4. O Reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa. “The state has a primary and absolute entitlement to be a sovereign and independent power in the eyes of others, i.e. to be recognized by them.” G. W. F. Hegel. Diante dos diagnósticos de Wight (1966) e Buzan & Little (2001) acerca do impasse da disciplina de Relações Internacionais com relação à insuficiência da dimensão histórica das análises, permanece a questão de como superar este impasse. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA Como vimos no primeiro capítulo, a questão deve ser encarada de forma mais ampla, incorporando o elemento temporal e dinâmico ao sistema internacional. A partir deste tipo de reflexão, é possível reformular o conceito de sociedade internacional e evitar a reificação da estrutura decorrente, ou de uma ontologia da ordem (Bull, 2002), ou de uma concepção setorial da realidade (Buzan e Little, 2000) ou, finalmente, de uma concepção linear da sociedade internacional (Watson, 1992). De acordo com o que foi visto no segundo capítulo, é possível encontrar dois conceitos de história em Hegel. Aquele retirado da Filosofia da História, onde o processo histórico é interpretado como realização racional do espírito, conceito bastante criticado pela historiografia moderna, dada a inerente teleologia. Mas existe também a noção de historicidade, pilar central da Fenomenologia do Espírito e que pauta toda a obra hegeliana. A relação entre historicidade e reconhecimento, elementos constitutivos da ontologia hegeliana, aparece na Filosofia do Direito por meio do conceito de Sittlichkeit. É esta noção que deve ser recuperada para que, através do conceito de reconhecimento, possa-se incorporar a idéia de historicidade à teoria de Relações Internacionais. Este terceiro capítulo dedica-se, portanto, à conciliação entre estas duas tradições, através da incorporação da teoria do reconhecimento ao conceito de sociedade internacional. Partindo da formulação original do conceito, fundamentado em um sistema de valores construído, ou em termos hegelianos, em uma determinada vida ética, onde os Estados assumem sua individualidade, é possível considerar a dinâmica dos processos do sistema internacional como lutas pelo reconhecimento, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 111 escapando da linearidade e da teleologia implícitas nas análises iniciais da Escola Inglesa, sendo capaz de dar conta de conflito e continuidade, do agente e da estrutura. Assim, a incorporação da noção hegeliana de reconhecimento pode contribuir para a crítica da visão estática do sistema internacional baseado na ordem e na sociedade internacional natural, conforme formulado pelos ingleses. Ao conferir historicidade à proposta da Escola Inglesa, o sistema hegeliano permite também a retomada do conteúdo normativo presente inicialmente no esforço do resgate da tradição de Grotius. A concepção de Sittlichkeit desenvolvida por Hegel implica uma ética de valores e costumes que se realiza por meio de instituições (Williams, 1997). Com a Sittlichkeit, Hegel transfere o centro de gravidade da teoria da moral, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA do indivíduo para a comunidade (Taylor, 1979). Esta idéia de costumes como base da ética está implícita no reconhecimento, na identificação do indivíduo com a sociedade e suas instituições, ou seja, em termos hegelianos, com o “espírito objetivo” – o espírito de determinado povo, objetivado nas práticas institucionais da sua comunidade. Esta relação entre a gênese de instituições e a teoria do reconhecimento será o ponto central no esforço de juntar a Escola Inglesa e a filosofia hegeliana. Para tal, é preciso primeiramente esclarecer o conceito de reconhecimento em Hegel, destacando as versões presentes na Fenomenologia do Espírito e na Filosofia do Direito. Segue uma análise metodológica do reconhecimento, isto é, como este conceito permite um diálogo constante entre agente e estrutura e seu vínculo com a historicidade. Uma vez ressaltada a versão hegeliana, retomam-se os conceitos de sociedade internacional e reconhecimento sob o prisma da cultura, denominador comum a ambos. Finalmente, chega-se à junção dos dois conceitos através de uma concepção que vai além do contratualismo, ampliando, por conseguinte, a proposta final de historicização da sociedade internacional. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 112 4.1 O conceito de reconhecimento em Hegel: na Fenomenologia e na Filosofia do Direito O conceito de reconhecimento, formulado inicialmente de forma sistemática na Fenomenologia do Espírito, é a base da noção hegeliana central de espírito. Como ressalta Robert Williams (1997), o reconhecimento (Anerkennung) é tanto a aparência fenomenológica do conceito de liberdade, quanto o fundamento da estrutura intersubjetiva deste conceito de espírito. Por conseguinte, é também elo fundamental de toda a obra hegeliana, presente desde os manuscritos de Jena até a Filosofia do Direito. É aquilo que permite a transformação do conceito moderno de sujeito, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA isolado, como a mônada leibniziana, em intersubjetividade ética e transforma as estruturas políticas clássicas em ontologias históricas e sociais (Williams, 1997). A esfera do reconhecimento permite, conseqüentemente, escapar tanto do instrumentalismo das concepções modernas de racionalidade, principalmente em sua versão hobbesiana, quanto do historicismo estático (Hegel, 1991: §03). Segundo David Kolb (1986), o conceito de Sittlichkeit é concebido como uma estrutura de reconhecimentos mútuos. Porque a razão está vinculada à mediação constante do universal, particular e singular, “The rational content of the social whole is to be found within its structures of mutual recognition. Individual selves exist self-consciously only through their mutual recognition of one another, and this demands structures by which such recognition can be mediated.” (Kolb, 1986:101). Esta estrutura de reconhecimento mútuo está, portanto, pautada por uma noção de aprendizado, de construção de um sistema de valores comuns entre os indivíduos, ou em termos hegelianos, entre individualidades, que moldam o que Hegel chama de vida ética (Sittlichkeit). Conforme já visto, a concepção de vida ética é central para a análise da filosofia política e histórica de Hegel. Ao usar o termo “reconhecimento”, ele destaca a relação entre conhecimento e vida ética, posto que nenhum indivíduo está totalmente fora ou dentro das possibilidades éticas contemporâneas, já que a ética em Hegel está subdividida em duas dimensões: a esfera da subjetividade individual (Moralität) e a esfera sócio-cultural (Sittlichkeit).1 1 Hegel, 1991; e Allen Wood, 1990 e 1993. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 113 Porque o resultado da dialética do reconhecimento é uma individualidade incompleta, isto é, uma intersubjetividade, a interiorização do conflito do reconhecimento permite o desenvolvimento da reciprocidade e da história (Hyppolite, 1968). Neste sentido, a autoconsciência do indivíduo é essencialmente social, sendo toda experiência do “eu” e do “nós” condicionada (e também condicionante) pelo contexto ético contemporâneo. O reconhecimento entre consciências é um aspecto do espírito que, por sua vez, é aquilo que constrói e que é construído pelo indivíduo consciente (ou seja, em terminologia hegeliana, é a união das consciências de si). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA “Dans la conscience de soi comme concept de l’esprit, la conscience atteint le moment de son tournant; de là elle chemine hors de l’apparence collorée de l’ en deça sensible et hors de la nuit vide de l’au-delà suprasensible pour entrer dans le jour spirituel de la présence.” (Hegel, 1941:154). O conceito de reconhecimento, entretanto, é desenvolvido diferentemente ao longo da obra hegeliana. Como este estudo está voltado para a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia do Direito, será ao conteúdo destas obras que estará referida a análise que se segue. Tanto Herbert Marcuse (1978) quanto Robert Williams (1997) destacam as diferentes versões do conceito de reconhecimento. De forma geral, ambos argumentam que na Fenomenologia Hegel tende a enfatizar o caráter da disputa entre consciências de si, enquanto na Filosofia do Direito o conceito estaria vinculado à reconciliação. Marcuse (1978), no entanto, aprofunda sua crítica ao ressaltar que o componente dialético do reconhecimento está ausente da Filosofia do Direito. Assim, enquanto na Fenomenologia representava uma relação entre sujeitos, na Filosofia do Direito o reconhecimento é uma mediação entre sujeito e objeto (Marcuse, 1978:193). Já Williams prefere ressaltar o caráter construtivo do conceito em sua versão política, em detrimento do teor cético presente na versão fenomenológica (Williams, 1997:01). Na Fenomenologia do Espírito, esta noção de reconhecimento está ilustrada na clássica dialética do senhor e do escravo. O centro do argumento da Fenomenologia está na idéia de que a consciência de si só existe como tal como ser reconhecido. O movimento deste reconhecimento aparece com a análise do desdobramento da unidade espiritual, onde as consciências se encontram O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 114 primeiramente como estrangeiras, depois se opõem e, por fim, uma domina a outra. A dialética da dominação e servidão conduzirá ao reconhecimento da união das consciências de si, da intersubjetividade. O primeiro momento do processo de reconhecimento é a apresentação da consciência de si à outra como algo exterior. Neste momento, a consciência de si é desejo, ou seja, ela só existe para si. Assim, o desejo é a primeira experiência da consciência no mundo exterior, onde ela está, por definição, relacionada a um objeto (ou, mais importante, ela objetifica aquilo que deseja). Mas porque a individualidade só se completa em outra individualidade – já que não podem ser absolutas, têm de existir, e o momento da existência, como visto anteriormente, é aquele da mediação – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA o desejo passa também a ser desejo pelo outro, e para que este desejo se realize é preciso que seja reconhecido por outro desejo. Este movimento da consciência, de negar e desejar o outro, gera uma série de duplos sentidos. Tais duplos sentidos ocorrem porque este é necessariamente um movimento duplo, para as duas consciências de si. A operação é a mesma e indivisível, posto que a relação é recíproca e consciente. Só há auto-reconhecimento da consciência de si através deste movimento recíproco. Daí a subjetividade hegeliana ser, na realidade, uma intersubjetividade (Williams, 1997; Honneth, 1996). O segundo momento do processo de reconhecimento reflete a luta das consciências de si opostas. A necessidade deste reconhecimento de outro conduz à dialética do senhor e do escravo. As consciências de si têm certeza apenas da própria existência, mas não da outra, portanto sua própria certeza de si não tem ainda nenhum fundo de verdade, não se trata ainda de uma existência concreta. É este o momento inicial da chamada luta pelo reconhecimento. Como o movimento é recíproco, o reconhecimento resultante também o é. Daí que, se uma das consciências não coloca sua existência em jogo, ela não será reconhecida como consciência de si independente. O embate leva aos extremos de postular um puro ser para si, ou seja, a negação absoluta. A total independência também nega o princípio da vida, que não engloba a negação absoluta. Daí a crítica de Hegel à Revolução Francesa, que de um lado representa um momento de atualização do espírito, mas de outro, ao postular a O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 115 liberdade total, acaba por recair no terror. Este terror é a forma que assume o princípio de total independência, é a negação da possibilidade de vida em sociedade. O resultado do primeiro embate de consciências de si é, de um lado, o puro ser para si, uma consciência de si pura (que é tautologia, abstração), isto é, a consciência do senhor, e de outro lado, uma consciência que só é para o outro, que não é em si, ou seja, está reificada, a consciência do escravo (Hegel, 1941:161). O terceiro momento do movimento de reconhecimento é a dialética da dominação e da servidão. Aqui o senhor representa a pura consciência de si para si, e o escravo, a consciência reificada. O senhor, portanto, só é ser para si através da intermediação de um outro e se relaciona com a vida através deste outro, o escravo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA Este, por sua vez, é dependente da coisa (vida), uma vez que não pôde se abster dela no embate inicial. Mas o escravo é ainda consciência de si em geral, pois se comporta negativamente com a vida e trabalha para transformá-la (e não suprimi-la). No caso do senhor, a relação com a vida é negativa, porque se concentra apenas no consumo, na satisfação, o que conduz à dissolução. Aqui, para o senhor, a mediação essencial para a consciência de si é passada para o exterior, para a consciência do escravo. Para o senhor, o