk?src=5. Acesso em 28 ago. 2013. 40 http://grooveshark.com/s/Eternally/52kj29?src=5. Acesso em 28 ago. 2013. 41 http://www.youtube.com/watch?v=_B0_RW5oSI4. Acesso em 28 ago. 2013. Visualmente, os clipes de Hikaru seguiam inicialmente uma linha bem parecida com as produções de Aaliyah, a exemplo de Addicted to You, ou Can You Keep A Secret?. Foi a partir de 2001, em FINAL DISTANCE, que seus vídeos passariam a adotar outra estética, com a entrada do cineasta Kazuaki Kiriya, diretor de filmes como Casshern. A parceria entre Kiriya e Utada, que veio a se dar também no campo pessoal com o casamento, se prolongou até 2006, seguido da separação do casal. A chegada de Kiriya marcou também uma diferença da sonoridade. FINAL DISTANCE, primeiro single do terceiro álbum, DEEP RIVER, é uma nova versão, com o tempo mais lento, uma atmosfera mais densa, utilizando cordas e piano, de Distance, mostrando uma diferença considerável em relação a seus trabalhos anteriores.Neste álbum, outras influências puderam ser percebidas mais claramente, como em Sakura Drops ou traveling, com elementos eletrônicos e acústicos mais proeminentes, expandindo o leque de influências para além do R&B contemporâneo. A verve eletrônica foi trabalhada mais intensamente em seu disco subsequente, Exodus, criado e projetado para o mercado norte-americano, onde não obteve muito êxito, mas chegou a vender mais de um milhão de cópias no Japão42. O disco seguinte, ULTRA BLUE, de 2005, traz essa sonoridade retrabalhada. É possível estabelecer uma comparação entre a sonoridade destes discos com as músicas da cantora islandesa Björk, como Joga e Hunter, ao pegarmos canções de Utada comoAnimato, do Exodus, Kairo e Passion, do ULTRA BLUE. 2.2.3Hamasaki Ayumi Conhecida principalmente por causa de seus shows extravagantes, com vários cenários, trocas de roupa, “truques” no palco e recursos cênicos, Hamasaki se destaca 42 Disponível emhttp://www.billboard.com/biz/articles/news/1428984/utadas-exodus-breaks-record-injapan. Acessoem 31 ago. 2013. por sua performance em palco. A gênese de seus shows, assim como diversos artistas ao redor do mundo, é inspirada pelos moldes que Madonna e Michael Jackson solidificaram na indústria pop global, ou seja, a construção de um espetáculo que trabalha o visual, o sonoro e o performático em um pacote, reunidos sob um mesmo conceito estético. Suas turnês, por conta disso, têm identidades visuais distintas. Portanto, as duas influências mais óbvias apontadas como influência para Ayumi em shows e performance são Michael e Madonna. O primeiro pode ser visualizado na apresentação de In The Corner, na turnê de 2009 de Hamasaki, NEXT LEVEL. O figurino, incluindo a luva, referência direta a um dos figurinos que se consolidaram como assinatura de Michael. Também é possível notar semelhanças com a coreografia, a maneira como os passos são executados, algo que se repete em performances que utilizam coreografia, como Real me. Figura 37 – Michael Jackson vs. Hamasaki Ayumi Fonte: frames de Dangerous ao vivo no Royal Concert e de In The Corner, do DVD ayumi hamasaki ARENA TOUR 2009 A ~NEXT LEVEL~ Já Madonna, citada por Ayumi diversas vezes como uma de suas grandes inspirações, aparece como referência de diversas formas. Na sonoridade, em discos como RAINBOW, uma fusão entre pop e música eletrônica que referencia um dos álbuns mais famosos da norte-americana, Ray Of Light. Visualmente, em videoclipes como alterna, com maquiagem e cenas que lembram Bedtime Story. Figura 38 – alterna vs. Bedtime Story Fonte: frames de alterna e Bedtime Story Em palco e shows, algumas temáticas em comum já foram trabalhadas, como o empoderamento da mulher, religiosidade e sexualidade. As performances de Erotica, na The Girlie Show Tour de Madonna, e de my name’s WOMEN, na ASIA TOUR 2008 de Ayumi,utilizam estética do sadomasoquismo, por exemplo, além de, tematicamente, ambas as canções apresentarem a mensagem da liberdade feminina. Figura 39 – Erotica vs. my name’s WOMEN Fonte:cenas de Erotica,no DVDThe Girlie Show Tour, e my name’s WOMEN, naayumi hamasaki ASIA TOUR 2008 ~10th Anniversary~ Tanto Madonna e Michael são referências óbvias para qualquer artista pop, principalmente para aquele que trabalham performaticamente no palco, como é o caso de Ayumi. Entretanto, é preciso salientar certos aspectos encontrados em outras performances de Hamasaki. Ela tem um vasto repertório musical em 15 anos de carreira, com quase 250 canções originais produzidas, dentre elas dúzias com influência sonora de vertentes do rock’n’roll. Ao transpô-las para o palco, sua estética, gestual e comportamento deixam de fazer referência aos trabalhos dos dois e passa a mimetizar algumas estrelas do rock. Led Zeppelin, o qual Hamasaki declarou ser fã e ouvi-los durante a infância por influência de um parente43, pode servir de comparação para dar luz a essas matrizes, inclusive no quesito sonoridade. Figura 40 – Estética de shows de rock em apresentações ao vivo de Ayumi Fonte: performances variadas de turnês