filosofia e outras formas de conhecimento - Dacie

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FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE CONHECIMENTO
Por Ivanor Luiz Guarnieri1
Introdução
O que a palavra filosofia evoca?
Seguidamente se ouve dizer que a filosofia é um conhecimento que, além de
difícil, é inútil. Ou que o filósofo está com a cabeça no "mundo da lua". É conhecida a história
de Tales de Mileto, quando andava contemplando o firmamento e caiu em um buraco. Sua
escrava o ajudou a levantar-se e questionou-o como ele queria entender o céu se não olhava
sequer o mundo aos seus pés. Ou ainda a história de Sócrates que ouvia as reclamações de sua
mulher, Xantipa. Como ele pouca importância dava aos gritos dela, esta jogou água sobre ele.
Sócrates então teria exclamado: "Depois do trovão vem a chuva".2 Histórias como estas
podem ter levado algumas pessoas a acreditar que a filosofia é um conhecimento exótico,
estranho e distante da realidade. Mas nada disso é verdadeiro, como se procurará mostrar.
É que enquanto a maioria se ocupa de discursos laudatórios à realeza, o filósofo
questiona o que é a realeza, que é o louvor, por que um homem deve elogiar outro, por quais
motivos se devem elogiar, quais as melhores ações, portanto dignas de louvor e se a realeza
tem tido tais ações. A afirmação de que alguém é tido como honesto suscita a questão
filosófica que pergunta o que é a honestidade. Isso remete ao problema dos fundamentos e dos
critérios derivados desses fundamentos, que permitem julgar e aquilatar acerca das coisas que
cercam as pessoas e fazem parte de seu dia a dia.
É notório como hoje há um crescimento nos estudos filosóficos, ou seja, as
questões de ordem política, ética e do conhecimento, embora não sejam distinguida
claramente por alguns, são sentidas como relevantes e dignas de reflexão. Tal pode ser
observado na presença cotidiana da filosofia, nas mais diferentes situações. Bastaria
considerar as atitudes, os projetos, os trabalhos encontrados em uma escola para perceber, ao
menos implicitamente, a presença da filosofia no próprio trato metodológico do que é
estudado. Mesmo que alguém diga: "Eu não sigo nenhuma filosofia." Isto já é filosofia, ao
menos no sentido amplo do termo.
O homem moderno está apaixonado pelo fazer e esqueceu-se ou tem dado pouca
importância ao contemplativo. A própria palavra contemplativo gera desconforto em alguns,
1
2
Professor de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Campus de Vilhena
Citado por MENDONÇA, E. P. de. O Mundo Precisa de Filosofia. 6. ed. Rio de Janeiro : Agir, 1981.
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Ivanor Luiz Guarnieri
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imaginando que se trata de ficar olhando as nuvens, interessado em coisas de pouca monta.
Não é nada disso, contemplar é antes um breve afastamento da realidade massacrante do dia a
dia, para poder olhar melhor. Como se alguém estivesse no vale contemplando a montanha,
ou subisse a montanha para olhar melhor o vale, a contemplação filosófica permite observar
aspectos nem sempre claros acercado mundo3. Enquanto alguns se preocupam em como fazer,
a filosofia ocupa-se do porque fazer, para que fazer, quem se beneficia com o fazer das
coisas. Esperançosos em realizar grandes feitos e amealhar fortuna, conviria refletir acerca
dessa vontade, pois que, seguidamente, o desejo em ter sempre mais, nem sempre torna o
homem dono das coisas, e considerando uma ambição desenfreada em ter, é possível dizer
que, nesse caso, não é pessoa dona de muitas coisas, mas quase sempre as coisas é que são
donas da pessoa. Portanto, não só o como ter é importante, tanto ou mais importante é o
porquê ter, e este questionamento é antes de tudo filosofar.
A presença da filosofia se faz sentir nas doutrinas religiosas, no pensamento
político, nas teorias econômicas, na base da ciência, na preocupação com o método, nos
inúmeros questionamentos e julgamentos de valor, enfim, é possível afirmar que a filosofia é
o oxigênio no tocante a racionalidade. O homem sempre procurou teorizar, encontrar
explicações para o mundo que o cerca e constantemente lhe trazia pavor. Daí as inúmeras
formas explicativas de mundo, e todas elas partem de um posicionamento. O porquê deste ou
daquele posicionamento é uma atitude filosófica, mesmo que nem sempre se dê conta disso.
1.1- O senso comum, a consciência filosófica
Seguindo este raciocínio, podemos dizer que todos os homens, desde o primitivo
até aqueles tidos como os mais brilhantes, são filósofos. Todos buscam organizar suas idéias
em teorias explicativas de mundo. O cientista quando está em seu laboratório pesquisando
uma vacina capaz de curar algum mal, ou criando uma terrível bomba, capaz de matar
milhares, embora possa dizer que como cientista o que lhe interessa é o conhecimento por si
mesmo, já tomou uma posição ético/filosófica a favor ou contra a vida. "Por trás" das atitudes
e posições existe sempre um pressuposto filosófico, então se dizer que todo homem é
filósofo, capaz de posicionamento diante dos problemas e de ações baseadas neste
posicionamento.
Quanta vez se ouve falar em liberalismo, comunismo, anarquismo, etc., pois estas
teorias que tanto ouvimos é resultado de interpretações de mundo dadas por homens capazes
3
Mundo entendido como mundo humano, de cultura.
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de formulações teóricas elaboradas. A filosofia, portanto, não é inocente e desinteressada. O
mundo de hoje está fundado em concepções liberais. O Liberalismo é um conjunto de ideias
cuja constituição foi levada a efeito pelos filósofos da chamada Ilustração, notadamente no
século XVII e XVIII. Por essas teorias defende-se a liberdade individual, afirma-se que os
homens nascem livres e iguais, e deseja-se que todos tenham os mesmos direitos - muito
embora a realidade cotidiana tenha desmentido a igualdade. Tais ideias fazem parte do
cotidiano de milhões, bilhões de pessoas que vivem no capitalismo, apesar de detalhes de
realidades sociais e econômicas entre os povos variar.
A história tem mostrado exemplos da influência de certas idéias sobre o destino
de povos inteiros. Basta lembrar a implantação ou tentativa de implantação de idéias no
campo político. Milhões de pessoas vivem sob regimes cujos princípios foram extraídos da
filosofia marxista ou mais genericamente do materialismo histórico.
As concepções de mundo medievais determinavam a vida e as relações entre as
pessoas. Em um tempo onde se a realidade não estava de acordo com as idéias, era porque a
realidade estaria errada, e se tornava necessário encaixar a realidade às idéias. Pensamentos
estes varridos pela chamada revolução copernicana e pelas novas concepções de ciência e de
homem, marcantes nos séculos XVII e XVIII.
Do que foi dito nesta introdução fica patente a importância da filosofia. Mas esta
importância se verificará ainda mais, a medida que a o estudo avançar, retirando dele frutos
proveitosos para uma melhor compreensão de mundo e um aprofundamento das questões que
norteiam a cosmovisão que todo ser humano possui, e com a qual se posiciona no mundo,
desenvolvendo o poder de análise sobre a realidade circundante, a possibilidade de acerto nas
decisões tende a aumentar, claro. Nasce disso a questão tão difundida em filosofia que
aponta: Não devemos perguntar o que faremos com a filosofia, mas sim o que a filosofia fará
por nós.
Filosofia
Partindo da própria
palavra filosofia, formada por
dois vocábulos, cujo
significado é filo=amigo; sofia=sabedoria. Mas dizer isso é insuficiente, embora possa dar
uma pista. Já que o filósofo estaria preocupado com a sabedoria,
surge porém outro
problemas: o que é sabedoria?
Tentar uma outra
definição
de filosofia é possível. Porém é igualmente
importante para o estudante, ele mesmo buscar em dicionários possíveis definições da
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
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filosofia. Seja em dicionário de língua portuguesa ou, melhor ainda, em dicionários de
filosofia4. Encontrará o estudante sedento de conhecimento, inúmeras definições de filosofia.
Tal quadro não deve desanimá-lo, mas mostrar a complexidade do termo.
Em vista disso, convém doravante fazer uma breve análise das possibilidades e
do campo de estudo da filosofia. Tal esforço levará a conhecer os estudos filosóficos, sue
campo, sua problemática, levando a uma maior compreensão da disciplina, e quanto maior a
compreensão maior importância será dada a ela.
Claro que a filosofia é uma atividade. Mais é uma atividade humana intelectual e,
portanto visa ao saber. Dizer isso é dizer o óbvio. Importante, porém é começar pelo
conhecido para chegar ao desconhecido.
Sendo a filosofia uma atividade intelectual, seu objeto de estudo será o saber. Um
saber é sempre um saber sobre algo. Este algo é a realidade. Ora, mas a ciência também tem
como objeto de estudo a realidade. O que muda então? Muda a perspectiva do objeto no ato
de filosofar. A perspectiva da ciência é o experimentável, o empírico. A perspectiva da
filosofia é o inexperimentável, o meta-empírico. É diferente estudar a evaporação da água e
estudar o princípio da não contradição de Aristóteles. O experimentável corresponde ao que é
mensurável, ao fenômeno, segundo Kant. O inexperimentável corresponde ao que não é
mensurável, ao noumeno.5
Todos nascem com estas duas perspectivas de estudo: o fenômeno e o noumeno.
Alguns têm um pendão maior para a ciência, outros para a filosofia. Mas todos tem, em
maior ou menor grau, percepção filosófica, o "olho filosófico". Prova disso é que toda vez que
são emitidas opiniões sobre assuntos de ordem ético-moral, julgamentos acerca da beleza dos
seres, afirmação ou negação de uma idéia são utilizadas como base critérios de verdade,
critérios de justiça e outros, próprio da visão de mundo, de cada um.
Do que foi dito até aqui, é possível ter um a idéia do que seja a filosofia: estudo
do inexperimentável. A sugestão é aceitar esta idéia provisoriamente. Na medida em que
estudar a filosofia estará o estudante ampliando seus horizonte e o poder de penetração de seu
"olho filosófico".
Todos nascem em um meio, e deste meio, mais a personalidade, elabora uma
constelação psicológica, uma cosmovisão. É objetivo chegar ao final de dos estudos neste
período, com o modo de perceber o mundo e nisso incluem principalmente as relações
4
Neste caso sugerimos: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo : Mestre Jou, 1982
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estabelecidas entre os homens e dos homens com a natureza, em especial num período de
grande avanços da ciência e debates acirrados sobre a medicina, a clonagem, a ética nas
comunicações e inúmeras outras questões sobre as quais a pedagogia é chamada a pronunciarse. A presença da filosofia é tão certa que até para negar a filosofia é preciso filosofar.
1.2- A questão teológica
Ao tratar das questões pertinentes a teologia, é necessário esclarecer que não se
pretende "discutir religião". A crença religiosa está assentada na fé, enquanto a teologia ou o
conhecimento teológico busca valer-se de explicações racionais para entender, aquilo que na
falta de um termo melhor se poderia chamar de: " a manifestação do fenômeno divino".
Portanto, religião não se discute, se vive, assim como a fé, enquanto a teologia se
estuda. Guardar a fé, mas isso não impede, e é mesmo salutar, estudar as diferentes religiões.
Teologicamente não há porque não estudar o Muçulmanismo ou o Budismo (embora deste há
quem diga não ser religião) ou o Cristianismo. É até mesmo uma experiência importante para
crescer como pessoa, compreendendo as diferentes formas de conceber a idéia de Deus, e,
espera-se, ser mais tolerantes com pessoas de crenças diferentes.
A teologia tomada pelo sentido da palavra compreende o estudo de Deus, donde
Theos- Deus, logia- estudo, razão, discurso sobre alguma coisa. As dificuldades em estudar
Deus são infindas. Em vista disso, a teologia busca compreender as manifestações religiosas,
os diferentes argumentos acerca da existência de Deus, de seus possíveis atributos, etc.
Em termos de filosofia, o homem sempre se indagou sobre a existência de Deus.
Contudo é possível considerar estéril a discussão do tipo: "Você acredita em Deus?" ou
"Você não acredita?". A respeito disso, convém lembrar o que respondeu Einstein a um
jornalista que formulara esta pergunta, disse ele: ”Inicialmente defina-me o que você
entende por Deus e, então, eu lhe direi se acredito Nele"6 (grifo dos autores).
