Ministério da Educação Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – Campus Nilópolis Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Programa de Pós-Graduação Lato Sensu Especialização em Produção Cultural com ênfase em Literatura Infanto-Juvenil HELIO MELLO VIANNA JUNIOR OS DESAFIOS ESTÉTICOS DE LEMONY SNICKET . RIO DE JANEIRO 2010 Ministério da Educação Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Programa de Pós-Graduação Lato Sensu Especialização em Produção Cultural com ênfase em Literatura Infanto-Juvenil HELIO MELLO VIANNA JUNIOR OS DESAFIOS ESTÉTICOS DE LEMONY SNICKET Monografia apresentada ao Programa Pós-Graduação Especialização em Produção Cultural com ênfase em Literatura Infanto-Juvenil, do IFRJ – Campus Nilópolis, como parte dos requisitos para obtenção do título de Especialista. Orientadora: Professora Doutora Ângela Maria da Costa e Silva Coutinho . RIO DE JANEIRO 2010 ESPECIALIZAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL COM ÊNFASE EM LITERATURA INFANTO-JUVENIL HELIO MELLO VIANNA JUNIOR OS DESAFIOS ESTÉTICOS DE LEMONY SNICKET Orientadora: Professora Doutora Angela Maria da Costa e Silva Coutinho Aprovada em: ____/_____/______. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Professora Doutora Angela Maria da Costa e Silva Coutinho Presidente da Banca Examinadora/Orientadora (IFRJ) __________________________________________________ Professor Doutor Jorge Luis Pinto Rodrigues (IFRJ) ___________________________________________________ Professor Fábio Soares da Silva (IFRJ) RIO DE JANEIRO 2010 ESPECIALIZAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL COM ÊNFASE EM LITERATURA INFANTO-JUVENIL OS DESAFIOS ESTÉTICOS DE LEMONY SNICKET RESUMO Esta pesquisa buscou analisar a refinada estética de Lemony Snicket, autor das Desventuras em Série. Cabe destacar a enorme importância da aplicabilidade das teorias da estética da recepção e do efeito no entendimento da obra. A tematização do leitor e as relações dialógicas também são discutidas, bem como a noção de autoria e identidade. Procurou-se investigar a interpenetração das maneiras discursivas que povoam o imaginário da criança, do jovem e do adulto, bem como descobrir as razões de essas estórias com temáticas tão polêmicas estarem direcionadas ao público infanto-juvenil. . ESPECIALIZAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL COM ÊNFASE EM LITERATURA INFANTO-JUVENIL OS DESAFIOS ESTÉTICOS DE LEMONY SNICKET ABSTRACT This study aimed to analyze Lemony Snicket’s refined aesthetics. It is worth pointing the great importance of the applicability of reception and effect aesthetics on the understanding of his main work, A Series of Unfortunate Events. The reader’s thematization and the dialogical relations are also discussed, as well as the notion of authorship and identity. I sought to investigate the interpenetration of the discursive ways that inhabits the childish, youth and adult imaginary, as well as find out the reasons why stories with such polemic themes are directed at children and teenagers. EPÍGRAFES “Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!” (Charles Baudelaire) “O fato de uma coisa estar impressa – ou em cartão, ou em jornal, ou em livro – não significa que essa coisa seja verdadeira.” (Lemony Snicket) "Sabe de uma coisa? Eu também achava que unicórnios fossem apenas monstros de contos de fadas até o dia em que eu vi um de verdade, e então – disse o unicórnio – façamos um trato, se você acreditar em mim, eu acreditarei em você.” (Lewis Carroll) “Recusar-se a dar atenção a um pensamento, como recusar-se a entreter um primo bebê ou recusarse a entreter uma alcatéia de hienas, é coisa das mais perigosas. Se você se recusa a entreter um primo bebê, o primo bebê pode ficar entediado e se entreter sozinho perdendo-se ou caindo em um poço. Se você se recusa a entreter uma alcatéia de hienas, elas podem ficar impacientes e se entreter devorando você. Mas quando se recusa a dar atenção a um pensamento – o que é apenas um modo afetado de dizer que você se recusa a pensar sobre uma determinada idéia –, você tem de ser muito mais valente do que alguém que está meramente enfrentando alguns animais sedentos de sangue, ou pais que ficaram aborrecidos por encontrar o seu queridinho no fundo de um poço, porque ninguém sabe o que uma idéia pode fazer quando sai para se entreter sozinha.” (Lemony Snicket) “Não se pode ficar sentado para sempre resolvendo os mistérios da sua própria história.” (Lemony Snicket) AGRADECIMENTOS A Deus, por me dar forças para começar, recomeçar e não desistir desta pesquisa, que iniciei em 2006, ainda no curso de graduação, antes mesmo do último livro de Snicket ter sido publicado. A minha mãe Auzinete de Araújo Santos e ao meu irmão Bruno Miguel Mello Vianna, pelo incentivo (leia-se “empurrão”) que sempre me dão para prosseguir. A meu pai, Helio Mello Vianna (in memorian) por ter me ensinado a ler antes mesmo de eu entrar no jardim-de-infância. A minha avó Alzira de Almeida Vianna (in memorian), por ter me disciplinado ao estudo. A minha eterna orientadora, a Profª Dra. Angela Maria da Costa e Silva Coutinho, por formar novamente esta parceria comigo (ela também orientou minha monografia da graduação em Produção Cultural). Sua paciência e dedicação são exemplares. Se algum dia eu me tornar professor, vou querer ser como ela. Aos professores Jorge Luis Pinto Rodrigues e Fábio Soares da Silva, por aceitarem o convite da orientadora para integrar a banca examinadora, por terem lido tudo em menos de uma semana (sem reclamar!!!) e pelas sugestões de alteração para a versão final. A todos os professores deste curso de especialização, uma vez que utilizei para esta pesquisa material bibliográfico de todas as disciplinas do curso para fazer as fundamentações teóricas. Sintome contemplado pela bem-sucedida transmissão de conhecimentos de todos eles! Agradeço também aos palestrantes, sobretudo à professora e escritora de livros infantis Georgina Martins (que também adora os livros de Snicket e me deu boas sugestões bibliográficas) e ao professor Miguel Gomes (que foi quem me empurrou para esta área de produção cultural, da qual não consigo escapar). Aos meus colegas de classe, sempre levantando discussões importantes e pertinentes e me socorrendo com os trabalhos feitos nas madrugadas de véspera (não é, Patrícia Fagundes?), com outras questões de prazo (não é, Gláucia?) e de perspectivas profissionais (não é, Graça?). À Sra. Malena Cabral Xavier, diretora da Biblioteca Municipal Professor Cial Brito, em Nova Iguaçu/RJ, por ter cedido tão gentilmente, em caráter especial (leia-se “com prazos de devolução longos”), o acervo de Snicket constante na instituição. Também não posso deixar de agradecer à Sra. Riva Maria Nepomuceno, funcionária que me informou sobre os selos indicativos da FNLIJ, e aos outros funcionários, que sempre foram atenciosos e pacientes ao procurar material de pesquisa (quando a biblioteca estava em reforma e os livros não estavam no lugar certo!) e localizar os leitores que haviam tomado emprestado os livros de Snicket para que eu pudesse entrevistá-los. À Sra. Andressa Bezerra da Silva, preparadora e revisora da coleção no Brasil, pela editora Companhia das Letras, pela informações privilegiadas e por mostrar-se totalmente disposta a me ajudar a entrar em contato com os tradutores – e até mesmo o próprio Lemony Snicket! Aos leitores que conheci através da biblioteca supracitada e aos “amigos virtuais” que fiz nos fóruns de discussão sobre as Desventuras em Série nas redes de relacionamento. Todos tiveram profundo interesse em me ajudar. Contudo, peço desculpas por não utilizar os questionários de vocês. O uso deste material, no mínimo, triplicaria o número de páginas, já que os fichamentos e anexos somavam cerca de 150 páginas antes mesmo do início da elaboração do texto monográfico. Eles são: Arthur Victor Ferreira Tertuliano (com quem troquei muitas ideias, já que também pesquisa sobre as Desventuras em Série, mas em aspectos jurídicos), Ricardo Mannato Bolelli, Lucas Juliano Pereira, Evelyn Cordeiro, Aliene Cássia, César Cavalcanti, Felipe “Blytheron” Biavo e Dandara Filuzzi. Agradeço também a Edson Roberto Francischinelli, que voluntariamente traduziu várias entrevistas de Lemony Snicket e publicou na comunidade referente a ele no Orkut. Às minhas chefes do estágio, Mildce de Jesus Moreno de Siqueira e Cleide Lúcia Marques, por terem sido tão compreensivas com relação a ter um estagiário que faz tantas coisas ao mesmo tempo (inclusive escrever o presente trabalho). Aos amigos que esticaram a mão nas horas difíceis: Diogo de Souza Pinheiro Fontes, com quem estudo Relações Internacionais na UFRJ, que gentilmente traduziu o artigo da Revista Mad para constar entre os anexos desta pesquisa; Rafael Quimas, que me socorreu num momento de muito, muito, muito estresse, criando calmamente soluções simples para eu recuperar o trabalho e conseguir imprimi-lo a tempo, depois que uma queda de energia na UFRJ ocorreu antes que eu salvasse a revisão final no meu pen-drive; Heloisa Melino de Moraes, que conseguiu com o Nicholas a tal edição norte-americana da Revista Mad (e ao Nicholas por ter me cedido); Rafael Reis da Luz, amigo estudante de Psicologia, que criticou construtivamente os textos referentes à psicologia; Daruich Hilal, um super amigo, que sempre vem com os melhores conselhos do mundo; amigos e parentes que tiveram a paciência de me ouvir sempre, sob qualquer circunstância, e aturaram eu falando horas e horas sobre os órfãos Baudelaire, além de conviver com a minha constante ausência das festinhas, encontros e farras que esta monografia me exigiu (Roberta Abreu, Patrícia Frota, Flávia Savon, Gabriella Freitas, Sabrina Fonseca, Marcus Campos, Luiz Lopasso, Cecília Sant’Ana, Luíza Sant’Ana, Eduardo Souza, Vanessa Barbosa, Lilian Clemente e outros que não lembro – me perdoem). Ao amigo Geraldo Antônio Pereira Cupertino, outro entusiasta das Desventuras em Série, por ter me incentivado a ler tantas coisas legais e ter sido responsável por cerca de 70% das boas sugestões de leitura, de música e de cinema que recebi em toda a vida. Seu acervo de livros, discos e filmes é impressionante! Prometo que vou devolver os que estão comigo há mais de dois anos... A todas as pessoas que, algum dia, me presentearam com um livro – meu presente favorito! E, por último, mas não menos importante, a Caleb Augusto Sperli Serrano, por todo o apoio moral e suporte emocional que me proporcionou ao longo desta pesquisa. Isso nunca vai ser esquecido! Amo todos vocês!!!! ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Stand de vendas da série em livraria ...................................................................................... 16 Figura 2 - Os treze livros que compõem a série ..................................................................................... 18 Figura 3 - “O filho do Homem”, pintura de René Magritte ................................................................... 26 Figura 4 - Ilustração de Brett Helquist ao final do último livro ............................................................. 40 Figura 5 - Mensagem de Snicket, em bootleg, para o editor, ao final do livro 6 ................................... 46 Figura 6 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 6 do Volume 6 .................................................. 48 Figura 7 - Ilustração de Brett Helquist no capítulo 1 do livro 3 ............................................................. 57 Figura 8 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2 ................................................. 61 Figura 9 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2 (continuação) .......................... 62 Figura 10 - Daniel Handler tocando acordeão ........................................................................................ 64 Figura 11 - Primeira foto de divulgação de Lemony Snicket ................................................................. 66 Figura 12 - Foto de divulgação de Lemony Snicket ............................................................................... 66 Figura 13 - Foto de divulgação de Lemony Snicket ............................................................................... 66 Figura 14 - Capa do livro de Hayley Mitchell Haugen .......................................................................... 67 Figura 15 - Handler x Snicket ................................................................................................................. 68 Figura 16 - Daniel Handler ..................................................................................................................... 68 Figura 17 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 10 do volume 6 ............................................... 71 Figura 18 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 3 do volume 7 ................................................. 74 Figura 19 - Personagens principais ilustrados de modo sombrio por Brett Helquist ............................ 80 Figura 20 - Páginas que antecedem as páginas em preto (Vol. 6) .......................................................... 88 Figura 21 - Páginas em preto (Vol. 6) .................................................................................................... 88 Figura 22 - Páginas que sucedem as páginas em preto (Vol. 6) ............................................................. 89 Figura 23 - Ilustração de Brett Helquist contendo trecho do texto (Vol. 12, cap. 13) ........................... 89 Figura 24 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 4, cap. 5) ........................................................................ 90 Figura 25 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 5) ........................................................................ 90 Figura 26 - Matéria comparando a obra de Snicket à de J. K. Rowling ................................................. 92 Figura 27 - Versão adulta da capa de um dos livros da série Harry Potter ............................................ 96 Figura 28 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 2) ........................................................................ 102 Figura 29 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 9) ........................................................................ 107 Figura 30 - Ilustração de Brett Helquist (cap. 10, vol. 2) ....................................................................... 