de Ayumi e de Led Zeppelin 43 “As a child I listened to rock music (Led Zeppelin, Deep Purple), influenced by a relative”.Extraído de http://ayumi.primenova.com/profile.php. Acesso em 31 ago. 2013. Durante o período de produção de seu quarto álbum, I am..., Ayumi concedeu entrevista à revista americana Time, em 2001, revelando os processos de produção do primeiro disco, o primeiro em que, além das letras, apresentaria uma série de canções de sua composição, como M, Endless sorrow e evolution. Ela cita a banda The Smashing Pumpkins, Kid Rock e Joan Osbourne, além de revelar que admira Madonna por ter controle total sobre o que faz.44 Se atendo ao The Smashing Pumpkins, ao ouvir canções como Tonight, Tonighte Thirty-Tree, é possível extrair algumas características em comum entre o grupo americano e as canções inspiradas em rock de Hamasaki. Faixas como M, still alone, no more wordse Endless sorrow, todas do disco I am…, apresentam elementos de rock atrelado a instrumentos acústicos de corda, como piano e violinos, emulando muitas vezes orquestra, notável em trechos de Endless sorrowena introdução de Tonight, Tonight. A título de curiosidade, o disco da canção do The Smashing Pumpkins se chama Mellon Collie and the Infinite Sadness(Mellon Collie, um jogo de palavras com “melancolia”, e a Tristeza Infinita), o que pode ser um indício da inspiração para o título da música de Ayumi (que pode ser traduzida como Sofrimento Infinito). 44 A transcrição completa pode ser encontrada em http://www.freewebs.com/hamasaki_love/interview1.htm. Acesso em 31 ago. 2013. 3 TEIA DE INFLUÊNCIAS: HISTÓRICO DA IDOL JAPONESA E OS REFLEXOS NA CARREIRA DE HAMASAKI AYUMI Ao observarmos algumas das influências proeminentes do Ocidente nessas três artistas, entendemos que a lógica do mercado mundial afeta o japonês em alguns níveis, absorvendo e fazendo uma releitura nipônica de atos internacionais, “traduzindo” à realidade nipônica. Apesar disso, como foi visto no primeiro capítulo, desde os anos 70, o Japão vem desenvolvendo um cenário musical popular que gerou diversas estrelas, principalmente femininas. Para entendermos o contexto que proporcionou o surgimento de figuras como Hamasaki Ayumi, é preciso voltar no tempo, mais precisamente aos anos 70, período em que a principal estrela japonesa atendia pelo nome de Yamaguchi Momoe, a primeira grande idol do país. 3.1Background nipônico Figura 41 – Yamaguchi Momoe Fonte: http://img.blog.163.com/photo/L43JFwfnIVO_O2HqE_4e1g==/3730669341323680233.jpg O início de sua carreira se deu como outras idols da época, surgindo em um programa de calouros, em 1972, aos 13 anos de idade45. Apesar de ficar em segundo lugar, logo foi contratada por uma agência de idols e lançou sua carreira na música e na dramaturgia, estrelando diversos filmes e novelas, como a série Akai, que tratava de problemas familiares e que tinha como música-tema de Momoe nos episódios em que estrelava, o que lhe deu visibilidade, se tornando conhecida pelo país inteiro e até mesmo no exterior, onde o seriado foi exibido na China. Seus primeiros trabalhos de sucesso vieram aos 15 anos, como Aoi 46 Kajitsu (Fruta verde) e Hito Natsu no Keiken47 (Uma experiência de verão). Sua imagem era forte e conflituosa. Philip Brasor, do Japan Times, a classificou como uma antítese da idol virginal48, pois inicialmente, suas músicas, que eram escritas por um time de produção de sua agência, o letrista Kazuya Senge e o compositor Shunichi Tokura, apresentavam letras sugestivas, com eufemismos para sexo adolescente e perda da virgindade, algo nada comum para uma cantora com tão pouca idade. Em Aoi Kajitsu, a primeira frase diz: “Você pode fazer o que quiser comigo / Você pode dizer às pessoas que não sou boa”, enquanto Hito Natsu no Keiken, sugestiva já a partir do título, apresentava os seguintes versos “Eu vou te dar a coisa mais importante que uma garota tem”, além de encerrar com: “Todos experimentam pelo menos uma vez / A doce armadilha da tentação”. Ao longo da carreira, passou a ter maior controle de sua carreira, escolhendo os compositores de suas músicas e, ao mesmo tempo, construindo uma imagem conflituosa, forte e provocadora, refletida até mesmo em sua voz, que, ao longo da adolescência, foi se tornando grave e intensa. Essa estética pode ser percebidaem 45 Disponível em http://www.lemoda.net/momoe/about/. Acesso em 31 ago. 2013. 46 Tradução para o inglês disponível emhttp://www.kiwimusume.com/lyrics/yamaguchimomoe/aoikajitsu.html. Acesso em 31 ago. 2013. 47 Tradução para o inglês disponível em http://painters-colic.com/trans/lyrics/keiken.html. Acesso em 31 ago. 2013. 