É notória a dimensão do sagrado. Mas já foi maior. O sagrado e o profano
assumem duas dimensões. Se considerar a casa, a alimentação e o sexo, para o homem
moderno, trata-se de fenômenos material, biológico, bem diferente do que entendia o homem
arcaico. Por isso, embora seja história da religião, o estudo do sagrado e do profano podem
interessar ao filósofo, ao sociólogo, ao fenomenólogo. Importante também colher exemplos
5
6
Baseado em DREHER, E. Que é Filosofia? 2. ed. Curitiba : Vicentina, 1977
HUISMAN. D. & VERGEZ A. O Conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1978, p. 343
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concretos, tirados em diferentes religiões e diferentes culturas. Nestas diferentes culturas,
encontramos a hierofania, que significa: "algo de sagrado se revela"7. *
Para fins didáticos, convém considerar algumas posições assumidas dentro da
filosofia, com relação ao problema do sagrado, ou do divino.
Teísmo: É a posição defendida por aqueles que declaram acreditar na existência
de um Deus, visto como o Criador do universo e transcendente ao mundo criado. A
representação de Deus é feita a nossa imagem. Trata-se, em geral de um Deus
antropomórfico.
Panteísmo: A idéia de que tudo é Deus, ou Deus está em toda parte. Os panteístas
proclamam a unidade fundamental do Universo. Deus é imanente ao universo pois sendo Ele
infinito, não poderia criar nada fora Dele mesmo. Se criasse, a soma resultaria em algo que é
mais que Deus, o que é absurdo.
Ateísmo: É a posição dos que negam a existência de Deus. Não há um Deus. A
matéria é perpétua - não infinita, pois isto significaria uma forma de temporalidade.
Agnosticismo: Negam a possibilidade de saber se Deus existe ou não. "O
Absoluto é um oceano para o qual não temos barco nem vela". (Littré).
Estas são apenas algumas das posições, que julgamos oportuno citar aqui, a título
de exemplo.
São Tomás de Aquino (1225 - 1274), procurando encontrar provas racionais da
existência de Deus, formulou alguns princípios, como: A noção do movimento, para o qual se
exige um primeiro motor. A inteligibilidade do vir-a-ser, segundo o qual tudo que se move é
movido por outro, nada pode ser causa de si mesmo. Prova pela existência de seres
contingentes. Neste caso, se os seres são contingentes, de onde vem a idéia de perfeição?
Deve vir de um ser que seja suma perfeição: Deus. Estes são alguns exemplo, os quais serão
retomados quando dos estudos da filosofia da ciência, e a questão dos paradigmas na filosofia
medieval, profundamente marcada pela teologia.
Em princípio, é importante que fique claro não estar sendo feita aqui apologia a
esta ou aquela crença. O objetivo e perceber posicionamentos diferentes acerca deste
problema. Em filosofia, a tentativa de justificar a existência de Deus por meios racionais
chama-se Teodicéia, i. é, justificação de Deus.
7
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo : Martins Fontes, 1996. p. 17
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1.3 - O conhecimento nas ciências
A palavra ciência evoca uma série de sentimentos no homem moderno. Segurança
e satisfação por se tratar de algo diretamente ligado ao racional. É comum sentir orgulho da
ciência, e olhar para as pessoas que trabalham com ela, com respeito e admiração. Não é para
menos, a todo o momento as pessoas são bombardeadas com idéias, comerciais, filmes, etc.,
que enaltecem o papel da ciência e do cientista. Comerciais que apresentam produtos
“testados cientificamente”, ou elaborados nos melhores “laboratórios”.
O conceito de ciência variou, contudo. Dentro da história, o que os gregos
entendiam por ciência, não é o mesmo que os homens do Renascimento pensavam, e mesmo o
conceito de ciência hoje é próprio de nossa época. Isso não significa dizer que há uma
continuidade no desenvolvimento da ciência, no sentido de progresso. Não se trata de pensar a
ciência como uma evolução. Isso seria valer-se de uma idéia de tempo linear, positivista, que
compreende o presente como melhor que o passado, e o futuro como sendo superior, resultado
de uma evolução. Se observarmos bem, veremos que a física pensada por Aristóteles é
diferente da física de Galileu e deste diferente da física moderna. Não que tenha havido uma
evolução na física, mas rupturas, como veremos adiante. Cada momento é pensado com seus
próprios problemas, com seu paradigma. O enfoque dado ao problema da física é diferente em
cada momento. Podemos afirmar que a física de Aristóteles não foi melhorada pela física de
Galileu, foi abandonada, e se pensaram outros modelos, outro paradigma.
Na Grécia Antiga, Empédocles explicava a constituição dos objetos, a partir de
quatro elementos, que se combinavam entre si. Platão, por sua vez afirmava que o
conhecimento que temos dos sentidos físicos, constituem a doxa, a opinião, enquanto a
ciência, episteme, resultado das idéias imutáveis, que constituíam para ele a essência dos
seres.
Para Aristóteles, as coisas naturais são constituídas de quatro elementos, conforme
afirmava Empédocles. Da combinação destes quatro elementos, resultavam os corpos leves e
os corpos pesados. Sendo os leves destinados a subir, pois o “lugar natural” deles é para cima,
neste exemplo, podemos citar os derivados do fogo, como a fumaça. Os corpos pesados,
compostos de terra, tendem para baixo.
Ainda segundo Aristóteles, os astros celestes estavam organizados em esferas
circulares (Círculo era o símbolo da perfeição para os gregos), sendo sete esferas principais
*
Caso queira se aprofundar nas questões do sagrado, um bom começo é o livro de Mircea Eliade citado acima.
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(os sete céus) e outras menores, totalizando 55 esferas. Quanto mais alto, nas esferas, tanto
mais próximo da perfeição, pois nelas, a quintessência, impede a corrupção dos corpos, e
também por se aproximar mais do Primeiro Motor, identificado com a idéia de Deus.
Com estes exemplos é possível observar a busca de explicação para o mundo
natural, a partir do uso da razão, sem ocupar-se com experimentos e métodos. Acreditava-se
que seria possível conhecer a natureza tal como ela é – e não como uma representação.
O período medieval, fortemente influenciado pelas idéias gregas, em especial
Platão, que serviu de inspiração à Santo Agostinho e Aristóteles, chamado de “O Filósofo”
por São Tomás de Aquino. Como no exemplo dos gregos, os intelectuais da Idade Média,
davam pouco valor ao trabalho manual. Ambas as sociedades, a grega escravista, a medieval
servil, viam as duas classes de trabalhadores, escravos e servos respectivamente, com olhos de
somenos. Continuavam a valorizar um saber especulativo, baseado na força da argumentação
lógica, em detrimento da pesquisa experimental. Raras foram as exceções, entre as quais
Roger Bacon no século XIII, que procurou adotar o método da matemática nas ciências
naturais, argumentava que ver com os próprios olhos não era de todo incompatível com a fé.
Mesmo assim, era visto com desconfiança pelos pensadores do período, tão receosos da
experimentação.
Além de Roger Bancon, convém lembrar os alquimistas, que com suas idéias de
transmutação dos elementos, foram capazes de pesquisas no campo da química, mesmo que
indiretamente. Os árabes, igualmente, foram importantíssimos na difusão da filosofia grega,
da medicina e dos números, conhecidos por isso como arábicos. Para perceber a importância
de tais números, tão corriqueiros hoje, basta imaginar a dificuldade em somar com algarismos
romanos, XXXIII mais VI, por exemplo.
A partir do século XIV em diante, a Escolástica sofreu um processo de
autoritarismo muito forte. Quando se queria afirmar uma idéia, se recorria ao conceito de
autoridade, era o famoso magister dixit, o que sem dúvida empobreceu o debate, aliás, debate
não no sentido moderno do termo de troca de idéias a partir de argumentos, pura e
simplesmente, já que o peso de algum erudito era tomado como sinal de verdade.
Digo a meus ouvintes: Eis o que diz Aristóteles; eis o que afirma Platão;
Galeno opina assim, e Hipócrates tem este outro parecer. Os que me ouvem
são forçados a reconhecer que minhas asserções são dignas de crédito, visto
Filosofia, texto 1
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não procederem de mim, mas das mais insignes autoridades na matéria, que
falam por mim...8
Porém o mundo europeu passava por grandes transformações. Desde o século XII,
com o ressurgimento do comércio, uma nova classe social vinha adquirindo força no conjunto
social, era a burguesia, termo elástico que compreendia os mercadores, os caixeiros viajante,
financistas, banqueiros, pessoas que estavam imbuídas do espírito capitalista.
Para os burgueses, o mundo estático preconizado pela Igreja e defendido pelos
doutores da Igreja, não correspondia aos seus anseios. Era necessário uma nova maneira de
explicar, ordenar, compreender o mundo e com isso, claro, dominar a natureza, no sentido de
se poder obter sempre maior lucro. Não se está aqui subestimando o esforço dos filósofos e
cientistas da época do Renascimento, mas sim dizendo que é preciso considerar o momento
histórico que estes homens viviam e que tornou possível o desenvolvimento de uma ciência
experimental, na qual se pudesse ler o mundo, escrito que estava em linguagem matemática,
segundo Galileu Galilei.
Quando as teorias e tecnologias disponíveis não conseguem dar respostas às
indagações do cientista, há um obstáculo epistemológico. Neste momento, ocorre uma
ruptura, sendo mister a criação de novas teorias e tecnologias, capazes de satisfazer as
constantes indagações. A este momento de ruptura, o filósofo Khun chama de Revolução
Científica.
Para um breve apanhado da questão remetemos à uma síntese das principais
idéias de Thomas Kuhn:
Kuhn e a Questão dos Paradigmas
Algumas considerações acerca:
Da importância do diálogo entre disciplinas.
De como este diálogo pôde contribuir para o desenvolvimento epistemológico.
Da ligação entre física, história e latim.
Ouvimos frequentemente a expressão "crise de paradigmas". Em seminários,
eventos e aulas de nossas universidades ouve-se a palavra paradigma com relativa frequência.
De onde nasceu a idéia de paradigma aplicada a um campo tão vasto de ciência e inventários
das chamadas ciência sociais? Vejamos:
8
Declaração de um professor da Universidade de Pisa, no séc. XVI. Tirado de:
ARANHA, L. DE A. A. MARTINS, M.H.P. Filosofando: Introdução á Filosofia. São Paulo : Moderna, 1994,
p. 146
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Quando fazia pós-graduação em física teórica, Thomas Kuhn se matriculou em
um curso de história da ciência. Considerando o que havia estudado até então, a ciência, era
tida como comulativa, isto é, o progresso científico seria resultado do somatório de
conhecimentos acumulados no longo desenvolvimento de teorias científicas, explicativas do
mundo, mundo desvelado progressivamente pelo avanço das pesquisas. Logo viu que tal não
ocorria com esta simplicidade.
Em outro momento importante de seus estudos, no início de 1947, Kuhn
preparava uma conferência sobre as origens da mecânica do século XVII. Tal conferência o
levou a pesquisar o que se entendia por física antes de Galileu e Newton, o que o colocou em
contato com a teoria aristotélica. Passou a indagar
como era possível Aristóteles ter
desenvolvido idéias tão distantes da física moderna, que parecia nem mesmo poder ser
chamada de "física", e mais, ter sido acreditado por tanto tempo, por homens sábios e doutos,
inclusive. Aristóteles não poderia ter errado tanto e ter sido acompanhado neste possível erro
por tantas pessoas e por um tempo tão grande.
Thomas Kuhn percebeu que estava "olhando" para o pensamento de Aristóteles
com os olhos, digo, as noções, teorias e modelos da física moderna, mas que para entender as
idéias aristotélicas seria necessário fazer um esforço para procurar ver e pensar a partir das
noções do próprio ambiente aristotélico. Enquanto para Aristóteles movimento significava a
passagem do ato à potência, portanto da transformação dos seres, como por exemplo, de uma
semente que se transforma em árvore, para a física de Galileu, movimento tem como
significado maior o deslocamento dos objetos. Portanto embora em ambos os casos se refiram
à física (physis = natureza) e contemplem a questão do movimento, são diferentes
concepções. Estava aberto o caminho para o conceito de paradigmas, que são as
...realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem
problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência 9. Esta
idéia será enriquecida no posfácio de 1969, no qual além de o paradigma ser apontado como
a constelação de crenças valores, etc., de uma comunidade determinada, são também as
soluções dos quebra-cabeças da ciência normal. Quebra-cabeças enquanto problemas que se
propõe à ciência, e ciência normal, que veremos logo a seguir.
9
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1995, p13.
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10
Se durante algum tempo fornecem soluções, por que razão seriam os paradigmas
abalados?
