Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. Leite e cols Comunicação Breve Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica Taquicardia Ventricular Polimórfica Catecolaminérgica. Um Importante Diagnóstico em Crianças com Síncope e Coração Estruturalmente Normal Luiz Roberto Leite, Kleber R. Ponzi Pereira, Sílvio R. B. Alessi, Angelo A. V. de Paola São Paulo, SP A principal causa de síncope em crianças é a hiperatividade vagal e, nessa população, a taquicardia ventricular é raramente observada. A taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica é uma rara entidade que pode acometer crianças sem cardiopatia estrutural e intervalo QTc normal, podendo causar síncope e morte súbita. Neste artigo, relatamos as características clínicas, o tratamento e o seguimento clínico de três crianças com síncope associada às atividades físicas ou estresse emocional, provocada por taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica. Os sintomas foram controlados com betabloqueadores, porém, um paciente teve morte súbita após quatro anos de seguimento clínico. Apesar de rara, a taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica é uma importante causa de síncope e morte súbita em crianças sem cardiopatia estrutural e intervalo QTc normal. Entre janeiro/89 e julho/99, foram acompanhadas em nosso serviço três crianças com história de síncopes de repetição e taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica. Como avaliação diagnóstica, os seguintes aspectos clínicos e laboratoriais foram avaliados: forma de apresentação clínica, características eletrocardiográficas, monitorização eletrocardiográfica ambulatorial (Holter), teste ergométrico (protocolo de Bruce), resposta à administração endovenosa de isoproterenol, teste de inclinação, ecocardiograma, cineangioventriculografia e estudo eletrofisiológico invasivo (tab. I). Os pacientes foram tratados farmacologicamente e a avaliação da resposta terapêutica durante o seguimento clínico foi realizada através de Holter, teste ergométrico e infusão de isoproterenol. A presença de síncope em crianças geralmente é secundária a alterações vasovagais 1,2. Nessa população, a taquicardia ventricular raramente é observada, e sua ocorrência está mais freqüentemente associada à cardiopatia congênita. Apesar da benignidade das taquiarritmias ventriculares na ausência de cardiopatia estrutural, algumas entidades apresentam gravidade extrema e devem ser claramente reconhecidas. A taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica é uma entidade rara que pode acometer crianças com coração estruturalmente normal, sem alteração do intervalo QT, podendo resultar em síncope e morte súbita 3-6. O objetivo deste artigo é descrever as características clínicas, o tratamento e o seguimento clínico de crianças com síncope e taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica. Caso 1 - Paciente do sexo feminino de 10 anos, relatou que há três anos apresentou o primeiro episódio de síncope durante forte estresse emocional, seguindo-se vários episódios, sempre relacionados à atividades física e emocional, sendo considerada epiléptica e tratada com fenobarbital, foi encaminhada ao nosso serviço após ter sido recuperada de episódio de morte súbita. Durante a internação hospitalar para avaliação diagnóstica, o Holter de 24h demonstrou seqüência de extra-sístoles ventriculares isoladas seguidas de taquicardia ventricular polimórfica, que se associou à síncope e crise convulsiva, e teve reversão espontânea (fig. 1). O teste ergométrico (protocolo de Bruce) e a administração endovenosa de doses empíricas crescentes de isoproterenol, foram capazes de induzir taquicardia ventricular polimórfica sustentada de forma reprodutiva. Com o diagnóstico de taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica, foi iniciada terapêutica com propranolol, que inicialmente se mostrou eficaz em abolir os episódios de síncope, bem como os períodos de taquicardia ventricular ao Holter, teste ergométrico e infusão de isoproterenol. Embora tenha se mantido assintomática, após um ano Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina Correspondência: Angelo A. V. de Paola - Setor de Eletrofisiologia Clínica - Rua Napoleão de Barros, 593 - 04024-002 – São Paulo, SP – E-mail: [email protected] Recebido para publicação em 29/9/99 Aceito em 16/2/2000 Relato dos casos Arq Bras Cardiol, volume 76 (nº 1), 63-68, 2001 63 Leite e cols Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. Tabela I - Características clínico-laboratoriais e seguimento clínico dos pacientes com taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica Caso 1 Idade 10 Sexo F FC basal 54 QTc 380 Onda U Presente ECO Normal Iso/TE TV poli EEF Não induziu Caso 2 8 F 68 400 Presente Normal TV poli Não realizado Caso 3 12 F 58 360 Presente Normal TV poli TV polimórfica Seguimento clínico Morte súbita 48 meses Assintomática 24 meses Assintomática 8 meses FC- freqüência cardíaca; ECO- ecocardiograma; Iso- infusão de isoproterenol; TE- teste ergométrico; TV poli- taquicardia ventricular polimórfica; EEF- estudo eletrofisiológico invasivo. Fig. 1 - Traçado de Holter, derivação V1 contínua, registrado durante episódio de síncope e crise convulsiva. Nota-se o início espontâneo de taquicardia ventricular polimórfica sustentada, precedido por extra-sístoles ventriculares isoladas e taquicardia ventricular não sustentada. 