auto-reconhecimento como consciência independente é efetivo, mas não para o escravo, para quem consciência é ainda nãoessência (porque ele é para outro e não ainda para si). O momento de desigualdade é crucial para o desenvolvimento do reconhecimento recíproco, porque o senhor não pode suprimir o escravo e chegar à negação absoluta, posto que se tornou dependente do escravo. Aqui, por meio da cultura e do trabalho, as consciências passam aos extremos opostos, e o escravo torna-se senhor do senhor e este, escravo do escravo. “En conséquence, la vérité de la conscience indépendante est la conscience servile (...) de même, la servitude (...) comme conscience refoulée en soi-même se transformera par renversement en véritable indépendance.” (Hegel, 1941:163). A passagem do escravo a senhor se dá através da experiência do mundo que torna a consciência negação absoluta, consciência de si para si. Tudo o que nela era fixo transforma-se em fluido, fazendo-a retornar a si, abandonando o seu ser para o outro. O trabalho torna permanente a satisfação que, na dialética do desejo, existia O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 116 apenas em vias de desaparecer. De fato, a consciência de si do escravo torna-se então independente. O escravo torna-se senhor. Quando considerada dentro do sistema da Fenomenologia, a dialética do senhor e do escravo é a primeira superação da imediaticidade da vida. Sua conseqüência concreta para o mundo objetivo é o trabalho, ou a intervenção concreta da vida no mundo. O trabalho modifica o objeto, que se torna forma de vida e, desde então, pode ser apreendido pela consciência de si. Assim, a primeira mediação entre consciências de si é o trabalho. Entre senhor e escravo, o reconhecimento é unilateral e desigual, pois o senhor não reconhece o escravo como ser para si autônomo. Neste movimento dialético o trabalho assume, portanto, o papel crucial de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA meio de sobrevivência das consciências de si, sem o qual a luta pelo reconhecimento terminaria em desaparecimento. É o instrumento transformador, o elemento ativo na construção da Sittlichkeit. Porque na Fenomenologia o trabalho é ontologicamente anterior à razão, pois no processo de conscientização ele precede o momento da racionalização, é possível a Hegel atribuir um fundamento histórico à razão, que deixa de ser uma entidade abstrata e passa a ser elemento humano. O trabalho, nesse sentido, confere historicidade à natureza, pois a transforma em obra (Hyppolite, 1968). Daí a afirmativa de Hegel no prefácio da Fenomenologia de que todo conhecimento é ação, e na Filosofia do Direito de que o indivíduo é a soma de seus atos. O trabalhador se torna autônomo no (e através do) objeto de seu trabalho, atingindo concretamente com esta autonomia a esfera da realidade efetiva. Ele se torna efetivamente real. Assim como o desejo, o trabalho é também uma categoria da vida. Segundo Marcuse (1972), em Hegel todas as categorias da vida estão pautadas pelo conceito fundamental de “fazer”, a união entre saber e agir. O “fazer” é essencialmente transformação e produção. É a esfera determinada da vida, que a define como transformação. Sua primeira forma é o trabalho, a segunda, o reconhecimento. Este “fazer” realiza-se sempre no momento da mediação, ele é a própria mediação humana. A dialética da dominação e da servidão ressalta, portanto, a importância da intersubjetividade na formação das consciências de si. Mas ela esboça apenas as O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 117 primeiras situações do processo de reconhecimento. De fato, segundo Hyppolite (1968), na dialética do senhor e do escravo o reconhecimento termina sempre em assimetria. O processo só é completo quando Hegel incorpora a esfera do espírito. « Ce qui viendra plus tard pour la conscience c’est l’expérience de ce qu’est l’esprit, cette substance absolue, qui, dans la parfaite liberté et indépendance de son opposition, c’est-à-dire des conscience de soi diverses étant pour soi, constitue leur unité : un Moi qui est un Nous, et un Nous qui est un Moi. » (Hegel, 1941:154). Somente na esfera do espírito é possível estabelecer um reconhecimento completo, em que esta intersubjetividade constitui um meio concreto para a liberdade, ou seja, a Sittlichkeit, em que se realiza esta reciprocidade. Assim, em uma relação completa de reconhecimento mútuo, os sujeitos sempre apreendem algo novo sobre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA sua identidade, o que implica uma concepção de identidade comunitária dinâmica semelhante à noção de tradição em Herder. Diante desta descrição do processo de reconhecimento, fica evidente que a relação de reconhecimento recíproco é constituída de momentos de conflito e de reconciliação, em que a noção de Bildung (cultura) adquire importância crucial (Taylor, 1975; 1979). Por conseguinte, o potencial moral humano não é mais pressuposto de natureza, mas uma forma particular de relação humana: “To that extent, the movement of recognition underlying the ethical relationship between subjects consists in a process of alternating stages of reconciliation and conflict.” (Honneth, 1992:208). Passando à esfera da filosofia política, a dialética do reconhecimento constitui o segundo pilar da doutrina da Sittlichkeit, em que a moralidade atinge sua acepção completa somente na esfera da comunidade.2 Aqui, Hegel flexibiliza o conceito kantiano de moral através da historicização do conceito de imperativo categórico na Sittlichkeit. Daí ser possível a Hegel propor um equilíbrio entre razão e sensação (Wood, 1990; 1993). Os conceitos de indivíduo e subjetividade só atingem significado concreto no sistema social da vida ética. É esta a esfera em que a liberdade, por meio da consciência de si, torna-se objetiva (Hegel, 1941:320 e 1991: §142). 2 Conforme visto no capítulo anterior, o primeiro pilar da Sittlichkeit é a historicidade. Não há relação de hierarquia ou anterioridade entre os elementos constitutivos da noção de vida ética. A distinção que se expressa aqui é apenas um recurso explicativo. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 118 Na Filosofia do Direito, o processo de reconhecimento desenrolara-se primeiramente entre sujeito e objeto (direito abstrato), em seguida no interior do sujeito (moralidade) e, por fim, entre sujeitos (vida ética). A seqüência da argumentação mantém a lógica da Fenomenologia, onde a dialética do reconhecimento se iniciava com o desejo, desejo este que objetificava o outro. Na Filosofia do Direito, esta relação desenvolve-se em torno da idéia de propriedade. Porque Hegel considera a propriedade como a primeira manifestação da liberdade (1991: §45), o contrato torna-se a primeira manifestação concreta do reconhecimento. “Contract presupposes that the contracting parties recognize each other as persons and owners of property; and since it is a relationship of objective spirit, the moment of recognition is already contained and presupposed within it.” (Hegel, 1991: §71). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA A crítica de Hegel à tradição contratualista encontra-se, portanto, associada à idéia de definir relações do espírito como relações entre sujeito e objeto (1991: §75). Os contratualistas estariam reduzindo a esfera pública do Estado a uma relação privada de direito abstrato, uma relação de propriedade. E, fundamentalmente, esta é uma relação de satisfação e objetificação, e não de transformação e produção como são características da definição de espírito. O reconhecimento segue, portanto, através da interiorização do processo na esfera da moralidade. Este é o momento da mediação e da subjetividade. Na Fenomenologia este momento significava a construção da consciência infeliz, ou seja, a transferência da dialética do reconhecimento para o interior do ser. Era essencialmente o momento de alienação do mundo. Entretanto, é através deste movimento que se constitui a agência humana. A ação é expressão da vontade moral (portanto subjetiva) composta de três elementos: o reconhecimento da autoria da ação, sua relação com a idéia de obrigação e, por fim, a relação com a vontade dos outros (Hegel, 1991: §113). Somente quando a ação subjetiva reconhece a existência da vontade de outros ela se transforma em individualidade (Hegel, 1991: §08). É o segundo momento da dialética do reconhecimento, quando se passa à relação entre sujeitos e não mais entre sujeito e objeto. Mas este segundo momento também revela uma subdivisão, isto é, a relação entre sujeitos conscientes leva à questão da autonomia. A consciência infeliz é aquela que não consegue ver-se reconhecida nas instituições de seu tempo e, portanto, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 119 encontra-se alienada, sem autonomia. Mas é também o princípio da ação, porque implica a transformação deste exterior. Ou seja, ela ainda não é uma individualidade porque não reflete a síntese entre o particular e o universal. O movimento de transformação permite, entretanto, a passagem da subjetividade da moralidade à objetividade da vida ética. Esta passagem também está evidenciada na Fenomenologia, na transferência da discussão entre o ser para si e o ser para outro – que constitui a primeira parte desta obra, a formação da consciência de si – para a questão do eu e do nós, ou seja, a formação do espírito. O movimento da ação moral, por conseguinte, só atinge objetividade quando a esfera exterior do espírito é reconhecida pelo agente. Há uma historicização da moral na vida ética. A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA construção do bem e do mal tem origem comum na consciência de si, mas distinguese quanto à relação de reconhecimento que desenvolvem com este espírito (Hegel, 1991: §139). Ao passar à vida ética o indivíduo reconhece, ao mesmo tempo, a instância sócio-histórica que pauta suas ações, como ganha autonomia. Uma vez que Hegel nega a possibilidade de liberdade total – que conduz ao terror, pois está fundamentada unicamente na particularidade – a noção de autonomia adquire o status de liberdade na vida ética (1991: §153). A liberdade concreta do indivíduo se expressa, portanto, na possibilidade de agir no mundo, atuação essa que pauta e está pautada por instituições. “The objective sphere of ethics (...) posits distinctions within itself which (…) give the ethical a fixed content (…): they are laws and institutions which have being in and for themselves.” (Hegel, 1991: §144). Considerando que a vida ética se objetiva na liberdade do ser, esta liberdade só pode ser atingida socialmente, em si e para si – ou fundamentalmente, em processo –, situando a ética não como uma esfera coercitiva diante das vontades humanas, mas como esfera libertária (Wood 1993:229). É neste sentido que Hegel argumenta que o costume evidencia a identidade entre indivíduo e espírito: “Custom is what right and morality have not yet reached, namely spirit”. (Hegel, 1991: §151). O próprio direito, conforme definido na introdução da Filosofia do Direito, está fundamentado no conceito de espírito e reflete, portanto, as condições sócio-históricas de determinada comunidade (1991:§04). O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 120 O processo de educação cultural (Bildung) adquire, assim, uma importância essencial, já que atua na transformação do indivíduo em ser ético. “For Hegel, all social institutions involve patterns and structures of mutual recognition through which a person achieves his own identity by recognizing others as persons who are recognizing him as a person.” (Kolb, 1986:23). Neste sentido, a educação cultural (Bildung) é o elemento dialético que atua em todas as passagens da Sittlichkeit, da família à sociedade civil e desta ao Estado. É aquilo que permite a transformação da relação de reconhecimento imediata que se desenvolve no interior da família, em uma relação mediada, que passa à esfera da sociedade civil e ao Estado. Ela permite a construção da subjetividade a partir da intersubjetividade familiar do indivíduo e o retorno desta subjetividade à PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA intersubjetividade do Estado. A instância da família aparece como o primeiro momento do reconhecimento entre sujeitos desenvolvido na Filosofia do Direito, seguido pela sociedade civil e, finalmente, pelo Estado. “The ethical substance, as containing self-consciousness which has being for itself and is united with its concept, is the actual spirit of a family and a people” (Hegel, 1991: §156). A esfera da sociedade civil é o lócus da mediação no interior da Sittlichkeit. Como toda mediação, é também não-essência e diferença. É o momento em que a particularidade se sobrepõe à universalidade, em que se desenvolvem as relações do direito abstrato, relações de propriedade, e as relações da moralidade, relações de subjetividade. A ação que, conforme visto há pouco, era formada pela vontade moral subjetiva, ao atuar na sociedade civil está definida em termos de particularidade. Porque ainda se encontra pautada pela particularidade, a ação na esfera da sociedade está determinada pela