A comunidade de cientistas que compartilham um paradigma aguardam dos
fenômenos determinadas respostas. Podemos dizer que conforme as perguntas formuladas
obteremos determinadas respostas. Mas não é sempre assim. As vezes as respostas dadas não
correspondem às expectativas da comunidade. A isso Kuhn chama de anomalia.
As
anomalias não emergem do curso normal da investigação cientifica enquanto os instrumentos
e os conceitos não se tiverem desenvolvido o suficiente para se tornar a anomalia que daí
resulta reconhecível como uma violação da expectativa10.
A comunidade de cientistas - cujos escritos cada vez mais especializados se
destinam a seus pares -, trabalha a pesquisa para a articulação daqueles fenômenos e teorias
já fornecidos pelo paradigma11, buscando a delimitação de fatos significativos, a
harmonização da teoria e dos fatos e a articulação teórica. Três pontos daquilo que Kuhn
chama de "ciência normal", período em que o modelo de paradigma é usado como regra, sem
grandes contestações.
Mas, a medida que os instrumentos se modificam, determinadas respostas são
frustradas e aparecem "anomalias". Em princípio, a comunidade científica procurará encaixar
a novidade no velho modelo. Contudo, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que
governam a ciência normal12. Instaura-se a crise, não de modo abrupto, passando o novo
paradigma a ser construído aos poucos, com o relaxamento das regras do velho paradigma que
até ali havia orientado a pesquisa, e tecendo lentamente as teias do novo paradigma.
A crise instaurada pela anomalia pode ser tratada de três modos. Primeiro com a
ciência procurando resolver a anomalia enquadrando-a nos moldes do paradigma antigo.
Segundo, tendo dificuldade para resolver um quebra-cabeça anormal para os moldes
paradigmáticos vigentes, deixa a solução para ser tentada pelas gerações futuras. Terceiro,
surge um novo paradigma como candidato a solucionar o problema e as consequentes brigas
em torno dele. Neste último caso, Kuhn afirma que a transição para um novo paradigma é
uma revolução científica13. Uma revolução que desloca a rede de conceitos pelos quais os
cientistas vêem o mundo, chegando mesmo, o autor, a sugerir que se passa a viver em um
outro mundo.
10
KUHN, Thomas S. A tensão essencial. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 219.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1995, p45.
12
Idem, Ibidem. p. 78
11
Filosofia, texto 1
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11
Para finalizar, convém lembrar que a palavra paradigma, se for buscada em
dicionários de língua portuguesa, está definida como 'modelo'. Thomas Kuhn irá, todavia,
tomar a palavra paradigma de empréstimo da gramática latina, na qual as cinco declinações
chamadas de paradigmas, compreendendo o nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo
e ablativo, no singular e no plural. Como vimos, um físico estudando história da ciência,
valendo-se do latim para criar uma concepção epistemológica que hoje é utilizada em grande
medida em diferentes áreas do conhecimento, demonstrando assim a fertilidade dos contatos
interdisiciplinares, ou seria mais conveniente dizer, transdiciplinares, por tratar-se de idéias
que transitam em diferentes disciplinas**.
Após estas considerações sobre o importantíssimo papel dos estudos de Thomas
Kuhn acerca dos paradigmas, e considerando tratar-se de um texto de difusão, já que foi
apresentado inicialmente em um jornal, se faz necessário voltar as questões apontadas sobre a
ciência e que vinham sendo desenvolvidas como análise de diferentes posicionamentos acerca
da física, por exemplo, desde os gregos até os modernos.
Corroborando a idéia inicialmente apresentada, de que é complicado pensar a
ciência como uma evolução, pois o que se tinha como ciência para os homens da Idade
Média, não o é para os homens do Renascimento, da Revolução Copernicana, tema a ser
abordado futuramente, e que recebe um tópico exclusivo no programa de filosofia do Curso.
É possível afirmar então que o conhecimento científico não se faz numa suposta evolução,
mas caminha por saltos e revoluções.
É compreensível, no entanto, a impressão de um desenvolvimento evolutivo, por
causa da tecnologia que cerca o homem atual, com seus aparelhos, e curas na medicina, que
fazendo imaginar que o mundo dehoje é superior, mais avançado, e em conseqüência, que
isso se deve ao avanço da ciência.
Mas, não convém para aqui, se faz necessário aprofundar mais os conceitos de
ciência, tão primordial no cotidiano das pessoas e da vida escolar.
O mundo do capitalismo firmou novos conceitos e idéias. Tal fato vem reforçar o
compromisso que o conhecimento científico tem com a aplicação prática desses saberes.
Afinal, por que seriam gastos milhões, bilhões, se não for útil, aplicável? É bastante comum
13
**
Idem. p. 122
Texto editado originalmente em: Guarnieri, Ivanor Luiz. Kuhn e a Questão dos Paradigmas. O Paraná,
Cascavel, 25 fev. 2001. Educação. n. 71. p. 09.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
12
perguntar-se: Para que serve isso? De fato, pouco valor tem um conhecimento de divagação se
não nos leva a pensar o mundo ao nosso redor, a compreensão das relações, ou a aplicação
prática do saber.
Tem-se hoje o mundo da técnica. Para tudo existe um técnica. A descoberta de
uma enzima, de um novo combustível, etc. é logo pensada no sentido de poder aplicar no dia
a dia. Grosso modo, é possível dizer que a junção do conhecimento científico e sua aplicação
resultam na tecnologia. Termo este mais elaborado, que representa o coroamento de uma
pesquisa. Por outro lado, a tecnologia não é o último momento. Serve ela também para a
própria pesquisa científica, basta ver a utilização de um sem número de aparelhos
‘tecnológicos’, nas mais diferentes áreas de pesquisa, "...um objeto é tecnológico quando sua
construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das
pesquisas científica”.14
Até aqui foi falado de ciência. Mas existem várias ciências e suas especialidades.
Aliás, uma das características do saber é especializar-se cada vez mais. O homem começou a
olhar para o céu, procurando descobrir o universo. As mais recentes ciências tem procurado
descobrir o universo que é o próprio homem. Primeiro um olhar para o que estava distante,
hoje o homem volta-se para si mesmo.
Em meio a tantas descobertas e ciências, como classificá-las? Abaixo há uma
proposta de classificação. Outras existem, e tem sido apresentadas. Contudo, pela abrangência
e clareza, convém dizer que existem:
-
Ciências formais = matemática e lógica.
-
Ciências da natureza = física, química, biologia, etc.
-
Ciências humanas = história, sociologia, geografia humana, etc.
-
Ciências aplicadas = as que conduzem a invenção de tecnologias para intervir
na natureza, como a engenharia, medicina, informática, etc.
Genericamente falando, as ciências buscam aprimorar o método de investigação.
A palavra método vem de meta, que significa “ao longo de”, e hodos, “via, caminho”,
portanto é a ordem seguida para alcançar um determinado fim.
Ao deparar-se com um problema, é formulada uma hipótese, aquilo que está sob a
tese, de hypó (debaixo de) e thésis (proposição). Segue-se um raciocínio, que em geral pode
ser: indutivo, hipotético-dedutivo. Confirmada a hipótese, segue-se a generalização. Para tal, é
14
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. Ed. São Paulo : Ática, 1995, p.256
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
13
forçoso fazer experimentação, observação, o estudo do caso enfim, para poder confirmar a
hipótese ou não, conforme já foi estudado em aula.
O estudo da ciência é empolgante, estamos cercados pelos produtos das mais
diferentes ciência. Fazemos votos que os estudos aqui apresentados possam nos motivar ainda
mais a busca do saber.
Consciência mítica - mito e explicação mítica
A palavra mito é bastante conhecida. Constantemente se fala dos mitos do
futebol, ou das artes, por exemplo. Que esta ou aquela atriz, ou ator, são mitos do cinema,
principalmente se já tiverem falecido, ou quando ainda é vivo se diz: "é um mito vivo", do
esporte, da televisão, etc. conforme o caso. Mas o que vem a ser mito? Seria esta apenas sua
concepção? Claro que não.
Convém começar a partir da origem da palavra. Mito vem do grego Mythos e do
verbo Mutheyo, que significava contar, narrar, conversar no sentido de anunciar algo para os
outros15. Segundo informa o historiador da filosofia, Nicola Abbagnano, é possível distinguir,
historicamente, três concepções de mito: "1º Mito como uma forma atenuada de
intelectualidade; 2º Mito como uma forma autônoma de pensamento ou de vida; 3º Mito como
instrumento de controle social"16. Estas três concepções de mito podem ser encontradas ao
longo da história e em diferentes situações, quer seja para tentar dar uma explicação para um
problema, atemorizante ou não, mais que de qualquer forma angustia, então, embora seja uma
forma atenuada de intelectualidade, sem maiores questionamentos, acrítico, e mesmo sem
uma melhor sistematização, o mito irá dar uma primeira resposta, até que sejam possíveis
novas e melhores explicações. Torna-se então uma forma autônoma de pensamento, a medida
que tem uma coerência interna que lhe é própria, muito embora não resista à crítica externa,
limitando-se a afirmar que é porque é e pronto. Apesar disso, é passível de ser usado como
controle social, como teoria explicativa que muitas vezes procura justificar, por exemplo as
origens do mal não nas relações sociais, em alguma briga ou disputa entre os deuses – como
no caso da história da 'Caixa de Pandora', vista em aula.
15
16
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo : Ática, 1995. p 28.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo : Mestre Jou, 1982, p 644.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
14
A narrativa mítica é uma forma de tentar atribuir significado ao mundo, de busca
de explicação. Por exemplo:
ESTERILIDADE - Punição enviada pelos deuses para castigar um país de
um crime ou sacrilégio cometido por um de seus habitantes. Baco, mal
recebido por Licurgo, rei da Trácia, tornou seu reino estéril: os rios
secaram, a terra fendeu-se, a vegetação desapareceu. Para apaziguar o
deus, foi preciso matar Licurgo. A esterilidade também atingia os homens;
Egeu, por exemplo, não teve filhos com suas duas primeiras mulheres. Nos
casamentos sem filhos, os esposos perguntavam aos oráculos as razões da
cólera dos deuses e os meios para aplacá-las"17
Existem inúmeros outros exemplos na mitologia grega, além do citado acima, que
falam da morte, do amor, do nascimento do mundo. Até hoje as narrativas gregas são
bastante apreciadas, embora não acreditemos
na existência física de seus deuses,
reconhecendo apenas o gênio criador do helenos.
Em assim sendo, é necessário ter presente a atualidade dos mitos, e não apenas os
gregos, mas os nossos próprios, como foi dito no início deste item. Basta lembrar o "mito do
cientificismo", segundo o qual a ciência poderia trazer o progresso, sendo ela - a ciência - a
única capaz de gerar conhecimento. Como conseqüência mundo hodierno é cada vez mais
tecnocrático, no qual ainda existem pessoas crentes na neutralidade da ciência. Neste caso a
idéia de mito assume o sentido de algo impossível de ser efetivado, de algo enganoso até.
O que foi dito até o momento acerca da ciência basta por hora. Mas é necessário
considerar alguns aspectos dos mitos relacionados com a cultura.
Mitos e culturas
Segundo informa Alfredo Bosi:
"Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os
fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem. As palavras cultura,
culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo...
Colo significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por
extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. Um herdeiro antigo de colo é
incola, o habitante, outro é inquilinus, aquele que reside em terra alheia." 18
(grifos do autor)
É possível perceber a ligação direta com o meio físico e geográfico, na origem da
palavra, segundo o sentido etimológico apontado por Bosi.
17
18
DICIONÁRIO de Mitologia Greco-Romana. São Paulo : Abril Cultural, 1973. p 65
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 3. ed. São Paulo : Cia das Letras, 1992 p 11.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
15
Se considerar as definições de dicionário verificaremos diferentes posições acerca
do termo. Assim, desde o Aurélio que afirma no item 3 do verbete cultura: "O complexo dos
padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e
materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade; civilização: a cultura
ocidental, a cultura dos esquimós"19. Ou ainda se for levada
em consideração a longa
exposição trazida pelo dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, mas que pode ser
traduzido em duas posições básicas:
"O primeiro e mais antigo é aquele pelo qual significa a formação do
homem, o seu melhorar-se e refinar-se... O segundo significado é aquele
pelo qual indica o produto dessa formação, esto é, o conjunto dos modos de
viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam também indicar
pelo nome civilização"20 (grifos do autor).
Fora estas idéias, existem outras significações conforme seja seguida esta ou
aquela linha de explicação da cultura. A escola de antropologia de Oxford, por exemplo,
considera a cultura como o modo de vida social de um povo, com esta idéia concordando
Fernando de Azevedo, quando diz ser a cultura "todo o modo de vida social"21.