48 “Presented by her handlers as the antithesis of the virginal idol stereotype, Momoe projected a darker, damaged image, her songs implying a girl who possessed if not actual sexual experience then at least knowledge of what men were capable of. Raised in a broken home, Yamaguchi reportedly resented playing this role, and once she married Miura she completely turned her back on it”. http://www.japantimes.co.jp/news/2011/12/11/national/mr-momoe-yamaguchi-finally-decides-tospeak/#.UiMM_Db_mSp. Acesso em 1 set. 2013. músicas como Playback Part 249, em que o eu-lírico da canção desafia seu amor e mostrando controle da situação (“Vá para o inferno, vá embora se você quiser” / Foi o que você disse ontem à noite / Você tenta soar rude / Mas você não suporta estar sozinho) ou ainda Cosmos50, em que é retratada a partida de uma filha de casa para se casar, com o ponto de vista do sofrimento da mãe ao vê-la ir embora. Apesar disso, em 1980, Yamaguchi decide se retirar da cena musical para se casar com seu companheiro de atuação em diversos filmes, Tomokazu Miura, aos 21 anos, um destino comum entre as idols da época. Seu impacto cultural, entretanto, foi enorme. Mesmo após três décadas de sua saída do cenário musical, ela ainda desperta interesse e rumores sobre seu possível retorno aos palcos é notícia em tabloides até hoje. Schilling (1997), em seu livro The Encyclopedia of Japanese Pop Culture, exemplifica a dimensão do sucesso de Momoe. In the early years after her retirement at the age of twenty, few details of her daily existence as wife of actor Tomokazu Miura were too mundane for the mags' Momoe watchers to miss. Her son's postpartum homecoming, nursery school graduation ceremony, and first day at elementary school rated cover headlines- simply because Mom happened to be in the picture. (SCHILLING, 1997, p. 295-300). Momoe, então, se torna a primeira idol feminina a ganhar status de lenda no mercado musical japonês, quebrando paradigmas para uma carreira de idol, com letras controversas, imagem forte e controle criativo na carreira, todas atribuições até então inconcebíveis para os padrões de uma idol. Entretanto, a vida pessoal da artista não acompanhava essa transgressão em palco, gerando uma ruptura entre a persona pública de Momoe e suas decisões enquanto mulher, esposa e mãe. Sua contribuição pode ser vista como uma abertura de precedentes para que outras idols do pop japonês promovessem outros rompimentos. Na década seguinte, isso pôde ser visto nas figuras de Matsuda Seiko e Nakamori Akina. Postas como rivais pela mídia, cada uma trilhou por um caminho 49 Tradução para o inglês disponível em http://www.lemoda.net/momoe/playback-part-two/. Acesso em 1 set. 2013. 50 Tradução em inglês emhttp://www.kiwi-musume.com/lyrics/yamaguchimomoe/cosmos.html. Acesso em 1 set. 2013. diferente, performatizando estéticas que raramente convergiam. Enquanto Seiko utilizava uma imagem infantilizada, Akina encarnava a mulher fatal, sem controle e “trágica”, cantando músicas sobre revolta (a exemplo de TATTOO51), sexualidade (Shoujo A52) e corações partidos. Ambas conseguiram conquistar ao longo do tempo, assim como Yamaguchi, liberdade artística e controle criativo sobre o que faziam. Um dos “estigmas” que quebraram foi adurabilidade de suas carreiras, que continua até hoje. Apesar de não venderem discos como antes, seus shows continuam lotando casas até hoje (Seiko realiza espetáculos anualmente, sendo convidada ano passado a participar novamente do Kouhaku Utagassen ao vivo direto de seu show de virada de ano), quase 30 anos após suas estreias. Seiko é chamada pela mídia japonesa de “idol eterna” devido à sua longevidade e relevância.Suas vidas pessoas foram conturbadas, envolvendo casamentos, separações e até mesmo tentativas de suicídio, mas nenhum desses fatos interviu de maneira definitiva na continuidade de suas carreiras, diferente de Momoe. Figura 42 –Nakamori Akina e Matsuda Seiko, direcionamentos visuais opostos Fontes: http://i-love-porsche.blog.so-net.ne.jp/_images/blog/_b27/i-loveporsche/CD_CRUISE_E382B8E383A3E382B1E8A1A8.jpg, http://livedoor.blogimg.jp/albumartwork/imgs/5/2/52760033.jpg, http://blog-imgs-24origin.fc2.com/r/e/r/reryo/fushigi.jpg e http://www.generasia.com/w/images/6/6f/Matsudaseiko_1983.jpg 51 Tradução em http://www.jpopasia.com/lyrics/20249/. Acesso em 1 set. 2013. 52 Tradução em http://www.jpopasia.com/lyrics/20249/. Acesso em 1 set. 2013. Apesar do controle criativo, ambas fazem trabalhos que raramente fogem do molde inicial idealizado pelas equipes que as produziram e as levaram ao estrelato. Enquanto Akina seguia uma vertente semelhante à de Momoe, com voz grave e imagem de mulher forte e independente, Seiko institucionalizou o que viria a ser o molde de um sem número de idols que viriam posteriormente, como as meninas do AKB48, que fazem sucesso enorme no Japão neste momento. A estética kawaii, “fofa” e infantilizada, se refletia em seu figurino, em suas músicas e em sua performance no palco, mas a maior contribuição foi a voz. Seiko pode não ter sido a primeira a utilizá-la, mas foi a primeira grande idol a ter uma voz suave, doce e bastante aguda, principalmente ao se comparar à Momoe e Akina. Aoyagi apud Craig (2000), explica que as raízes históricas e culturais do termo e da estética kawaii. The "cute style," as it is called, encompasses pretty looks, heartwarming verbal expressions, flimsy