necessidade e não pela liberdade. Porém, o reconhecimento de necessidades comuns permite a transformação desta particularidade em universalidade, ou seja, de objetivos individuais em objetivos sociais. Esta passagem evidencia a influência do processo de educação cultural, ou Bildung (1991: §192). “In the development of civil society, the ethical substance takes on its infinite form, which contains within itself the following two moments: (1) infinite differentiation to the point at which the inward being of self-consciousness attaints being-for-itself and (2) the form of universality which is present in education, the form of thought whereby spirit is objective and actual to itself as an organic totality in laws and institutions, i.e. in its own will as thought.” (Hegel, 1991: §256). O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 121 Para Hegel, portanto, a sociedade moderna depende tanto das estruturas de reconhecimento mútuo quanto qualquer outra sociedade. O individualismo é um tipo particular de reconhecimento. O que Hegel chama à atenção é para a superficialidade das formas de interação características da sociedade civil. Nesta esfera da Sittlichkeit, a estrutura de reconhecimento é apenas formal, estando separada de seu conteúdo. É um sistema de contratos e trocas, onde se reconhece o direito da escolha, mas não o do conteúdo da escolha (Kolb, 1986:27). É, enfim, um reconhecimento das regras do jogo e não um ato substantivo. Mas porque não há conteúdo no reconhecimento na sociedade civil, a identidade é vazia, uma formalidade. A liberdade é, pois, também ela vazia, ou seja, é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA a liberdade negativa cara ao liberalismo. A sociedade civil é, por conseguinte, a institucionalização da separação entre forma e conteúdo, a institucionalização da alienação e constitui, neste sentido, um novo momento histórico. A crítica de Hegel atinge, portanto, o cerne do argumento da tradição liberal, uma vez que ao reivindicar a liberdade absoluta, livre de todo conteúdo particular, o indivíduo acaba por subordinar-se à contingência, à necessidade, que rege a esfera da sociedade civil. A busca de Hegel será, portanto, pela estrutura de costumes que possibilita esta liberdade, ou seja, a Sittlichkeit institucionalizada no espírito objetivo do Estado. A idéia de Estado para Hegel é, assim, a da comunidade política organizada, cujas instituições e práticas expressam em normas aquilo que os indivíduos reconhecem e definem como identidade. Daí o Estado racional hegeliano restaurar a Sittlichkeit antiga por meio do ideal de autonomia moderno (Taylor, 1975:388). “The state is the actuality of the ethical Idea. (…) It has its immediate existence custom and its mediate existence in the self-consciousness of the individual, in individual’s knowledge and activity, just as self-consciousness, by virtue of disposition, has its substantial freedom in the state as its essence, its end, and product of its activity.” (Hegel, 1991:§257). in the its the O Estado hegeliano depende dos indivíduos para existir, assim como todo universal só existe através do particular. A partir do momento em que a liberdade concreta depende da individualidade pessoal e de seus interesses para se realizar, o Estado hegeliano não pode ser considerado um Estado absoluto, mas ele traz em si as estruturas de reconhecimento que permitem aos particulares objetivarem suas O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 122 vontades em instituições. Assim, o universal não atinge validade e reconhecimento sem o interesse, a vontade e o conhecimento do particular: “The essence of the modern state is that the universal should be linked with the complete freedom of particularity and the well-being of individuals, (…) but the universality of the ends cannot make further progress without the personal knowledge and volition of the particular individuals, who must retain their rights. Thus the universal must be activated, but subjectivity on the other hand must be developed as a living whole. Only when both moments are present in full measure can the state be regarded as articulated and truly organized.” (Hegel, 1991: §260). O Estado é, portanto, a mediação entre a subjetividade do indivíduo e a objetividade do mundo social. É, enfim, uma estrutura de reconhecimentos mútuos institucionalizada. Assim, a Constituição de um Estado reflete necessariamente esta PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA estrutura, ou o seu espírito. Uma vez que o Estado é o espírito de uma nação e, portanto, também a lei que rege esta nação é constituída pelos costumes e pela consciência de seus indivíduos, a Constituição desse Estado depende da cultura (Bildung) desenvolvida em sua consciência de si. Assim, o desenvolvimento de uma consciência própria passa a ser uma característica constitutiva do Estado: “An essential part of the fully developed state is consciousness and thought” (Hegel, 1991: §270). Nesta consciência de si do Estado repousa a liberdade subjetiva e a atualidade da constituição (Hegel, 1991: §274). Por conseguinte, se há um processo de conscientização presente na gênese do Estado, os movimentos da dialética do reconhecimento também se fazem presentes. De fato, é este processo de conscientização, cujo resultado é a construção de uma individualidade, que fundamenta a idéia de soberania de Hegel (1991: §279). Assim, a construção da soberania passa pelo mesmo processo da construção da individualidade, ou seja, ela apresenta duas dimensões, uma interior (autoreconhecimento) e outra exterior (reconhecimento recíproco). Na Filosofia do Direito, isto está colocado na doutrina da dupla soberania, interna e externa, conforme visto no capítulo anterior. Seguindo a lógica do processo de reconhecimento, o auto-reconhecimento apenas não é suficiente para o estabelecimento de uma individualidade – seria a constituição e uma soberania senhorial, fazendo analogia à dialética do senhor e do escravo. Assim, o momento do reconhecimento externo é aquele que completa o O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 123 processo de construção do Estado (Avineri, 1972). Só quando o Estado se compreende como uma unidade na alteridade ele pode tornar-se um sujeito. Os movimentos que pautam a esfera internacional onde estão inseridos os Estados constituem-se, portanto, em processos de reconhecimento. É a este ambiente que Hegel se refere ao caracterizar o internacional como estado de natureza (Hegel, 1991: §333). Diferentemente do ambiente estatal, onde em geral reina a paz e o direito – ou seja, onde o espírito conseguiu se institucionalizar mais concretamente – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA no plano internacional esta institucionalização é incompleta. Isto porque: “…States function as particular entities in their mutual relations, the broadest view of these relations will encompass the ceaseless turmoil not just of external contingency, but also of passions, interests, ends, talents and virtues, violence, wrongdoing, and vices in their inner particularity. In this turmoil, the ethical whole itself – the independence of the state – is exposed to contingency. The principles of the spirits of nations are in general of a limited nature because that particularity in which they have their objective actuality and self-consciousness as existent individuals, and their deeds and destinies in their mutual relations are the manifest dialectic of the finitude of these spirits” (Hegel, 1991: §340). Desta afirmativa pode-se retirar uma série de conclusões a respeito da visão hegeliana do internacional. Primeiramente, há a idéia de que Estados são totalidades em si, e atuam no plano internacional como particularidades. Decorre daí a principal característica das relações internacionais para Hegel, ou seja, o fato de que elas são pautadas pela contingência e, conseqüentemente, pela instabilidade, isto é, constituem um estado de natureza. Porém, este estado de natureza internacional hegeliano constitui-se como o lócus da luta pelo reconhecimento entre Estados. E, diferentemente de sua versão hobbesiana, este estado de natureza hegeliano implica necessariamente a existência de relações sociais entre as partes que, por sua vez, constituem história, o que Hegel denomina “espírito do processo histórico” ou “espírito mundial”. Assim como com os indivíduos, o que é infinito são as relações que eles constituem, e porque essas relações são infinitas, o processo histórico também o é. Portanto, diferentemente dos realistas, para quem o sistema internacional é carente de história, para Hegel a história está fundamentalmente no plano internacional, onde as totalidades se relacionam e deste relacionamento surge o processo histórico. A história é o mínimo O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 124 que surge do processo do reconhecimento, sendo o máximo a sua concretização em instituições. Para além disso, a noção de reconhecimento não implica uma direção necessária do processo, mas apenas que as particularidades desenvolvem-se em um ambiente social que pauta suas ações e que é, ao mesmo tempo, construído por elas. Já que o objetivo máximo do Estado é o bem estar de seus cidadãos, toda a ação estatal está submetida a este ideal. A particularidade da ação estatal no plano internacional é, portanto, relativa, uma vez que é definida mediante este princípio original de welfare (Hegel, 1991: §336 e §337). O reconhecimento externo da independência do Estado, ou seja, aquilo que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA constitui o elemento ético do sistema internacional, é o fator que define o plano internacional. Mesmo em caso de guerra, este reconhecimento permanece, porque é ele que condiciona a atuação do Estado na esfera internacional: “The fact that states reciprocally recognize each other as such remains even in war – as the condition of rightlessness, force and contingency – a bond whereby they retain their validity for each other in their being in and for themselves, so that even in wartime, the determination of war is that of something which ought to come to an end.” (Hegel, 1991: §338). O reconhecimento também está presente no plano internacional, como não poderia deixar de ser, posto que é também parte do todo social. Isto não conduz necessariamente a um federalismo internacional, como poderia apontar uma leitura kantiana deste processo. O próprio Hegel desconsidera esta possibilidade, diante das vontades soberanas particulares que atuam na esfera internacional (1991:§333). Considerar que esta esfera internacional está fundamentada em estruturas de reconhecimento apenas aponta para a característica dialética inerente aos processos no sistema internacional, podendo resultar tanto em guerra quanto em paz. O que é relevante para a tese do reconhecimento internacional é que, assim como acontece no nível individual, o reconhecimento permite uma relação dinâmica com a alteridade, em que as partes incorporam e trabalham as diferenças. Isto não implica diminuição de soberania, mas uma relação de constante reconstrução desta soberania. 3 3 Discordo, portanto, de Williams (1997), para quem o reconhecimento no plano internacional é apenas contratual e formal, posto que qualquer tipo de reconhecimento substantivo iria de encontro ao O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 125 Assim, se o reconhecimento entre Estados não conduz à formação de um governo mundial – o que iria de encontro ao elemento ético da independência –, nada impede, não obstante, que ele se institucionalize de outras formas que não em uma autoridade articulada. Este é o ponto em que se torna possível vincular a leitura hegeliana das Relações Internacionais e a tese “inglesa” da sociedade internacional. Todavia, antes de abordar o ponto central deste capítulo, é necessário voltar à análise de alguns temas adjacentes à discussão do reconhecimento e que esclarecem mais precisamente os vínculos entre os níveis de análise presentes neste processo e sua PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA relação com a idéia de historicidade. 4.2 Reconhecimento como instrumento metodológico: o elo entre agente e estrutura O argumento hegeliano é sempre construído de forma dupla, tanto na Fenomenologia do Espírito, quanto na Filosofia do Direito. Em ambas as obras, Hegel inicia sua argumentação no nível do indivíduo, da agência. Neste sentido, a primeira parte da Fenomenologia é dedicada ao processo de conscientização, isto é, trata apenas do indivíduo abstrato. Na Filosofia do Direito acontece o mesmo: primeiramente discute-se o direito abstrato e a moralidade, momentos relacionados aos indivíduos, seja entre indivíduo e objeto (direito abstrato), seja do indivíduo para consigo mesmo (moralidade). Uma vez constituída a argumentação da agência, Hegel parte para a análise da estrutura em que esta agência atua. Com efeito, na Fenomenologia este segundo nível de análise volta-se para o espírito, enquanto que a Filosofia do Direito associa a estrutura à Sittlichkeit – que é o espírito objetivo. É fundamental reparar que os diferentes níveis de análise presentes na argumentação hegeliana estão sempre interligados. Assim, o agente é concebido tanto do ponto de vista de sua formação interior – conscientização –, quanto de sua ação exterior. Da mesma forma a estrutura, como algo superior ao indivíduo e, ao mesmo princípio de soberania estatal. Williams considera o processo de reconhecimento caminhando apenas em uma direção, sem possibilidade de refluxo, o que imobiliza a dinâmica do conceito. Ademais, Williams coloca ênfase excessiva no aspecto de reconciliação, renegando o momento do conflito, que é central no processo dialético (Jurist, 2000). O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 126 tempo, algo que existe somente através destes indivíduos. O movimento do reconhecimento representa, por conseguinte, este elo entre os dois níveis de análise. É através dele que Hegel consegue evitar o ahistoricismo decorrente da reificação da estrutura e/ou do individualismo epistemológico. “The right to recognize nothing that I do not perceive as rational is the highest right of the subject, but by virtue of its subjective determination, it is at the same time formal (…) Since action is an alteration which must exist in an actual world and thus seeks recognition in it, it must in general conform to what is recognized as valid in that world. Whoever wills an action in the actual world has, in so doing, submitted himself to its laws and recognized the right of objectivity.” (Hegel, 1991: §132). A ação social, de acordo com a definição de Hegel, é originalmente subjetiva, pertencente à esfera da moralidade. Não obstante, para que seja efetiva, para que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA adquira atualidade, ela deve ser necessariamente intersubjetiva, isto é, conciliar sua origem subjetiva no ser em si e seu destino objetivo no ser para outro. Este processo de constante transformação do “ser em si” em “ser para si” através da mediação do “ser para outro” é justamente o que está desenvolvido na dialética do reconhecimento. O reconhecimento mútuo é, portanto, o lócus da relação entre selves e do self consigo mesmo (Kolb, 1986). Assim, ele constitui o momento e o lugar da formação da identidade. O reconhecimento mútuo autoconsciente não é abstração, mas uma estrutura de interações composta de papéis, ações, costumes. Porque em Hegel a identidade do indivíduo só aparece por meio do processo de interação, ou seja, via reconhecimento, torna-se possível criticar o atomismo e o individualismo. “Structures of mutual recognition are not vaguely general. They exist in particular forms or not at all. Hegel discusses the many kinds of mutual recognition that humans can develop. In the historical lectures, he treats these chronologically, while in the Philosophy of Right and the Phenomenology of Spirit the treatment is more structural and conceptual, though reference to history is not lacking” (Kolb, 1986:25). O reconhecimento coloca o problema da conciliação da individualidade moderna com o mundo social para além da esfera do contrato social, em que as duas esferas ainda se encontram separadas ontologicamente. O que Hegel está postulando em termos de reconhecimento é a tese central de seu sistema de que a substância é sujeito. A partir desta tese, que unifica agente e estrutura em uma única ontologia, ele concebe uma estrutura dinâmica de relações entre estes dois níveis de análise, e por meio do processo de reconhecimento, que é constante e dialético, articula agente e O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 127 estrutura sem atribuir prioridade a nenhum deles. O conceito essencial é reciprocidade, que evita a anterioridade de um dos elementos no mundo social (Kolb, 1986). A ação social, portanto, está pautada pelo agente e pela estrutura, que interagem dialeticamente. Não se trata da teoria estruturacionista, em que há uma distinção ontológica entre agente e estrutura, que são ao mesmo tempo coconstitutivos (Wendt, 1987). A abordagem dialética do reconhecimento que Hegel propõe nega enfaticamente a possibilidade de diferenciar agente de estrutura. E vai além: a relação entre eles não é co-constitutiva, mas dialética, ou seja, implica negação e transformação; em resumo, conflito. É deste conflito que emerge a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA dimensão da historicidade, porque implica que, no processo de formação do ser “para si”, o agente sempre passa pela esfera da mediação, onde ele é necessariamente “para outro” e da interiorização, onde ele é “em si” e avalia essa experiência anterior mediante outras experiências passadas. A formação do agente hegeliano é, por conseguinte, constituída por esses três momentos, que são indissociáveis (Jurist, 2000). “ Hegel’s theory of agency specifies integration as a matter of harmonizing self- concern and attachment to others. In addition to a need for connection to individual others, we have an abiding need to be at home in society.” (Jurist, 2000:195) Jurist argumenta que é significativo que a dialética do senhor e do escravo culmine no capítulo da consciência infeliz. O fracasso na tentativa de reconhecimento que produziu a distorção entre senhor e escravo reflete-se no interior do ser, através da consciência infeliz. Daí ser insuficiente para a formação do agente o reconhecimento entre sujeitos, mas este deve ser sempre acompanhado do reconhecimento da estrutura. A relação de reconhecimento se desenrola, portanto, em dois níveis: o reconhecimento interno (a dialética do ser para outro e ser para si) e o reconhecimento externo (entre o eu e o nós). Certamente, estes dois níveis estão interligados, já que o “nós” que forma o espírito e que constitui a estrutura hegeliana é formado pela intersubjetividade dos agentes, que emerge da primeira dialética do reconhecimento. Assim, pode-se dizer que a dialética do reconhecimento expõe o processo de formação da intersubjetividade. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 128 “Being-for-itself and being-for-another are equally fundamental for Hegelian agency. (…) Recognition is not a perpetual state for human agents; it is achieved and lost through the ongoing struggle and negotiation that defines relationships.” (Jurist, 2000:209). Reconhecimento e historicidade estão interligados através da idéia central de intersubjetividade, sendo, portanto, constitutivos da idéia de Sittlichkeit. De acordo com Marcuse (1972), a historicidade é enfatizada a partir do momento em que Hegel sustenta que a consciência de si só é plenamente real quando afirmada, no movimento de se tornar realidade (Hegel, 1941:321). A consciência depende sempre do desenvolvimento da estrutura, ou do que ele chama de espírito mundial. Paralelamente, a realização efetiva do espírito depende de conscientização do que já PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA se afirmou. « La conscience déteminera sa relation à l’être-autre ou à son objet de façons diverses suivant qu’elle se trouvera à tel ou tel degré de l’esprit du monde (...) Comment l’esprit du monde se trouve et se détermine, et comment il détermine son objet à chaque degré, ou comment il est pour soi, cela dépend de ce qu’il est déjà devenu ou de ce qu’il est déjà en soi. » (Hegel, 1941:199). Esta relação de afirmação entre consciência e mundo objetivo se dá quando a consciência reconhece o mundo como sua obra. O mundo é produto da ação do indivíduo, e este indivíduo não é outro senão a soma de seus atos. Assim, o indivíduo é o mundo, seu movimento reflete e constitui o movimento do mundo: “ le mouvement de l’individualité est la réalité de l’universel” (Hegel, 1941:320). A oposição dinâmica e constante entre obra (ação/particularidade) e consciência (reflexão/universalidade) é o que Hegel chama de vida. Mas a obra traz em si uma ruptura: ela é sempre o reflexo de uma individualidade. Daí se apresentar contra os outros. Fica clara a noção presente no prefácio da Fenomenologia, e vista no capítulo anterior, de que a existência é o momento da não-essência, da mediação. A partir do momento em que a individualidade se exprime em obra, ela já é para outro e não para si. A obra se torna objeto de disputa entre o ser para si e o ser para outrem, traz em si a necessidade de reciprocidade. Neste sentido, a obra é instável, e não uma realidade completa. O mundo real, aquele da existência mediada, torna-se um terreno de instabilidade e contingência. É o mundo da transformação, uma estrutura dinâmica. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 129 Este movimento de agitação e transformação das obras determinadas constitui a realidade efetiva da consciência de si. A história do movimento das ações (obras) é a realidade da consciência. Daí a afirmação de que “l’agir est justement le devenir de l’esprit comme conscience” (Hegel, 1941:327). A consciência de si é real não somente porque conhece, mas porque age, porque se expressa. Neste sentido, ela é uma consciência moral (Marcuse, 1972). Conseqüentemente, a determinação ontológica primordial da vida passa a ser o “fazer”: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA “L’opération et l’entrerprise de l’individualité (...), leurs extériorisations sont ce qui leur confere la vie, à elles qui seraient autrement l’en-soi mort(...). L’en-soi (...) est lui-même immédiatement la présence et la réalité effective du processus de l’individualité. ” (Hegel, 1941:321) A vida como consciência de si é necessariamente “fazer”, o que torna o mundo e a consciência autônomos. Esta centralidade que a noção de obra e “fazer” adquire em Hegel evidencia a união dos dois níveis de análise, individualidade e universalidade. A realidade efetiva da vida constitui-se, por conseguinte, em um processo dinâmico de objetificação e des-objetificação, mantido unido através da ação moral, consciente de si. Daí a tese de Honneth (1996) de que Hegel transforma as relações sociais em relações morais, em lutas pelo reconhecimento. Assim, a alienação pessoal torna-se a própria história do espírito. Ao mesmo tempo, ao conectar ação moral e ação social, Hegel historiciza a moral transformando a autoalienação e a busca pela superação desta alienação em categorias históricas. “But if it is identical with the actuality of individuals, the ethical, as their general mode of behaviour, appears as custom; and the habit of the ethical appears as a second nature which takes the place of the original and purely natural will and is the all-pervading soul, significance and actuality of individual existence. It is spirit living and present as a world, and only thus the substance of spirit begin to exist as spirit.” (Hegel, 1991:§150) Como vida, o espírito é em si movimento. Daí a história da vida se tornar a história do espírito e o espírito existir conseqüentemente somente dentro da história (Marcuse, 1972:304). O espírito é movimento, processo de separação e de unificação. A ação separa a substância da consciência. Mas a reflexão recupera a história do espírito através da alienação e da cultura. A superação deste distanciamento da vida O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 130 representado no momento da interiorização se dá no processo de reconhecimento e retorno ao círculo dialético da ação, em novo ponto de desenvolvimento do espírito. A superação da oposição destes dois conceitos (obra e consciência) se dá na idéia de espírito, em que o indivíduo é o mundo, e seu ato é ato do espírito universal. Assim, como vimos no capítulo anterior, Hegel concebe a superação da diferença através do movimento. Por isso, ele define a ética como uma esfera relacional e jamais absoluta (Hegel, 1991:§148). Somente desta forma o ato individual é igualdade na alteridade, ou seja, é plenamente livre, é sujeito. A realização plena da vida, neste sentido, é possível somente após a mediação do desejo, do trabalho e da individualidade, os momentos do reconhecimento que formam o sujeito hegeliano. 4 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA Estes momentos do reconhecimento moldam o mundo como obra “espiritual” (de um e de todos), constituindo historicamente a estrutura a partir das diferentes Sittlichkeit – universalidade e individualidade da consciência de si e de sua ação. 4.3 A cultura como elemento comum ao reconhecimento e à sociedade internacional. A esfera da cultura assume um duplo significado dentro do sistema filosófico de Hegel. De um lado, representa a ascensão da individualidade à universalidade do espírito, depois dos movimentos de reconhecimento interno (auto-reconhecimento). De outro, é o momento da mediação, da alienação, portanto precede o momento do reconhecimento externo, sendo um movimento necessário nesse processo. Assim, o primeiro significado associa cultura a costumes, enquanto o segundo liga cultura e Bildung. Eles representam dois tipos de relacionamento com o mundo exterior. No primeiro momento, a cultura é apreendida imediatamente na forma de costumes e hábitos. É o que Hegel chama de “mundo ético”, fazendo alusão à pólis antiga. Já o segundo momento representa a interiorização deste mundo cultural objetivo na esfera da essência e da subjetividade, durante o processo de formação da individualidade. 4 Honneth (1996) associa a estes três momentos do reconhecimento, três tipos de relações sociais: ao desejo, ele associa o amor, ao trabalho, o direito, e finalmente, à individualidade, a solidariedade. Estes três elementos estão por sua vez vinculados a três instituições da vida ética, a família, a sociedade civil e o Estado, respectivamente. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 131 Na Fenomenologia, este momento está ilustrado na ascensão da cultura moderna, cujo auge é o Iluminismo. Este duplo sentido atribuído à noção de cultura evidencia a dimensão dialética do projeto hegeliano: determinar o homem como ser histórico, portanto vinculado a um passado comum, e ao mesmo tempo manter uma distância crítica deste passado que o permita agir e transformar o presente (Hyppolite, 1974). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA “Le début de la culture, du processus de la libération hors de l’immédiateté de la vie substantielle doit toujours se faire par l’acquisition de la connaissance des principes fondamentaux, et des points de vue universels; il doit se faire seulement d’abord en s’élevant par ses propres efforts à la pensée de la chose en général, sans oublier de donner les fondements pour la soutenir ou la réfuter, en appréhendant la riche plénitude concrète selon ses déterminabilités, et en sachant formuler sur elle une sentence bien construite et un jugement sérieux.” (Hegel, 1941:08). A superação destes dois momentos antagônicos da cultura no sistema hegeliano se dá na constituição da consciência moral, quando a argumentação da Fenomenologia transfere-se do nível da descrição histórica para a prescrição moral (Jurist, 2000). Mas diferentemente do agente kantiano, que localiza a razão moral no interior da subjetividade (no princípio do imperativo categórico), a ação moral hegeliana precisa passar pelas dialéticas da consciência, da razão e do espírito para atingir a dimensão da liberdade, reconhecendo o contexto em que atua para poder ao mesmo tempo transformá-lo. O conceito de cultura é, portanto, ao mesmo tempo uma aceitação da herança passada e a necessidade de alterá-la mediante as novas realidades do presente. Este conceito dialético de cultura está intimamente relacionado ao processo do reconhecimento. Honneth (1996) argumenta que Hegel abandona o projeto de interpretação do mundo social como luta pelo reconhecimento, ao transferir o foco de sua análise da sociedade para a consciência, na Fenomenologia do Espírito. Segundo Honneth, a dialética do senhor e do escravo é apenas um vestígio do sistema anterior desenvolvido na Realphilosophie. Todavia, Jurist (2000) e Williams (1997) discordam da tese de Honneth, ao reconhecerem no processo do espírito um redimensionamento da dialética do reconhecimento, em que a cultura assume o papel de elemento dialético. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 132 De fato, apesar de deslocar o foco para a filosofia da consciência, como Honneth denomina a Fenomenologia, Hegel não abandona a perspectiva social do sistema inicialmente formulado em Jena. Ademais, na Fenomenologia Hegel concilia as teses do reconhecimento e da historicidade, como vimos anteriormente. Assim, o reconhecimento mantém-se no nível do espírito, culminando em um projeto de constituição de Sittlichkeit por meio da “consciência moral”. O primeiro momento, que Hegel localiza na dialética do espírito, é aquilo que ele denomina de “mundo ético”, onde os costumes emergem como a esfera exterior imediata na qual se insere a individualidade. Aqui a cultura assume a noção de costumes e hábitos. Na Filosofia do Direito, Hegel afirma que “custom is the law PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA appropriate to the spirit of freedom”. (1991:§151) Mas, ainda no mesmo parágrafo, ele condena a excessiva dependência dos indivíduos frente ao costume e ao hábito. O hábito é repudiado pelo autor, porque é através dele que a diferença entre sujeito e natureza se dissolve, minando a possibilidade de reação do indivíduo. Assim como no processo de formação da individualidade como sujeito o primeiro resultado do movimento do reconhecimento era a disparidade entre senhor e escravo, neste processo de formação do espírito como sujeito forma-se um contexto em que a individualidade é reconhecida apenas formalmente, como reconhecimento legal, estado de direito. Este reconhecimento, posto que apenas formal, proporciona o surgimento de um “senhor do mundo”, representado na figura do imperador romano (Hegel, 1941: II 48). « La culture de ce point de vue, considérée sous l’angle de l’individu, consiste en ce qu’il acquiert ce qui est présenté devant lui, consomme en soi-même sa nature inorganique et se l’approprie ; mais, considérée sous l’angle de l’esprit universel en tant que cet esprit est la substance, cette culture consiste uniquement en ce que la subtance se donne la conscience de soi, et produit en soi-même son propre deveir et sa propre réflexion. » (Hegel, 1941:26). O surgimento do cristianismo como uma religião essencialmente privada e subjetiva, contrária à tradição antiga da religião de Estado, marca a transição do mundo antigo para a modernidade, através do princípio de alienação. É este o momento da consciência infeliz, que emerge da dialética do senhor e do escravo. Mas, do ponto de vista do processo de formação do espírito como sujeito, este momento reflete o papel do desenvolvimento da cultura como forma de, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 133 primeiramente, alienação e subjetividade e, posteriormente, de transformação e intersubjetividade. Os dois momentos estão inseridos no conceito de Bildung, que assume tanto um caráter de totalidade cultural, quanto um significado pedagógico (Elias, 1990).5 A ascensão da esfera da subjetividade através do cristianismo, que traz em si a idéia de individualismo, promove também o surgimento da noção de sociedade civil, através da difusão da idéia de Estado como meio de atingir a riqueza e interesses particulares (Hyppolite, 1968). Aqui, a analogia com a dialética da dominação e servidão da primeira parte da Fenomenologia é mais explícita, pois lá, como aqui, as noções de trabalho e cultura atuam como elementos negativos do processo, isto é, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA como momentos de mediação e superação. Na dialética do espírito, este é o momento da ascensão da noção de propriedade e da economia sobre a idéia de bem comum e de cidadania antigas (Hyppolite, 1968; Avineri, 1972). O advento do individualismo é responsável pela distinção essencial que se estabelece entre o indivíduo moderno e o indivíduo antigo. Daí decorre o repúdio de Hegel para com a democracia, que não seria mais viável em um mundo onde a individualidade está fundamentada fortemente na subjetividade e no individualismo. Não é mais possível, segundo Hegel, superpor vida privada e vida pública harmonicamente. O Estado liberal nasce, portanto, cindido entre interesse público e interesse privado, uma cisão inerente à própria individualidade moderna. Esta é a principal crítica hegeliana à teoria política iluminista, que ignora esta cisão e advoga um universalismo acrítico, tendo como corolário o individualismo epistemológico e o atomismo científico (Hyppolite, 1968). A solução que Hegel encontra para o paradoxo da política moderna situa-se na esfera da Bildung, como mediação que reconcilia a vontade individual com a vontade geral. Esta noção de cultura dinâmica que se materializa (se objetiva) no mundo através de instituições da sociedade é o que Hegel denomina “espírito objetivo”. Estas instituições e práticas são formadoras da vida pública, suas normas constituem o 5 Este duplo significado de Bildung está presente inclusive no projeto da Fenomenologia do Espírito, que é ao mesmo tempo uma obra filosófica e um projeto pedagógico. Hyppolite, 1946; Taylor, 1975; Jurist, 2000. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 134 conteúdo da Sittlichkeit. Taylor (1975) classifica esta noção como apologia da prática social. A Sittlichkeit representa uma ética que já existe, que não é exterior ao indivíduo, mas onde este indivíduo é a própria fonte destas práticas. Na Fenomenologia, a esfera da mediação cultural adquire inclusive um significado de necessidade histórica, uma vez que se torna essencial para a possibilidade de superação da sociedade civil e da formação da Sittlichkeit. Porque em Hegel a esfera da individualidade só adquire realidade no momento da ação, a participação do indivíduo no mundo torna-se parte indispensável da construção desta individualidade, ela é elemento necessário para a autonomia, a forma real de liberdade (Hyppolite, 1968:123). Por isso o cosmopolitismo é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA inconcebível para Hegel, pois mesmo que a subjetividade apresente a tese da igualdade entre homens, esta igualdade deve sempre se realizar o mundo objetivo, lócus da particularidade, da mediação e da não-essência. Mas esta esfera de objetivação, na qual o espírito se insere com vistas a tornar-se sujeito, traz em si um paradoxo. Como foi esclarecido no segundo capítulo, a noção de sujeito em Hegel é definida como a qualidade de manter a unidade na alteridade. Assim, à necessidade de afirmação do sujeito no mundo objetivo são inerentes dois significados: o negativo, que demonstra a finitude do sujeito, e o positivo, que imputa dinâmica e vida através das relações infinitas estabelecidas pelo sujeito (Hyppolite, 1968). No processo histórico de uma Sittlichkeit, de uma nação, ela conserva através de instituições as leis positivas que não mais estão em harmonia com o espírito vivo. Há um gap temporal entre a objetivação do espírito em instituições e a intersubjetividade do espírito como cultura dinâmica. Este gap que pauta o processo de institucionalização é aquilo que garante a historicidade da Sittlichkeit, uma vez que produz constantemente conflito mediante a dificuldade de estabelecimento do reconhecimento e a conseqüente necessidade de atualização (Jurist, 2000). Daí que o espírito objetivo jamais pode ser absoluto, pois não reflete o conteúdo atual do espírito. Em Hegel, este espírito objetivo está relacionado à esfera da política, incluindo aí o Estado e a Sittlichkeit. Porque nestes domínios a institucionalização do espírito encontra-se limitada pelo mundo objetivo, uma vez que O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 135 este mundo é sempre o lócus do “ser para outro” e da mediação, faz-se necessário sua atualização constante. Apenas as esferas da arte, da religião e da filosofia constituem o espírito absoluto (Taylor, 1975). O campo da política está, portanto, necessariamente inserido na dimensão histórica e temporal, que como vimos no capítulo anterior, constitui-se em uma dimensão de transformação. A cultura emerge no sistema hegeliano como vínculo entre este espírito subjetivo e sua objetivação no mundo real. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA “Ce qui, sous l’angle de l’individu singulier, se manifeste comme sa culture est le moment essentiel de la substance elle-même, c’est-à-dire le passsage immédiat de son universalité pensée dans l’effectivité ou l’âme simple de la substance, ce moyennat quoi l’en-soi est un reconnu et un être-là. (...) La culture et l’effectivité de l’individu sont donc bien l’actualisation effective de la substance même.” (Hegel, 1941: II 57). A cultura permite ao indivíduo o acesso ao universal, é o momento em que este indivíduo adere às instituições, “ il se rend adéquat à la substance” (Hegel, 1941: II57). Ao mesmo tempo, estas instituições que formam a cultura objetiva adquirem acesso à dimensão da individualidade, da consciência de si, que é a dimensão ativa do sistema hegeliano, posto que o universal só se manifesta a partir do particular. Este duplo movimento reflete o movimento do reconhecimento, pois o indivíduo reconhece as instituições que pautam sua existência e, concomitantemente, estas instituições passam a existir na realidade efetiva. Tanto o reconhecimento das instituições pelo indivíduo, quanto a ascensão desta cultura objetivada à esfera da atualidade são momentos necessários para sua futura transformação. Retomando a analogia com a dialética do senhor e do escravo, este representa o momento em que o escravo incorpora a diferença e passa a trabalhá-la no interior do seu ser “em si”. Aqui o processo de cultura adquire o segundo significado destacado acima, o de projeto pedagógico. Na Filosofia do Direito, o conceito de Bildung adquire o significado explícito de fazer a transição entre o mundo subjetivo e o objetivo, daí ser central para o projeto da Sittlichkeit: “Education [Bildung], in its absolute determination, is therefore liberation and work towards higher liberation; it is the absolute transition to the infinitely subjectivity of ethical life, which is no longer immediate and natural, but spiritual and at the same time raised to the shape of universality” (Hegel, 1991: §187). O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 136 A caracterização da cultura como esfera da mediação aparece mais adiante na Filosofia do Direito, como a dimensão que confere existência ao direito, por meio da qual este assume um conteúdo concreto: “The relativity of the reciprocal relation between needs and work to satisfy these needs includes in the first place its reflection into itself as infinite personality in general, i.e. as (abstract) right. But it is this very sphere of relativity – as that of education – which gives right an existence in which it is universally recognized, known, and willed, and in which, through the mediation of this quality of being known and willed, it has validity and objective actuality” (Hegel, 1991:§209). Como vimos anteriormente, o papel da cultura, como Bildung, na formação da Sittlichkeit, é central. Diante do significado dialético que Hegel atribui à cultura, é possível considerar duas dimensões da Sittlichkeit. De um lado, ela representa um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA sistema de costumes existentes que constituem a “segunda natureza do indivíduo”. Neste sentido, Hegel está chamando a atenção para a importância do reconhecimento da herança histórica que forma a individualidade. De outro lado, porém, a Sittlichkeit assume o significado de comunidade ética, onde a idéia de dever adquire relevância significativa. É a dimensão necessária da atualização da Sittlichkeit frente à intersubjetividade do espírito. Daí a definição de dever que Hegel formula na Fenomenologia: “ le pur devoir est le moment essentiel consistant a se comporter envers les autres comme universalité” (Hegel, 1941: II 175). A superação da dialética da cultura (a transição da alienação à transformação) aponta, por conseguinte, para a necessidade de reconhecer a esfera da existência concreta como esfera da mediação e do “ser para outro”. Este momento do ser “para outro” traz em si toda a dialética do reconhecimento que pauta o sujeito hegeliano. Daí Hegel definir o objetivo da ação social como sendo essencialmente o reconhecimento: “L’action est réconnu et ainsi effective parce que l’effectivité étant là est liée immédiatement avec la conviction ou le savoir, ou parce que le savoir de son but est immédiatement l’élément de l’être-là, est la reconnaissance universelle” (Hegel, 1941: II175). Mas na Fenomenologia esta esfera está colocada como um projeto, e não uma realidade histórica. Na Filosofia do Direito ela aparece na parte dedicada à Sittlichkeit, mas há que se manter a ressalva de Hyppolite (1968) de que não fica claro se estamos diante de uma descrição da gênese histórica do Estado ou de seu O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 137 conceito. Diante do contexto contemporâneo onde as fronteiras estatais não mais correspondem às fronteiras culturais, a concepção de Sittlichkeit limitada ao Estado fica prejudicada. Todavia, é possível pensar sua adaptação à esfera internacional sem necessariamente ferir o ideal de soberania que pauta a filosofia política de Hegel. De fato, isto é o que está postulado no conceito de sociedade internacional, quando este se encontra livre das limitações impostas por Hedley Bull, Adam Watson, Barry Buzan e Richard Little. Assim como Hegel, os autores do conceito de sociedade internacional também dão ênfase especial à dimensão da cultura como lócus da política internacional. Para tentar dar conta das transformações do sistema internacional e atribuir um conteúdo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA histórico às teorias de Relações Internacionais, os autores da Escola Inglesa postulam um retorno à dimensão da cultura, onde poderiam ser localizadas as fontes mais profundas de cooperação, na forma das instituições internacionais da guerra, diplomacia, direito internacional, grandes potências e, fundamentalmente, da balança de poder. O conceito de sociedade internacional é, assim, formulado com vistas a romper com o ahistoricismo neo-realista que reifica a estrutura ou com o atomismo liberal-institucionalista que reifica o agente. A diferença principal que emerge ao comparar as duas versões do conceito de cultura utilizadas para fundamentar tanto a teoria do reconhecimento quanto a sociedade internacional é que na obra hegeliana, a cultura assume um duplo significado, herança e crítica. Já na Escola Inglesa, a noção de cultura assume apenas o primeiro significado, o costume comum. Com isso, perde-se a dimensão da crítica e da transformação. Daí decorre a dificuldade das análises inglesas de lidar com a mudança e, conseqüentemente, a insuficiência do modelo de historicização proposto para Relações Internacionais. A superficialidade característica do conceito de cultura tal qual utilizado pelos autores da Escola Inglesa é resultante da tendência a subordinar este conceito, seja à lógica da ordem, seja à securitização ou, finalmente, à continuidade. Nos três casos, o impulso culturalista presente inicialmente no conceito de sociedade internacional encontra-se constrangido pela lógica realista e funcionalista da sobrevivência. Mais O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 138 especificamente, Bull parece-me o grande responsável por esta concepção vazia de sociedade internacional. Hedley Bull parte de uma definição de cultura como “sistema básico de valores, ou seja, as premissas das quais derivam as idéias e ações” (Bull, 2002:77). Entretanto, com relação à sociedade internacional contemporânea, o autor estabelece uma diferenciação entre cultura diplomática e cultura política intelectual (Bull, 2002:354-355). De forma geral, isto equivale a estabelecer uma diferenciação entre forma e conteúdo do conceito de cultura atualmente em vigor na sociedade internacional, o que diante da ontologia hegeliana constitui-se em uma abstração. Em suma, sua análise da genealogia da sociedade internacional estabelece PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA uma origem cultural comum, a Europa cristã, e um desenvolvimento em direção à heterogeneidade resultante de sua expansão para além do continente europeu. Nesse sentido, Bull não considera que a cultura comum seja uma característica da sociedade internacional contemporânea, que está pautada pela cultura diplomática e não pela cultura política. Este seria, em grande medida, o elemento de desestabilização da ordem na sociedade internacional. Decorre daí sua crítica à cultura cosmopolita moderna à qual é inerente a cultura dominante ocidental. Aliás, este é o mesmo diagnóstico feito por Watson (1992) ao final da sua obra sobre a evolução da sociedade internacional. Ao analisar a situação da sociedade internacional contemporânea, Bull aponta sua diferença com relação às sociedades passadas: a ausência de uma cultura comum, o que dificultaria a identificação de interesses comuns, pilar central do conceito de sociedade internacional. A expansão é a grande responsável por este esvaziamento de conteúdo da sociedade internacional, mantendo aqui a lógica também presente em Hegel do paradoxo dos impérios: extensão x profundidade. Mas a concepção de cultura em Bull está centrada em uma noção interacionista, onde os valores comuns emergem do comportamento comunicativo dos agentes. Este é o sentido presente posteriormente tanto em Buzan quanto em Wendt (Pacis, 1996). A cultura é definida, portanto, com base em um elemento behaviouralista e funcionalista. De uma certa forma, esta perspectiva considera que a dinâmica da cultura está restrita aos agentes, que atuariam na sua formação, mas não O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 139 aparecem inseridos na sua criação. Diante deste modelo, os agentes constituem-se em indivíduos racionais naturais, ou seja, são considerados a partir do princípio de tabula rasa, onde suas ações não aparecem determinadas por nenhuma estrutura prévia. Daí a necessidade de Hegel de voltar sua análise do reconhecimento também para a relação entre agente e estrutura – em linguagem hegeliana, entre individualidade e espírito. Ao postular os dois níveis de análise – entre individualidades e entre indivíduo e estrutura – Hegel consegue evitar tanto o funcionalismo, quanto o behaviouralismo. Assim, conforme já explicitado no primeiro capítulo, a idéia de ordem em Bull, ao mesmo tempo em que limita o conceito de sociedade internacional, está ela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA própria limitada pelo funcionalismo inerente às análises do autor (Hurrell, 2000). Bull atribui um valor ontológico à noção de ordem mediante a qual se permite julgar os diferentes sistemas mundiais com relação à sua capacidade de manter a ordem (Bull, 2002: cap.13). Mas, considerada como uma característica da vida em sociedade, a ordem é sempre definida pelas correlações culturais de cada período histórico, não podendo ser medida de avaliação do sistema internacional (Frost, 1996:119). É possível identificar um culturalismo implícito nas análises de Bull, mas este se encontra limitado pela forte tendência funcionalista que pauta tanto o conceito de ordem, quanto os de cultura e sociedade internacional. O conceito de instituições utilizado pelo autor é bastante esclarecedor deste dilema. O autor define instituições como “conjunto de hábitos e práticas orientados para atingir objetivos comuns” (2002:88). A definição é mais ampla que a definição liberal, posto que retira o componente do ator racional, mas ainda sim apresenta o conceito somente da perspectiva da construção das instituições e não de sua reprodução. Ou seja, este conjunto de práticas ao se institucionalizar transforma-se, ele próprio, em uma estrutura. Daí a dialética inerente ao mundo cultural e a necessidade do processo de atualização, que constituem a preocupação central de Hegel, tanto na Fenomenologia quanto na Filosofia do Direito. O funcionalismo presente na análise de Bull reproduz-se nas obras de Watson (1992) e Buzan & Little (2000). Watson também identifica uma crise da sociedade internacional contemporânea, ao desvincular forma de conteúdo. Embora não aborde O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 140 o tema da ordem diretamente, ao considerar o aspecto de continuidade da sociedade internacional através dos diferentes períodos históricos, fica implícita na análise a concepção anteriormente desenvolvida por Hedley Bull da centralidade da ordem para a política internacional. Assim como Bull, porém ampliando temporalmente a análise deste, Watson identifica as sociedades passadas como pautadas em geral por uma cultura comum. Mais uma vez, trata-se de o que ele chama de “base cultural”, que inclui valores, religião e práticas comuns. No entanto, não se deve esquecer que tanto para Watson, quanto para Bull, e mais explicitamente, para Buzan & Little, a sociedade internacional constitui-se em uma superestrutura que apenas “apimenta” a infra- PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA estrutura mecânica do sistema. Portanto, o culturalismo encontra-se limitado já na formulação inicial do modelo, que concebe uma lógica natural, mecânica e exterior aos agentes e que, em última instância, define seu comportamento. Em Watson, a cultura compõe o quadro de elementos que formam a sociedade internacional. Mas, diferentemente de Hedley Bull para quem a cultura apresentava apenas um lado interacionista, Watson concebe-a como estrutura que se reproduz, formando um contínuo razoavelmente linear desde a Grécia Antiga até a Europa moderna. Porque parte da idéia de continuidade, Watson consegue perceber a reprodução das estruturas culturais, mas sua análise fica imobilizada pelo excesso de ênfase na estrutura. Assim, os agentes têm suas ações restritas tanto pelas forças mecânicas da infra-estrutura econômica e geopolítica, quanto pela estrutura cultural que se reproduz desde a Antigüidade clássica. Se não há mais o princípio do behaviorismo, uma vez que se trata da reprodução das “bases culturais” e não de sua construção, a lógica do funcionalismo mantém-se presente por meio da “função” de equilibrar as forças mecânicas que a cultura exerce no sistema (Watson, 1992:311). Finalmente, o que define a existência de uma sociedade internacional é a presença de uma raison de système entre os membros desta sociedade. Através deste conceito, Watson vincula funcionalismo e utilitarismo em uma visão instrumental do conceito de sociedade internacional: “Raison de système does not exclude conflicts of interests; it is the recognition that the advantage of all the parties is to resolve such conflicts within the framework of the system…” (Watson, 1992:240). O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 141 Portanto, o conceito de sociedade internacional em Watson recai nos vícios de funcionalismo e utilitarismo. Não há perspectiva de ação para os membros da sociedade internacional, eles apenas reagem a estímulos oriundos das forças mecânicas do sistema e da estrutura cultural da sociedade internacional. Esta subordinação da estrutura cultural da sociedade internacional aparece explicitamente em Buzan & Little (2000). Já em artigo publicado em 1993, Buzan afirma que: “International society could evolve functionally from the logic of anarchy without