A breve exposição apresentada aqui parece tender para a importância dos bens
espirituais, ou das criações do espírito como o modo de ser e de fazer de um povo. E os
diferentes povos, na busca por explicar o mundo criaram narrativas que pudessem dar conta
das origens dos seres ou dos males.
Entre os gregos havia várias narrativas, consideradas fantásticas, sobre serem
excepcionais, chamados de deuses, e que por sua vontade ou atitude, fizeram nascer o mundo,
a vida, etc. Entre os romanos, influenciados que foram pelos gregos, são encontradas
narrativas muito semelhantes, embora os deuses romanos tenham outros nomes, como é
amplamente sabido.
Outros povos, em outras circunstâncias também criaram narrativas, tidas hoje
como mitológicas. Para explicar o firmamento, os egípcios diziam que a abóbada celeste era o
manto da deusa Nut, que tinha as mãos pousadas no nascente e os pés no Poente. As estrelas
eram bordados do seu manto.
O indigenísta Orlando Vilas-Boas, nos conta um relato indígena com o qual se
pretende dar uma explicação sobre o destino dos índios.
19
FERREIRA, A. B. DE H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo : Nova Fronteira. 1975 p 409
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo : Mestre Jou, 1982. p 209
21
AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro : UFRJ ; Brasília : UnB, 1996. p 29
20
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
16
A três índios diferentes foram dados um arco branco, um arco preto e uma
carabina. Os três chegaram às margens de um lago de águas muito claras.
Os dois índios que escolheram os arcos não quiseram entrar no lago,
puseram apenas as mãos em suas águas. As mãos ficaram brancas e eles
tentaram limpá-las numa árvore. Aí ouviram a voz de Avinhoka (divindade
protetora) que disse: 'Assim como a árvore, vocês não serão para sempre'. O
terceiro índio que havia escolhido a carabina, entrou na água e saiu
completamente branco. Em seguida foi deitar-se sobre uma pedra. A este,
disse Avinhoka: 'Assim como a pedra, você será eterno'.22
Embora o espaço seja pequeno e por isso
não é possível alongar muito as
questões acerca dos mitos, é permitido contudo observar aspectos da mitologia indígena
brasileira. Em geral, nosso índios viam os deuses como entes benéficos ou maléficos que
tomavam conta de fenômenos naturais, de aspectos ligadas à guerra, aos perigos, a vida
física, moral e psicológica das tribos. Há seres míticos que protegem as águas, a mata, os
animais, e com isso garantem o alimento. Há serem que representam sentimentos como o
amor e o ódio também. "PERUDA - entre os TUPIS - presidia o AMOR e a SAUDADE!
Viajava, nos ventos, sob a forma de um guerreiro moço e, tinha, por NUMES, que o seguiam,
voando - CAIRÊ - CATITI - MBOI - por sua vez um gênio, guarda da virgindade, que
devorava as "CUNHATÃS - vitimadas pelo amor impuro"23. Tais narrativas mostram a
presença do mito nas mais diferentes culturas.
Mas não era possível continuar sempre explicando os fenômenos pôr tais
narrativas. Tornava-se imperioso buscar razões melhor elaboradas para as coisas. Em vista
disso, tomou-se uma atitude mais filosófica. É o que será visto a seguir.
O "nascimento" da Filosofia - a busca da racionalidade
Existem algumas causas que em geral são apontadas para o surgimento de uma
atitude mais voltada para a racionalidade, i. é, para as primeiras tentativas de explicação de
cunho filosófico do mundo que cercava os homens e os problemas que eram sentidos de
modo mais imediato. Os mitos que até então serviram como refúgio explicativo para os
fenômenos, parecem perder sua força. Em especial entre os gregos, cujos contatos com outros
povos punham a nu a questão das contradições ou mesmo da diversidade de mitos, haveriam
22
23
TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. 20. ed. São Paulo : Ática, 1983. p 15
SANTOS, B. N. dos. Mitos e Heróis do Folclore Paranaense. Curitiba, 1979. p 156.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
17
de forçar uma nova atitude em relação a vida. Neste caso, o contato entre povos diferentes,
trouxe questionamentos enriquecedores, forçando posições racionais-especulativas.
É oportuno chamar a atenção para a importância da água na origem de muitas
civilizações. É notável que as civilizações do mundo antigo, que exercem uma influência em
no modo de pensar atual, tenham nascido às margens do rios: Tigre e Eufrates
(Mesopotâmia), Nilo (Egito), Amarelo (China), Ganges ( Índia). A água doadora de vida,
capaz de transportar os homens com maior facilidade, em um mundo carente de meios de
transporte velozes. Será a margem destes rios, ou banhados pelo mar, como é o caso das ilhas
gregas, que a movimentação de pessoas, e com elas a troca de experiências e idéias, semeará
pensamentos que frutificaram em atitudes mentais questionadoras, e portanto, capazes de
fazer pensar de modo mais crítico e racional. Mas, convém não se alongar muito, não
deixando porém de observar brevemente alguns pontos da filosofia hindu e chinesa de antes
de Cristo, para, aí sim, iniciar o estudo do pensamento grego.
Pensamento hindu
Antes de estudar o início do pensamento grego, vejamos duas culturas do oriente,
cujo pensamento pode servir de contraponto a 'atitude grega'. Todavia, a filosofia, como a é
entendida no mundo ocidental, é grega. Muito embora possam ter sofrido influência do
mundo oriental, o pensamento filosófico grego é único e marca toda a tradição ocidental.
Cumpre dizer dos hindus, o seu profundo sentimento religioso. Causa admiração
ao visitante e ao estudante as atitudes de contemplação piedosa ao lado do Ganges, no lugar
místico como o Tibet, e outros, onde o homem procurar inserir-se na natureza, receber seu
influxo, entender a vida.
A Índia nos deu Siddartha Gautama - o Buda -, que segundo a tradição teria sido
"iluminado", quando em 534 a.C. abandonou a família e saiu em busca do sentido da vida,
depois de presenciar a morte e o sofrimento humano. Decisão corajosa para um jovem
príncipe, mas compreensível em um homem grandioso como ele. Após anos de peregrinação,
sentado às margens do rio Naranja, Buda teve a seguinte inspiração:
"1ª) A essência do mundo humano é o sofrimento. A mente humana está
estruturada em termos de sofrimento. 2ª) A origem do sofrimento é o desejo,
o apego às próprias necessidades, às próprias idéias, ao que se julga ser a
vida. 3ª) A libertação do sofrimento é possível mediante o domínio dos
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
18
desejos, dos apegos, até a obtenção de sua extinção. 4ª) Esta extinção dos
desejos e do sofrimento é o que se chama de Nirvana"24.
Para conseguir chegar a eliminação do desejo e ao estado de Nirvana, é preciso
seguir as oito etapas para as quatro verdades. Estas etapas consistem em uma visão reta,
pensamento reto,
palavra reta, vida reta, ação reta,, trabalho reto,
conhecimento reto,
meditação reta. Forte é a presença do Budismo no mundo oriental, como sabemos, e marca
uma atitude reflexiva em relação à vida. Indicando uma maneira de proceder, marca também
o modo de ser, a filosofia de vida de quem segue estas orientações, e como conseqüência,
claro, toca na cultura, no modus vivendi do povo.
Pensamento chinês
Fortemente marcado pelos problemas relativos ao convívio humano, a filosofia
chinesa irá ocupar-se com o problema moral, com as questões do bem e do mal. É possível
perceber traços desse tipo de indagação na seguinte pergunta: Será que a lei que reprime é
sempre necessária?
Tentativas de solução para estes problemas podem ser encontrada no pensamento
de Kung-Fu-Tsé (551-479 a.C.). Confúcio, como é conhecido, preconizava a obediência do
mais jovens aos mais velhos, pois estes estariam mais próximos dos antepassados, a quem se
deve reverência e respeito. Entre suas máximas, uma recomenda: seja o príncipe, príncipe; o
súdito, súdito; o pai, pai e o filho, filho. Entendendo assim cada um cumprir com suas
obrigações, numa atitude de respeito, onde os mais jovens e os mais humildes deveriam
reverência aos mais velhos e dirigentes, e estes deveriam agir com bondade nas relações com
aqueles.
Lao-Tsé (604 - 551 a.C.), por sua vez estava preocupado com as leis que regiam o
mundo. Haveria uma ordem eterna - TAO - para a qual tudo deveria convergir. Haveriam
também duas forças: YIN e YANG, a primeira feminina, negativa; a segunda masculina e
positiva (note que não se trata de conceito pejorativo por ser a feminina "negativa").
Foram deixados estes aspectos do pensamento oriental em nosso texto, no intuito
de ter uma idéia, mesmo que breve, de outras visões de mundo, e que hoje, em vista das
telecomunicações, nota-se a presença de alguns lampejos de pensamento tão antigo. Não é
objetivo realizar um estudo pormenorizado da filosofia oriental, mas espera-se ter
24
TELES, Antônio Xavier. Op. Cit. p. 46.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
19
oportunizado, nos
encontros de filosofia, uma pequena abertura que seja, para outras
possibilidades de pensamento (exclusivamente de pensamento e não de religião, é bom que se
diga).
Há uma crítica que se faz à filosofia do ocidente em relação à oriental, no sentido
de que a nossa filosofia (ocidental) estaria preocupada em avançar 'na horizontal', i. é,
ampliando a quantidade de conhecimento, cada vez sabendo mais das coisas do mundo, mas
tendo pouco avanço 'na vertical', ou seja, não compreendendo o mundo e a vida em sua
profundidade. Em que pese tal crítica, cabe agora iniciar o estudo do pensamento grego, do
qual o mundo ocidental é herdeiro.
Os pré-socráticos
A filosofia grega, para fins didáticos, está dividida em antes de Sócrates (470/469399 a.C.) e depois de Sócrates. Comumente os filósofos anteriores à Sócrates são chamados
de pré-socráticos. São também conhecidos como filósofos da natureza, pois suas indagações
buscavam um princípio (arché), dos objetos naturais. Tal princípio deveria: estar no início, ser
a subsistência, e estar no fim das coisas.
Dos primeiros filósofos, destacam-se:
Tales de Mileto, nascido no século VII e falecido no século VI a.C. Considerando
que todas as coisas em sua volta tinham umidade, julgou ser a água o princípio físico.
Para Anaximandro de Mileto (séc. VII -VI a.C.), o princípio seria o a-peiron, uma
substância privada de limites, infinita, que não nasce e não tem fim. As coisas seriam geradas
e destruídas pela luta de contrários. Interessante em Anaximandro é sua explicação para a
posição da terra. Esta estaria equilibrada pela ação de outros astros, como o sol, a lua e outros
planetas, colocados em tal distância, e em tal harmonia de movimentos, que a exemplo de
imãs gigantes, a terras seria 'suspensa' pela força destes astros.
Anaxímenes de mileto (séc. VI a.C.), para quem a substância primordial seria o ar.
Segundo afirma, o ar dilatado produz calor, e o ar comprimido produz gelo e frio. Teria
possivelmente chegado a esta conclusão, valendo-se do sopro, pois quando se quer as mão,
sopramos de modo 'dilatado', e quando desejamos esfriar, sopramos comprimindo o ar.
Para Heráclito de Éfeso (séc. VI - V a.C.), tudo se move, tudo escorre, e nada
permanece imóvel e fixo. É dele a famosa idéia, segundo a qual não é possível banhar-se no
mesmo rio duas vezes, pois ao voltar, a água já será outra, e mesmo a pessoa estará diferente.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
20
Observando as constantes modificações no mundo físico, conclui que todas as coisas estão em
estado de guerra, i. é, a luta de opostos: frio/quente, seco/úmido, etc. o que levaria a uma
eterna luta na natureza, razão pela qual os seres desaparecem, nascem e tornam a desaparecer,
em um movimento incessante. Tais afirmações colocavam sérios obstáculos ao problema do
conhecimento, pois havendo tantas mudanças, quando afirmo algo, este algo já não é mais
como eu havia afirmado, necessitando refazer minhas afirmações.
Pitágoras. A vida deste pensador está envolvida em mistério. Tendo vivido o
apogeu de sua vida em Samos, em 532 a.C., morreu no início do século V. Fundou em
Crotona, na Itália uma escola com trezentas pessoas, entre seguidores e administradores. É
possível que seus ensinamentos tenham sido acrescidos pelos seus discípulos, já que entre eles
havia o costume de afirmar ipse dixit (ele disse), quando se referiam a algum assunto. As
inúmeras "Vidas de Pitágoras", trazem a admiração que os discípulos tinham pelo mestre,
cujo figura, ao final de sua vida, era representada como um iluminado.