107 Figura 31 - Ilustração de Brett Helquist ao fim do livro 7 ..................................................................... 111 Figura 32 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto de Sunny .................. 114 Figura 33 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto do elenco .................. 114 Figura 34 - Pôster norte-americano de divulgação do filme .................................................................. 115 Figura 35 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 2, cap. 13) ...................................................................... 118 Figura 36 - Ilustração de Brett Helquist (vol. 13, cap. 12) ..................................................................... 119 SUMÁRIO 1. Introdução ........................................................................................................................................... 11 1.1 – O contexto da pesquisa .............................................................................................................. 11 1.2 – Objeto da pesquisa ..................................................................................................................... 18 1.3 – Problemas .................................................................................................................................. 19 1.4 – Hipótese ..................................................................................................................................... 19 1.5 – Objetivo geral ............................................................................................................................ 19 1.6 – Objetivos específicos ................................................................................................................. 19 1.7 – Metodologia ............................................................................................................................... 20 1.8 – Avaliação das dificuldades ........................................................................................................ 20 2. A série ................................................................................................................................................. 21 2.1 – Mau começo ............................................................................................................................. 21 2.2 – A sala dos répteis ...................................................................................................................... 22 2.3 – O lago das sanguessugas ........................................................................................................... 23 2.4 – Serraria Baixo-Astral ................................................................................................................ 25 2.5 – Inferno no Colégio Interno ....................................................................................................... 27 2.6 – O elevador ersatz ...................................................................................................................... 28 2.7 – A Cidade Sinistra dos Corvos ................................................................................................... 28 2.8 – O hospital hostil ........................................................................................................................ 30 2.9 – O espetáculo carnívoro ............................................................................................................. 30 2.10 – O escorregador de gelo ........................................................................................................... 31 2.11 – A gruta gorgônea .................................................................................................................... 32 2.12 – O penúltimo perigo ................................................................................................................. 33 2.13 – O fim ....................................................................................................................................... 37 3. Características da narrativa ................................................................................................................. 41 3.1 – A construção das personagens .................................................................................................. 44 3.2 – O autor-narrador às vezes participativo .................................................................................... 48 3.3 – Enredo, conflito e ação dramática ............................................................................................ 50 3.4 – Diegese, ambientação e tempo dramático ................................................................................ 53 4. A contemporaneidade no estilo do autor ........................................................................................... 58 4.1 – Lemony Snicket versus Daniel Handler ................................................................................... 63 5. Dialogismo e polifonia ...................................................................................................................... 69 5.1 – A influência de Baudelaire na obra de Snicket ......................................................................... 75 6. A estética da recepção e do efeito e o horizonte de expectativas ...................................................... 81 6.1 – Aspectos gráficos – Marketing, editoração e ilustração ........................................................... 86 6.2 – Classificação etária ................................................................................................................... 93 6.3 – Psicologia .................................................................................................................................. 97 7. Tematização do leitor ........................................................................................................................ 103 8. Sunny e a aquisição da linguagem ..................................................................................................... 108 9. A adaptação para o cinema .............................................................................................................. 112 10. Conclusão ........................................................................................................................................ 116 11. Referências ...................................................................................................................................... 120 11.1 – Bibliográficas .......................................................................................................................... 120 11.2 – Eletrônicas .............................................................................................................................. 125 11.3 – Filmes ..................................................................................................................................... 125 Anexos .................................................................................................................................................... 127 1. INTRODUÇÃO 1.1. O contexto da pesquisa Segundo Ariès (1985), até o fim do século XIX a criança era vista como um adulto em miniatura. A partir desse período de transição, alguns escritores mostraram-se interessados em atingir o público infantil, passando então a adaptar para ele os clássicos da literatura, sobretudo contos moralizantes. Os contos que os jovens da atualidade conhecem como infantis não eram originalmente tão naïf (isto é, de estilo ingênuo) e tampouco tinham finais felizes. Pelo contrário! Eram trágicos1. Mas qual seria a reação de uma criança de seis anos de idade que vive no século XXI ao saber que, na verdade, Chapeuzinho Vermelho e dois dos Três Porquinhos são devorados pelo lobo, ou que a Bela Adormecida tinha narcolepsia e foi deflorada pelo “príncipe” que se aproveitou de sua situação física? O desenvolvimento da mentalidade do homem ao longo da História pode ser observado através de sua literatura e o mesmo vale para a literatura infantil. A criança, como público, passa de um adulto em miniatura do fim do século XIX para um ser inofensivo, inocente e superprotegido em meados do século XX, para logo então transformar-se em um cidadão tão exigente e seletivo quanto os adultos. Ao longo do século XX, a literatura, a TV e o cinema mostraram ao mundo seu padrão formatado de “criança”, bem como as transformações que eles influenciaram em sua remodelagem. A Priscilla de Lassie, Volte para Casa (1943) e as sete crianças Von Trapp de A Noviça Rebelde (1965) têm em comum a inocência, que pode ser questionada de acordo com os padrões da época em que cada filme foi lançado. Quase vinte anos de diferença entre os dois filmes mudam bastante a visão que se tinha a respeito do público infantil. Se nos anos 1940 Priscilla representava uma criança excessivamente alienada, os anos 1960 mostram sete crianças transformadas em paralelo à evolução social, que fazem travessuras, algumas maldosas até demais mesmo para um adulto – como jogar cobras no quarto da governanta. Muitos anos de histórias “mamão-com-açúcar” concluem o século XX, como E.T. – O Extra-Terrestre (1982), A História Sem Fim (1984) e inúmeros filmes envolvendo a relação da criança com seu animal de estimação) e o início do atual nos 1 Revista Mundo Estranho, nº 98, Ed. Abril, Abril de 2010, p. 15-23 11 mostra a nova criança-público-padrão: esperta, inteligente e entendedora dos conflitos do mundo adulto. Os conflitos da personagem infantil e/ou juvenil no século XXI se tornam mais complicados do que eram no século anterior (quando os conflitos eram mais “inocentes”), como a separação dos pais, a disputa pela namoradinha, crimes, violência e... o professor “sádico” que ameaça reprovar os alunos. Todos esses conflitos são próprios, também, do século XX, pois estão presentes nas relações familiares e sociais de todos os tempos, aliás. O conflito de gerações literárias, em se tratando de literatura infanto-juvenil, gira em torno da representação da criança na literatura e nas outras artes, isto é, numa representação da criança idealizada, nos moldes da tradição cristã: uma criança desprovida da maldade do mundo. Outra característica da literatura infanto-juvenil contemporânea é a de “atualização” das discussões sociais. Já no fim do século XX, alguns autores demonstram preocupação em retratar personagens “fora do padrão” ou com necessidades espaciais, trazendo para a literatura a diversidade de características que permeia também o universo infantil. O trio “Léo, Ângela e Gino” de Marcos Rey, inclui um herói adolescente portador de necessidades especiais (nos livros O Mistério do 5 Estrelas, O Rapto do Garoto de Ouro, Um Cadáver Ouve Rádio e Um Rosto no Computador). Maurício de Souza também diversificou as características de personagens da Turma da Mônica. A versão infantil da Turma da Mônica, atualmente, conta com um autista, um cadeirante e um deficiente visual. Na Turma da Mônica Jovem foi criado um personagem homossexual. A escritora Georgina Martins, em seus livros O Menino que Brincava de Ser e Minha Família É Colorida, também gerou polêmicas a respeito de tabus que dificilmente são levados à discussão para o leitor infantil e o juvenil, tendo sua obra sido taxada de Literatura Infantil Gay. Como exemplos de personagens heróicos na literatura brasileira do período de transição do século XX para o XXI temos os cinco Karas (da série de Pedro Bandeira que consiste dos livros A Droga da Obediência, Pântano de Sangue, O Anjo da Morte, A Droga do Amor e A Droga de Americana). Este tipo de herói pré-adolescente ainda mantinha as principais características do heroísmo do século XX: idealismo, obediência, senso de justiça e descumprimento de regras apenas pela salvação do próximo, entre outras. Já o herói-mirim do século XXI é dotado de maiores ambições: a busca do sucesso, o questionamento dos idealismos – e até mesmo a falta deles, que é uma 12 característica cada vez mais presente no inconsciente coletivo da atual juventude –, a pressa em se tornar um adulto, o excesso de responsabilidades na infância, a ironia, o deboche e a violência. Harry Potter, por exemplo, é uma personagem que reúne todas essas características. O herói do século XXI é o desdobramento do conhecido “herói moderno” do século que o precede, pois apresenta um caráter sujeito a falhas e fraquezas. A diversificação na representação das personagens infantis passa então a apresentar uma visão mais realista da criança e do adolescente, a ponto de estabelecerem um padrão de anti-herói na literatura infanto-juvenil. Não que já não houvesse, pois mesmo na literatura de quadrinhos ele já era presente desde meados do século passado. O Brasil tem seu melhor exemplo na personagem Cebolinha, da Turma da Mônica – criação de Maurício de Souza. Cebolinha, por mais carismático e engraçado que seja, é um menino que adora arranjar confusão e fazer maldades. Entre suas mais malévolas artimanhas está a implicância com o coelho de pelúcia da Mônica, que se torna violenta e espanca qualquer coleguinha que a insulte ou mexa com seu coelhinho, isto é, adota um comportamento agressivo decorrente de suas frustrações. Na literatura estrangeira, o ápice da maldade está concretizado na figura de Artemis Fowl, personagem-título dos livros do irlandês Eoin Colfer. Artemis é o mais novo descendente de uma bilionária família de ladrões. Quando seu pai está desaparecido e a mãe surta com sua ausência (Artemis Fowl – O Menino Prodígio do Crime), Fowl decide assumir os “negócios” da família e passa a investigar a real existência das fadas. Ao descobrir que elas existem de fato, seqüestra uma delas e exige metade do ouro do mundo élfico em troca de sua refém. Consegue alcançar seu objetivo mas mostra-se contrariado no segundo livro (Artemis Fowl – Uma Aventura no Ártico), já que descobre que seu pai pode ainda estar vivo e que as personagens míticas são as únicas pessoas que podem ajudá-lo a resgatar o pai. Artemis não é apenas uma criação fantasiosa de Colfer, mas também um retrato de uma criança dos dias atuais, que manda nos pais, é mimada e exigente. Uma garçonete se aproximou, dando um sorriso ofuscante. — Olá, meu jovem. Gostaria de ver o menu infantil? Uma veia pulsou na têmpora de Artemis. — Não, mademoiselle, eu não