64 Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. de tratamento, voltou a apresentar taquicardia ventricular polimórfica não sustentada ao Holter. Após 48 meses de tratamento e oito meses de abandono do seguimento ambulatorial, a paciente apresentou morte súbita. Caso 2 - Paciente do sexo feminino de oito anos de idade, com sintomas freqüentes de pré-síncope e três episódios de síncope num período de 18 meses, todos relacionados a situações de atividade adrenérgica aumentada. Vinha sendo acompanhada em outro serviço, com diagnóstico de síncope vasovagal e não fazia uso de qualquer medicação. Durante a investigação diagnóstica, a administração de isoproterenol e o teste ergométrico induziram taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica de forma reprodutível, sempre que a freqüência cardíaca ultrapassava 120bpm, observando-se também curtos períodos de taquicardia supraventricular entre os episódios de taquicardia ventricular (fig. 2). Foi realizado o teste de inclinação que se mostrou negativo. A paciente foi tratada com sucesso com nadolol. Após 24 meses de tratamento, mantém-se assintomática, sem indução de taquicardia ventricular durante avaliação seqüencial com Holter, teste ergométrico e administração de isoproterenol. Leite e cols Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica cinco anos antes, de freqüência variável, sendo que nos últimos seis meses apresentou quatro episódios. O interrogatório complementar revelou morte súbita de um irmão aos seis anos de idade. A paciente vinha recebendo tratamento para epilepsia com carbamazepina, sem melhora do quadro. A investigação diagnóstica, com teste ergométrico, Holter e infusão de isoproterenol estabeleceu o diagnóstico de taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica. Durante estudo eletrofisiológico, foi induzida taquicardia ventricular polimórfica, de forma reprodutível (fig. 3), sendo necessária cardioversão elétrica dessincronizada, que reverteu a arritmia para taquicardia ventricular polimórfica com menor freqüência e melhor tolerada hemodinamicamente (fig. 4). O tratamento instituído com nadolol teve sucesso clínico e aboliu inicialmente os episódios taquicardia ventricular nos exames complementares. Com oito meses de seguimento a infusão de isoproterenol induziu taquicardia ventricular polimórfica associada à queixa de mal estar. Contudo, não se demonstrou taquicardia ventricular ao Holter ou teste ergométrico, e a criança permanece clinicamente assintomática. Discussão Caso 3 - Criança do sexo feminino de 12 anos de idade, referida ao nosso serviço por síncopes de repetição, iniciadas Apesar de rara, a taquicardia ventricular polimórfica Fig. 2 - Registro de taquicardia supraventricular entre os episódios de taquicardia ventricular polimórfica, induzidos durante a administração de isoproterenol. Derivações V1 a V6. 65 Leite e cols Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. Fig. 3 - Indução de taquicardia ventricular polimórfica, durante estudo eletrofisiológico, por estimulação ventricular programada (S1-S1=500ms, S1-S2=250ms), gerando instabilidade hemodinâmica. Derivações D1, D2, V1, V6 e VD. catecolaminérgica constitui uma grave causa de síncope em crianças sem cardiopatia estrutural e com intervalo QTc normal. Embora esta arritmia seja uma entidade nitidamente definida há mais de duas décadas 3, apenas 60 casos foram descritos na literatura médica. A síncope é a apresentação clínica mais comum e, quando associada à atividade física e ao estresse emocional, deve-se aventar a possibilidade de taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica como causa dos episódios em pacientes com intervalo QTc normal. Assim como nos casos que relatamos, o diagnóstico pode ser confundido com epilepsia. Isto se deve especialmente à ausência de cardiopatia estrutural e inexistência de alterações do intervalo QT. De fato, Leenhardt e cols., numa série de 21 casos, relataram que 50% dos pacientes haviam sido previamente tratados como portadores de epilepsia.6 Nesse estudo, os autores demonstraram um tempo médio de 24 meses desde o início dos sintomas até o estabelecimento do diagnóstico correto. Tal atraso também foi notado nos casos que descrevemos, em que o diagnóstico correto só foi estabelecido após um tempo médio de 38 meses a partir dos sintomas iniciais. Devido à natureza potencialmente fatal desta entidade, estas observações reforçam a importância do diagnóstico cuidadoso de casos de síncope asso66 ciada à atividade física e estresse emocional em crianças aparentemente saudáveis. Em nossa casuística, uma das três crianças apresentava antecedentes familiares para morte súbita. Embora as bases genéticas e moleculares da taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica não estejam definidas, a origem genética desta arritmia é confirmada pela história familiar de síncope e morte súbita em 40% dos casos 6. Dada à baixa penetrância da síndrome do QT longo 7, não se pode descartar que a taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica possa representar uma variante desta síndrome, sendo necessários estudos adicionais, utilizando novas tecnologias para confirmar ou afastar esta hipótese. Os achados eletrocardiográficos em ritmo sinusal são inespecíficos, chamando atenção apenas a presença freqüente de onda U e uma freqüência cardíaca baixa para a idade 8. Os mecanismos da taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica e seu substrato eletrofisiológico ainda não estão completamente identificados. Leenhardt e cols. 6, sugeriram que a atividade deflagrada poderia ser o provável mecanismo eletrofisiológico dessa arritmia. Posteriormente, Nakajima e cols. 9, utilizando registros de potencial de ação Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. Leite e cols Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica Fig. 4 - Mesma paciente da figura 3, que após desfibrilação elétrica (300 J), reverteu a arritmia para uma taquicardia ventricular polimórfica, melhor tolerada hemodinamicamente, devido à redução do ciclo de freqüência. monofásico antes e durante intervenção farmacológica (isoproterenol e betabloqueadores) em um paciente com taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica, relataram que a atividade deflagrada por pós-despolarização tardia é o provável mecanismo da taquicardia ventricular bidirecional 9. Chama atenção em nossa casuística o fato de ter sido induzido numa paciente taquicardia ventricular polimórfica de forma reprodutível, durante estimulação ventricular programada. Horowitz e cols. 10, demonstraram a indução de torsades de pointes por estimulação ventricular programada em 19 de 21 pacientes que haviam apresentado essa arritmia previamente 10. Neste estudo, foram incluídos somente pacientes com cardiopatia estrutural, sendo descartada alterações metabólicas ou outras causas reversíveis de taquicardia ventricular polimórfica. Embora nas taquicardias ventriculares polimórficas catecolaminérgicas, a indução de taquiarritmias por estimulação ventricular programada não seja freqüentemente relatado, tal comportamento é compatível com o mecanismo de atividade deflagrada proposto. O tratamento padrão da taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica é feito com betabloqueadores, não havendo diferenças entre os diversos tipos desse grupo. Entretanto, assim como outros autores, temos dado preferência ao nadolol, devido à meia-vida prolongada deste fármaco. A dose deve ser individual e gradualmente aumentada até se obter a resposta desejada, a fim de que se evite que a freqüência cardíaca máxima ultrapasse 130bpm 6. Ressalta-se, ainda, que o ajuste da dose de acordo com o peso é especialmente importante, já que em geral os pacientes se encontram em fase de crescimento. Outras drogas antiarrítmicas, como a amiodarona e drogas da classe I demonstraram ser ineficazes 6. A eficácia do tratamento pode ser avaliada subjetivamente pela ausência de recorrência dos sintomas e objetivamente pela ausência da arritmia ao Holter e teste ergométrico 4-6. A administração de isoproterenol também tem sido utilizada no nosso serviço para reproduzir laboratorialmente as condições de atividade adrenérgica. A despeito de uma resposta clínica adequada, é comum a ocorrência de batimentos ectópicos e curtos períodos de taquicardia ventricular não sustentada nos exames de seguimento. A ocorrência de morte súbita antes dos 20 anos de idade ocorre em até 50% dos casos não tratados com betabloqueadores 6. Os casos descritos de morte súbita em pacientes com betabloqueadores (4 em 38 casos) merecem análise especial. Em um caso, a paciente esqueceu de tomar o medicamento no dia do evento; em outro caso o óbito ocorreu na 67 Leite e cols Taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica vigência de miocardite e, em dois casos, as circunstâncias não puderam ser especificadas. No caso de morte súbita acompanhado em nosso serviço, os familiares referiram manter o uso de propranolol. Contudo, a informação de que a paciente usou a medicação na data do óbito não pôde ser obtida. Dada a resposta satisfatória aos betabloqueadores, a utilização de cardioversor desfibrilador implantável não tem sido sugerida para esta arritmia. Arq Bras Cardiol 2001; 76: 63-68. Concluindo, embora alterações no reflexo vasovagal constituam a principal causa de síncope na população pediátrica, a taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica deve ser um diagnóstico diferencial, especialmente quando os episódios de síncope estão relacionados à atividade física e ao estresse emocional. O atraso diagnóstico e a conseqüente ausência de terapêutica adequada expõem os pacientes a um risco alto de morte súbita. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 68 Ruckman RN. Cardiac causes of syncope. Pediatr Rev 1987; 9: 101-8. Pratt JL, Fleisher GR. Syncope in children and adolescents. Pediatr Emerg Care 1989; 5: 80-2. Reid DS, Tynan M, Braidwood L, Fitzgerald GR. Bidirectional tachycardia in a child. A study using His bundle electrography. Br Heart J 1975; 37: 339-44. De Paola AA, Horowitz LN, Marques FB, et al. Control of multiform ventricular tachycardia by propranolol in a child with no identifiable cardiac disease and sudden death. Am Heart J 1990; 119: 1429-32. Eisenberg SJ, Scheinman MM, Dullet NK, et al. Sudden cardiac death and polymorphous ventricular tachycardia in patients with normal QT intervals and normal systolic cardiac function. Am J Cardiol 1995; 75: 687-92. Leenhardt A, Lucet V, Denjoy I, Grau F, Ngoc DD, Coumel P. 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