A Escola de Pitágoras possuía algumas características. Nasceu como uma
fraternidade religiosa, buscando o bem comum. Possuía ensinamentos que só poderiam ser
conhecidos pelos iniciados.
Tendo observado que as leis numéricas regem os anos, a gestação, as estações,
etc., permitiu aos pitagóricos ver o mundo pela ordem. Mesmo na música, tendo estudado a
extensão das notas musicais, pela extensão de um monocórdio. É importante alertar, porém,
que o número era considerado ente real, não apenas mental como temos hoje.
"Pitágoras concebe a extensão como descontínua: constituída por unidades
invisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica,
esse 'intervalo" seria resultante da respiração do universo que, vivo, inalaria
o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão e
mínimo de corpo, as unidades comporiam os números. Os números não
seriam, portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos a exprimir
o valor das grandezas: para os pitagóricos, eles são reais, são a própria
"alma das coisas", são entidades corpóreas constituídas pelas unidades
contíguas. Assim, quando os pirtagóricos falam que as coisas imitam os
números estariam entendendo essa imitação (mímesis) num sentido
perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura
numérica que lhes é inerente."25
Para citar alguns exemplos: consideravam que 2 x 2 ou 3 x 3 representariam a
justiça, assim como 32 ou 22 , por representaram o imóvel. Consideravam ainda os números
25
OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários. Col. Os Pensadores. 5. ed. São Paulo :
Nova Cultural, 1991. p XVIII
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
21
pares ilimitado, imperfeito e comporiam um retângulo, já os números ímpares seriam
limitados, perfeitos e comporiam o quadrado. Puderam deduzir isso, considerando a
disposição de alguns seixos (de onde vem a expressão moderna calcular, de calculus, pequeno
seixo). Ex.:
.
.
.
.
.
(ímpar)
(par)
Note-se que no caso do ímpar, a flecha está limitada por um ponto, enquanto no
desenho representativo do par, não.
O número 1 é par/ímpar, e o 10 é o número perfeito, pois com ele podemos
construir um triângulo com 4 pontos cada lado
Xenófanes, de Cólofon na Jônia, (570 a 528 a.C.), critica o antropomorfismo dos
deuses, dizendo que os deuses pouco diferiam dos mortais, a não ser no fato de serem eternos.
Veja o que ele diz:
Mas os mortais acham que os deuses nascem,
que tem roupas, vozes e vultos como eles.
Homero e Hesíodo atribuem aos deuses
tudo aquilo que é desonra e vergonha para os homens:
roubar, cometer adultério, enganar-se mutuamente.26
Com tal atitude, Xenófanes desmente os poetas como mentirosos, ao mostrar a
crueza e algumas contradições dos deuses. Por outro lado, considera o UNO como deus, deuscosmos, por isso tudo vê, tudo ouve.
Um dado importante neste filósofo, foi a afirmação de que é a força da mente, e
não a física que pensa, cabendo a mente a máxima honra. Tal firmação traz algo de diferente
em uma sociedade que valorizava sobremaneira a preparação física.
Parmênides, de Eléia (VI a.C. - meados do séc. V a.C.). Fundador da escola
eleática (do ser), que traz para os problemas da physis a questão ontológica. Afirmava
Parmênides que o ser é o não-ser não é; "o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não
pode ser de modo algum"27. Por isso, um só caminho resta ao discurso, o que o ser é. Instituise o discurso da não contradição, pois o ser e não-ser não podem existir ao mesmo tempo.
26
REALE. G. ANTISERI. D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo : Paulinas, 1990.
P. 48
27
REALE. G. ANTISERI. D. Op. Cit. p. 50.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
22
Zenão de Eléia (séc. V a.C.). Considerado por Aristóteles o primeiro dialético,
Zenão tomava os argumentos dos adversários (em especial aqueles que queriam ridicularizar
Parmênides, com quem Zenão estudou), para com estes mesmos argumentos desmenti-los.
São conhecidas suas aporias (caminhos sem saída). Em uma delas, acerca do movimento,
segundo a qual, quando alguém partir de um ponto, e considerar meio caminho andado,
jamais chegará ao destino, pois restará sempre meio caminho a andar. Assim, numa extensão
de cem metros, restara 50. Destes cinquenta, a metade é 25, quando passar pela metade,
restará 12,5 e assim sucessivamente, de sorte que sempre haverá metade do caminho a
percorrer. Ou o caso da flecha que ocupa sempre o mesmo espaço, então mesmo sendo
lançada pelo arqueiro, ela não tem movimento, ocupando sempre um espaço igual ao início.
O PROBLEMA FÍSICO
Empédocles (484/481 - 424/421 a.C.)
Não existiria a morte e o nascer. Segundo seu pensamento, haveria o misturar-se e
dissolver-se, isso com relação aos quatro elementos; água, ar, terra e fogo, chamados por ele
de 'raízes de todas as coisas'.
Estes elementos se misturam ou dissolvem por dois princípios: a amizade/amor e
pela discórdia/ódio, surgindo daí a geração e corrupção dos seres.
Interessante observar que para Empédocles os processos de conhecimento provém
dos eflúvios (emanação invisível que sai de um fluído, exalação), que partem dos objetos e
são reconhecidos pelos sentidos. Do mesmo modo, parte da visão eflúvios, que por sua vez
reconhece nos seres os seus iguais, dentro do princípio de que o semelhante conhece o
semelhante. O pensamento tem por veículo o sangue e a sua sede é o coração. Como
conseqüência, pensar não é exclusivo do homem.
Anaxágoras de Clazômena (aproximadamente 500 a 428 a.C.)
Considerava que só os quatro elementos não explicam a variedade de seres e
fenômenos. As spérmatas (sementes) devem ser tantas e tão variadas, para delas surgir os
elementos tão diferentes que
são encontrados no mundo. Estas sementes pensadas por
Anaxágoras, seriam infinitas, divisíveis em várias partes que são sempre iguais, não havendo
limite entre tamanho, pois por mais que se divida, nunca chega ao nada, já que este não existe.
São as chamadas homeomerias (em grego, "partes semelhantes").
Todas as coisas estariam em confusão até a inteligência por ordem em tudo.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
23
Anaxágoras afirma ainda, que tudo contém todas as coisas. As sementes
(homeomerias) estariam colocadas em quantidades variáveis em todos os seres, organizandose para formar o grão de trigo, ou a árvore, por exemplo. Mas no trigo, já estaria a semente da
carne, do osso e do cabelo, que fazem parte do homem que come o trigo, e encontra nele estas
"semestes" que lhe permitem nutrir um corpo de carne, osso, e cabelos.
Demócrito (cerca de 460 - 370 a.C.)
Concordando com Empédocles e Anaxágoras, de que os seres não nascem ou
morrem, mas se agrupam ou dissolvem, Demócrito afirmava a existência de muitos corpos,
invisíveis, por serem sumamente pequenos, de mínimo volume. Tais corpos seriam
indivisíveis, incriados e indestrutíveis, não mudando nunca. Foram chamadas de átomos (do
grego "não divisível").
A constituição das coisas se explicaria pela existência de átomos, vazios e
movimentos. Por isso chamada de teoria atômica.
Este pequeno texto acerca dos pensadores pré-socráticos parece ser suficiente
para dar uma idéia das preocupações e idéias dos primeiros filósofos gregos..
Os problemas da filosofia
Não é forçoso
fazer uma exaustiva excursão pela filosofia, rastreando os
diferentes significados e as várias respostas dadas aos seus problemas. É útil considerar que
tais problemas são muito antigos, mas as soluções apresentadas variaram e muito ao longo da
tradição filosófica ocidental. Objetivo principal é apontar algumas questões que possam
servir como percepção problematizadora. Um aprofundamento maior poderá ser feito em um
curso específico de filosofia, como uma pós graduação, por exemplo, mas fugiria aos
propósitos do curso de pedagogia, bastando, em princípio, além das discussões em aula, os
apontamentos que seguem.
O SER
Lembrando Parmênides, ser é aquilo que é. É forçoso observar, entretanto que
existem outros sentidos para o problema do ser:
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
24
a) substância: significa o que é a coisa como substância (ousia). A mesa é de
madeira.
b) como essência: aquilo que a coisa é: A mesa é.
c) como ser-no-mundo. Dentro da fenomenologia, em Heidegger (1889-1976), o
Dasein (ser aí), está jogado no mundo, sem que disso tenha opinado. O mundo neste sentido
não é o universo físico, mas geográfico, histórico, social e econômico, portanto, mundo
construído pelo homem.
Várias outras idéias acerca do ser tem sido apontadas e serão abordadas na medida
em que o plano de ensino transcorrer e situações problematizadoras surgirem nos encontros
de filosofia.
O VALOR
Entendido originalmente ligado à coragem, à bravura, ao caráter. A noção
filosófica do valor o relaciona àquilo que é bom, útil, àquilo que deve ser realizado. Tomados
assim, e na perspectiva da ética, correspondem aos fundamentos das normas morais, das
regras que ditam como deve ser a conduta correta.
Várias questões tem sido apontadas acerca dos valores: se eles valem em si
mesmos, se tem valor externo, se haveriam valores absolutos, de per si, desde o princípio, e
sempre reconhecíveis como certos, ou se são adquiridos conforme a cultura e a natureza
humana.
Com relação aos valores, questiona-se igualmente os juízos de valor, que irão
avaliar a validade ou não de uma determinada norma ou ação, suas implicação, positividade,
etc.
Com relação aos problemas de estética há que se considerar tratar-se de questões
pertinentes a teoria do belo. Quando nos referimos a beleza, ou de alguma coisa dizendo
tratar-se de algo belo, que se pretende dizer? Qual o entendimento do belo apontado em
geral pelas pessoas? Quais seriam os valores implicados na definição da beleza?
SABER
Tocando profundamente no problema da teoria do conhecimento, a questão do
saber indaga da possibilidade/impossibilidade/dificuldade de ser atingida a verdade. Até que
ponto sabemos? O que é saber? Como ter certeza do que sei?
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
25
O saber envolve não apenas a filosofia, mas compreende outras formas de
conhecimento, como a ciência e mesmo a 'sabedoria', como um conhecimento necessário para
poder situar-se e resolver as questões do cotidiano.
Indagou-se por um longo tempo, a relação entre um sujeito que conhece e um
objeto que é conhecido. Mais recentemente, os estudos fenomenológicos trouxeram a baila a
questão do fenômeno (aquilo que aparece), e a relação deste com o homem, ser de
conhecimento, ser no mundo, com o mundo e para o mundo.
Convém frisar mais uma vez, que estes problemas serão constantemente tomados
ao ser analisadas as diferentes posições filosóficas, sobre os problemas da filosofia, servindo
este brevíssimo texto como um primeiro contato com estas questões.
Atitude Grega - O mundo grego
Dos pontos observados anteriormente acerca do mundo grego, é importante agora
considerar mais especificamente o ambiente ateniense, cidade-Estado grega que nos deu
grandes filósofos, dentre os quais Sócrates e Platão. A análise deverá prender-se aos filósofos
dentre os principais de todos os tempos. Iniciaremos com Sócrates, que, como se sabe que não
deixou nada escrito, mas marca fundamentalmente o mundo ocidental.
Sócrates - a figura histórica
Nascido em 470/469 a.C., Sócrates era filhos de Sofronisco e Fenareta. O pai era
escultor e a mãe parteira.
Figura inegavelmente influente entre os jovens da Grécia Antiga, Sócrates
costumava dialogar com o interlocutor acerca das proposições defendidas, visando mostrar
que aquilo que
é tido como certo, muitas vezes revela-se contraditório e mostra-se
indefensável.
Em uma sociedade dada a discussão pública, onde os cidadãos valorizavam
sobremaneira a retórica, e a arte de falar era indispensável, a atitude questionadora de
Sócrates, colocando o interlocutor em situação vexatória, criaram alguns inimigos, motivo
pelo qual foi levado ao tribunal dos heliastas*, acusado por Meleto, Anito e Licão de
corromper a juventude, não reconhecer os deuses da cidade, pregando outros deuses.