handwriting, and singing, dancing, acting, and speaking in a sweet, meek, and "adorable" way. The cute style is by no means a recent Japanese invention, but has clear historical roots. The Japanese word for cute, kawaii, can be traced back to its classical form, kawayushior kawayurashi, which appears in poetry and stories from the premodern era. The "cuteness" observed today in pop idols closely resembles otome (sweet little girl) or yamatonadeshiko (girls of Japan) images found in books, magazines, advertising, and motion pictures from the late nineteenth and early twentieth centuries. (AOYAGIapud CRAIG, 2000, p.318). O estilo de Seiko atende a fetiches tipicamente japoneses. A aparência mais infantilizada e ingênua de mulheres são imagens frequentes do imaginário erótico do japonês, retratado nos quadrinhos e na indústria musical, algo que já existia na época de Momoe. Entretanto, o acréscimo de Seiko a essa fórmula foi uma espécie de hipérbole a essa fetichização. . Figura 43 – Seiko incorporando o estilo kawaii Fonte: frame da performance de Taisetsu na Anata, do DVD Seiko Live '97 My Story. No final da década de 80, Matsutoya Yumi despontou como uma estrela de primeira grandeza. Curiosamente, sua carreira começou quase na mesma época que Yamaguchi, em 1973, com o disco Hikoukigumo. Yuming, como é chamada por seus fãs, nunca foi administrada por agências nem se alinhava à lógica de produção das idols, compondo suas próprias músicas e lançando dois álbuns a cada ano. Entretanto, com o lançamento de Before The Diamond Dust Fades..., em 1988, a consolidou como ídolo, seguido de uma série de álbuns bem sucedidos, a exemplo deThe Gates of Heaven, de 1990, o primeiro álbum da história do Japão a vender mais de 2 milhões de cópias, e THE DANCING SUN, de 1994, seu segundo disco a romper a marca dos dois milhões. Com isso, ela se tornou a segunda cantora solo que mais vendeu na história do Japão. Figura 44 – Matsutoya Yumi Fonte: http://img5.blogs.yahoo.co.jp/ybi/1/b6/4b/sw21akira/folder/1210971/img_1210971_48863075_0 Sua contribuição para a figura da mulher bem-sucedida no mercado musical japonês foi ter conseguido seu ápice musical com quase 40 anos de idade, mesmo sendo considerada “feia”, fora dos padrões estéticos e com idade inadequada. Por fim, Matsutoya, acabousendo admiradapor sua imagem, sonoridade autoproduzida, shows com muitos recursos tecnológicos e cênicos e por ser considerada muito talentosa, fatores fora do comum em comparação às idols, que normalmente atingem seu ápice antes de completarem 20 anos. Curiosamente, Yumi compôs várias músicas para Matsuda Seiko, nos anos 80, sob o pseudônimo de Kureta Karuho, e muitos deles se tornaram hits. Assim como Seiko e Akina, Yuming continua lançando álbuns e vendendo relativamente muito mais que as duas hoje, um fato que merece atenção, pois apesar de sua carreira ser mais extensa que ambas, ela sempre desfrutou de popularidade antes de se tornar gigante nos anos 90. O declínio de vendas e de popularidade de Yuming foi contemporâneo à ascensão de Amuro Namie, comentado anteriormente durante análise de matrizes estrangeiras. Amuro foi a primeira idol japonesa com uma estética abertamente ocidentalizada, inclusive com a erotização, pois as roupas, a coreografiae até mesmo o jeito de Amuro utilizar sua voz era considerado sexy para os padrões japoneses. Figura 45 – Figurino de Amuro Namie no início da carreira Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=sMBcQhEjSm4 O estrangeirismo abriu caminho para o surgimento de Utada e Hamasaki.Utada seguiu os passos de Amuro, ao se apresentar como uma releitura nipônica do cenário ocidental, no seu caso R&B contemporâneo. Mais tarde, ao romper com esse molde, seu foco passou a ser a música, adotando uma imagem mais comum, além de nunca fazer ensaios fotográficos que não tenham relação direta com seu trabalho musical. Mesmo com uma série de videoclipes (principalmente os dirigidos por Kiriya Kazuaki) com estética mais refinada, não é difícil encontrar alguns em que a própria não aparece (Boku wa Kuma, Kiss & Cry, Beautiful World, Sakuranagashi) e outros em que ela têm uma imagem mais “comum”, até mesmo retratando situações rotineiras, como Hikari, em que a câmera estática retrata Utada lavando pratos na cozinha de sua casa. Figura 46 – Visual casual de Utada Hikaru em seus clipes Fonte: imagens dos videoclipes Hikari, HEART STATION, Prisoner Of Love e Goodbye Happiness É válido ressaltar que, no fim da década de 2000 e início da década de 2010, Amuro Namie está tendo uma nova onda de popularidade, causando assim outra quebra de paradigmas, nunca vista antes no país: a reascensão de alguém que já foi a maior estrela do país com um impacto tão grande quanto o que teve na primeira vez em que fez sucesso. Nesse “comeback”, Amuro continua com uma imagem ocidentalizada, mas traz uma sonoridade mais eletrônica (dialogando com o K-Pop, inclusive), agora acrescida da imagem de independência feminina. Parte desta imagem vem da própria experiência de vida pessoal (ela é divorciada e tem a guarda do filho, onde mães que cuidam dos filhos e trabalham ainda é um modelo transgressor para os padrões japoneses) e do modelo oferecido pelas trajetórias de Utada Hikaru e Hamasaki Ayumi, esta última na qual iremos nos aprofundar a partir de agora. 