Os Controles Democráticos sobre os Serviços de Inteligência em Portugal e Brasil sob uma perspectiva comparada Carlos S. Arturi (UFRGS) e Júlio C. C. Rodriguez (Universidade de Lisboa) O trabalho analisará, sob uma perspectiva comparada, os serviços de inteligência de Portugal e do Brasil, a partir de sua redemocratização, nas últimas décadas do século passado, até os dias atuais. A comparação permitirá melhor qualificar algumas hipóteses relativas aos constrangimentos à consolidação dos novos regimes democráticos que se referem à institucionalização dos serviços de inteligência e de segurança interna, com legitimidade e sob controle democrático. Compartilhamos a premissa, explicitada por diversos pesquisadores, de que serviços de inteligência e de segurança interna institucionalizados, legitimados e eficazes são fundamentais para que os regimes democráticos cumpram as funções essenciais de manter a ordem interna, a soberania do país e a eficácia na formulação de políticas de segurança pública. O problema crucial do tema em análise é a tensão, sempre existente nos regimes democráticos, entre as funções coercitivas das organizações de segurança pública e as liberdades e direitos civis dos cidadãos, bem como entre as necessidades do segredo das funções de inteligência e os controles democráticos de suas atividades (accountability). Especialmente nos países da “terceira onda” de democratizações, seus atuais órgãos de inteligência e de segurança interna são, frequentemente, herdeiros daqueles que operavam durante as ditaduras, vinculados à repressão política. Assim, o amálgama entre segurança pública e segurança nacional, entre inimigo externo e interno, bem como o baixo controle exercido pelas instituições políticas sobre as atividades e a regulamentação dos serviços de inteligência e de manutenção da ordem interna, impregnou os passos iniciais da institucionalização destas organizações na maioria dos países recentemente democratizados, frequentemente com efeitos deletérios sobre as liberdades civis. A questão que buscamos responder consiste em saber em que medida os atuais regimes democráticos de Portugal e o Brasil conseguiram equacionar estes dilemas políticos essenciais para a consolidação da democracia. Nesta perspectiva, como estão constituídos e atuam seus sistemas de inteligência e de segurança interna? Qual o grau de controle político democrático sobre as organizações de inteligência e de segurança? Qual o padrão das relações entre civis e militares? Os limites, atribuições, os mandatos legais e a coordenação destes órgãos estão claramente definidos? As instituições políticas e civis de controle e supervisão destas atividades, particularmente o Legislativo e suas comissões especializadas, possuem recursos e mandato legal para exercer a contento suas funções no regime democrático? O objetivo central do paper consiste, portanto, na comparação entre os arranjos institucionais dos serviços de inteligência e de segurança interna dos dois países, que salientará suas convergências e divergências, sobretudo no que concerne aos controles democráticos sobre estas organizações. A principal semelhança entre os casos estudados consiste no fato de que estas organizações concentraram-se primordialmente, durante suas respectivas ditaduras, na repressão da oposição política. As divergências entre os dois países são, todavia, mais numerosas. Em Portugal, houve guerras coloniais e uma revolução com ruptura entre o antigo e o novo regime, bem como a inserção do país na União Europeia, da qual decorreram reformas de sua organização da segurança interna que a enquadram atualmente nas regras democráticas daquela entidade regional. Por sua vez, o Brasil vivenciou uma transição negociada, com alta continuidade política, persistência da militarização e baixo controle civil sobre as organizações de inteligência e segurança. Com efeito, estas características, associadas à baixa capacidade estatal para garantir os direitos dos cidadãos e ao desinteresse do legislativo e da sociedade a respeito do controle destas organizações, dificultam sobremaneira a legitimação e a institucionalização do sistema de informações e de segurança do país, apesar das importantes reformas realizadas nos últimos anos para aperfeiçoá-los. Em suma, a estrutura do sistema de inteligência brasileiro, ao contrário daquela de Portugal, defronta-se ainda com o desafio de se institucionalizar, em período de conflito e de indefinição aguda em relação ao seu futuro próximo. Embora não seja objeto da análise, as políticas de inteligência militar serão abordadas apenas quando incidirem sobre a segurança interna, através da militarização crescente da luta antiterrorista e das denominadas “novas ameaças” (criminalidade transnacional, imigração ilegal, contestação internacional, etc.). Nossa hipótese central é a de que as principais variáveis explicativas da configuração e evolução recente dos sistemas de inteligência e de segurança nos dois países são: as características das ditaduras, o modo de transição política, as mudanças ocorridas durante a consolidação da democracia, o desenho institucional inicial destes órgãos, a interação entre os diversos e as escolhas estratégicas dos atores envolvidos, bem como as relações entre civis e militares. Essas variáveis incidem diferentemente na configuração dos atuais serviços de inteligência, conforme a história política de cada país. Igualmente, este esforço analítico permitirá aquilatar o grau atual de institucionalização e de legitimidade dos sistemas portugueses e brasileiros de inteligência e de segurança interna, à luz da ainda escassa, mas qualificada, literatura científica a respeito do tema nos dois países. A produção especializada destaca que a estrutura do sistema de inteligência brasileiro, ao contrário daquela de Portugal, defronta-se ainda com o desafio de se institucionalizar, em período de conflito e de indefinição aguda em relação ao seu futuro próximo. Nosso trabalho pretende melhor qualificar esta assertiva, ao focar a análise nas instituições e mecanismos de controle democrático destas organizações nos dois países. Este trabalho aborda principalmente os serviços nacionais de inteligência externa e de segurança interna (voltada crescentemente para atividades de caráter policial e de manutenção da ordem, assim como para as “novas ameaças” e para a luta antiterrorismo). Atenção semelhante será dedicada à verticalização das atividades de inteligência e de segurança, que formam sistemas nacionais e regionais, e à sua horizontalização, criada pela expansão de organizações especializadas. As fontes de dados utilizadas na pesquisa são provenientes de documentos oficiais, da legislação específica, da bibliografia especializada e de material de imprensa, relativas aos dois países. O trabalho apresenta os resultados da pesquisa de pósdoutorado do primeiro autor, que entrevistou vários responsáveis portugueses da área de justiça e assuntos internos, e a de doutoramento do segundo autor. A pesquisa conta com o suporte do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) e do PPG em Ciência Política da UFRGS, bem como do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.