*
Constituído por 500 ou 501 juizes, pertencentes à população de Atenas, reunidos em 399 a. C. para julgar
Sócrates.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
26
O julgamento de Sócrates está descrito em Apologia de Sócrates28, constituindose numa das páginas mais expressivas e célebres da literatura universal. A obra está dividida
em três partes. Na primeira examina e refuta as acusações feitas contra ele. Na segunda parte,
tendo sido condenado, Sócrates apresenta a pena que se propõe a pagar. Tendo a consciência
tranqüila, e não encontrando nela razões para a condenação, Sócrates propõe viver o resto de
seus dias no Pritaneu**. Não deixa assim alternativa aos juizes, devendo ser levado à
execução. Na terceira parte, Sócrates dirige a palavra aos juizes, dizendo da condenação
recebida e fazendo uma reflexão sobre a morte: Mas eis a hora de partirmos, eu para a morte,
vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus29.
Em outra obra de Platão, Fedon, são narrados os momentos finais de Sócrates,
quando está obrigado a tomar cicuta***. Sócrates morre em 399 a.C.
As informações que temos do filósofo, foram fornecidas principalmente por
Platão, do qual dos vinte e oito escritos considerado autênticos, apresentam Sócrates em vinte
e seis deles, e destes, vinte e três diálogos tem Sócrates como interrogador30. Além de Platão,
Xenofonte, outro discípulo do filósofo, e Aristófanes, poeta cômico grego, nos deixaram
importantes obras a respeito de Sócrates31.
Maiêutica.
Enquanto os filósofos que precederam à Sócrates ocupavam-se preferencialmente
de questões ligadas a cosmologia, ao mundo da physis, Sócrates ocupou-se de questões
referentes ao Estado e ao próprio homem, daí Ter sido apontado como um dos principais
pensadores da ética, entendida como o questionamento das ações humanas32. É sabido que
andava questionando as pessoas acerca das afirmações que faziam. Ele fazia perguntas como
estas: Se eu quiser que me consertem os sapatos, a quem devo recorrer? Ao que algum jovem
ingênuo responderia: À um sapateiro, ó Sócrates! Depois referia-se a carpinteiro,
caldeireiros, etc., e, finalmente perguntava: Quem deve consertar a nave do Estado?33.
28
PLATÃO, Diálogos : Apologia de Sócrates. São Paulo Hemus s/d.
Lugar destinado aos heróis e beneméritos da cidade.
29
SÓCRATES, In: Coleção Os pensadores. 5 ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. X.
***
Planta que masserada libera veneno. Veneno do mesmo nome.
30
WATANABE, Lygia Araujo. Platão, por mitos e hipóteses. São Paulo : Moderna, 1995, p. 84.
31
Dentre as quais lembramos: "Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, de autoria de Xenofonte, e As nuvens
escrito por Aristófanes, ambos encontráveis na coleção "Os Pensadores" - Sócrates, já citado.
32
VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. São Paulo : Brasiliense, 1994, p. 17.
33
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. 3 ed. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1969, p.
98.
**
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
27
O método utilizado por Sócrates valia-se de perguntas. Era através delas que
procurava sustentar o discurso. Muitas vezes aquele a quem Sócrates interrogava mostrava-se
confuso, ou contraditório, tornando-se discípulo dele ou odiando-o. De qualquer forma,
percebia um conhecimento novo ou observava falhas no saber que antes de ser interrogado
pelo filósofo não havia notado.
Ao modo de interrogar socrático, o próprio filósofo dava o nome de maiêutica, ou
parturição das idéias, possivelmente uma homenagem ao trabalho de sua mãe, que ajudava as
mulheres a dar a luz, enquanto a maiêutica socrática trazia à luz idéias e conceito das pessoas.
Conforme declara no livro Teeteto, de autoria da Platão:
Eu tenho isto em comum com as parteiras, diz Sócrates: sou estéril de
sabedoria; e aquilo pelo que muitos há anos me censura, isto é, que
interrogo aos outros mas não respondo nunca por mim, porque não tenho
pensamento sábio algum a expor, é censura justa.34
Um exemplo da Maiêutica se encontra em Menon35, quando Sócrates leva um
escravo a conceber intrincadas noções matemáticas, a partir da análise de figuras quadradas,
procurando mostrar que o escravo tinha dentro de si um conhecimento que nem mesmo
suspeitava, bastando ser relembrado através de perguntas bem formuladas e que objetivam
despertar o conhecimento latente, presente dentro das pessoas.
Segundo declara no tribunal, Sócrates teria um "demônio" daimon que o impelia
ao saber e levava a questionar. Ainda em Apologia de Sócrates, o filósofo afirma ter ouvido
do Oráculo de Delfos, a declaração de que ele, Sócrates, era o mais sábio dos homens. Não se
reconhecendo como sábio, passou a interrogar as pessoas na tentativa de encontrar alguém
mais sábio, desmentindo então a afirmação do oráculo.
Cabe lembrar ainda que tanto a Maiêutica quanto a ironia socrática, podem fazer
confundir Sócrates com os sofistas. Mas isso não é correto, pois os sofistas procuravam ser
agradáveis e discorriam sobre um assunto previamente preparado, buscando mostrar domínio
sobre o mesmo, enquanto Sócrates, como vimos, procedia através de questões e
constantemente declarava nada saber, como na última fala do diálogo Eutífron, quando este
derrotado na tentativa de definir o que é piedoso, se despede de Sócrates e ouve deste:
O que vais fazer, meu bom amigo? Vais, deixando por terra a grande
esperança que tinha de aprender de ti o que é piedoso e o que não é. Pois,
pensava livrar-me da acusação de Meleto, fazendo-o ver que, instruído por
34
35
ABBAGNANO, Nicola. Op. Cit. p. 610.
WATANABE, Lygia Araújo. Op. Cit. p. 143.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
28
Eutífron nas coisas divinas, não me aventurava a improvisar e a inovar por
ignorância nestas matérias e formulava o propósito de levar, daqui para
diante, uma vida melhor36.
Vê-se neste pequeno trecho também a chamada ironia socrática, a utilização de
perguntas a partir da idéia de que se era ignorante, mas na verdade uma tentativa de tirar do
interlocutor aquilo que este supunha como sendo verdade, deste modo, mesmo sendo 'senhor
da situação', de certa forma, ironiza pondo-se como discípulo daquele a quem acabou de
refutar.
Platão
Nascido em 428-427 a.C., na cidade de Atenas, Arístocles (seu verdadeiro nome),
pertencia a tradicional família de Atenas. Filho de Ariston e Perictione, quando esta viuvou,
casou-se com Pirilampo. Todos ligados à política, portanto à aristocracia ateniense. É no
ambiente político de sua cidade natal que Platão cresce, observando os acertos políticos num
momento de ouro para a democracia ateniense (observe o fato de os gregos terem uma
democracia bastante restrita, pois somente os cidadãos livres poderiam dela participar). Este
regime político levou Sócrates ao tribunal, condenou-o e matou-o. Tais fatos teriam levado o
jovem Platão a odiar a democracia e a ocupar-se com os problemas políticos de seu tempo.
...Platão desfere contra os regimes democráticos sua maior crítica, e
talvez aquele que ainda hoje não foi considerada frente a frente: pois,
para ele, a democracia dá injustamente o direito de governo à
maioria dos cidadãos, justamente àquela ala política dos menos
instruídos, o povo, que é o contraponto do sábio37.
Duras palavras contra um regime tão amplamente elogiado. Platão faleceu em
348-347 a.C. sem ver seu projeto político executado. Que idéias seriam essas? É o que
procuramos mostrar, ao menos em parte, a seguir.
O ideal de cidade
Será apresentado agora alguns pontos da obra A República, escrita por Platão,
justamente ocupando-se do problema político. Queremos adiantar que são apenas alguns
36
PLATÃO, Diálogos : Eutífron. São Paulo Hemus s/d. p. 34
37
WATANABE, Lygia Araújo. Op. Cit. p. 36.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
29
pontos e tem a pretensão de estimular a leitura da obra em si, cuja grandiosidade só pode ser
sentida lendo-a em sua inteireza.
A REPÚBLICA38
Sócrates e Gláucon encontram-se no Pireu, estão caminhando, quando são
chamados pelo escravo de Polemarco, que pede que esperem seu dono. Polemarco, que se
encontrava com outros amigos, convida Sócrates a passar o restante do dia em sua casa. Este
aceita o convite.
Ao chegar na casa, Sócrates é recebido com alegria por Céfalo, um ancião cuja
fortuna havia herdado de seu pai e conseguiu aumentá-la um pouco. Sócrates pergunta à
Céfalo se a vida aos que chagam naquela idade é custosa ou não. Para alguns a vida é
custosa, para outros não, respondeu o velho Céfalo. Quando chega no limiar da velhice, a
pessoa começa a fazer as contas, a ver se não ficou em débito com alguém, a ver se cometeu
alguma injustiça, com temor de que por ter sido injusto venha a sofrer os horrores do Hades, a
região dos mortos.
Como Sócrates quis saber o que era a justiça e a injustiça, Céfalo definiu a justiça
como sendo dizer a verdade e dar a cada um aquilo que se lhe tomou. É a partir da pergunta
de Sócrates e da resposta de Céfalo, que este diálogo de Platão será conduzido, i.é, visando
saber o que é a justiça.
Em seguida, Polemarco, que é o filho mais velho de Céfalo, toma as vezes do pai,
enquanto este se dirige ao pátio para fazer um sacrifício ao deus da casa. Polemarco define a
justiça como sendo dar a cada um o que se lhe deve. Aos amigos, o bem e aos inimigos, o
mal. Esta tese é refutada por Sócrates, pois o que se faz de mal torna as pessoas piores, como
o músico não pode tornar a outros ignorantes de sua arte, ao usá-la, também o justo não pode
tornar a outro ignorante da justiça por meio dela.
O sofista Trasímaco, que se encontrava no grupo, dá também a sua definição de
justiça, porém só depois de ter sido pago. Para Trasímaco, a justiça não é outra coisa que a
conveniência do mais forte. Argumenta que os governantes ao prescreverem as leis, as fazem
em benefício próprio. Sócrates, primeiramente, quer saber se os governantes erram as vezes,
ou se não erram nunca. Como Trasímaco concorda que eles erram as vezes, Sócrates
argumenta então que os súditos cumprem leis que são em alguns casos, são desfavoráveis ao
governante. O sofista rebate a argumentação de Sócrates, dizendo que não se pode dizer que
38
PLATÃO. A República. 4 ed. Lisboa : Calouse Gulbenkian, 1983.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
30
um médico é medico quando erra, mas sim se acerta na dieta contra as doenças. Tomando o
médico como comparação, Sócrates diz que a medicina vem em auxílio do corpo, que lhe é
mais fraco, o piloto trabalha pela população do navio, afim de levá-la à salvo, e de igual
forma o governante (que é mais forte), trabalha em função de seus súditos. Após derrotado,
Trasímaco sente rubor, o suor lhe escorre na face, e pede então para Sócrates definir a justiça.
Sócrates propõe o seguinte: Imaginemos que alguém deva ler letras miúdas e
descubra que em algum outro lugar há em dimensões maiores, as mesmas letras, na mesma
disposição. O que se fará é ler nas de maior tamanho, e depois ler as que estão em caracteres
menores. Com esse exemplo, Sócrates sugere que se funde uma cidade e após descobrir nela
onde está a justiça, seja transportada a análise para o sujeito, afim de verificar o que é e onde
está a justiça.
Na cidade ideal, existiriam três classes: a dos artífices, a classe dos guerreiros e a
classe dos guardiões. A educação dos guardiões deverá ser feita através da música e da
ginástica. A poesia fica bastante restrita em Platão, pois segundo ele, a poesia é a maneira
mais sutil de introduzir maus costumes na cidade, por isso ele censura uma série de poetas
que falam nos horrores do Hades, por exemplo, que pode comprometer a coragem dos
guerreiros, deixando-os mais temerosos da morte, como também a censura a poesia que fala
nas brigas entre os deuses e coisas impróprias de um deus, o que levaria os cidadãos a se
tornarem piores.
A procriação deverá ser feita em comum, sem que o filho saiba quem são seus
pais, nem os pais quem são seus filhos, além de criar meios para os mais fortes e melhores nos
combates se relacionarem com um número maior de mulheres, é outro ponto curioso do livro
de Platão.
Depois de fundada a cidade, é hora de buscar nela a localização das quatro
virtudes, a saber: sabedoria, coragem , temperança, e finalmente a justiça.
A sabedoria encontra-se nos guardiões, a coragem é encontrada nos guerreiros, a
temperança na harmonia entre as classes. A justiça, por fim, estará em cada classe fazer o que
lhe é devido. Assim, os artífices deverão fazer
o que é de responsabilidade deles, os
guerreiros farão aquilo relativo a arte da guerra. Os guardiões cuidarão do governo, da guarda
da cidade. A injustiça, por sua vez, acontecerá quando um guerreiro se meter a fazer o
trabalho de um artífice ou do governante. Enfim, qualquer coisa que um membro de uma das
três classes quiser fazer, mas que não pertence a sua classe, será uma injustiça.