3.2A identidade e o feminino na carreira de Hamasaki Ayumi Entrando na análise dos produtos audiovisuais de Ayumi, nosso objetivo é perceber como algumas de suas produções representam esteticamente conceitos que possam estar diretamente ligados à imagem da mulher e, sobretudo, da mulher no mercado musical nipônico. Para tanto, dividimos e selecionamos alguns desses produtos em três eixos: controle, a mulher a sexualidade e identidade. Com isso, procuramos entender como o contexto histórico desse mercado musical afetou diretamente a produção e os conceitos trabalhados por Ayumi e sua equipe em seus videoclipes, performances, shows, músicas e ensaios fotográficos, com os quais fazemos uma análise audiovisual. 3.2.1Controle Figura 47 – Capa do disco Duty Fonte: http://jpopcdcovers.files.wordpress.com/2009/02/duty.jpg Em 2000, dois anos e meio após sua estreia no mercado nipônico, Hamasaki lançaria Duty, seu terceiro álbum. Em sua capa, ela está vestida com fantasia felina, inclusive com acessórios como orelhas, cauda e garras. Lateralmente, se esgueira para fora de uma jaula, que tem uma de suas barras de ferro retorcidas (provavelmente pela personagem da capa), saindo de um ambiente luxuoso e confortável. A vida comercial da maioria das idols não é longa. Apesar de existirem várias exceções, inclusive às citadas anteriormente, a média de duração do pico de vendas e popularidade gira em torno de três anos. Observando seu suposto prazo de validade se esgotar, Ayumi, que desde o início ganhara destaque por escrever todas as letras de suas músicas sozinha, lança este álbum, que parece girar em torno de sua preocupação em não desaparecer após sua deadline de idol chegar. Alguns trechos de canções do disco podem fazer com que essa teoria proceda. vogue53(voga, ou popularidade, em tradução livre), uma das canções promocionais usada como single, tem em seu primeiro minuto os versos: “Floresça orgulhosamente / Pois após sua linda flor desabrochar / Suas pétalas irão cair em silêncio”. Após atingir o ápice de popularidade, as idolsnormalmente são substituídas por novas, já que esta acaba se tornando tão interessante quanto uma flor murcha. Em SCAR54 (cicatriz), ela possivelmente direciona uma mensagem a seus ouvintes. “A razão por eu não ter podido ao menos dizer adeus propriamente / Foi porque eu senti como se fossemos nos ver novamente / Ou... / Hoje, em algum lugar, a história / De duas pessoas que se conhecem / Entendem um ao outro / E então crescem separadas / Se repete”. Já a música-títuloDuty (dever), que a própria já declarou falar sobre seus pensamentos em relação à sua carreira, apresenta: “É verdade que eu vi o fim de uma era / Com meus próprios olhos / Mas eu não queria saber / Que a próxima era a minha vez”. Podemos perceber através desses trechos que Hamasaki parecia ter consciência de que sua carreira poderia estar próxima de acabar. Portanto, podemos fazer uma leitura da capa de Duty como alguém que rompe as grades de sua jaula (novamente, uma jaula confortável e conveniente, mas uma jaula) e que sai dela para lutar (garras e aparência de felino). 53 Tradução para o inglês em: http://www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/duty/vogue.html. Acesso em 1 set. 2013. 54 Tradução para o inglês em: http://www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/duty/scar.html. Acesso em 1 set. 2013. Um dos singles de I am..., álbum subsequente,é evolution, lançado às vésperas do século XXI. Seu videoclipe divulga Hamasaki como alguém que possui controle sobre sua própria imagem. Ambientado em um cenário de gravação de videoclipe, sua proposta é metalinguística. Figura 48 – Making-of de uma gravação de videoclipe é o tema de evolution Fonte: frames de evolution Ayumi aparece entrando no estúdio de gravação em umalimusine, enquanto cenas intercaladas a mostram já em cena gravando o clipe e sendo orientada pelo diretor do clipe. Em uma tela, sua performance no clipe gravado é avaliada por si mesma, sentada em um sofá, cercada de assistentes. Enquanto o vídeo progride, são intercaladas cenas de Ayumi em palco sendo maquiada e orientada pelos profissionais, seguida de mais cenas de gravação, com uma banda que a acompanha. Figura 49 – “Falha” do holograma Fonte: frames de evolution Durante o clipe, percebemos que a cantora que está sendo gravada não passa de um holograma, enquanto a Hamasaki real está visualizando as cenas através de uma tela, como se estivesse supervisionando e avaliando o desempenho da projeção de sua imagem, tendo total controle tanto sobre ela quanto sobre sua equipe de produção. FIGURA 50 – Chave seletora Fonte: frame de STEP you Este tema também foi abordado de outra maneira através do clipe