gostaria de ver o menu infantil. Não tenho dúvida de que o próprio menu infantil tem gosto melhor do que as comidas que estão nele. Gostaria de pedir à la carte. Ou vocês não servem peixe para menores de idade? O sorriso da garçonete se encolheu uns dois molares. O vocabulário de Artemis tinha esse efeito sobre a maioria das pessoas. (COLFER, 2005) 13 Entre as questões que esta pesquisa levanta e investiga, grande atenção foi destinada às desgraças vividas pelos jovens Irmãos Baudelaire e ao sentimento de frustração que estas personagens compartilham com os leitores. Os irmãos Violet, Klaus e Sunny Baudelaire passaram por situações mais terríveis do que quaisquer outras personagens infantis. Criadas pelo autor-fictício Lemony Snicket – que narra a história dos Baudelaire como um participante dela – as três desafortunadas crianças são assunto para treze (seria o número de volumes uma provocação para o azar?) livros da série Desventuras em Série, que é o eixo central desta pesquisa. As Desventuras em Série contam as aflições vividas por três crianças, os irmãos Baudelaire, após a trágica morte de seus pais. Apesar de ter um enorme apelo para a conquista de um público infantil, as ilustrações e a linguagem acessíveis também chamaram a atenção de adolescentes e adultos. Recheada de humor negro e situações non-sense, a série vai contra a corrente literária destinada ao público infantil ao tratar de temas que são ainda tabus para os pais que escolhem o que comprar para os filhos lerem. Assuntos tristes e “pesados” como violência doméstica, morte, assassinato, crime, sequestro, exploração de trabalho escravo e infantil e – principalmente frustração são discutidos ao longo da obra com a maior naturalidade, sem subestimar qualquer faixa etária de leitores. Como disse a escritora Georgina Martins2, em um seminário sobre literatura infantil no IFRJ (Instituto Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro), campus Nilópolis, em 2009, “não existe tema que não possa ser passado às crianças, desde que se saiba como tocar no assunto”. E Daniel Handler o faz com maestria, sob o pseudônimo de Lemony Snicket, um narrador onisciente e – de vez em quando – participativo que é capaz de brincar com todas as figuras de linguagem possíveis e ainda enriquecer o repertório e o senso crítico do leitor. A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas. (BENJAMIN, 1994a: 236-237) Como só um bom escritor consegue fazer, Handler consegue provocar o leitor, fazendo-o sentir na pele o mesmo tédio e a frustração sofridos pelos protagonistas. O sarcasmo exagerado da narração possibilita a compreensão de toda e qualquer situação, metáfora ou trocadilho inseridos no texto. Snicket se utiliza até mesmo da 2 Professora e escritora de livros infantis 14 inserção de um glossário próprio dentro da narrativa, ao citar uma palavra que não seja corriqueira no vocabulário de leitores iniciantes (sejam crianças ou adultos) ou que tenha um sentido irônico e totalmente deslocado do sentido usual, mas que tem uma significação própria dentro do universo da obra de Snicket. Ironicamente, (e esta é uma palavra cujo uso repetitivo não poderei evitar) são da bebê Sunny algumas da falas mais maduras. Como todo bebê, a caçula dos Baudelaire possui um vocabulário próprio à sua idade, que consiste de palavras desconexas, e desprovidas de sentido fora do texto. Também por isso é non-sense. O “gugu-dadá” de Sunny pode ser entendido somente por seus irmãos, portanto, os adultos ignoram que a bebê tenha uma visão filosófica e construtiva ao se expressar. Este é um dos motivos por que há uma dose de non-sense no texto. Além disso, o desenvolvimento do seu vocabulário é abordado ao longo dos treze livros. Se, nos primeiros livros, Sunny pronuncia “Varni!” para dizer “Deve ter sido uma coincidência!”, a partir do sexto volume ela adquire um vocabulário mais significativo para as outras pessoas, como por exemplo, ao falar a palavra “Cinderela” ela tentou dizer que foi forçada a lavar e cozinhar para o conde Olaf. A estrutura narrativa de cada livro, até o volume 5, segue a mesma fórmula. No início de cada história, os três irmãos perdem seus tutores (ou pais, como no primeiro volume), e têm seu destino decidido por um executor testamentário que está mais preocupado com a própria ascensão profissional do que com a segurança deles, para em seguida serem perseguidos pelo vilão que quer capturá-los e inventar um modo de roubar a herança dos Baudelaire para depois matar as crianças. Nos treze livros eles estão fugindo do conde Olaf e sua trupe de péssimos atores e, no final, quase sempre, o infame antagonista é desmascarado, mas consegue escapar de uma punição, fugindo para voltar no próximo livro sob outro disfarce. A série retrata, entre outras coisas, o tédio. E isso é reforçado pela constante repetição de um esquema, que passa a ter elementos diversificantes a partir do último capítulo do volume 5, quando os Baudelaire descobrem que não são os únicos órfãos perseguidos por Olaf. É no Colégio Interno que eles conhecem dois dos trigêmeos Quagmire (o outro está desaparecido). Os pais dos trigêmeos morreram nas mesmas circunstâncias em que os pais dos Baudelaire, e estes novos amigos são raptados pelos comparsas de Olaf ao final deste volume. A partir do sexto volume é inserido na história um objetivo a mais: descobrir onde estão e salvar os Quagmire. E uma nova vilã é apresentada: Esmé Squalor, sexta tutora dos Baudelaire e – como será revelado ao final do volume 6 – noiva de Olaf. Além da inclusão destas novas personagens surgem indícios de que os pais dos 15 Baudelaire integravam uma sociedade secreta filantrópica, na qual houve uma cisão. Os causadores deste rompimento de laços passaram então a se vingar de seus novos inimigos, provocando incêndios para matá-los, e raptar os herdeiros para roubar-lhes a fortuna e matá-los em seguida. Outra característica marcante das Desventuras em Série é o modo como o marketing foi pensado. Através da psicologia reversa, o autor – já na contra-capa e nas orelhas do livro – pede para que o leitor não compre aquele livro ou que o tranque num baú e nunca o leia. A primeira frase do primeiro livro é: “Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro” (SNICKET, Vol. 1: 9). Se levarmos em consideração o ditado popular “tudo que é proibido é mais gostoso”, temos a certeza de que esta estratégia só faz crescer a curiosidade da pessoa que encontrar por acaso estes livros na estante de uma biblioteca ou livraria, levando-o a ao menos folhear o livro que possui uma identidade visual curiosa e atrativa, padrão em todos os volumes, com ilustrações de situações trágicas de modo irreverente. Esta talvez seja a receita para fisgar de vez os adolescentes e adultos: a irreverência trágica que se finge de segredo. Este recurso não se limita à contra-capa, mas também se aplica no texto. Snicket, entre um capítulo e outro, insiste para que o leitor abandone a leitura e vá procurar uma história mais feliz, que terá um final satisfatório – ao contrário de sua obra. Figura 1 - Stand de vendas da série em livraria 16 Se, mesmo com todas as advertências de Snicket, o leitor prosseguir e chegar ao volume 13, de título O Fim, correrá um risco de se arrepender mesmo por não ter interrompido. A razão disto é que o autor brinca com o sentimento de frustração, fazendo antes com que o leitor ria das frustrações das personagens, para depois, no fim, fazer o leitor sentir a mesma frustração. É a vez do narrador rir e fazer joça do leitor. Eu, particularmente, fiquei revoltado com o final, xinguei Snicket e queria queimar o livro. Mas esta reação – pensei depois – provavelmente era o objetivo do escritor. João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, teve a habilidade de seduzir seus leitores, provocando com as palavras tamanha intimidade entre ele e o leitor, que consegue manipular sensorialmente quem segura seu livro. Não é à toa que a maioria das pessoas que leu A Casa dos Budas Ditosos disse ter-se excitado, constantemente, ao longo da leitura, e em O diário do Farol, Ubaldo consegue prever o temperamento do leitor em cada trecho do livro, ao ponto de interromper a história para dizer que sabe que naquele exato momento o leitor ficou tão irado com a provocação da narrativa que o insultou. Isto é ter domínio da escrita, uma genialidade que demonstra um refinado senso estético do escritor. E depois de toda a minha raiva com o fim de Desventuras em Série percebi que Snicket/Handler também possui esta qualidade e se arrisca a fazê-lo até com o público infantil, tão cansado de leituras prontas, óbvias e nada desafiadoras. A grande “frustração” provocada por Snicket é que a partir do sexto livro, quando descobrimos a história da sociedade secreta, surgem construções com passagens secretas, indagações sobre signos e símbolos que são descritos na narrativa (a existência da figura de um olho na tatuagem de Olaf e na decoração de alguns edifícios; a sigla C.S.C.; o mistério do significado do açucareiro que passa a ser tão buscado quanto o Santo Graal; o signo “ponto de interrogação”, o grande desconhecido, que os persegue pelo radar do submarino) e questionamentos a respeito da identidade, do parentesco e da ligação de algumas personagens, só que NADA disso é explicado no fim. Se esta fosse uma obra moralizante, a moral deveria ser “assim como na vida real, na ficção também não podemos ter respostas para tudo o que queremos saber”. Não descobrimos tudo que queremos. O “desenlace” não ocorre, e mais uma vez brinca-se com a utilização dos signos quando no penúltimo volume da série, os Baudelaire acabam tendo que provocar um incêndio num hotel chamado Hotel Desenlace, no qual estão hospedadas todas as personagens dos livros anteriores (todas as que não morreram, obviamente). Simbolicamente, as crianças, ao incendiar o Hotel Desenlace, estão “queimando o 17 desenlace”, isto é, destruindo qualquer possibilidade de desvendar os mistérios e hipóteses levantados. Figura 2 - Os treze livros que compõem a série 1.2. Objeto da pesquisa O objeto desta pesquisa é a relação do leitor com a estória e a elaboração da narrativa da série Desventuras em Série, de Lemony Snicket. Estudar-se-á, portanto, o 18 entrelaçamento de uma aparente hegemonia de uma sequência de situações inusitadas e do esforço para a elaboração do texto artístico-literário. 1.3. Problemas O texto de Snicket resiste a uma análise literária? Há nele instigação para o leitor estético infantil e juvenil? Como as editoras destinam suas obras a faixas etárias específicas? 1.4. Hipótese A série de narrativas Desventuras em série caracteriza-se como obra da cultura de massa, por apresentar um aparente centramento na estória dos personagens. No entanto, é possível depreender de seus arranjos verbais elaborações dialógicas e polifônicas e de estilo receptivo, que podem classificá-la como obra literária juvenil contemporânea, ao se deter no estudo das imprevisibilidades estéticas. Supõe-se que esta obra ocupe um lugar limite entre a cultura de massa e a cultura da arte literária, agradando, por causa disso, a públicos de idades diferenciadas. 1.5. Objetivo Geral Analisar o conjunto da obra de Lemony Snicket, as Desventuras em série, discutindo sua classificação como cultura de massa e ao mesmo tempo como obra de valor artístico-literário, bem como sua classificação como literatura infantil. 1.6. Objetivos específicos a) Estudo do dialogismo e da polifonia presentes na obra; b) Fundamentação da análise segundo a estética da recepção e do efeito do conjunto dos livros da série; c) Investigar as características de contemporaneidade da criação narrativa e da construção dos personagens; d) Estudo da adaptação da obra literária para o cinema. 19 1.7. Metodologia A pesquisa é qualitativa, bibliográfica e teórico-descritiva. Procedeu-se à análise crítica dos 13 livros da série tendo como principais suportes teóricos os estudos sobre polifonia e dialogismo e a estética da recepção e do efeito. Após a coleta de dados sobre a série e a análise do filme “Desventuras em série”, houve uma busca por adolescentes que já leram toda a série. Esta triagem foi realizada em parceria com uma biblioteca pública que possui a série quase completa (em Nova Iguaçu). Os leitores, os tradutores, os editores e o próprio autor receberam um questionário elaborado (para cada um, especificamente) após a coleta de dados. Após o preenchimento do questionário, cada um seria entrevistado individualmente. 1.8. Avaliação das dificuldades A principal dificuldade foi encontrar jovens que teivessem lido toda a série. Uma solução para isto foi estender a pesquisa a adultos de até 22 anos que tenham iniciado a leitura da série durante a adolescência. Já se tentou minimizar esta dificuldade, através da disponibilização dos volumes do meu acervo particular para jovens que leram a maior parte da série e não concluíram por não terem adquirido os últimos volumes ou não terem encontrado (a biblioteca municipal de Nova Iguaçu não possui os dois últimos volumes). Outra atitude tomada para agilizar o contato com leitores que leram todos os 13 livros foi a busca no site de relacionamentos Orkut, no qual existem diversas comunidades dedicadas à obra de Snicket. Através deste site de relacionamentos encontrei a preparadora de editoração do último volume da série, que aceitou me ajudar nas questões relativas ao processo editorial e nos repasses de contatos com os tradutores, com o editor do primeiro volume e com o autor (a quem este projeto de pesquisa foi encaminhado, junto com o questionário, devidamente traduzidos para o inglês). Entretanto, com o imenso volume de informações que fui inserindo na pesquisa, os questionários e entrevistas foram abolidos, uma vez que também se mostraram inconclusivos por causa do pequeno número de entrevistados que se enquadravam no mesmo perfil. 20 2. A SÉRIE As personagens centrais são as crianças da família Baudelaire, que perdem a casa e os pais num incêndio já no primeiro capítulo do primeiro volume. A partir daí os três órfãos citados terão que passar por todo tipo de desgraça, tendo como principal pivô o Conde Olaf, um parente distante que os persegue com as piores intenções possíveis. Já na contracapa do livro o autor adverte o leitor para que escolha outro livro, cujo final seja feliz – o que, definitivamente, não está programado para os órfãos Baudelaire. 2.1. Mau começo Em uma manhã cinzenta e nublada, Violet, Klaus e Sunny Baudelaire se distraíam na Praia do Sal quando chega o Sr. Poe (bancário e executor testamentário da fortuna da família Baudelaire) e anuncia que seus pais haviam morrido num enorme incêndio que destruiu sua mansão. O Sr. Poe então leva os órfãos para sua própria casa até que se encontrasse um tutor para eles. Mais tarde, leva as crianças para a casa do conde Olaf (ator e primo em terceiro ou quarto grau dos Baudelaire), um parente desconhecido que se tornaria responsável por eles. O conde possui em seu tornozelo esquerdo a tatuagem de um olho estilizado. Este ícone está presente na decoração de toda a casa e incomoda as crianças. Tão logo o Sr. Poe se despede das crianças, Olaf já começa a maltratá-las e deixa claro que ambiciona a fortuna dos Baudelaire. Contudo, mesmo as crianças só terão acesso ao dinheiro quando Violet atingir a maioridade (ela tem quatorze anos). Inúmeros são os maus tratos dispensados aos irmãos, entre eles chantagem, ofensas e agressão. Olaf tem uma vizinha muito querida pelas crianças, a juíza Strauss. Ela possui uma biblioteca em sua casa, o que ajudará Klaus a entender melhor a legislação relativa ao matrimônio civil, e que os salvará de perder sua herança – e sua vida – para Olaf. Olaf, frequentemente, convida sua trupe para ensaiar em casa. É nessas ocasiões que as crianças sofrem mais, uma vez que toda a companhia teatral os trata da mesma forma que o conde. São na verdade cúmplices dos crimes cometidos por ele. Para garantir o acesso à fortuna dos órfãos, Olaf então decide produzir um espetáculo teatral chamado O Casamento Maravilhoso. Trata-se de um casamento real entre Olaf e Violet, que é obrigada a integrar o elenco, sob a pena de ter sua irmã bebê 21 (Sunny) assassinada, sendo que esta cerimônia terá um disfarce: todos fingirão que se trata de uma peça teatral. Para que um casamento se realize é necessária a presença de um juiz. Logo a juíza Strauss é convidada por Olaf para integrar o elenco. “Sempre quis subir num palco”, diz a juíza eufórica no momento em que aceita o convite. Os adultos, portanto, ignoram a real situação sofrida pelas crianças. Eles não contam a verdade à juíza Strauss com medo de serem punidos por Olaf e por causa disso só podem contar consigo próprios. Olaf deixa bem claro que, após a cerimônia irá matar os três e ficar com o dinheiro. Violet consegue invalidar o casamento por assinar o registro com a mão esquerda, sendo destra, e Olaf é desmascarado. Foge com sua trupe antes mesmo que a polícia chegue. Caberá ao Sr. Poe encontrar um novo tutor legal para os Baudelaire. 2.2. A Sala dos Répteis Os órfãos são levados para morar com Montgomery Montgomery (nome e sobrenome iguais mesmo), que pede para ser chamado de tio Monty. O tio, que eles também não conheciam, é um famoso herpetologista e possui uma vasta coleção de répteis em sua residência, sobretudo de ofídios peçonhentos. Ele é irmão da mulher do primo do falecido pai das crianças. Mal chegam à casa do tio Monty, as crianças – muito bem recebidas pelo carinhoso e responsável cientista – ficam sabendo que ele acabara de receber um bilhete de Gustavo, seu antigo assistente, pedindo demissão e encaminhando um substituto chamado Stephano. As crianças passam momentos felizes ao lado do tio. Obviamente esta felicidade será muito breve. Stephano, na verdade, é o conde Olaf disfarçado. Ele matou Gustavo e forjou o bilhete de despedida para poder se aproximar novamente das crianças. À primeira vista as crianças sabem que se trata de um impostor, mas seus alertas são inúteis, pois os adultos (Sr. Poe e tio Monty) acham que por causa dos traumas sofridos eles estão vendo Olaf por toda parte. Mais ainda, Olaf disfarçou com maquiagem a tatuagem, o que deixa os Baudelaire mais desacreditados ainda. Olaf/Stephano não demora muito a cometer um novo crime. Ao saber que Montgomery pretende viajar ao Peru com as crianças – e já tem as passagens de navio compradas – ele mata o novo tutor das crianças injetando veneno de cobra com uma 22 seringa no pescoço do cientista. É a primeira vez que os órfãos se deparam com um cadáver. Olaf mantém seu disfarce enquanto espera os legistas chegarem para recolher o corpo que, segundo ele, foi atacado pela Víbora Incrivelmente Mortífera. Ironicamente, é a cobra mais dócil de todas e Sunny adora brincar com ela. Novamente, diante do Sr. Poe (que se recusava a acreditar nas crianças), as crianças conseguem desmascarar Stephano, provando que ele é Olaf. Ele foge com seu comparsa, que estava disfarçado como o legista Dr. Lucafont. Poe leva novamente as crianças para buscar um novo lar. 2.3. O Lago das Sanguessugas Após atravessar a barco o Lago Lacrimoso, o Sr. Poe – com todo o descaso do mundo –, aporta no Cais de Dâmocles e coloca as crianças em um táxi para que conheçam seu novo lar e sua nova tutora. Tia Josephine é cunhada da prima dos Baudelaire em segundo grau e vive numa casa pendurada (literalmente) na encosta de um alto penhasco às margens do lago. Após perder seu marido num acidente envolvendo as sanguessugas do lago, adquiriu Síndrome do Pânico. Tinha medos até irracionais, como por exemplo, medo de corretores de imóveis ou de usar o telefone. Josephine é muito agradável com as crianças, porém é rígida quanto ao uso correto da gramática e da ortografia. É sua obsessão. Todas as refeições são servidas frias, por causa do medo de que o fogão exploda. A casa de tia Josephine tem um formato irregular que acompanha a descida íngreme do penhasco, e possui suportes (andaimes) que se prendem à encosta como patas de aranha gigantes. Por dentro, o que mais chama a atenção de todos é a ampla janela (que dá nome ao título original, The Wide Window) da biblioteca. Este cômodo possui um formato oval e a janela em questão acompanha o formato da sala, indo do chão ao teto. Tem uma majestosa vista para o lago. A cidade do Lago Lacrimoso aguarda para a semana seguinte a chegada do Furacão Hermano, portanto, as crianças vão com a tia fazer compras (a pé, porque ela tem medo de automóveis) para estocar mantimentos no caso de uma catástrofe acontecer. Durante as compras, um marinheiro com perna-de-pau corteja Josephine, que se encanta com sua suposta gentileza. Ele se apresenta como o capitão Sham. É mais um disfarce do conde Olaf, com a perna de madeira, um tapa-olho (que não disfarça o 23 monocelho) e cartões de visita que, segundo ele, provam que ele é o capitão Sham. Os Baudelaire, novamente percebem o disfarce, mas – novamente – não são levados a sério. Mais tarde, em casa, Olaf telefona para Josephine, mas é Violet quem atende. Ela não quer passar o gancho para a tia, mas ele a ameaça. Josephine cria coragem e atende ao telefone. Pede para as crianças irem para o quarto, a fim de ter privacidade. Algum tempo depois, os três ouvem um barulho de vidraça se quebrando e saem do quarto procurando pela tia. Tudo o que encontram é um bilhete de despedida – eterna – e um grande rombo no vidro da janela da biblioteca. O bilhete é uma nota de suicídio, escrito por ela, que passa a guarda das crianças para o capitão Sham. Obviamente, Sham/Olaf chantageou/ameaçou Josephine e forçou-a a escrever o tal bilhete. Avisado por telefone sobre o ocorrido, o Sr. Poe chega e confirma com eles que a letra do bilhete é mesmo de tia Josephine, comparando com a lista de compras escrita por ela. Contudo, Klaus percebe erros crassos no texto dela, coisa que ela em sã consciência jamais cometeria. Sr. Poe, contrariando a vontade das crianças, telefona para Sham e marca um encontro no restaurante para que assine os papéis da adoção. Em seguida, Poe os leva de táxi morro abaixo para o restaurante, ao encontro de Sham. Durante a refeição, disfarçadamente, os órfãos põem na boca uma bala da qual são alérgicos, e assim que os efeitos (inchaço na língua, placas na pele) começam a aparecer, eles pedem para voltar sozinhos para casa. Poe fica no restaurante com Sham para ler o contrato e as crianças correm para a casa, em meio à crescente ventania causada pela aproximação do furacão. Mal entram na casa, Klaus corre direto para a biblioteca a fim de decifrar o bilhete e Violet e Sunny vão tomar banho com uma solução para aliviar a alergia. Klaus observa que a primeira letra de cada uma das palavras escritas de modo incorreto forma uma mensagem escondida: PGRUTA. Percebem que a tia pode estar viva e forjou a própria morte, deixando-lhes a indicação de onde poderiam encontrá-la. Vasculham o quarto da tia e encontram um atlas no baú, contendo o mapa do lago. Descobrem que existe um lugar chamado Gruta do “P”. É nesta hora que o furacão atinge a casa, que começa a despencar, cômodo a cômodo, enquanto os Baudelaire “escalam” o chão já inclinado até conseguir sair pela porta da frente um segundo antes de toda a casa desabar no abismo. 24 Necessitados de um barco, entram no escritório de fachada de Sham (que fingia alugar barcos no lago) e roubam um barco que conseguem velejar tendo a ventania a seu favor. Chegam à gruta do “P”, que tem uma placa de vende-se na entrada, e encontram a tia, que fica feliz em saber que não viverá sozinha para sempre na gruta. Na verdade ela queria viver para sempre e não sozinha. E se recusa a sair de lá, com medo de Sham. Klaus só consegue convencê-la ao lembrar que o local está à venda e em breve corretores iriam aparecer. Apavorada com a ideia, Josephine entra no barco com eles. A novidade nesta história é que as sanguessugas do lago atacam qualquer pessoa em quem sintam cheiro de comida. Só é recomendado entrar no lago uma hora após a refeição, porém havia apenas 45 minutos que a tia comera uma banana e uma gigantesca multidão de sanguessugas começa a atacar o barco furando-o, ele começa a afundar. Violet consegue criar um sinalizador e um barco vem fazer o resgate. Mas é um barco ocupado por Sham/Olaf, que foi resgatar as crianças (se elas morressem antes da adoção ele não receberia a fortuna) após saber do roubo do barco e que atira Josephine para as sanguessugas. O Sr. Poe os aguarda no cais e felicita Sham por ser um tutor responsável. Mas Sunny rói (a caçula tem quatro dentes afiadíssimos) a corda da perna de pau do falsário e sua perna (com tatuagem no tornozelo) é identificada por Poe, que manda chamar a polícia. Como sempre, Olaf consegue fugir. As crianças vão precisar de um novo lar. 2.4. Serraria Baixo Astral Os Baudelaire chegam de trem a Paltryville com o Sr. Poe – que nem sai do trem para não perder a hora de voltar. Encontram-se sozinhos na plataforma de uma cidade quase desabitada e nada agradável. Tudo é feio e cinzento. Seu novo tutor tem um nome grande e complicado, e por isso ninguém sabe seu nome. Todos o chamam apenas de Senhor. Ele é dono da Serraria Alto Astral, que fica próxima à estação ferroviária. A descrição da serraria (interna e externa) é deprimente. Próximo à serraria, há uma casa em formato de olho, e o desenho estilizado (pintura, riscos) é idêntico ao da tatuagem de Olaf. A partir de agora, dadas as prévias exposições, não vou aprofundar tanto em cada um dos livros. O que realmente importa nessa obra é que, livro após livro, as crianças são submetidas a situações mais absurdas e complexas, sempre com uma fórmula repetitiva (novo tutor + outro disfarce de Olaf + perigos sofridos + órfãos 25 desmascarando o vilão + recusa dos adultos em acreditar nos órfãos + fuga de Olaf). O que muda, como eu disse, são apenas as situações. O novo tutor de cada livro pode não ser uma pessoa, mas sim uma instituição (como veremos no próximo volume, as crianças ficarão sob a guarda de um internato). Neste volume 4, as crianças vão parar no dormitório coletivo de uma serraria em que são forçados a trabalhar. A exploração do trabalho infantil é o tema central (a situação chocante) deste livro. E, como as crianças exploradas na vida real, os Baudelaire são mal remunerados. Bem como os outros funcionários da serraria, eles recebem apenas chicletes como pagamento. Senhor, o tutor dos Baudelaire, fuma charuto o tempo inteiro e tem sua cabeça coberta por uma fumaça. Ninguém conhece seu rosto, a fumaça simboliza a dúvida, o mistério, semiologicamente falando. Associo esta característica do personagem ao quadro “O Filho do Homem”, de René Magritte (Figura 1), obra surrealista na qual um homem tem o rosto oculto por uma maçã. Figura 3 – “O filho do Homem”, pintura de René Magritte Na fábrica há um novo capataz, muito severo (capanga narigudo de Olaf disfarçado), que brutaliza todos no local e força até mesmo Sunny – que ainda engatinha – a serviços de alta periculosidade. Phil, um dos funcionários que sempre se prejudica, mas sempre vê o lado bom das coisas ruins tem sua perna esmagada por uma máquina. Sunny quase é serrada junto com uma tábua no clímax da história. Klaus, ao ter seus óculos quebrados, precisa de um oftalmologista. O consultório é a tal casa em formato de olho. Lá encontra Olaf, em seu disfarce mais ridículo de toda a série: Shirley, a secretária da Dra. Orwell. Os métodos da médica causam hipnose em Klaus e ele é levado a provocar os acidentes na serraria. 26 2.5. Inferno no colégio Interno As crianças chegam à Escola Preparatória Prufrock e já são mal recebidas na entrada por Carmelita Spats, uma aluna de temperamento rude e irritante. A escola é, na verdade, um colégio interno em cuja entrada há uma inscrição em latim, “Memento Mori”, que significa “Lembra-te de que morrerás”. O vice-diretor da Prufrock, Nero, considera-se um exímio violinista e toca violino a todo instante, mas muito mal. Nero explica que, entre as punições da escola é comum não se receber talheres para almoçar. Quem se atrasa para as refeições não recebe xícaras nem copos, tendo que beber os líquidos despejados em grandes poças na mesa. Sunny, por sua idade, ainda não pode estudar e para poder morar lá terá de trabalhar (!) para Nero. Caso a bebê se atrase para o trabalho, o castigo é ficar com as mãos amarradas nas cosas durante as refeições. “Vocês terão que se abaixar e abocanhar a comida no prato, como cachorros”, diz o vice-diretor. Todas as noites, Nero dá um recital de violino de seis horas de duração, aos quais os alunos são obrigados a assistir. A professora de educação física caíra de uma janela três dias antes da chegada dos Baudelaire, num suposto acidente. Olaf irá se disfarçar de instrutor substituto, obviamente. Carmelita lidera os outros estudantes, todos hostis em relação a alunos órfãos, que são segregados em barracos imundos, ao invés de se alojarem nos dormitórios. É por isso que acabam conhecendo Isadora e Duncan Quagmire, trigêmeos órfãos que também perderam seus pais nas mesmas circunstâncias em que os Baudelaire. Seu outro irmão trigêmeo, Quigley, supostamente padeceu junto com os pais. Cabe mencionar que, por também serem personagens planas e com personalidade previsível por suas aptidões vocacionais (da mesma forma que Violet em relação a inventos e Klaus em relação à leitura), Isadora é poetisa e Duncan tem talento para o jornalismo. Na escola eles só têm três professores, a Sra. Bass, que “ensina” Klaus e possui como única ementa curricular fazer com que os alunos meçam objetos com uma régua e decorem as medidas, e o S. Remora, professor de Violet, que apenas dita frases de histórias cotidianas pessoais para que os alunos escrevam e decorem. Resumindo: as aulas são absolutamente inúteis. Ao fim do livro, o instrutor Genghis é desmascarado como sendo o Conde Olaf. Ele foge seqüestrando Isadora e Duncan, que em apuros, enquanto estão sendo enfiados 27 num carro pela gangue de Olaf, deixam aos Baudelaire aos gritos a seguinte pista: “Os cadernos! C.S.C.” 2.6. O elevador ersatz O Sr. Poe leva os Baudelaire para morar com Esmé Squalor, uma mulher soberba e arrogante que classifica tudo como in (por dentro) ou out (por fora). Cada peça de roupa, cor ou atividade pode mudar de classificação, dependendo da vontade de Esmé (numa declarada crítica de Snicket aos designers de moda e decoração). Se, por exemplo, Esmé decide que risca-de-giz é in, todos m seu prédio, incluindo o porteiro, devem trajar exclusivamente isso. O mesmo se estende aos Baudelaire. Fato lamentável é que o uso de elevadores está out e as crianças deverão subir de escada os quarenta e oito andares que levam à cobertura de Esmé. Próximo ao apartamento de Esmé há uma porta de elevador fechada. Supostamente é um elevador privativo, mas logo descobrem que se trata de um elevador ersatz, isto é, de fachada, sendo na verdade uma descida para uma rede de túneis que percorre toda a cidade, com diversas saídas subterrâneas ao longo de seus túneis. O destino dessas saídas é uma incógnita. Os Baudelaire prosseguem na busca pelos Quagmire, e na tentativa de descobrir o que C.S.C. significa. Esmé revela-se noiva do Conde Olaf e várias pistas falsas são deixadas por eles, que fogem após um leilão em que os Quagmire estariam “embalados” dentro de alguma peça (algo como caixas, pianos de cauda ou estátuas gigantes). Os Quagmire estavam escondidos num estojo de tuba (instrumento musical) e o objeto é transferido pelo casal de vilões para um local desconhecido. 2.7. A cidade sinistra dos corvos Os Baudelaire são deixados sob a guarda de uma cidade conhecida como C.S.C., de significado desconhecido. Várias pistas falsas são deixadas a respeito da sigla. Na cidade, habitat natural de milhares de corvos, os habitantes são chamados de Cultores Solidários de Corvídeos, por exemplo. Lemony inicia o livro sugerindo O Menorzinho dos Elfos como opção de leitura melhor do que as Desventuras em Série: 28 Por exemplo, eu sei de um livro chamado O Menorzinho dos Elfos, que conta a história de um homenzinho minúsculo que fica correndo de um lado para outro no País das Fadas, vivendo toda sorte de aventuras adoráveis, e você logo irá perceber que, provavelmente, faria melhor em ler O Menorzinho dos Elfos e se contorcer de prazer com as coisas adoráveis que aconteceram com essa criatura imaginária em um lugar de faz-de-conta, em vez de ler este livro e ficar gemendo com as coisas terríveis que aconteceram com os três órfãos Baudelaire na pequena cidade onde estou agora batendo à máquina estas mesmas palavras. Os tormentos, desgraças e perfídias contidos nas páginas deste livro são tão pavorosos que é importante que você não leia mais nada além do que já leu. (SNICKET, Vol. 7: 10) Violet, Sunny e Klaus conhecem Jacques Snicket, que teria algo de importante para lhes contar, mas ele é morto por Olaf, disfarçado de detetive. Os corvos trazem em seus bicos alguns pedaços de papel escritos por Isadora Quagmire, com dísticos (poemas de dois versos) dando pistas indiretas sobre sua localização. O jornal local (O Pundonor Diário) publica informações erradas e a opinião pública é facilmente manipulada. As crianças são acusadas pela morte de Jacques e vão a julgamento pelo Conselho de Anciãos. São presas na cadeia e condenadas à morte na fogueira em praça pública, mas conseguem escapar da prisão e, quando descobrem que os Quagmire estiveram escondidos numa cavidade embaixo do chafariz da cidade já é tarde demais. Os Quagmire foram salvos por Hector – adulto amigo e ajudante dos Baudelaire – e estavam fugindo num balão. Quando os Baudelaire tentam subir as escadas de corda do balão para fugir com os Quagmire quando um arpão atinge a escada e a corda começa a se desfazer. Os Baudelaire pousam numa gigantesca árvore e os Quagmire jogam para eles seus dois cadernos de anotações, que são atingidos por um segundo arpão e têm suas folhas destruídas. O balão sobe e a última coisa que os Baudelaire ouvem os Quagmire gritar antes do balão subir é a palavra “voluntário”. A oficial de polícia Luciana, que disparou os arpões, é desmascarada como sendo Esmé, e Olaf também é desmascarado em seu disfarce de detetive Dupin. Os Baudelaire terminam o livro saindo da cidade. Pela primeira vez sem a “ajuda” do Sr. Poe e por conta própria. É no final deste livro que Sunny dá seus primeiros passos sozinha, finalmente aprendendo a andar. 29 2.8. O hospital hostil É a partir deste livro que as crianças não possuem mais tutor e vivem por conta própria. Um homem chamado Hal cuida deles na Biblioteca de Registros do Hospital Heimlich. É neste livro que as crianças descobrem o dossiê Snicket e que quando voluntários e vilões usam nomes falsos eles usam anagramas dos seus verdadeiros nomes. Klaus tenta saber de vários nomes, qual deles seria um anagrama de Violet Baudelaire. E entre eles tem um que é Monty Kensicle, que conforme diz no livro Lemony Snicket: Autobiografia Não Autorizada, é autor de O Menorzinho dos Elfos3. Monty Kensicle é um anagrama de Lemony Snicket. Existem ainda nessa lista os anagramas de Beatrice Baudelaire (Carrie E. Abelabudite), Daniel Handler (Linda Rhaldeen) e Brett Helquist (Eriq Bluthetts). Elas tentaram mandar um telegrama para o Sr. Poe, mas ele acreditou no jornal O Pundonor Diário e mandou que eliminassem todos os telegramas do banco. Os órfãos Baudelaire se juntam aos Combatentes pela Saúde do Cidadão (C.S.C.) e vão trabalhar no Hospital Heimlich, cuja construção encontrava-se inacabada. Olaf cria mais um de seus horríveis planos e quase serra a cabeça de Violet para fora do corpo, alegando ser a primeira cranioectomia do mundo, tendo inclusive apoio dos acadêmicos e cientistas. Ao final deste livro, o agente andrógino de Olaf (que não se sabe se era homem ou mulher) morre no incêndio do hospital Heimlich, que começou na biblioteca de registros e foi ateado pelo próprio conde Olaf. 2.9. O espetáculo carnívoro Os Baudelaire, escondidos no porta-malas do carro de Olaf e seus comparsas, chegam ao Parque Caligari. Olaf está à procura dos órfãos, sem saber que eles estão tão perto. Assim que saem do esconderijo, têm a ideia de usar o mesmo truque que os vilões. As crianças se disfarçam e vão pedir emprego (não-remunerado) na “Casa dos Monstros”, uma espécie de freak show que é uma das atrações circenses do parque. Sunny faz uso de peruca e barba, tornando-se o “bebê-monstro”, e os irmãos mais 3 Referência a uma obra inventada que é mencionada por Snicket como sugestão de leitura mais agradável do que suas desventuras. Esta estória é mencionada no Vol. 07 e no filme. 30 velhos transformam-se nos gêmeos siameses. A questão das diferenças e do preconceito é muito discutida entre eles e as outras “aberrações” do parque (um ambidestro, um corcunda e uma contorcionista). A dona do parque é a clarividente Madame Lulu, amiga de Olaf e Esmé, que tem a “brilhante” ideia de trazer um bando de leões para interagir com as aberrações no picadeiro e “entreter” o público. A história termina com Madame Lulu sendo atirada no fosso dos leões e o circo sendo incendiado pelas crianças, que, antes de serem desmascarados pelos vilões, são induzidos a cometer o crime. As três outras aberrações do parque se aliam aos vilões, por estarem sem emprego agora. Olaf rapta Sunny e foge com ela no carro preto. É a primeira vez que os Baudelaire se separam. Violet e Klaus se escondem no trailer preso ao carro, que ruma para as montanhas. No meio do caminho, cheio de precipícios, os vilões percebem a presença dos Baudelaire mais velhos e soltam o trailer, que começa a descer de ré, sem freios. O livro termina com este clímax, que é o gancho mais forte de toda a série. 2.10. O escorregador de gelo O livro começa com Violet inventando um drag chute com itens caseiros encontrados dentro do trailer, em seu momento mais “MacGyver”4 dentro da história. Ela e o irmão conseguem sair com segurança frações de segundos antes do trailer despencar no abismo. Sunny acampa com Olaf no Cume das aflições enquanto seus irmão entram numa caverna para se abrigar à noite e encontram os Escoteiros da Neve, grupo que inclui Carmelita Spats e outras crianças desagradáveis de Prufrock. Junto a eles está Quigley, o irmão trigêmeo de Duncan e Isadora que (descobre-se agora) sobreviveu ao incêndio e estava foragido. Quigley fala mais sobre a sociedade secreta que seus pais integravam. O trigêmeo fala sobre a possibilidade dos pais dos Baudelaire também estarem vivos e procurando por eles. 4 Personagem-título de seriado norte-americano, produzido entre 1985 e 1992 e exibido no Brasil pela Rede Globo de Televisão, que narrava as estórias de um agente secreto que tinha infinitas possibilidades de construir artefatos bélicos com itens caseiros. 31 O que se conta a partir deste livro a respeito de C.S.C. é que era uma sociedade filantrópica que se dedicava a apagar incêndios, tendo como símbolo um açucareiro, que passa a ser procurado por todos na história, mocinhos ou vilões. A Montanha da Mão-Morta, que eles estão escalando em busca de Sunny, é uma montanha com o topo congelado, o que transforma a queda-d’água congelada num gigantesco escorregador de gelo. Surgem dois novos e enigmáticos vilões, cujos nomes são desconhecidos, mas que são chamados de O Homem Com Barba Mas Sem Cabelo e a Mulher Com Cabelo Mas Sem Barba. Sunny, que descobre enfim um talento para a culinária, ouve os vilões dizerem que têm um encontro secreto no Hotel Desenlace. Violet, Klaus e Quigley encontram a caçula e fogem com ela, depois de furar os pneus do carro de Olaf. Na montanha ocorre um fenômeno chamado Falsa Primavera, que consiste no degelo precoce da montanha. É quando o gelo começa a se quebrar que eles escorregam montanha abaixo, até cair nas turbulentas águas do Arroio Enamorado. Quigley acaba se separando deles e caindo sozinho em outra parte do rio. O livro termina com outro gancho, uma vez que os Baudelaire estão à beira do afogamento sem ter um barco ou colete salva-vidas, apenas uma tábua de madeira. 2.11. A gruta gorgônea Sem saber que fim levou Quigley, os Baudelaire são resgatados pelo submarino Queequeg, comandado pelo Capitão Andarré e sua enteada Fiona, um pouco mais velha que Violet. Os Baudelaire recebem um uniforme igual ao dos outros dois tripulantes. O traje em questão é um macacão com o nome do submarino e uma foto do escritor Herman Melville. Phil, que trabalhava na Serraria Alto Astral, agora era um dos tripulantes do navio. Os Baudelaire descobrem então que, antes da morte de seus pais, houve uma cisão dentro de C.S.C., na qual Olaf declarou-se inimigo de quem fosse contra suas ideias. Os que estavam contra Olaf tornaram-se vítimas de seus crimes, como os pais dos Baudelaire e dos Quagmire. Há pessoas que vivem clandestinamente lutando para defender crianças de Olaf, como o capitão Andarré, Jacques Snicket (que fora assassinado na cidade C.S.C.), entre outros. Da mesma forma que Olaf recruta novos vilões, os “mocinhos” também recrutam ajudantes, como o Phil. Segundo o capitão, não há tempo para diversões dentro do submarino, porque o encontro de membros da C.S.C. seria na próxima quinta-feira, no Hotel que Sunny 32 descobriu. A missão dos tripulantes do submarino é então anunciada por Andarré: encontrar o açucareiro antes do Conde Olaf. O Queequeg possui um painel com detector por sonar, que detecta um submarino, representado no painel pelo ícone de um olho, idêntico à tatuagem de Olaf. Há também um outro ícone no painel do radar, representado por um Ponto de Interrogação. Andarré se recusa a contar para as crianças o que aquele ícone representa, dizendo apenas que é “uma coisa muito ruim, pior do que Olaf. (...) O mal que existe por aí não dá nem pra imaginar”. O submarino Queequeg se encaminha então para a Gruta Gorgônea, no fundo do mar, e será missão dos Baudelaire vasculhar a gruta em busca do açucareiro. Lá na grua eles serão intoxicados com cogumelos e Sunny salvará suas vidas com conhecimentos culinários, uma vez que sabe que o tempero japonês wasabi, feito da raiz-forte, combate aquele tipo de fungo. As crianças que antes integravam os Escoteiros da Neve agora trabalham como escravos de Olaf, remando sua embarcação. Carmelita, que caíra nas graças de Esmé, torna-se mascote dos vilões e é bem tratada, em relação às outras crianças. O Capitão Andarré “desaparece” do submarino e os Baudelaire não encontram o açucareiro (na verdade, ninguém parece ter encontrado) e são traídos por Fiona, que descobre que seu irmão Fernald é o homem com mãos-de-gancho e se junta ele e a Olaf, que fogem. Os Baudelaire, ao sair pela escotilha, encontram-se na Praia do Sal, ponto de partida da série (mesma praia em que receberam as trágicas informações do Sr. Poe). O Sr. Poe está na Praia do Sal, porque havia recebido uma mensagem dizendo que os órfãos estariam ali naquela manhã. Mas as crianças foram alertadas pelo capitão de que deveriam embarcar num táxi, e por isso escapam do Sr. Poe e entram num táxi com uma mulher desconhecida, que se apresenta como Kit Snicket e diz estar à espera deles. Cabe mencionar que este é o livro com mais citações e referências à literatura dita cânone, como Lewis Carroll, T. S. Elliot, Platão, Herman Melville e Elisabeth Bishop. 2.12. O penúltimo perigo Ao término de A Gruta Gorgônea, os meninos entraram no carro de uma nova personagem Kit Snicket, a misteriosa mulher que tem o mesmo sobrenome do escritor das estórias dos órfãos, e dirigiram-se ao Hotel Desenlace. Ao primeiro contato com Kit, Violet, Klaus e Sunny perceberam que Kit estava grávida. 33 Ao chegarem ao hotel, os meninos pensaram estar vendo o reflexo da lagoa, que era uma ilusão de ótica. E ficaram sabendo que na verdade o hotel fora projetado para realmente parecer ser um reflexo e não algo real. Kit revela aos pequenos que naquele dia haveria um encontro entre os voluntários de C.S.C. e eles se reuniriam para que pudessem trocar informações.Também conta às crianças que não poderia permanecer na companhia deles no hotel, pois tinha negócios para resolver no céu, não o céu literal, mas ela estava fazendo referência ao balão de ar quente auto-sustentável de Hector. No entanto, deixa para crianças uma missão bem importante e perigosa: atuarem como Concierges, e vão precisar espionar pessoas vis, deixando claro que seriam muito bem atendidas por um voluntário conhecido dela, chamado Frank. O que as crianças não sabiam ainda é que dentre muitas das pessoas que eles espionariam estavam figuras conhecidas que já haviam feito parte de suas vidas nos seus piores momentos, após a morte de seus pais no misterioso e triste incêndio que lhes levara as vidas e a mansão em que eles viviam. Com a ida de Kit, as crianças entram no hotel e são recepcionados por gêmeos. Após o encontro eles são chamados em quartos diferentes: o 371, 674 e o salão de bronzeamento. O primeiro contato com os gêmeos é o prenuncio de que dali em diante a presença e o contato com os gêmeos vai resultar em uma certa confusão para os pequenos, pois entre as suas atividades de espionar, eles ainda vão ter que descobrir qual dos dois é o verdadeiro voluntário, o do bem e o vilão, mais uma vez eles vão se deparar com a C.S.C. e o mistério que a envolve e sem contar que vão ter que continuar procurando pelo tal açucareiro. Para tentar solucionar o problema do chamado para cômodos distintos, os irmãos Baudelaire decidem se separar e cada um vai para um encontro. Violet se dirige à cobertura. Quando chega percebe que era uma armadilha e não era realmente um encontro amigável, pois é recebida pelas vilãs Esmé Squalor, Carmelita Spats e Geraldine Julianne. Além delas havia também Hugo que estava disfarçado como funcionário do hotel. Carmelita exige que a Baudelaire mais velha pegue um lançador de arpões e Violet, prontamente a atende. A Klaus coube ir ao quarto 674, onde se encontra Senhor e Charles (as personagens que já conhecemos no livro Serraria Baixo-Astral). Senhor manda que Klaus o leve até a sauna do hotel. Quando ele atende ao pedido do antigo tutor Senhor quase consegue descobrir algo relacionado aos seus pais. Ernest, o irmão gêmeo do 34 voluntário Frank, pede que Klaus pendure um papel pega-pássaros do lado de fora da sauna e Klaus, prontamente o atende. Restou então a Sunny ir ao salão de bronzeamento. Lá ela encontra o pessoal do colégio interno. É recebida pelo vice-diretor Nero, o Sr. Remora e a Srta. Bass. No local, a Srta. Bass revela ser uma assaltante de bancos que roubara a Administração de Multas (o setor em que o Sr. Poe trabalha no banco que administra a herança milionária dos Baudelaire). Juntos, eles vão ao restaurante indiano do hotel, que ficava no nono andar. Ao chegarem ao restaurante, lá estava Hal, atuando como cozinheiro. Sunny como uma boa garota que tem dotes culinários, segue Hal até a cozinha, flagrando no local uma conversa entre ele e Dewey, o misterioso trigêmeo de Frank e Ernest. Ele trabalha no relógio do hotel e lá passava todos os seus dias durante todo o dia. O relógio do hotel é o refúgio de Dewey que se esconde de todas as pessoas, para que elas nunca deixem de pensar que ele é uma lenda. Após ser flagrada ouvindo a conversa entre eles, Dewey pede que Sunny implante um Cerramento Supravernacular Complexo (C.S.C.?) na porta da lavanderia e Sunny, prontamente o atende. Os irmãos então voltam a se encontrar e vão em direção ao saguão do hotel durante a noite e começam a refletir sobre os acontecimentos do dia, as informações que colheram e os encontros atrás do blacão de Concierges. O esperto e inteligente Klaus chega a conclusão de que o misterioso açucareiro provavelmente estaria para chegar ao hotel naquela noite. Dewey acaba descendo por uma corda do domo do hotel e encontra-se com os Baudelaire. Dewey e as crianças vão para perto da lagoa, do lado de fora e o terceiro gêmeo revela aos meninos que no Hotel Desenlace havia uma biblioteca. E ele, pessoalmente, juntamente com Kit Snicket catalogava tudo que se referia a C.S.C. Além dessa revelação, ele confessa também que provavelmente seja o pai do bebê que Kit espera, devido ao contato que eles tinham quando trabalharam juntos. Enquanto isso, notam que um táxi parara na frente do hotel e dele desceram a Juíza Strauss e Jerome Squalor, mais dois voluntários que coincidentemente tinham as mesas iniciais: J.S. Os meninos voltam para o interior do hotel e vão em direção ao saguão de entrada. Mais uma vez as crianças não fazem a menor idéia de que encontrariam lá dentro e que as conseqüências desse encontro seriam, mais uma vez, trágicas e desafortunadas. O Conde Olaf, sua namorada Esmé Squalor, as ex-aberrações do Parque Caligari e Carmelita Spats estão juntos. Os Baudelaire vêem o conde repreendendo a filha adotiva e toma dela o lançador de arpões que Violet entregara a ela mais cedo 35 naquele dia. Ao dar de cara com Dewey pareceu ficar chocado e, maquiavélico como sempre, aponta o lançador para o terceiro trigêmeo. Diante da cena, os meninos tentam tomar o lançador das mãos de Olaf e na guerra entre eles pela disputa do lançador, ele cai no chão e o arpão atinge Dewey ferindo-o gravemente. Entre a vida e a morte, ele sai do hotel e cai na lagoa, desaparecendo em seguida. O acidente envolvendo o lançador de arpões acabou acordando, com o barulho, todo o hotel. Dentre os que aparecem está um misterioso motorista de táxi (ao que tudo indica trata-se do autor dos livros, Lemony Snicket) que sugere aos meninos que entrem no táxi e fujam, mas Violet não aceita a sugestão e refuta veementemente a idéia e a conseqüência fora a permanência dos três Baudelaire no lugar. Será que fora uma má idéia eles recusarem a sugestão do motorista? Pois ao que tudo indicava ele poderia portar o açucareiro que os Baudelaire tanto procuravam. Como muitos apareceram para verificar o que estava acontecendo, o Sr. Poe aparece e os leva para longe do saguão. Um dos gêmeos, que ainda não sabemos quem é o bom e quem é o mau, os leva para dentro de um armário e lá eles passam a noite e dormem até o outro dia. Na manhã do dia seguinte eles recebem como café da manhã um chá de um dos gêmeos, são obrigados a usar uma venda preta e se dirigem ao local onde ocorreria o julgamento deles. Lá, os que “assistem” ao julgamento também tiveram que usar uma venda preta, com exceção de algumas pessoas. Dentre elas a juíza Strauss, o Homem Com Barba Mas Sem Cabelo e a Mulher Com Cabelo Mas Sem Barba, que são, como Strauss, juízes. Tudo estava pronto para o julgamento acontecer, mas o inesperado acontece: Olaf seqüestra a juíza Strauss, levando-a para o elevador que os levaria para o subsolo e as crianças os seguem, indo os cinco para a lavanderia, que tinha o Cerramento Supravernacular Complexo na porta que fora pendurado anteriormente por Sunny. Eles tiveram que responder cinco perguntas para ter acesso ao local. Após responderem corretamente às questões, os cinco adentram a lavanderia. Eles procuraram pelo açucareiro, mas não o encontraram e acabam ajudando Olaf a incendiar a lavanderia (!) deixando claro, com isso, que a reunião estava encerrada. Após o incêndio iniciado na lavanderia, eles sobem o elevador e avisam aos demais hóspedes que todo o prédio estava em chamas. Mas o leitor não fica sabendo ao certo quem sobreviveu ao incêndio, porque nem mesmo o autor tem conhecimento. 36 Mas pelo menos ficamos sabendo que, para variar, o maléfico Conde Olaf sobrevive às chamas e as três crianças também, pois conseguem escapar no barco que Carmelita possuía e, em segurança os órfãos e Olaf caem no mar. Os meninos tentam levar a juíza Strauss com eles, mas ela se recusa a ir e não sabemos sobre o seu paradeiro, nem o que aconteceu com ela. Em segurança (será mesmo? Ao lado de Olaf as crianças não têm de fato como estar em segurança) os Baudelaire seguem com Olaf em direção ao horizonte. 2.13. O fim Os órfãos conseguiram escapar ilesos e em segurança (apesar de estarem na companhia de Olaf) do incêndio do Hotel Desenlace em um barco. No entanto, eles ficaram à deriva perdidos em alto mar. Se já não bastassem todas as aventuras desafortunadas das crianças, eles acabam sendo atingidos por uma tempestade que os arrasta até uma praia. Lá eles reparam que o local trata-se de uma ilha habitada por ovelhas e pessoas com hábitos e costumes bastante pitorescos, à primeira vista. As crianças, abaladas e meio inconscientes após o naufrágio, acabam sendo encontradas por uma das habitantes da ilha, uma criança chamada Sexta-Feira (numa nítida referência à aventuras do náufrago Robinson Cruzoé5, que encontra uma personagem de mesmo nome, escritas por Daniel Defoe). Os órfãos acabam se aproximando dela e a menina consegue perceber rapidamente a pessoa má e mesquinha que é Olaf e decide abandoná-lo em uma plataforma costeira que em poucos dias seria inundada. Os ilhéus decidem admitir a presença e morada das crianças na ilha deles. No entanto, ao serem aceitos, eles deveriam exercer funções que todos os demais também exerciam. Com isso, os Baudelaire não ficaram muito felizes e satisfeitos com a vida que estavam levando lá. Para surpresa de todos, agitando a vida pacata dos habitantes da ilha, uma balsa feita toda de livros atraca na ilha e dentro dela se encontrava Kit Snicket, bastante atordoada e confusa. Após ser encontrada depois do seu naufrágio, o líder dos ilhéus, Ishmael, decide que Kit não deveria ser aceita na ilha, optando por abandoná-la e também decide 5 DEFOE, Daniel. 37 prender o conde em uma gaiola, pois ele fingira mais uma vez ser Kit, usando um dos seus diversos disfarces ridículos. Dessa vez ele fora desmascarado antes de aprontar muitas e muitas das dele. Ishmael toma uma decisão drástica: abandonar os órfãos à própria sorte. Isso porque, como o hábito da ilha era ninguém ter direito a ter nada próprio, sendo compartilhado e entregue ao líder, os órfãos escondem seus pertences mais preciosos, violando assim, a regra primeira e básica para ser aceito como morador do local. Violet esconde sua fita que sempre usara quando precisava realizar algum invento. Klaus omite a existência do seu precioso e necessário livro de lugar-comum e Sunny não revelara possuir o seu batedor que era essencial para exercer as suas artes culinárias. Com receio de que fossem atirados para as ovelhas, os meninos optam por levá-los para o outro lado da ilha, além da escarpa. Após serem abandonados, Finn (referência à personagem Huckleberry Finn, de Mark Twain6) e Erewhon (referência à obra Erewhon, de Samuel Butler7, cujo título significa “lugar nenhum” de trás para frente, nowhere, em inglês), dois amigos dos órfãos, procuram por eles e lhes informam que o grupo de ilhéus pretende fazer um motim para derrubar o líder Ishmael e os convida para participarem, sugerindo que consigam encontrar uma arma para a realização do motim. As crianças ficam com muito receio desse motim e, principalmente, de participar dele. Tinham medo, inclusive, de provocar uma cisão no grupo. Os Baudelaire acabam descobrindo um arvoredo em cima de uma macieira muito grande que era o local utilizado pelo líder ilhéu para prever as tempestades com um periscópio. Os meninos o observam à distância e notam que lá, Ishmael, secretamente, preparava refeições muito melhores do que as refeições diárias distribuídas aos outros moradores da ilha. Ainda desfrutava de outros prazeres irrestritos aos demais, como ler e escrever capítulos do livro Desventuras em Série, contendo relatos de todos os náufragos que chegaram à ilha, incluindo os pais dos Baudelaire. Ishmael acaba encontrando os meninos no esconderijo que eles estavam utilizando como observatório e acaba lhes revelando toda a história da ilha. Até mesmo como conseguia convencer a todos os náufragos aceitos para habitar o local, a jogar o 6 TWAIN, Mark. 7 BUTLER, Samuel. 38 que possuíam e encontravam no arvoredo. O líder revela que utilizava o cordial de coco, uma bebida nativa que, de certa forma, drogava as pessoas. Na manhã do dia seguinte haveria a inundação da plataforma, marcando o início do motim. No meio da confusão, Olaf é atingido e ferido com o lançador de arpão. O conde mostra e prova o quanto é maléfico até mesmo nos momentos em que sua vida corre perigo. Ao ser atingido por Ishmael com o arpão, Olaf liberta o Micélio Medusóide (o cogumelo venenoso do qual ele guardara uma amostra durante a passagem de A Gruta Gorgônea), que ele mantinha escondido em um capacete. A destruição fora lançada, pois todos na ilha acabam sendo infectados, mas as crianças, após lerem Desventuras em Série, acabam descobrindo que as maçãs da ilha tem uma substância especial que deixa o efeito do veneno do cogumelo mais ralo, a raiz-forte. Os meninos parecem ter descoberto a solução para o problema, principalmente porque vão contar com uma ajuda muito especial: a Víbora Incrivelmente Mortífera. Ela chegara à ilha juntamente com Kit Snicket no barco todo feito de livros. A víbora ajuda às crianças a pegarem os frutos da macieira para neutralizar a atuação do veneno do cogumelo. Uma referência bíblica é feita então de modo a subverter o referencial simbólico deste ato: a cobra oferecendo maçãs como forma de salvação. Mas todo o esforço dos meninos parece estar sendo em vão, pois quando oferecem os frutos aos ilhéus, eles preferem não dar ouvidos às crianças e partem do local. Parece cruel o fato de os leitores sentirem alívio ao que acontece a seguir, mas finalmente o Conde Olaf fora neutralizado, devido às complicações nos ferimentos provocados pelo arpão. Mas, como se não bastassem todas as perdas dos meninos desde o começo de todas as suas desventuras, é a vez deles perderem Kit Snicket, que desde que fora abandonada por Ishmael, estando grávida acabara perdendo a vida após o parto. Sabendo bem como é a sensação de se tornar órfãos, os meninos assumem a responsabilidade de cuidar da filha de Kit que se parecia muito com a falecida mãe. Eles continuaram vivendo na ilha, somente os quatro, mas após um ano, no momento em que a plataforma inundara novamente, eles decidem partir no barco Beatrice que fora batizado há muitos anos em homenagem à mãe dos Baudelaire. Após 13 livros vivendo em situações limite, com perseguições implacáveis e cruéis feitas pelo Conde Olaf, tendo perdido muitas pessoas queridas e, muitas vezes, mesmo tão jovens, precisaram cuidar uns dos outros para viverem juntos, unidos e com 39 certa paz em meio a turbilhões de acontecimentos. Algo novo acontecera na vida deles, pois terão que cuidar e se responsabilizar por mais uma criança inocente que tivera tirada de sua vida seu bem mais preciso: a família. E família é agora mais do que nunca o que eles quatro juntos formam. No entanto, como a própria ilustração final do livro (uma interrogação) o leitor fecha o último volume da série com uma interrogação na cabeça. Já que nada é muito esclarecido, muitas dúvidas ainda existem. Figura 4 - Ilustração de Brett Helquist ao final do último livro 40 3. CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA A narrativa da série foi elaborada numa perspectiva seriada que condiz em muito com a linguagem cinematográfica e inclusive com a televisiva. Há uma relação entre esta elaboração e a aparente hegemonia da uma sequência de situações inusitadas. Wolfgang Iser classifica a obra literária como “uma produção esquemática, que esboça o seu objeto” (ISER, 2001: 103). Há momentos na série em que Lemony Snicket dá pistas de que tudo se passa de ficção. O que não é ficção? Tudo que é escrito, será que é verdade? Qual a fronteira entre a ficção e a não-ficção? A estrutura? Não se consegue chegar a uma conclusão sobre esta fronteira. Dentro do campo da análise do discurso, o que determina uma verdade são as condições históricas, uma vez que todo discurso está condicionado a elas. Na ficção se cria uma história que duplica essa realidade. Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as orações projetarem contextos objectuais e, através destes, seres e mundos puramente intencionais, que não se referem, a não ser de modo indireto, a seres também intencionais, ou seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de ficção, o raio da intenção detém-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e isso nem em todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nas orações de outros escritos, por exemplo, de um historiador, químico, repórter etc., as objectualidades puramente intencionais não costumam ter por si só nenhum (ou pouco) “peso” ou “densidade”, uma vez que, na sua abstração ou esquematização maior ou menor, não tendem a conter em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento concretizador (CANDIDO, 1976: 17) A obra de Snicket é totalmente intencional. Não se pode chamar de previsível porque, ao se problematizar aquela estrutura realista, materialista, linear, previsível e sequencial, se problematizou o tempo, o espaço, a relação da personagem nesse espaço e nesse tempo. Existe o absurdo, como nos textos que são chamados de teatro do absurdo, non-sense, literatura do absurdo ou literatura fantástica, Snicket reúne tudo isso. Segue abaixo as opiniões de D’Onofrio e Rosenfeld a respeito: Se faltar a verossimilhança interna, dizemos que a obra é incoerente ou aloucada, aproximando-se do não-sentido; se faltar a verossimilhança externa, entramos no domínio do gênero fantástico, definido por Todorov como uma hesitação entre o estranho e o maravilhoso, entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. (D’ONOFRIO, 1999: 20) 41 O termo “verdade”, quando usado com referência a obras de arte ou de ficção, tem significado diverso. Designa com frequência qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda – de ordem filosófica, psicológica ou sociológica – da realidade. (...) Quando chamamos “falsos” um romance trivial ou uma fita medíocre, fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que neles se aplicam padrões do conto de carochinha a situações que pretendem representar a realidade cotidiana. Os mesmos padrões que funcionam muito bem no mundo mágico-demoníaco do conto de fadas revelam-se falsos e caricatos quando aplicados à representação do universo profano da nossa sociedade atual (a não ser que esta própria aplicação se torne temática). “Falso” seria também um prédio com portal e átrio de mármore que encobrissem apartamentos miseráveis. É esta incoerência é que é “falsa”. Mas ninguém pensaria em chamar de falso um autêntico conto de fadas, apesar de o seu mundo imaginário corresponder muito menos à realidade empírica do que o de qualquer romance de entretenimento. (ROSENFELD, 1976: 18-19) Há um maravilhoso típico dos contos de fada, que, entretanto, parece que não é o maravilhoso da “fada boa” e da “fada má”, mas sim o fato de as crianças Baudelaire lidarem muito bem com as iminências. Tudo é muito iminente: o medo, a destituição do lar e a insistência de Olaf em roubar e fazer mal às crianças, então há sempre uma iminência de alguma coisa que está pra acontecer. E até mesmo a iminência de um desfecho que, iminentemente, não ocorre. Há uma atmosfera de permanente cordabamba, instabilidade o tempo todo. Nada é estável, as crianças têm uma situação insegura. Sempre tem algo para acontecer, mas as coisas não acontecem por inteiro, os desfechos não satisfazem. Seu caráter antirrealista nega um desfecho “enclausurado”. Sobre a influência da elaboração dos tempos verbais, Candido diz: O pretérito, apesar de em certos casos ter o cunho fictício do “era uma vez”, tem em geral mais força “realizadora” e “individualizadora” do que a voz do presente (“O elefante pesa no mínimo uma tonelada” pode ser o enunciado de um zoólogo sobre os elefantes em geral; mas “o elefante pesava no mínimo uma tonelada” refere-se a um elefante individual, existente em determinado momento). (CANDIDO, 1976: 16) “O elefante pesava” faz o leitor ver o sujeito. Essa função do narrador tem um peso de rememoração, i.e., só se rememora aquilo que já foi vivenciado. Essa é a relação mais comum com o rememorar. O narrador tem essa função. Ou seja, a narrativa é rememorativa, é remissiva. [O escritor] veicula a sua visão por meio de uma estória vivida por certas pessoas num determinado lugar. (...) A experiência da vida, própria do artista, e que lhe veio tanto da própria existência vivida quanto da experiência intelectual, que é vivida, vista ou imaginada, 42 adquirindo um significado especial, é recebida pelo leitor, que dela se enriquece. (...) A narrativa implica uma técnica de arranjo e apresentação, que lhe comunica estrutura arquitetônica, beleza de forma e unidade de efeito. Estas são as fontes de interesse entre a personalidade do autor e a personalidade do leitor, nesta criando um interesse absorvente, uma sintonia psíquica. (COUTINHO, 2008: 50-51) Já o teatro, presentifica. Não como a literatura. Presentifica trazendo pra frente da cena uma situação, por meio também dos verbos e das orações, da estrutura textual. O discurso do teatro acaba sendo presentificante e põe o leitor dentro da situação. “Os Baudelaire eram crianças adoráveis”, por exemplo, é uma construção que “fertiliza” a imaginação do leitor mais do que se o verbo estivesse no tempo presente do indicativo. Snicket utiliza em seu discurso, na elaboração da narrativa, a ironia, a mudança de sentido das palavras, a criação de novas palavras, uma personagem que não sabe falar ainda, mas que entende sinestesias (Sunny troca o olfato pelo paladar em uma situação). Isso dá um caráter diferente à sua obra, devido à contradição da expectativa que o autor cria para o leitor. Mesmo em termos de estrutura o autor mostra sua intenção de fazer alguma diferença no mercado editorial. A repetição da palavra “nunca” é uma estrutura escolhida como menção à liberdade da poesia concreta de ocupação do espaço. Em vez de escrever um parágrafo inteiro para dizer aos leitores infantis os motivos pelos quais não se deve mexer em eletricidade, ele enfatiza com a repetição do “nunca” que isso não deve ser feito sob qualquer hipótese, mesmo sem dar explicação para tais motivos. Quando ele faz uso de tais artifícios (ver Anexos), ele está dizendo algo de uma maneira incomum. Analiticamente isso pode ter uma projeção na mente da criança, por efeito da estrutura em que esta advertência foi transmitida. É como a variação da entonação na oralidade ou da expressão facial grave. Desta forma é possível manipular o leitor. Candido e Benjamin falam a respeito: A arte, e, portanto, a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada. (CANDIDO, 1985: 53). A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se 43 imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994a: 205) A narrativa é a essência da ficção. Nem toda estória pode ser considerada obra de arte. “Para que tenha valor artístico, a ficção exige uma técnica de arranjo e apresentação, que comunicará à narrativa beleza de forma, estrutura e unidade de efeito” (COUTINHO, 2008: 49). Sobre o caráter ficcional e falso, encontramos na obra de Snicket o seguinte comentário: "Ersatz" é uma palavra que descreve uma situação em que uma coisa está fingindo que é outra, do mesmo modo como a passagem secreta para a qual os Baudelaire estavam olhando fingia ser um elevador (SNICKET, Vol. 6: 116) Em relação ao caráter repetitivo da obra, fato que foi inclusive satirizado pela edição norte-americana da Revista Mad (ver Anexos). Pode-se dizer que o excesso de repetições em uma obra evidencia seu tédio. No caso de Snicket, até o tédio é intencional. Todorov explica: Em toda obra, existe uma tendência à repetição, que concerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrição. (...) Uma outra forma de repetição é a gradação. Quando uma relação entre os personagens permanece idêntica durante muitas páginas, um perigo de monotonia espreita suas cartas. (TODOROV,2008: 223). Contudo, o mais importante em toda obra literária talvez seja a questão do suspense. O autor tem que dispor o seu material de maneira que desperte e mantenha o interesse do leitor. O suspense, no caso, é o estado emocional criado no leitor pela incerteza do que vai acontecer depois, e de como será o desenlace da estória. O suspense também influi na natureza dos personagens, uma vez que seu caráter e suas transformações (ou ausência delas) são os derivadores dos acontecimentos. 3.1 – A construção das personagens As personagens das Desventuras em Série são lineares e construídas com características estereotipadas. Para entendermos os Baudelaire basta pensarmos em uma criança que gosta de determinada atividade ou brinquedo para entendermos isso. Essa criança passa a criar uma rotina repetitiva e quase obcecada a respeito daquilo que gosta. Se gosta de videogame, vai praticamente ignorar todas as outras atividades que não sejam relacionadas àquilo, e o mesmo acontece com as personagens do livro. Elas são “limitadas” por suas aptidões lúdicas ou intelectuais. Violet é uma inventora, e em certos momentos chega a ser caricato o comportamento dela por estar pensando em 44 inventos full-time. Da mesma forma age Klaus, em relação à leitura, e Sunny, que por ser ainda um bebê só pensa em morder tudo que encontra pela frente. Dispondo dos artifícios técnicos para a caracterização, o ficcionista integrará e dará corpo a seus personagens utilizando-se de vários outros processos, seja de descrição, seja de captação de comportamento e ações: descrições físicas, reprodução de gostos, hábitos, maneira, cacoetes, fala, atitudes, comportamento com os semelhantes, descrições de ambientes, recordações do passado, apelidos e nomes, monólogo interior etc. (COUTINHO, 2008: 56) Para Afrânio Coutinho, “Há três espécies de personagens quanto ao volume ou conjunto de qualidade que os caracteriza: o personagem individual, o típico e a caricatura” (COUTINHO, p. 53). O caricatural seria marcado pelo desenvolvimento exagerado ou pela ênfase dada a uma qualidade ou alguns traços. Esta característica inclui as personagens de Snicket na categoria de personagens caricatas, ou planas, cuja definição é explicada por Forster: As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no século XVII, e são por vezes chamadas tipos, por vezes caricaturas. Na sua forma mais pura, são construídas em torno de uma única idéia ou qualidade. (...) A personagem realmente plana pode ser expressa numa frase. (...) Tais personagens ‘são facilmente reconhecíveis sempre que surgem. São, em seguida, facilmente lembradas pelo leitor’ (FORSTER apud CANDIDO, 1976: 62) Sunny é a única personagem que sofre mudanças ao longo da história. À medida que vai crescendo e desenvolvendo sua fala de uma maneira mais lógica e menos dadaísta (isto é, o non-sense ou a falta de sentido que pode ter a linguagem, como na fala dos bebês), a caçula dos Baudelaire descobre um talento para a culinária, que passa a ser limitador de sua personalidade. A partir do meio da série, Sunny também deixa de engatinhar a aprende a andar após escapar da prisão junto com seus irmãos (SNICKET, Vol. 7: 226). A classificação plana também vale para as personagens adultas – Olaf tem como aptidão natural a maldade e a provocação de incêndios. Sunny é a única personagem que pode ser chamada de esférica, segundo a classificação de Candido (1976). Na obra de Snicket há três estereótipos básicos de personagens: a) Crianças talentosas e milionárias que foram vítimas de injustiças; b) Vilões obstinados que querem “dominar o mundo” (pelo menos o mundo interno da história) às custas de crimes contra as crianças (e seus respectivos pais); c) Adultos que atrapalham as crianças mais do que ajudam, por acharem que suas suspeitas são delírios infantis. Estes adultos são incapazes de perceber as farsas 45 de Olaf e sua quadrilha, sendo negligentes em relação à segurança das crianças e impotentes perante o medo de sofrer punições de Olaf por ajudar as crianças. Na primeira categoria não apenas os Baudelaire se enquadram, mas também os trigêmeos Quagmire. Na segunda, temos, além dos adultos, as crianças rebeldes e cruéis que se unem à insuportável Carmelita Sparks e Esmé na captura dos Baudelaire. Na terceira, temos alguns dos tutores dos Baudelaire, como o Tio Monty, e moradores dos locais onde eles são alojados, como a vizinha Juíza Strauss. Entre as poucas personagens que fogem a esta regra estão Kit Snicket, mulher esclarecida que em muito ajuda os Baudelaire ao fim da série, por saber de toda a conspiração contra eles, e Lemony Snicket, autor/narrador que investigou e publicou as desventuras enviando para o editor os textos através de bootlegs8(Figura 5). Figura 5 - Mensagem de Snicket, em bootleg, para o editor, ao final do livro 6 8 O termo bootleg tem sua origem na famosa obra da literatura inglesa “As viagens de Gulliver”, escrita em 1726 por Jonathan Swift, na qual os contrabandistas escondiam suas mercadorias dentro de baús, balsas etc. (“boots”) para não serem presos. Por bootleg entende-se todo tipo de mercadoria ou informação que é enviado ou comercializado em segredo ou clandestinamente, ou seja, de modo ilegal. 46 Para Anatol Rosenfeld, “a personagem de um romance é sempre uma configuração esquemática, tanto no sentido físico como psíquico” (ROSENFELD, 1976: 33). O teórico ainda afirma que “É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária” (ROSENFELD, 1976: 23). Só através disso pode existir verdade na condução das personagens e na elaboração de uma identificação honesta com o leitor, que passa a enxergar a personagem como uma pessoa de certo modo real, mas cuja realidade se encerra ao fechar o livro ou se mantém apenas na imaginação. Confirmando esta hipótese – da existência da personagem no imaginário como sendo real – Antonio Candido levanta as seguintes indagações: Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. (...) A personagem é um ser fictício, - expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 1976: 54-55) Candido, por outro lado, ainda defende que esta personagem, embora real na imaginação do leitor, não pode ser tão parecida e próxima de uma pessoa real, sob pena de desconstruir o caráter fictício da obra. “A personagem é um ser fictício; logo, quando se fala em cópia do real, não se deve ter em mente uma personagem que fosse igual a um ser vivo, o que seria a negação do romance”. (CANDIDO, 1976: 69) Nas Desventuras em Série as situações narradas e as características das personagens aproximam-se do non-sense, o que minimiza a possibilidade de referências naturalistas ou realistas. O que poderia ligar o leitor às personagens seria pura e simplesmente o humor – negro – que as circunda e uma “familiaridade” com seus problemas. Os Baudelaire são heróis modernos caracterizados por passividade que é natural da infância e pela incapacidade de enfrentar seus oponentes. Sua única salvação é a fuga. Os órfãos Baudelaire têm na palavra fuga a melhor definição de seu caráter. 47 3.2 - O autor-narrador às vezes participativo Lemony Snicket é, sem dúvida, a personagem mais interessante da obra. A obra foi publicada sob sua autoria (pseudônimo de Daniel Handler) e Lemony é o narrador onisciente das desgraças vividas por Klaus, Violet e Sunny. Quase toda a informação que o leitor terá a respeito de Snicket é jogada às migalhas, fato que é representado pela ilustração no capítulo 6 do sexto volume (figura 6). Figura 6 – Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 6 do Volume 6 No volume 1, por exemplo, tudo o que podemos depreender a respeito de Snicket é que ele toca acordeom, que tem uma foto tremida da tal Beatrice, a quem ele dedica cada um dos livros, e que ele possui várias anotações a respeito do paradeiro dos Baudelaire. Sabemos também que a janela de seu quarto dá vista para o cemitério que fica atrás de sua casa. Lemony também faz inúmeras referências a personagens externos, em tom de confidência. Por exemplo, foi no iate de sua amiga Bela que ele escreveu boa parte do volume 2, e sua amiga Madame diLustro é, além de excelente cozinheira, uma ótima detetive. O que aponta que a vida privada de Snicket é cercada pelo universo investigativo. Até mesmo essas menções exteriores à história principal contribuem para o entendimento da diegese, bem como para a caracterização perfilática da personalidade do autor-narrador. A participação de Snicket na obra é enigmática. Ele não testemunhou os fatos ocorridos com os Baudelaire, mas visitou todos os lugares por onde eles passaram para entrevistar pessoas e coletar evidências dos fatos ocorridos. Ele se comporta ora como um jornalista, ora como um químico forense, na elucidação dos fatos. Mas mesmo ele é incapaz de saber sobre todos os acontecimentos. O que ele descobriu é passado ao leitor, que terá ao fim da obra as mesmas dúvidas a respeito das coisas que Snicket não descobriu e a respeito das coisas que o autor não quer comentar, como por exemplo, sua relação com Beatrice; quem eram os pais dos Baudelaire e se eles de fato morreram ou 48 se fugiram e estão escondidos, qual é o seu parentesco com algumas das personagens; e qual foi o seu papel nisso tudo além da narração. “Outro problema importante, e relacionado com o ponto de vista, é o da posição do narrador em relação à estória. Ele pode isolar-se dela ou intrometer-se no relato como um intérprete ou comentador.” (COUTINHO, 2008: 68) Com respeito à onisciência de Snicket a respeito dos Baudelaire, o narrador/ investigador demonstra possuir uma visão pseudo-totalizadora. Totalizadora porque ele sabe exatamente tudo a respeito das personagens – tudo que é necessário saber para contar sua história. E pseudo porque ele ignora ou finge desconhecer os mistérios nãoresolvidos pelos Baudelaire – e por ele mesmo. Chega a ser intrigante esta característica ambígua do conhecimento do autor em relação ao que por ele é contado. Fundamental na narrativa é o problema do ponto de vista, isto é, a posição da qual o autor conta a estória. O bom êxito da narrativa depende, em grande parte, da solução adequada do problema. Quem contará a estória? São os diversos ângulos de visão em que se pode situar o narrador. É clara a relevância do assunto, porque um episódio pode ser diferentemente visto, julgado e testemunhado consoante o posto d observação em que se coloca a pessoa que narra. E o relato de um mesmo fato pode variar se diferentes são os narradores, conforme ensina a psicologia do testemunho (COUTINHO,2008: 65) Algumas perguntas são respondidas (e a maioria não) de forma póstuma nos livros publicados após o volume 13: Lemony Snicket – Autobiografia Não-autorizada, The Beatrice Letters e The Blank Book. Até a data de conclusão desta pesquisa os dois últimos livros ainda não haviam sido publicados no Brasil. Um livro foi publicado em 2009, sob o título Raiz-Forte: Verdades Amargas Que Você Não Pode Evitar, contendo citações tiradas dos treze volumes que compõem a odisseia dos Baudelaire, como por exemplo, “O destino é como um estranho e impopular restaurante, cheio de garçons esquisitos trazendo coisas que você nunca pediu e de que nem sempre gosta” (SNICKET, 2009: 143). Esta publicação reforça a ideia de humor negro existente no texto – e na persona sombria – de Snicket. Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. (...) A experiência de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994a: 197-198) (...) O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. (BENJAMIN, 1994a: 201) 49 Segundo a classificação de tipos de narrador de Todorov (TODOROV, 2008: 246), Snicket se inclui na categoria “narrador > personagem”, isto é, um narrador que possui a visão “por trás”. Neste caso o narrador sabe mais que seu personagem. Sua superioridade pode se manifestar seja em um conhecimento dos desejos secretos de alguém, seja nos pensamentos simultâneos dos pensamentos de muitos personagens. Por alguns instantes ninguém disse nada, e os meninos ficaram imaginando o que o Sr. Poe poderia estar fazendo na Praia de Sal quando deveria estar no banco, no centro da cidade, onde trabalhava. Não estava com roupas de ir à praia. (SNICKET, Vol. 1: 15) Sobre a relação do leitor com o narrador de um livro, Benjamin diz: Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama. (BENJAMIN, 1994a: 213) 3.3 – Enredo, conflito e ação dramática Há que considerar dois tipos de enredo: o orgânico e o episódico. Este é resultante de certo número de episódios ou partes, mais ou menos completas e independentes entre si, que poderiam ser extraídas do conjunto. Já no orgânico, a sucessão de acontecimentos se inter-relacionam, de modo a não poderem ser retirados do conjunto sem prejuízo da unidade e da lógica. É o caso das Desventuras em Série. Apesar de estar dividida em treze volumes, cada livro depende do outro para possibilitar a compreensão dos fatos narrados. O orgânico constitui, de fato, um quebra-cabeça, no qual o leitor monta as peças com o que vai recebendo a cada volume. O enredo clássico típico é elaborado conforme o seguinte esquema estrutural: apresentação ou exposição (em que o autor explica as circunstâncias da estória, estabelece a diegese ou define as personagens); involução ou complicação (onde começam os conflitos); clímax (ponto alto da complicação, o ápice da estória); solução, conclusão ou desenlace (leva a estória ao final e esclarece). Geralmente, os elementos citados se apresentam nesta sequência, mas nem sempre é assim, uma vez que o próprio Snicket tende a desobedecer a ordem em alguns casos. O volume 9, por exemplo, não 50 possui desenlace, terminando no auge do clímax, e o último volume não esclarece os fatos em seu pseudo-desenlace. Uma das características da série Desventuras em Série é o fato de ela ter sido elaborada numa lógica estrutural próxima do cinema e dos seriados de TV. A própria divisão da história em volumes, o revezamento clímax versus anticlímax e a falsa promessa de um desfecho remetem o leitor aos esquemas cinematográficos. É por isso que fundamenta-se a seguir as caracterizações de conflito e ação dramática embasadas nas teorias de roteirização para cinema. O conflito é a força motriz que impulsiona a personagem para a ação. Para Doc Comparato (2000), conflito consiste no embate entre forças e personagens através do qual a ação se organiza e se vai desenvolvendo até o final. O homem é um ser dialético – desenvolve-se a partir de antagonismos e contradições. (...) Portanto, o conflito é consubstancial ao indivíduo. (...) O homem encontra-se sempre entre uma coisa e outra e tem de optar e encontrar soluções para os conflitos, a fim de resolver suas contradições.” (COMPARATO, 2000: 95) Comparato ainda classifica três tipos de conflitos na personagem: a) Conflito com uma força humana, com outro homem ou grupo de homens; b) Conflito com forças não-humanas, a natureza ou outros obstáculos; c) Conflito consigo mesma, com uma força interna. Esses tipos de conflito nem sempre se isolam, por aparecerem misturas e combinações desses três conflitos numa mesma obra. Um conflito pode conter todos os conflitos. “No entanto, temos um único conflito-matriz; e apenas um deles pode sê-lo” (COMPARATTO, 2000: 97). Isso pode ser demonstrado na obra de Snicket. Os órfãos Baudelaire possuem um conflito do primeiro tipo supracitado, isto é, contra um homem (o Conde Olaf) ou um grupo de homens (os comparsas de Olaf e mesmo os adultos “inocentes” que se recusam a acreditar nas crianças, ou a população da Cidade Sinistra dos Corvos sob efeito da “psicologia das turbas”, que consiste em manipular a opinião pública e incitar a turba a agir). Este primeiro tipo de conflito é o conflito-matriz da história, contudo, os outros tipos de conflito se associam a ele, mesmo que de forma despercebida ou isolada. Por exemplo, quando os órfãos estão nas correntezas do Arroio Enamorado ou na prisão, eles enfrentam forças da natureza ou obstáculos, e quando incendeiam o Hotel Desenlace estão em conflito consigo próprios, indo contra seus próprios princípios. 51 Para a teoria literária, o conflito da personagem se integra, de alguma forma, aos conflitos do leitor. O teórico Anatol Rosenfeld diz que: A obra-de-arte literária é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo). Como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, políticosocial e tomam determinadas atitudes em face desses valores. Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vezes de ordem metafísica, incomunicáveis em toda a sua plenitude através do conceito, revelam-se, como num momento de iluminação, na plena concreção do ser humano individual. São momentos supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as motivações mais íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação e no seu desenvolvimento. O próprio cotidiano, quando se torna tema da ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angústia e da náusea. (...) Todavia, o que mais importa é que não só contemplamos estes destinos e conflitos à distância. Graças à seleção dos aspectos esquemáticos preparados e ao ‘potencial’ das zonas indeterminadas, as personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a sua concreção individual; e mercê desse fato liga-se, na experiência estética, à contemplação, a intensa participação emocional. Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas que a sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e contemplar, visto o desenvolvimento individual se caracterizar pela crescente redução de possibilidades. De resto, quem realmente vivesse esses momentos extremos, não poderia contemplá-los por estar demasiado envolvido neles. E se os contemplasse à distância (no círculo dos conhecidos) ou através da conceituação abstrata de uma obra filosófica, não os viveria. É precisamente a ficção que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo de ser irreal de suas camadas profundas, graças aos quase-juízos que fingem referir-se a realidades sem realmente se referirem a seres reais; e graças ao modo de aparecer concreto e quase-sensível deste mundo imaginário nas camadas exteriores. (...) É importante observar que não poderá apreender esteticamente a totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem não for capaz de sentir vivamente todas as nuanças dos valores não-estéticos – religiosos, morais, político-sociais, vitais, hedonísticos etc. – que sempre estão em jogo onde se defrontam seres humanos. (ROSENFELD, 1976: 45-46) Esta integração dos conflitos do leitor aos da personagem, portanto, é responsável pelo acompanhamento da história, isto é, faz com que o leitor continue sua leitura em vez de fechar o livro e pegar outro, contrariando inclusive os conselhos do próprio Lemony Snicket, em sua psicologia reversa de marketing editorial. O conflito 52 em si talvez seja mais importante para uma leitura fluente do que a construção da personagem. Mesmo personagens sem qualquer carisma são atratoras de atenção do leitor quando seus conflitos são convincentes. Já em relação à ação dramática, é um termo mais adequadamente aplicável ao gênero dramático e ao cinema. Contudo, a elaboração desta série possui um caráter linear que induz a um roteiro cinematográfico, seja em termos de ritmo (revezamento clímax/anticlímax) ou na própria divisão em volumes e capítulos, que a caracteriza como obra seriada. 3.4 - