O Vietnã de Bush (O Globo - 27/01/2004) Um problema que a história mundial demonstra ser insolúvel é o da dominação dos povos, em que, por mais que se pretenda justificá-la, a reação dos dominados é sempre de intolerância e de inconformismo, com atentados, golpes e revoluções, no objetivo de sacudir o jugo da invasão. Se nas civilizações orientais, a partir da história narrada, as dominações duravam séculos, é interessante notar que jamais os invasores tiveram vida tranqüila, sempre devendo reprimir com violência os movimentos locais. Chineses, indianos, elamitas, babilônios, assírios, mitâneos, hititas e outros povos da região, viveram um processo “gangorral” de domínio, inconformismo e reação não distinto da atualidade. Até os egípcios, protegidos por uma barreira natural e sem vocação para invasões, quando dominados pelos hicsos souberam expeli-los depois de séculos, como elementos estranhos a sua cultura. A civilização grega jamais chegou a ser imperialista, apesar da Magna Grécia constituída, na Itália, pelo fenômeno das cidades-Estados, que dificultava a formação de um império. E o pretendido domínio de Alexandre, não resistiu a sua morte e a divisão de seu reino entre Aquemênidas, Lágidas e Seleucidas. Roma, graças ao Direito, teve um domínio mais estável, pois garantia aos povos conquistados a segurança do “jus romanorum”. Roma Ocidental, todavia, não sobreviveu aos bárbaros e a oriental aos turcos. Em 711, os árabes invadiram a Península Ibérica e de lá foram expulsos em 1493, jamais tendo vida fácil em sua luta com os cristãos. E mesmo os grandes impérios, formados a partir da Renascença, foram sendo divididos, nos séculos, pelas reações dos povos dominados. O fato, entretanto, mais recente foi o da reação francesa ao Governo de Vichy, imposto por Hitler depois da invasão da França em 1940. Jamais os franceses o toleraram, sendo constantes os atentados contra alemães e contra os próprios franceses que aderiram ao invasor. Nada diferente ocorre, portanto, no Iraque. Os ataques diários contra os invasores americanos é uma reação natural do povo iraquiano --que viu a destruição de seu país e a morte de mais de doze mil seres inocentes-- contra a insanidade de guerra declarada sem motivo. Todos os que conhecem Bagdá --inclusive os brasileiros que lá trabalhavam-- sabiam que Saddam Hussein era um ditador sanguinário em relação aos opositores ao poder, mas mantinha o país em ordem, com o povo iraquiano tendo seus negócios em andamento e a segurança de uma vida tranqüila. É de se lembrar que os valores da cultura islâmica diferem daqueles ocidentais, sendo que, hoje, os principais aliados americanos são ditaduras estabelecidas naquela área (Arábia Saudita, Emirados Árabes, Kuwait), assim como era a de seu ex-aliado Saddam Hussein, na década de 80, quando, estrategicamente, se transformou em peça importante para os Estados Unidos. A cultura islâmica exalta três valores, a saber: a religião, a família e o governante, que imponha ordem. Nada tem a ver com as democracias ocidentais, em que a liberdade é o bem maior a ser preservado. Ora, quando “terroristas” árabes perdem sua própria vida nos atentados contra o exército americano, seus aliados e iraquianos adesistas, na verdade só o fazem --ao sacrificarem seu bem maior, que é a própria vida-- porque acreditam que o invasor estrangeiro deve ser repelido. Os iraquianos, que rejeitam a invasão do Senhor da Guerra, não são, portanto, diferentes dos franceses que resistiram ao invasor alemão, de tal maneira que destino melhor não vejo para os americanos de Bush, no Iraque, do que o dos alemães de Hitler, lembrando-se que a cada civil morto ou negócio destruído pelos americanos, criam-se novos pólos de resistência às tropas aliadas. É bem verdade que muitos atribuem à referida guerra a finalidade de conquista, para assegurar o fornecimento de petróleo pela segunda maior reserva do mundo, visto que estão a se esgotar as americanas. Se foi esta a razão, indiscutivelmente, toda a pouca autoridade moral que o presidente Bush possuía vai por terra. O tempo, todavia, não favorece Bush. Os valores americanos não são implantáveis no Iraque, como os dos ingleses não foram implantados na Índia, depois de séculos de dominação. Cada sociedade tem sua cultura e sua maneira de ser, a história jamais perdoando aqueles que desconheçam tais lições. A longa guerra do Vietnã ofereceu ensinamentos que o Presidente Bush não aprendeu, pagando, por não ser bom aluno, um alto preço diário, com a vida de americanos e aliados mortos, desnecessariamente.