preexisting cultural bonds” (Buzan, 1993a:334). De fato, nesta passagem Buzan endossa a tese de Watson da raison de système. A sociedade internacional, que era inicialmente definida por um processo de conscientização de laços comuns, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA conforme visto no primeiro capítulo, passa a ser o resultado de interesses comum por sobrevivência. A interação que se origina da percepção do interesse comum de sobreviver no sistema internacional é apenas um instrumento racionalmente trabalhado pelos membros desta sociedade que pode fomentar posteriormente o desenvolvimento de uma base cultural comum. Mas inicialmente esta interação está restrita ao reconhecimento legal entre os membros da sociedade. Com efeito, esta definição está mais próxima da idéia de sistema do que de sociedade. Mesmo Bull e Watson não levam o instrumentalismo explicitamente tão a fundo. Basta relembrar a definição que ambos formulam para o conceito de sociedade internacional: “A group of states (…) which not merely form a system, in the sense that the behavior of each is a necessary factor in the calculations of the others, but also have established by dialogue and consent common rules and institutions for the conduct of their relations, and recognize their common interest in maintaining these arrangements.” (Bull e Watson, 1984:01) A definição de Bull e Watson é mais ambígua no sentido de que não deixa claro se este diálogo que estabelece as regras e instituições comuns é definido instrumentalmente, embora essa seja uma leitura perfeitamente plausível das obras dos autores, especialmente no caso de Watson. Entretanto, mantém-se nesta definição a noção de cultura como interação e não como estrutura na qual agem dos atores. Buzan define a sociedade internacional como híbrida, corroborando assim com a tese de Bull da genealogia da sociedade internacional. Portanto Buzan (1993b) caracteriza a sociedade internacional contemporânea com origem na Gemeinschaft O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 142 européia cuja expansão é pautada pelo sentido de Gesellschaft. Ao inserir a discussão da sociedade internacional no binômio Gemeinschaft/Gesellschaft, Buzan ao final estabelece uma diferença entre conteúdo (Gemeinschat) e forma (Gesellschaft). Partidários da visão da sociedade como Gemeinschaft advogam pelo caráter comunitário da associação, onde a cultura comum atua como elemento vinculante. Já aqueles de preferem o termo Gesellschaft sustentam que uma sociedade não precisa de cultura compartilhada para existir, constituindo-se em uma associação voluntária de indivíduos racionais e, geralmente, com finalidade instrumental. No caso da sociedade internacional contemporânea, Buzan afirma que esta está inicialmente fundamentada no critério comportamental da Gesellschaft e não no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA critério cultural da Gemeinschaft: “By these criteria [the behavioral criteria of gesellschaft] the defining boundary between international system and society is when units not only recognize each other as being the same type of entity but also are prepared to accord each other equal legal status on that basis” (Buzan, 1993a:345). Deste modo, é possível para o autor considerar uma estrutura interacionista que é ao mesmo tempo utilitarista, mantendo o conceito de cultura limitado. Buzan continua sua análise da sociedade internacional afirmando que o reconhecimento mútuo legal entre Estados preenche a forma de associação desta sociedade contemporânea, vinculando-o ao conceito de cultura, definido como conjunto de interações. Portanto, tem-se o reconhecimento apenas como forma da sociedade internacional e não como conteúdo. Buzan chega a sugerir que a existência deste princípio de reconhecimento permite o desenvolvimento de identidades compartilhadas, mas subordina isto à lógica da sobrevivência que pauta toda a sua obra. Assim, lhe é possível afirmar, já com Richard Little em 2000 que: “Mutual recognition and legal equality signify not only a turning point in the development of rules and institutions, but also acceptance of a shared identity (...) This points to a more functional view, in which the development of international society can be seen as a rational long-term response to the existence of an increasingly dense and interactive international system” (Buzan & Little, 2000:106). A função do reconhecimento atua apenas na formação de uma Gesellschaft internacional, para ser fiel à definição do autor. Já em 1993, Buzan se refere ao reconhecimento mútuo como “ an affirmation of the anarchic structure” (Buzan, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 143 1993b:348). Mais uma vez, os agentes respondem a estímulos das infra-estruturas de sobrevivência, inclusive no que diz respeito à formação de uma identidade compartilhada. Isto fica evidente quando Buzan e Little abordam o tema dos sistemas mecânicos versus sistemas sociais. A conclusão dos autores é a seguinte: “ It is beyond the scope of this book to resolve the question of whether mechanical international systems can exist apart from socially constructed ones. What is clear is that both understandings are relevant to the development of international systems” (Buzan & Little, 2000:107). Ao considerar a existência de sistemas mecânicos independentemente de estruturas sociais, os autores estabelecem uma hierarquia em seu modelo. Inclusive, simplesmente ao considerar válida a idéia de sistemas mecânicos já restringem o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA modelo setorial à lógica instrumental característica do neo-realismo. A oposição entre social e mecânico que os autores apresentam reflete em grande medida o conceito restrito de cultura que adotam. Conforme visto anteriormente, isto acontece porque a Escola Inglesa, de maneira geral, adota apenas a concepção de costumes comuns, onde o elemento interacionista é a chave para entender os processos culturais, considerando que agente e estrutura atuam no mesmo plano temporal. Ao fazer isto, acaba-se dando prioridade ou ao agente e sua ação de construir a estrutura (Bull), ou à estrutura, que definiria as reações dos agentes (Watson e Buzan & Little). Entretanto, na formulação original do conceito em Hedley Bull, isto não está implícito. De acordo com esta definição, trata-se de um processo de conscientização, portanto, de um processo eminentemente cultural. E o resultado deste processo se institucionaliza através de práticas na sociedade internacional. Práticas estas que não são estáticas posto que trazem em si a força do reconhecimento. Nesse sentido, não caberia enxergar na sociedade internacional contemporânea apenas um conjunto de práticas diplomáticas vazias resultantes da interação dos agentes. Em uma certa medida, estas práticas institucionalizaram-se e constituem o conteúdo da sociedade internacional atual. Elas compõem, portanto, uma forma de interação que pauta as relações entre os agentes, onde a necessidade de reconhecimento da identidade ocupa lugar central. O reconhecimento é tanto um elemento formal quanto constitutivo da identidade. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 144 Transpondo esta lógica para a ontologia hegeliana, fica claro que o conceito de sociedade internacional pode ser lido como uma determinada Sittlichkeit. Mas, por ser um conceito dialético, implica sempre em conflito: a guerra, portanto, é um momento interno da sociedade internacional e não exterior, faz parte do processo de atualização e reconhecimento. Daí as instituições da sociedade internacional definidas por Hedley Bull incorporarem a guerra, a diplomacia, a balança de poder, o direito internacional e as grandes potências. Estas instituições constituem formas de luta pelo reconhecimento no plano internacional e pautam as identidades dos atores neste processo. Isto permite conceber uma estrutura dinâmica que pauta os agentes por meio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA de sua historicidade, através das “regras do jogo” cuja origem é essencialmente cultural e não instrumental, e que é “atualizada” pela ação destes agentes ao buscarem reconhecimento, por conseguinte redefinindo constantemente suas identidades. Ou seja, em linguagem hegeliana, estas são identidades em processo, nunca estanques em si ou para si. Daí a conclusão de David Boucher: “Although states unlike citizens do not belong to an organized whole, they do share common experiences and sympathies that constitute the common Sittlichkeit in which obligations arise” (Boucher, 1998:347). Segundo Boucher, existem duas fontes para o direito internacional, que Hegel classifica como obrigação internacional: os costumes nacionais, que estão vinculados à noção de welfare dos cidadãos, e o código de costumes internacional, que emerge dos processos históricos de relacionamento entre as comunidades políticas (Boucher, 1998:346). Por isso Hegel defende que os costumes são a base da Sittlichkeit. Eles podem formar uma constituição nacional, compondo assim uma totalidade orgânica. Mas nada impede que eles mantenham sua validade no mundo exterior, onde vigora a luta pelo reconhecimento. Assim, tanto a guerra (1991:§338) quanto a diplomacia (1991:§339) são elementos da Sittlichkeit internacional. Finalmente, cabe ressaltar que o conceito de sociedade internacional, quando lido a partir da perspectiva da Sittlichkeit, permite associar as duas instituições da vida ética, a sociedade civil e o Estado. “The immediate actuality in which states coexist is particularized into various relations which are determined by the independent arbitrary wills of both parties, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 145 and which accordingly possess the formal nature of contracts in general.” (Hegel, 1991:§332). “The relationship of states to one another is a relationship between independent entities and hence between particular wills, and it is this that the very validity of treaties depends.” (Hegel, 1991:§336). A sociedade internacional não deve ser compreendida como equivalente da sociedade civil, posto que esta lida com indivíduos “incompletos” enquanto aquela é composta por totalidades estatais. Por outro lado, não se trata de um Estado mundial, já que não constitui autoridade central e totalidade orgânica. Assim, a sociedade internacional engloba os processos que constituem a vida ética hegeliana, inclusive a família. Porque a soberania hegeliana é aquilo que constitui a individualidade do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA Estado, e tendo em vista que esta soberania apresenta tanto um lado interno quanto outro externo, a sociedade internacional influencia diretamente na definição da individualidade (ou identidade) do Estado. Hegel chega inclusive a reconhecer a existência de uma família de nações européias: “ The European nations form a family with respect to the universal principle of their legislation, customs and culture [Bildung]” (Hegel, 1991:§339). Vale lembrar que a Europa, na época de redação da Filosofia do Direito (1821), estava apenas iniciando as articulações que ficaram conhecidas como o Concerto Europeu – tido como o primeiro modelo de sociedade internacional. Nesse sentido, se a sociedade internacional não pode ser considerada uma individualidade “para si”, já que não constitui uma totalidade, não obstante ela se constitui como o lócus de existência e de convivência das totalidades. Todavia, este lócus está ele próprio inserido dentro da ontologia maior do reconhecimento e da historicidade, formando assim um “estado de natureza” qualificado. A ética, ao ser historicizada na Sittlichkeit, passa a ser um componente ontológico do sujeito, seja ele o indivíduo, o Estado ou o Espírito. Assim, é possível recuperar o aspecto normativo próprio da proposta inglesa, não mais como um imperativo moral, que gerou o debate entre solidaritas e pluralistas, mas como reflexo da historicidade do internacional. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 146 4.4 O reconhecimento na sociedade internacional: para além do contratualismo. Uma vez considerada a sociedade internacional como Sittlichkeit, portanto incorporando a lógica do reconhecimento e da historicidade às Relações Internacionais, torna-se praticamente inevitável fugir da crítica ao contratualismo que o próprio Hegel desenvolve a partir da sua idéia original de Sittlichkeit. Segundo Adam Watson (1992), as sociedades internacionais estariam pautadas por contratos. Mais especificamente, Watson defende que o grau de integração destas sociedades internacionais está pautado pela relação que estabelecem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA com este contrato social consciente. Aquelas sociedades que vão além das instituições do contrato, ou seja, que estabelecem culturas e normas comuns, são exatamente as sociedades onde os vínculos contratuais estão mais seguros e onde se torna mais difícil ignorá-los: “In addition to a contractual area of explicit rules and institutions, the members of past international societies also observed certain unwritten codes of conduct, values and non-contractual assumptions. (…) Such non-contractual links were taken for granted in eighteenth-century Europe. The distinguished characteristics of a consciously ordered society of states can be seen most clearly in the areas of noncontractual practice, and it is these areas that an international society develops its individual style.” (Watson, 1992:312). Portanto, a efetividade do contrato social consciente entre sociedades internacionais depende, de certa forma, do estabelecimento de normas e culturas comuns. A Europa do século XVIII reconheceu estas instituições como valores comuns e conscientizou-se, segundo Watson, do processo de aproximação cultural que testemunha até os dias de hoje. Porém, ao expandir-se à esfera global, esta mesma sociedade européia vê sua sobrevivência ameaçada. Mas cabe questionar se é a efetividade do contrato que depende da existência de cultura comum prévia, ou se é a própria instituição do contrato que pressupõe esse vínculo cultural. A citação utilizada na seção anterior (1991: §332) deixa claro que Hegel também se refere às relações entre Estados como contratos típicos da esfera da sociedade civil. Os tratados, por conseguinte, estariam pautados pela idéia de contrato entre particulares, lembrando que os Estados agem na esfera internacional como O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 147 particularidades. Assim, uma parte das relações internacionais é composta pelos tratados, institucionalizados no Direito Internacional. Mas uma outra parte das relações internacionais é composta pela guerra, que pauta o elemento da soberania externa dos Estados (1991: §324-325). No geral, as relações internacionais são constituídas pelo reconhecimento (1991: §331) ou pela ausência de reconhecimento, que implica em conflito (1991: §338). Finalmente, o elemento de cultura também se faz presente por meio dos costumes e da Bildung institucionalizada no concerto europeu. Por conseguinte, me parece insuficiente compreender as relações internacionais, uma vez que constituem relações sociais, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA como relações contratuais. Afinal, como esclarece Hegel: “Contract presupposes that the contracting parties recognize each other as persons and owners of property; and since it is a relationship of objective spirit, the moment of recognition is already contained and presupposed within it” (Hegel, 1991:§71). O contrato não é inválido como instrumento de análise, mas não pode ser tomado como ontologia da sociedade. De fato, Mervin Frost (1996) argumenta veementemente a respeito do assunto.6 Segundo ele direitos individuais e soberania estatal não são necessariamente incompatíveis. A teoria do contrato social estabelecia, em grandes linhas, que o indivíduo abriria mão de uma parte de seus direitos em favor do Estado, em troca de segurança e sobrevivência. Não obstante, Hegel esclarece que o mecanismo do contrato não pode ser aplicado a Estados porque estes constituem totalidades e não uma soma das vontades particulares dos seus cidadãos (1991: §75). Ademais, como deixa claro a citação acima, contratos pressupõem o reconhecimento. Na concepção hegeliana de individualidade, o lugar do Estado é determinante no processo de formação do indivíduo. Este só é completamente “em si” e “para si”, ou seja, só é sujeito, quando faz parte de um Estado. É nesse sentido que Frost argumenta que uma ameaça à soberania do Estado – ou, indo mais além, um não reconhecimento do Estado – torna-se uma ameaça à própria individualidade dos cidadãos (Frost, 1996:153). Assim, é essencial notar que: 6 Uma série de autores partilha as idéias de Frost. Aliás, ele não é o primeiro nem o único crítico do contratualismo. Outros autores e vertentes da teoria política, como os comunitaristas, poderiam ser citados aqui. A opção por Frost justifica-se por ele associar explicitamente a crítica do contratualismo à teoria do reconhecimento e ao conceito de sociedade internacional. O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 148 “To be recognized as a citizen of a good state and to recognize others as such is to be self-conscious about the way in which you (...) and others mutually constitute one another within a system of reciprocal recognition” (Frost, 1996:151). À sociedade internacional, assim como ao Estado e a todas as instituições da vida ética em geral, é inerente a dialética do reconhecimento. Frost desenvolve esta idéia do reconhecimento internacional como um aprendizado das regras do jogo, que diferentemente das análises da Escola Inglesa, não é apenas formal, mas constitutivo. Com efeito, Frost afirma que aqueles Estados que participam do jogo da política internacional, ao reconhecerem outros interlocutores, assumem “a commitment (...) to educate [the other] into this practice” (Frost, 1996:154). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA Certamente esta noção de educar o outro Estado com relação às regras da sociedade internacional traz em si uma idéia de dominação e eurocentrismo. Mas se pensarmos de acordo com o significado dialético que Hegel atribui à cultura e à Bildung, especialmente fazendo analogia à dialética do senhor e do escravo, é possível vislumbrar uma sociedade internacional dinâmica, onde são inerentes as assimetrias e as lutas pelo reconhecimento, daí ser caracterizado como estado de natureza. Portanto, se inicialmente o reconhecimento é concedido aos novos Estados da sociedade internacional com vistas a estabilizar as relações (Frost, 1996:155), por ser dialético este reconhecimento implica sempre a possibilidade de desestabilização. Além disso, a idéia da sociedade internacional como Sittlichkeit não aponta para um cosmopolitismo, posto que sempre quem age é o particular e, no caso da sociedade internacional, este particular é na realidade uma totalidade. Por isso o processo no plano internacional constitui-se essencialmente em processos históricos. Mas não necessariamente antiético, posto que são constituídos pela ética do reconhecimento. Assim, por meio deste processo contínuo é possível atribuir historicidade à realidade internacional. Esta dinâmica que surge com a incorporação da noção de reconhecimento à sociedade internacional permite pensar agente e estrutura agindo conjuntamente sem necessariamente pressupor uma anterioridade de qualquer um deles, ou ainda, que seus efeitos compartilhem o mesmo plano temporal. O reconhecimento e seu O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 149 corolário, a historicidade, implicam que a constituição do sujeito comporta uma série de camadas, que agem em tempos distintos. De forma geral, esta formação múltipla do sujeito hegeliano está sintetizada na idéia de pertencimento cultural. “The constituted self is composed of multiple forms of recognition and, what is provided in one institution may be remedied (...) but not replaced by another. (…) Within the state individuals are constituted as free, but freedom as a citizen only fully flourishes when the state is recognized as autonomous by other states. The international system of states provide an additional constitutive level of recognition” (Boucher, 1998:399). A noção de pertencimento a um conjunto cultural maior faz parte da constituição do indivíduo como sujeito. Esta é a lógica intrínseca da ontologia hegeliana que, por meio do reconhecimento e da historicidade, socializa as relações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA humanas retirando-lhes o caráter de natureza. Aqui Hegel nutre-se diretamente na noção de pertencimento de Herder, para quem pertencer a uma cultura significava realizar os objetivos humanos, daí ser uma noção ativa e não passiva (Berlin 1979:173). Por isso o individualismo metodológico e a lógica do ator racional compreendem apenas parcialmente a realidade social. No caso das Relações Internacionais, este atomismo epistemológico encontra-se tanto no realismo quanto no construtivismo em sua versão Wendt. Igualmente, tanto o realismo estrutural de Buzan quanto a teoria sistêmica de Wallerstein também captam apenas um lado do problema, pois reificam suas análises através de um estruturalismo empobrecedor. “Whatever else may be said about Hegel’s reconstructed theory of universals, its supreme merit, as far as ethics and social and political philosophy are concerned, is that the concrete universal explicates affirmative intersubjective relations, and makes possible an account of social institutions that is a third alternative to abstract atomic individualism and collectivist communitarianism” (Williams, 1997:112). A Escola Inglesa procura fugir desta perspectiva ao apostar nas análises históricas. Mas, conforme foi argumentado, apesar da proposta, eles mantêm-se no cerne da tradição contratualista ao adotarem um conceito de cultura restrito. De acordo com Pacis (1996) e Kratochwil (1996) parece haver uma certa reticência em levar a fundo o princípio culturalista da sociedade internacional. O que se procurou fazer neste trabalho foi mostrar como, levado ao extremo, uma análise culturalista pode proporcionar leituras mais ricas e complexas da realidade internacional. Assim, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 150 a principal contribuição de Hegel para Relações Internacionais poderia ser definida adaptando a expressão de Alexander Wendt: “ culture all the way down” . 4.5 Conclusão A lógica do reconhecimento, associada à noção de historicidade, constitui o conceito hegeliano de Sittlichkeit. Enquanto na Fenomenologia, o reconhecimento aparece fundamentalmente em relação ao indivíduo e ao processo de socialização que é inerente à formação das individualidades, na Filosofia do Direito, este reconhecimento está vinculado fundamentalmente ao Estado. De forma mais geral, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA reconhecimento é o elo que vincula sujeitos e liga agente e estrutura no pensamento hegeliano. O mínimo que emerge de um processo de reconhecimento é a conscientização da historicidade dos sujeitos, ou seja, a necessidade dos indivíduos em reconheceremse nas instituições de seu tempo (das quais são resultado) para que possam transformá-las, tornando-se eles próprios sujeitos. O máximo que surge no processo de reconhecimento, isto é, do processo completo, é a institucionalização deste reconhecimento em práticas e direitos. Aqui, a definição de Sittlichkeit é bastante significativa, porque localiza uma essência ética primordial ao mundo social, a ética do reconhecimento. Porque em Hegel o indivíduo só é livre quando reconhecido, a incorporação da alteridade à individualidade permite a formação de uma intersubjetividade que se manifesta através da cultura. É importante lembrar a dupla definição de cultura que garante o dinamismo do sistema hegeliano. Para Hegel, cultura é tanto costumes e práticas comuns, quanto um processo de aprendizado, a Bildung. Ela traz em si o dois momentos do reconhecimento, o auto-reconhecimento e o reconhecimento recíproco. É, portanto, tanto uma aceitação da herança passada quanto a necessidade de alterá-la diante das novas configurações sócio-temporais. A existência de um gap temporal entre a esfera subjetiva da cultura e sua objetivação no mundo real introduz a necessidade de atualização constante das instituições. Daí a intersubjetividade hegeliana ser essencialmente ativa, dinâmica, O reconhecimento e sua incorporação ao debate da Escola Inglesa 151 posto que pressupõe o processo de atualização como elemento definidor do próprio sujeito. Não obstante, o conceito dinâmico de cultura não aparece nas análises da Escola Inglesa. Porque os ingleses apenas identificam cultura e herança, o elemento transformador da Bildung se perde. Esta superficialidade que caracteriza o conceito e cultura “inglês” é resultante, em grande medida, de sua subordinação aos princípios do jusnaturalismo, que pautam todo o projeto da Escola Inglesa. Assim, em Hedley Bull, a cultura aparece subordinada à ordem. Já em Watson, está subordinada diretamente ao contrato social e à continuidade que dele deriva. Por fim, Buzan & Little relegam-na a apenas um setor da realidade social, subordinando-a à infra- PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210264/CA estrutura mecânica que rege as relações internacionais. Entretanto, uma associação entre sociedade internacional e Sittlichkeit permite superar esta dificuldade inicial das análises inglesas e, conseqüentemente, escapar da armadilha do contratualismo. De fato, a leitura da sociedade internacional como Sittlichkeit introduz a dialética do reconhecimento às Relações Internacionais. As instituições que são definidas como elementos da sociedade internacional, ou seja, a guerra, a diplomacia, o direito internacional, as grandes potências e a balança de poder constituem assim processos da Sittlichkeit internacional através dos quais os sujeitos buscam reconhecimento, isto é, buscam sua liberdade. Considerando que a sociedade internacional e a noção de Sittlichkeit compartilham o mesmo elemento ativo, o reconhecimento, parece-me extremamente oportuno trazer esta contribuição do pensamento hegeliano para a disciplina de Relações Internacionais.