de STEP you, de 2005. Nele, vemos inicialmente um homem com máscara e indumentária de metal se deparar com uma espécie de “seletor”, mostrando uma chave giratória de quatro posições, com uma portinhola, a qual ele abre. Dentro do compartimento, gradualmente são apresentadas quatro personas, interpretadas por Ayumi. Figura 51 – As quatro personas, com comportamentos distintos Fonte: frames de STEP you Ao longo do clipe, suas personalidades são mais explicitadas. Enquanto a de vermelho é sexy, a de branco é inocente e ingênua. A de preto é segura de si, confiante, enquanto a de verde emula as “divas” hollywoodianas. Em certo momento, outra Ayumi, que não é nenhuma das quatro, é mostrada deitada em cima de uma versão aumentada da chave seletora, dando a entender que as quatro imagens estão sob o seu domínio, podendo exercer qualquer um destes papeis. Figura 51 – Ayumi “real” sobre chave seletora: domínio Fonte: frame de STEP you 3.2.2A mulher e a sexualidade É importante destacar que uma artista com a dimensão e popularidade de Ayumi explicitar mensagens de empoderamento feminino pode repercutir e mudar comportamentos, principalmente em uma sociedade em que a liberdade sentimental e sexual feminina ainda é um tabu. Hall apud Hennigen (2002) alerta que “o nível macro não pode eclipsar o fato de que esta revolução cultural tem uma incidência importantíssima na vida cotidiana daspessoas comuns” e Hennigen acrescenta que “as chamadas indústrias culturais são, ao mesmo tempo, infraestrutura material e meio de circulação de ideias e imagens” (HENNIGEN, 2002, p. 2). Citada anteriormente, a performance de my name’s WOMEN (“meu nome é mulheres”)mostra uma apropriação da estética do sadomasoquismo, prática sexual que consiste na obtenção de prazer através da dor e da submissão. Entretanto, além do aspecto sexual (já que ser dona de sua própria sexualidade também é uma forma de empoderamento), o ao vivo apresenta um contexto um pouco mais amplo de mensagem pró-feminino. Figura 52 – Dançarinas com chicotes (acima) vs. dançarinas sem chicotes (abaixo) Fonte: imagens da performance de my name’s WOMEN, do DVD ayumi hamasaki ASIA TOUR 2008 ~10th Anniversary~ Live in TAIPEI Nos quadros superiores, observamos Hamasaki acompanhada de duas dançarinas com perucas loiras, as três portando chicotes, enquanto na imagem abaixo, entram em cena mais duas dançarinas, morenas, sem chicotes. Mais à frente, Ayumi protagoniza uma cena com as dançarinas que não possuem chicotes, demonstrando poder e domínio. Em seguida, as duas se munem com chicotes, protagonizando, agora, as cinco, uma coreografia com eles no palco principal. É como se, ao observarem o exemplo de Hamasaki e suas dançarinas, elas fossem seduzidas pela possibilidade de também serem mais fortes.Todas as dançarinas possuem microfones e cantam os backvocals da canção, o que torna a relação entre elas e a cantora horizontalizada, dando voz às dançarinas/personas incorporadas. Figura 53 – Dançarinasempoderadas por Hamasaki Fonte: imagens da performance de my name’s WOMEN, do DVD ayumi hamasaki ASIA TOUR 2008 ~10th Anniversary~ Live in TAIPEI A letra da música55, como o próprio título sugere, lida diretamente com a temática. Alguns trechos traduzidos: “Nós não choramos tão facilmente / Nós não ficamos nos lamentando o dia inteiro / Não somos mais apenas bonecas bem vestidas”; “Nós não existimos apenas para o seu prazer / Não esqueça disso”. Com o mesmo direcionamento, Sexy little things, do álbum Rock’n’Roll Circus, de 2010, mostra o que certos homens pensam das mulheres e o que elas pensam em relação a isso. Trechos da música: “Mulheres nunca sabem nada / Elas apenas acenam com a cabeça enquanto seus olhos umedecem / (Se você pensa isso) Este é um grande erro / Porque eu tenho você na minha mão”. Nessa música em específico, Ayumi utiliza um tom de voz exageradamente infantilizado, possivelmente uma referência ao estilo de cantar das idolscomestilo kawaii(fofo),como Matsuda Seiko. Neste caso, o uso voz infantilizada serve como uma forma irônica de ridicularizar o pensamento de homens que acreditam que mulheres são ingênuas como uma criança. Aapresentação ao vivo, durante a turnê realizada para a divulgação do álbum, endossa essa proposta. Ayumi aparece como uma prostituta, em uma fantasia de coelho, usando um vestido curto, fazendo uma referências às “coelhinhas” da Playboy. Sua linguagem corporal e expressões faciais são dóceis e apelam para a estética kawaii, apesar de a performanceser ambientada em um cabaré, aliando ao mesmo tempo estéticas oriental e ocidental de sexualidade. 