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
31
A cidade deverá ser governada pelo filósofo, aquele que é capaz de chegar à
essência das coisas. No mito da caverna, o filósofo é aquele prisioneiro que sai do mundo das
sombras e observa as coisas como elas são. O filósofo irá nutrir-se do bem, que é fonte da
verdade, da beleza, da sabedoria, da temperança.
Após vencidas algumas dificuldades, Sócrates é interrogado sobre a possibilidade
de existir uma cidade assim. Ora, dirá ele, mesmo que não haja esta possibilidade, haverá, no
céu, um modelo para quem quiser contemplar.
A crítica em Platão
É conhecida a expressão "amor platônico", como sendo um amor inacessível,
distante, inatingível, no qual o amante deposita no amado uma série de qualidades muitas
vezes absurdas e inexistentes. Quando se trata de fundar o conhecimento, porém, Platão
distinguia o mundo sensível, no qual nós vivemos, e o 'mundo das idéias'. O mundo das
sombras seria uma projeção do mundo perfeito das idéias.
Na obra Fedro39, encontram-se Sócrates e a personagem que dá nome ao livro de
Platão, às margens do rio Ilisso*, quando se põe a discutir aspectos relacionados a constituição
da alma humana. Esta é comparada com uma parelha de cavalos que puxam um carro,
dirigido por um cocheiro. Este carro participa no cortejo os deuses, no Zênite**. Enquanto os
cavalos dos deuses são de boa raça, os cavalos dos homens são, um de boa raça e outro o
contrário deste. É nesse caminho no Zênite que as almas irão nutrir-se das coisas em si. A
verdade, a bondade, a beleza em si mesmas. Como o carro é puxado por uma parelha de
cavalos de boa e má raça, o movimento que devem executar para seguir no caminho é
dificultado, o que lhes permite apenas vislumbrar as coisas em si mesmas. As almas chegam
ao Zênite pelas asas, ou graças a elas, cujo crescimento é possibilitado pelo que é bom, sendo
que o mal é causador da queda das asas.
Devido as constantes brigas entre os dois corcéis, a alma cai e aqui na terra bate
em um corpo inanimado, dando-lhe vida. Aqui na terra, ao se deparar com um objeto belo, se
recorda daquele belo ideal, daquele mundo ideal. É a beleza que primeiro faz recordar daquele
mundo ideal, pois, somente a beleza tem a ventura de ser a mais perceptível e cativante40.
39
PLATÃO, Fedro. Lisboa :Guimarães Editores, 1986.
Rio que corria pelas cercanias de Atenas.
**
O cume da abobada celeste, onde os deuses seguem em procissão.
40
Fedro 250 d.
*
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
32
Neste pequeno trecho sintetizado da obra de Platão, é possível perceber o núcleo
fundamental da teoria do mundo das idéias, no qual está centrada a crítica em Platão.
Aristóteles (384-322 a.C.)
Nascido em Estagira, na Calcídia, pertencente ao domínio da Macedônia. Seu pai,
chamado Nicômaco, era médico na corte de Amintas II. Aos dezessete ou dezoito anos,
Aristóteles mudou-se para Atenas, onde matriculou-se naquela que já era famosa escola de
filosofia, a Academia de Platão. Apesar de algumas dificuldades de pronúncia em um mundo
onde a fala era fundamental, Aristóteles logo se destacaria na escola de Platão, onde segundo
se dizia, o hábito de ler abundantemente teria lhe conferido a alcunha de “ O Leitor”. Tal fato
pode ser constatado pelas numerosas citações que Aristóteles faz de filósofos anteriores a ele,
o que permite lhe conferir o título de historiador da filosofia. Aliás, muitas coisas acerca dos
filósofos pré-socráticos se devem à iniciativa de Aristóteles, primeiro historiador da filosofia,
por ter analisado estes mesmos pensadores, afim de refutá-los ou concordar com as
proposições apresentadas pelos mesmo.
Em 343 a.C. Aristóteles torna-se preceptor de Alexandre futuro imperador
macedão. Por convite feito pelo rei macedão e pai de Alexandre, Filipe II. Antes disso, havia
fundado em Atenas sua própria escola, o Liceu.
Enorme influência exerceu Aristóteles no pensamento ocidental, tendo sido
tomado por São Tomás de Aquino como “O Filósofo”, tamanha a admiração do santo da
Igreja Católica pelo estagirita.
O fundamento epistemológico
Em Platão o conhecimento, ou a crítica, afirma existir dois mundos: o mundo das
idéias e o mundo das sombras. Para Aristóteles esta duplicidade não tem sentido. A realidade
é constituída de seres singulares, concretos e particulares, dos quais pare para construir o
conhecimento. A partir da observação dos seres particulares observando o gênero próximo e
a diferença específica, contruíndo assim formulações científicas,
portanto necessárias e
universais.
Observar repetidamente os casos particulares. Tirar deles o aspecto comum,
formular uma lei. Este procedimento - indução - conduz o raciocínio do particular para o
geral, do singular para o universal, objetivo da busca do conhecimento. O universal existe no
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
33
espírito (inteligência) como conceito. Contudo, não se trata de conceito subjetivo, pois está
fundado no concreto, nos casos singulares reais.
Os seres concretos teriam uma estrutura comum capaz de permitir ao intelecto
nominar os seres, como: cavalo, mesa, pássaro, etc.
Tais problemas conduzem a questão do ser. Qual seria esta estrutura íntima capaz
de revelar a "essência" do ser 'cavalo' por exemplo? Este problema conduz Aristóteles às
questões metafísicas. Esta é o fundamento primeiro das ciência, pois busca o ser. Mas ser em
Aristóteles assume o dinamismo que o mundo físico exige. Para ele o ser teria diversas
acepções.
Assim, qualquer termo que designa algo que é, designa ou uma
substância (um ser) ou um acidente (um modo de ser); porém os
modos de ser são vários e os acidentes podem significar uma
quantidade, ou uma qualidade, ou uma relação (duplo, menor, pai e
filho), ou o onde, ou o quando, ou ainda uma posição (sentado), ou
um estado (vestido, equipado), ou uma ação (escrever), ou então uma
paixão (estar doente)41 (grifos do autor).
Ato e potência.
Como já foi dito quando foram estudados os pensadores
pré-socráticos, o
problema do movimento era uma questão crucial. Como pode haver o movimento e o mundo
permanecer o mesmo? Aristóteles rejeita
tanto a posição de Heráclito, para quem é
impossível o conhecimento duradouro, quanto a idéia de Parmênides, que afirmava um ser
imutável.
As diferentes mudanças e o movimento dos seres se explicam, segundo
Aristóteles, pelo ato e potência. É possível dizer que em ato o ser é aquilo que é naquele
momento. A potência é a possibilidade do vir a ser. Assim, a semente da árvore é ato como
semente e árvore como potência, possibilidade do vir a ser árvore. Nota-se contudo, que o ser
'semente' em ato só pode realizar aquilo para o qual sua natureza ou essência permite, i. é,
semente de árvore terá como possibilidade a árvore, mesa, o móvel, não um cavalo, por
exemplo.
A potência é então uma disponibilidade para a forma, não é ainda a
forma. Implica por isso mesmo imperfeição e carência; ainda não é
efetivamente tudo o que pode vir a ser. Por exemplo, a semente ainda
não é a árvore, mas a possibilidade da árvore.
41
ARISTÓTELES, In: Coleção Os pensadores. 5 ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. XIX
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
34
O ato, ao contrário, é a forma realizada e presente no ser...O ato é a
realização daquilo que existia apenas como possibilidade, como
disponibilidade.42
Este ponto da metafísica aristotélica - a teoria do ato e potência -, requer a noção
de causalidade. A transformação exige uma causa. Mais, Aristóteles distingue quatro noções
de causalidade, que podemos resumir assim: A causa pode ser: material (aquilo que é a
matéria do ser); formal (a forma do ser que o distingue dos demais seres); a causa eficiente (o
agente que transforma o ser), e a causa final (como diz o nome, a finalidade do ser). Esta
última é a mais importante, pois determinaria as outras. É em vista da finalidade que o
escultor dá forma ao mármore.
Ética e Ethos
Considerando as diferentes culturas, será possível observar em cada uma um
modo de ser. O homem cria normas de conduta, valores morais
(do latim mor, moris-
morale = o costume), padrões de comportamento visando organizar a vida em sociedade,
fundando assim uma tradição.
A palavra ética deriva de ethos, cujo significa é "costume", tradição de
comportamento. A ética observa então a conduta relacionada às leis de comportamento e ação
com relação ao problema do bem e do mal, de conformidade com o ethos, o modo de ser
social, ligado, claro, ao sujeito da ação.
Feitas estas primeiras consideração, é necessário observar que para Aristóteles, o
homem tem duas dimensões básicas: a política e a ética. Tendo a dimensão política o sentido
da vida social, a ética visando a busca da felicidade. Sendo as duas indissociáveis. Não é
possível dicotomizar o homem ético do homem político.
A exemplo do problema epistemológico, na ética, Aristóteles chama a atenção
para o caráter prático. O conhecimento puramente teórico seria insuficiente para mostrar o
agir correto, tendo a felicidade como fim da ético. Mas que seria a felicidade para o filósofo
de Estagira?
Quando o homem consegue afinar os desejos e as ações com seu
pensamento, agindo em plena consonância com a própria natureza e
42
FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Aristóteles: a plenitude como horizonte do ser. São Paulo : Moderna,
1994, p. 52
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
35
realizando os fins que lhe são próprios, alcança esse sentimento de
plenitude que constitui a felicidade e que é mais do que a honra, o
poder, o sucesso ou o prazer.43
Se por um lado Aristóteles chama a atenção para os aspectos práticos da ética, isso
não significa desprezo pelo conhecimento. No Conhecimento ético estariam a sabedoria e a
prudência, sendo que quanto mais sábio e prudente, maiores serão as possibilidades de ser
alcançada a felicidade.
Quando se quer saber o que é a virtude, convém observar o homem virtuoso. Ser
virtuoso é usar da "justa medida", i. é, dominar o desejo e as emoções, evitando assim ser
dominado por eles, o que não significa reprimir o desejo, mas achar o meio termo. O contrário
da virtude, ou seja o vício, ocorre pelo excesso ou falta de emoção e desejo. A virtude e o
vício constituem o caráter.
Por fim, é preciso lembrar que para Aristóteles só os atos voluntários dizem
respeito à esfera moral, e a amizade desinteressada, como amor a sim mesmo e ao semelhante
coroa uma vida virtuosa.
Organon
Platão havia empregado a dialética como método (de diá, "dois", logos
"discurso"). Tal método consistia em opor dois discursos, acreditando chegar assim mais
próximo da verdade. Aristóteles considerava tal método pouco consistente em um mundo
cercado por discursos sofísticos, capazes de enganar até 'aquele que sabe'. Em vista disso,
procurou criar um instrumento capaz de dar segurança ao pensamento, no sentido de conduzir
a razão à verdade. Daí os escritos aristotélicos ligados à lógica terem sido chamados em seu
conjunto de organon, i. é, instrumento, sendo a lógica entendida como um instrumento para
bem pensar: A lógica estuda a razão como instrumento da ciência ou meio de adquirir e
possuir a verdade44 (grifo do autor).
Nem sempre é fácil dizer o que é a lógica. Num certo sentido os escritos que você
está lendo são lógica e pretendem dizer o que é a lógica. O certo é que desejado ter um
raciocínio adequado e correto, se quer ser razoavel, ter raciocínios corretos para bem dirigir a
razão na construção do conhecimento. Claro, não é mister ser estudioso da lógica para pensar
43
44
FARIAS. Op. Cit. p. 73
MARITAIN, Jacques. Elementos de filosofia II: A ordem dos conceitos, lógica menor (lógica formal). 10 ed.
Rio de Janeiro : Agir, 1983, p. 17
Filosofia, texto 1
Ivanor Luiz Guarnieri
36
com correção, mas o seu estudo deverá favorecer a organização das idéias e suas exposições
verbais com maior clareza, pois: O estudo da lógica é o estudo dos métodos e princípios
usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto45.
Do que foi dito será agora estudado alguns aspectos da lógica formal, na qual
estão expressas as regras de raciocínio com relação à 'forma' do pensamento. Aspectos estes
que ilustram o trabalho realizado por Aristóteles. A lógica formal é também conhecida por
lógica menor, em oposição à lógica material que se ocupava da natureza dos objetos e é mais
extensa.
Segundo informa Jolivet, A lógica formal
estabelece as condições
de
conformidade do pensamento consigo mesmo...Ora, todo raciocínio se compõe de juízos, e
todo juízo de idéias: há lugar, pois, para distinguir três operações intelectuais
especificamente diferentes46. Estas três operações citadas pelo autor são: o raciocinar, o
julgar e o apreender (uma idéia), donde temos: o raciocínio, o juízo e a simples apreensão.
São portanto três momentos do raciocínio formal.
Simples apreensão.
É o ato pelo qual o espírito (inteligência), simplesmente apreende uma idéia.
Neste momento não há ainda um afirmar ou negar a idéia, ela é apenas apreendida. Ex.: casa,
caneta, avião, terra, etc. Com a simples apreensão os objetos são representados
intelectualmente. Não se deve portanto, confundir idéia com palavra, pois é preciso
considerar ainda que, a expressão verbal da idéia é o termo: Os "termos" são as palavras que
entram nas ligações lógicas, tomadas enquanto expressões verbais de um conteúdo: homem,
cão, cavalo, vertebrado47(grifos do autor).
A idéia, bem como seu termo, pode ser entendida quanto a extensão e a
compreensão. A primeira é o conjunto de sujeitos a que a idéia convém48 e a compreensão o
conjunto de elementos de que uma idéia se compõe, ou o conteúdo da idéia.
O Juízo.
Tomado como a segunda operação do espírito, o juízo é o ato pelo qual se afirma
ou nega uma idéia de outra. Neste sentido, compõe-se necessariamente de três elementos: o
sujeito, o atributo e a afirmação ou negação. A expressão verbal do juízo é a proposição, que a
45
COPI, Irving Marmer. Introdução à Lógica. 2 ed. São Paulo : Mestre Jou, 1978, p. 19.
JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. 14 ed. Rio de Janeiro : Agir, 1982, p. 31.
47
LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1995, p. 138.
48
JOLIVET. Régis. Op. Cit. p. 34.
46
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exemplo do juízo se compõe de três elementos: o sujeito, o predicado e o verbo de ligação,
também chamado de cópula, pois liga o sujeito e o predicado.
Quanto a classificação das proposições, são as seguintes as principais:
a) quanto a extensão do sujeito. Neste caso, será verificado a quantidade.
Universal: o sujeito é tomado na sua universalidade, ex.: todo homem, nenhum homem.
Particular: Ex.: algum homem é virtuoso.
Singular: um sujeito. Ex.: Pedro, este caderno, etc.
No tocante a qualidade da proposição, esta pode ser afirmativa ou negativa, quer
seja uma universal negativa ou afirmativa, quer se trate de proposição particular afirmativa ou
negativa.
Exemplos:
Universal afirmativa: todo homem é mortal.
Particular negativa: algum homem não é diplomata.
O raciocínio.
Depois de apreender e ajuizar com clareza, é chegada a hora da terceira operação
do espírito, para a qual as duas primeiras convergem. No raciocínio, de duas ou mais idéias
conhecidas, conclu-se uma terceira que daquelas decorre necessariamente.
O argumento/argumentação é a expressão verbal do raciocínio. A mais conhecida
forma de raciocínio, para os formalistas, é o silogismo, no qual de um antecedente que une
dois termos a um terceiro, tira-se um conseqüente que une estes dois termos entre si49. No
plano da lógica aristotélica, é dividir o raciocínio em dois grandes grupos: o raciocínio
dedutivo, que parte do geral para o particular e o indutivo que parte de particulares para a
formulação de uma idéia geral.
Raciocínio indutivo: O cão é um animal e morre.
O homem é um animal e morre.
A ave é um animal e morre.
Logo, os animais morrem.
Raciocínio dedutivo: Todos os animais morrem.
Ora, o cão é um animal.
Logo, o cão morre.
49
JOLIVET. Régis. Op. Cit. p. 47.
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Conforme foi visto, a lógica formal se ocupa da forma do pensamento, está
voltada para as regras de correção do pensamento consigo mesmo. Mas além dela, a lógica
material também ocupa-se em ajudar na busca da verdade, mas neste caso volta-se para a
matéria do pensamento. Estuda as questões relacionadas a verdade e ao erro, ao problema da
dúvida, da opinião, da ignorância, dos critérios de certeza e evidência, o método, e o
conhecimento na ciência. Modernamente a lógica material tem sido preterida em favor da
epistemologia ou da teoria do conhecimento que questiona as possibilidades de chegar ao
conhecimento, do processo de aquisição do mesmo e de suas principais formulações. Em
uma palavra e como se pode perceber dos tópicos apontados acima, hoje os problemas da
lógica material são objeto da Teoria do Conhecimento, da filosofia da ciência ou da
epistemologia, etc.
Não é propósito deste texto introdutório de filosofia fazer um tratado de lógica.
Os escrito que agora foram apresentados devem servir para apontar algumas idéias
relacionadas à lógica em Aristóteles, e a visão dos diferentes autores citados no texto. Existem
várias regras do silogismo, do juízo e da simples apreensão que propositadamente não foram
apontadas, mas poderão ser estudadas consultando a bibliografia indicada ao longo deste
texto.
Filosofia e cristandade medieval.
Patrística
Originada no período de decadência do Império Romano (século II - V d.C .), a
Patrística recebe este nome por ter sido formulada pelos padres da Igreja Católica. Sua
preocupação era refutar os argumentos pagãos para justificar a fé. Para isso era mister utilizarse de argumentos racionais (e não apenas da fé), e estes eram encontrados na filosofia
helenística. Contudo, a filosofia não deveria sobrepor-se à fé, devendo antes ser uma auxiliar
da mesma.
Dentre os pensadores pagãos que exerceram maior influência na Patrística está
Platão, que além de ser estudado naquele período, trazia idéias capazes de pensar as questões
da fé. Além disso, havia sido utilizado pelos pagãos, contrários à fé cristã. Seria interessante
valer-se das mesmas armas teóricas para confirmar a fé.
Um exemplo do uso da filosofia para justificar a fé se encontra em Santo
Agostinho (354-430). Tendo nascido em Tagasta no norte da África, filho de pai pagão -
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Patrício, e mãe cristã - Mônica, Agostinho converteu-se ao Cristianismo aos 33 anos, vindo a
ser sagrado bispo em Hipona. Segundo a sua Teoria da Iluminação, o homem recebe o
conhecimento das eternas verdades de Deus, pois tal como o sol descrito na alegoria da
caverna por Platão, Deus ilumina a razão e torna possível ao homem o conhecimento através
do correto pensar.
Escolástica (século IX ao XIV)
Conforme aponta
Reale50, a escolástica era a filosofia ensinada nas escolas
medievais. Trata-se, como o autor adverte, de definição extrínseca, passando a seguir a
explicitar o significado de 'escolas medievais'. Não é este o entendimento do padre Leonel
Franca51, para quem é fundamental caracterizar um movimento filosófico pelas suas idéias.
Transcrevemos a seguir as linhas mestras da filosofia escolástica apontadas pelo autor:
Em criteriologia: existência da certeza e objetividade do conhecimento. Em
Metafísica: individualismo acentuado, construído sobre as noções aristotélicas de ato e
potência, substância e acidente. Em cosmologia: composição substancial dos seres. Em
psicologia: espiritualismo moderado, unidade, substancialidade e espiritualidade da alma,
distinção entre o conhecimento sensitivo e o intelectual, origem sensitiva das idéias, livre
arbítrio. Em teodicéia: transcendência e personalidade de Deus, Criação e Providência (sic)52.
Não se pretende aqui fazer um tratado sobre a escolástica, mas apontar algumas
das principais linhas de pensamento europeu, num período em que as escolas renasciam com
vigor e as universidades estavam sendo fundadas.
Fides e Ratio
Tanto na Patrística quanto na Escolástica, predomina a aliança entre a fé e a razão,
sendo a razão e em conseqüência a filosofia, considerada serva da teologia, neste sentido
devendo os argumentos filosóficos servirem como instrumento da justificação da fé. Era
comum as disputas terminarem com um apelo à autoridade, i. é, à consulta aos intérpretes
50
REALE, Op. Cit. p. 478.
FRANCA, Leonel. Noções de História da Filosofia. 22 ed. Rio de Janeiro : AGIR, 1978, p. 91
52
FRANCA, Leonel. Op. Cit. p. 92
51
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autorizados pela igreja. Tal atitude criou entraves ao desenvolvimento da ciência, provocando
uma ruptura no pensamento europeu, como veremos no item : "A Revolução Copernicana".
Se Santo Agostinho é o principal representante da Patrística, a Escolástica foi
marcada significativamente pelo gênio de São Tomás de Aquino. Nascido no Castelo de
Roccasecca em 1225, filho de nobre, estudou com os beneditinos de Montecassino e viveu a
mocidade em Nápoles. Mesmo contrariando a vontade da família, decidiu tornar-se monge,
ingressando na Ordem de São Domingos. Seu gênio e dedicação levaram-no a tornar-se
mestre, lecionando em universidade como as de Paris, Orvieto, Roma, Viterbo, Nápoles.
Valendo-se da filosofia de Aristóteles, a quem Aquino chamava "O Filósofo",
procurou o Doutor Angélico ou Anjo das escolas, como passou a ser também conhecido, à
demonstrar que as verdades da razão não são incompatíveis com a fé.
Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da
razão humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à
razão podem estar em contradição com esta verdade
sobrenatural...Deus não pode infundir no homem opiniões ou uma fé
que vão contra os dados do conhecimento adquirido pela razão
natural.53
São também conhecidas as cinco provas da existência de Deus, também chamadas
de cinco vias, que serão apresentadas resumidamente a seguir.
a) caminho da mutação: o que é movido só pode ser movido por outro. Nada é
causa do movimento de si mesmo. Considerando a teoria do Ato e Potência, formulada por
Aristóteles, segue-se o mesmo raciocínio, a semente não pode tornar-se árvore por suas
próprias forças, é Deus que dá o movimento.
b) A causa eficiente: uma coisa não pode ser eficiência de si mesma. Neste sentido
seria absurdo pensar que eu criei a mim mesmo. Não poderia ir também ao infinito querendo
saber quem criou aos pais, avós bisavós, etc. A causa eficiente última é Deus.
c) Caminho da contingência: O homem é um ser contingente. Tudo vem de algo.
Se houvesse um não-ser, nada existiria, pois o não-ser só criaria o nada, o que é absurdo.
Logo deve existir um Ser primeiro, incriado, do qual derivam todas as coisas. Este ser é
Deus.
53
AQUINO, Santo Tomás de. Súmula contra os gentios, Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1973, p. 70.
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d) O caminho dos graus de perfeição: Os homens são seres derivados. Assim
como a causa do calor é o fogo, que é mais forte, Deus como grau máximo de perfeição é a
causa do universo.
e) Fim: Tudo tende para um fim, como a flecha na mão do arqueiro. A flecha não
pode ser um fim em si mesma, mas na intenção do arqueiro. Não é possível ser um fim em si
mesmo, logo o fim último é Deus.
Mas a filosofia da Idade Média não se restringe à São Tomas de Aquino, claro,
assim como a Patrística não é só Santo Agostinho. Será visto a seguir uma das maiores
controvérsias da história da filosofia.
O problema dos universais.
A questão dos universais nasce dos problemas trazidos pela lógica aristotélica. O
que existe na
realidade conceitos, idéias, que procuram exprimir esta realidade. Estes
conceitos são universais. Haveria alguma contradição entre o caráter universal das idéias e a
contingência dos seres individuais? Desta dúvida surgiram quatro posições, a saber: realismo
exagerado, conceptualismo, nominalismo e realismo moderado.
Realismo exagerado: afirma a existência de realidades objetivas formalmente
universais, como ensinava Platão. Nominalismo: concebe os universais apenas enquanto
termos ou vocábulos comuns, como os quais são nominados aos seres. Conceptualismo: só
admite o valor ideal dos conceitos universais. Realismo moderado: considera os objetos
individuais e particulares, mas unidos pelo conceito, que é universal. Existiria na inteligência,
mas se fundamenta nas coisas.
Espera-se que as idéias apresentadas até aqui possam dar um pequeno quadro do
pensamento medieval no qual destacam-se a teologia cristã, defendida pela Igreja Católica, a
qual conservou inúmeras obras de pensadores gregos e romanos em seus mosteiros em cujas
bibliotecas predominou o trabalho dos copistas.
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