55 Tradução disponível emhttp://misachanjpop.wordpress.com/2012/03/10/my-names-women-ayumihamasaki/. Acesso em 1 set. 2013. Figura 54 – Dicotomia entre kawaii e sexual na performance de Sexy little things Fonte: imagens da performance de my name’s WOMEN, do DVDayumi hamasaki Rock 'n' Roll Circus Tour FINAL ~7days Special~ Ainda na relação entre o kawaii e o sexual, pode-se citar o videoclipe de Sparkle, do álbum NEXT LEVEL, de 2009. Nele, vemos Ayumi incorporando uma idol dos anos 80. O cenário, o figurino e o gestual tem estética idêntica às apresentações ao vivo na televisão dos anos 80. Figura 55 – Idols sendo representadas no videoclipe de Sparkle Fonte: frames do clipe de Sparklee apresentações da TV japonesa dos anos 80 encontradas no YouTube Até mesmo o formato da tela do clipe nessa parte dá indícios que é uma referência aos programas, pois está com barras laterais, com o formato de imagem 4:3, utilizado na transmissão analógica. Logo em seguida, da idolinocente e delicada, aparecem cenas com a mesma personagem, só que altamente sexualizada até mesmo para os padrões ocidentais, utilizandofigurinos que revelam todo o seu corpo. Figura 58: Frames de Sparkle com a personagem usando roupas de látex Fonte: frames do clipe de Sparkle O que podemos entender do clipe é que há uma dicotomia entre as duas imagens, pois ambas expressam fetiches distintos. Podemos interpretar ao fim do clipe que as cenas com roupas de látex representam a sexualidade reprimida da idol kawaii, um molde que a delimita. Para entendermos melhor, pode-se recorrer à letra da música56, que fala sobre seguir seus próprios instintos e se libertar, em uma conotação sexual, em trechos como “Seja mais ousado / Apenas seja sem-vergonha / Sem mais conversas sobre se arrepender / Depois do que aconteceu” e “Nada irá começar se você ficar aí olhando / Nada será seu / Até quando você vai permanecer aí / Chupando o dedo sem ação? / Não, não, não”. Por fim, temos Real me57, do álbum de 2003,RAINBOW, que pode resumir toda a imagem retratada por Ayumi em relação a este tópico. Ex.: “Uma mulher pode ser perigosa / Uma mulher pode ser generosa / Para sobreviver / Eu não posso ser uma boa garota / O tempo inteiro / Uma mulher pode se divertir / Uma mulher pode ser que nem uma freira / Para sobreviver”. 3.2.3Identidade Para perdurar na indústria musical, a construção de uma identidade é essencial para a sobrevivência de um fenômeno midiático. É necessário se estabelecer enquanto figura única, que não possa ser confundida ou substituída como uma peça sobressalente. Esse tema já foi abordado algumas vezes durante a carreira de Ayumi e se refere 56 Tradução disponível em http://misachanjpop.wordpress.com/2011/06/13/sparkle-ayumi-hamasaki/. Acesso em 1 set. 2013. 57 Tradução disponível em www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/rainbow/realme.html. Acesso em 1 set. 2013. justamente à resiliência de sua identidade e o medo de que ela seja absorvida, descaracterizada e descartada. A figura da boneca, manipulável, produzida em escala massiva e descartável, sendo facilmente substituída, é utilizada por Ayumi tanto visualmente, em seus videoclipes, como discursivamente nas letras de música, como uma analogia para o uso da figura da mulher pela indústria. Em Dolls58, do álbum RAINBOW, de 2002, o título dá uma pista sobre trechos da letra, que podem falar sobre essa efemeridade da figura feminina. Ex.: “Se o tempo é apenas um sonho momentâneo / Então devemos ser como flores / Mesmo que nossas pétalas estejam destinadas a cair / A nossa vida curta nos faz sermos todas mais amadas” e “É essa ausência de forma que torna tão precioso? / É essa beleza que chega ao ponto de ser cruel?”. 58 Tradução disponível em http://www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/rainbow/dolls.html. Acesso em 2 set. 2013. Figura 57 – alterna: personalidade eliminada pela indústria Fonte: imagens do clipe de alterna Em alterna, do álbum (miss)understood, de 2006, Ayumi fala abertamente sobre essa preocupação. Contando a história de uma garota rural que recebe o convite para se tornar uma estrela na cidade grande, a protagonista é moldada por seus empresários (que são representados por palhaços com estética macabra) e logo se torna uma “máquina cantante”, perdendo sua identidade e sendo replicada, para, no fim, ser descartada em uma lata de lixo. A mensagem é bem clara: na indústria cultural japonesa, os idols não têm muito tempo de vida. Os sistemas de “graduação” de grupos como AKB48 e Morning Musume podem servir de comparação com o roteiro do videoclipe. Contratadas na adolescência, as meninas, ao atingirem determinada idade, “se formam” do grupo, podendo seguir carreira solo (onde a maioria delas não consegue ter a mesma popularidade de antes) ou simplesmente encerram suas atividades. Já Like a doll59, de Love Songs (2010), a mensagem é não se tornar alguém alheio a tudo pela conveniência. “Se você jogar fora seu desejo de não desistir / E jogar fora o desejo de acreditar / E encobrir todos os seus sentimentos / Você não irá se machucar / Mas também não será feliz / Não viva como se você estivesse morta / Como uma boneca”. Por fim, Marionette60, de GUILTY (2008), também é uma recusa a se esconder atrás de imagens ou fingir ser alguém que não é você, exemplificado em: “Nós não nascemos / Para viver desse jeito / Fingindo aparências / Para esconder nossos rostos mortos”. Em outro momento, Ayumi convida a todos se despirem de seus fingimentos e viverem como são, sem medo. “Agora, não faça isso por outro alguém / Use suas próprias mãos / Se levante sem medo / E arranque sua máscara fora”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dentro do cenário pop japonês, procurei entender a lógica da cultura idol, estrutura muito peculiar da música naquele país. Concentrando-se na figura feminina, conseguimos estabelecer uma relação entre a idol e as gueixas, profissão de mulheres surgida na era feudal japonesa que tinham como principal função entreter os homens com seus talentos. 59 Tradução disponível em http://www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/lovesongs/likeadoll.html. Acesso em 2 set. 2013. 60 Tradução disponível em http://www.kiwi-musume.com/lyrics/ayu/guilty/marionette.html. Acesso em 2 set. 2013. No começo, se tornar gueixa parecia ser única saída para que as mulheres comuns, que estariam fadadas a se casarem e se submeterem às vontades de seus maridos. Elas eram mulheres independentes, de certa maneira, pois podiam viver nas okiyas até morrerem, sem precisar se casar. Acredito que, utilizando a mesma lógica, podemos afirmar que as idols funcionavam e ainda podem funcionar mais ou menos da mesma forma para a população feminina japonesa. Até hoje, é esperado pela sociedade que as mulheres, ao chegarem a certa idade, se casem e constituam família, mesmo que trabalhem por certo tempo. Talvez se tornar uma idol seja a solução para fugir desse destino. Resgatando Aoyagi, que fala da “beleza mediana” das idols, eu percebi que o propósito da construção delas é dar a sensação que qualquer mulher poderia vir a se tornar uma estrela, bastando ter força de vontade. Apesar de ser um sucesso passageiro, a ideia de viver uma vida de celebridade parece tentadora. Entretanto, tanto a gueixa quanto a idolsão imagens limitadoras, pois, apesar de existirem “tipos” distintos, muitas se apegaram ao molde, tendo liberdade criativa, mas não da projeção de sua imagem. Neste contexto, encontramos Ayumi, que construiu sua carreira em consequência dos rompimentos de outras estrelas antecessoras a ela. Dentro do cenário pop japonês, Hamasaki Ayumi pode vir a se tornar uma representação o que pode se considerar a figura da mulher japonesa do século XXI, que tem controle de sua própria imagem, podendo conciliar vida pessoal e carreira, além de poder escolher que rumos ela dará à sua vida. Ao se mostrar utilizando diversas imagens, mas não se apegando a nenhuma (como se materializa em STEP you, por exemplo), propondo uma quebra de estereótipos, Ayumi se apresenta como uma anti-idol. Assim como as outras artistas que vieram antes de Hamasaki, ela também quebrou certos padrões estabelecidos, mas também percebo que ela perverte estéticas de uma idol, no sentido de se apropriar delas e utilizá-las com a consciência de que aquilo não a define, como o comportamento kawaii em Sexy little things. Embora não seja a única a negar essa submissão a um molde (Utada também não se encaixa em um e propõe um visual comum), o que Ayumi propõe, e até então se torna única por isso, é a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, muitas e uma só. Através de seus clipes, músicas, ensaios fotográficos e apresentações ao vivo, ela tenta construir a ideia de que é possível criar uma identidade plural e multifacetada, o que promove um rompimento definitivo com qualquer tipo de “encaixotamento” proposto por modelos midiáticos e sociais. Acredito que o trabalho tenha esclarecido e revelado algumas pistas de que ela possui um nível de autoconsciência grande enquanto artista, algo que não se vê todos os dias no mercado musical. Sua contribuição para a música japonesa entra para a história, não só em números, mas também em impacto cultural, pois mesmo realizando feitos similares por suas antecessoras, o modo como ela os executa acrescenta uma nova dinâmica à figura feminina no mercado nipônico. Ela acaba se tornando um referencial para outras artistas femininas que surgiram posteriormente, sendo uma das artistas mais influentes do pop japonês, pavimentando o caminho para que novas artistas proponham mais rupturas e reconfigurem o sistema. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SPINK, Mary Jane apud KOPP, Juliana Borges. Análise da representação feminina em Sex and the City. JANOTTI,Jeder Silveira. Por uma análise midiática da música popular massiva: uma proposição metodológica para a compreensão do entorno comunicacional, das condições de produção e reconhecimento dos gêneros musicais.E-Compós (Brasília), vol. 1, 2006. SATO, Cristiane A.. JAPOP: O Poder da Cultura Pop Japonesa. 1ª ed. São Paulo: NSP-HAKKOSHA, 2007. NAGADO, A.; MATSUDA, M.; GOES, Rodrigo de. Cultura Pop Japonesa: Histórias e curiosidades. 1ª ed. Independente, 2011. AOYAGI, Hiroshi apud CRAIG, Timothy J..Pop Idols and the Asian Identity. In Japan Pop! – Inside the World of Japanese Popular Culture. Nova York: M.E. 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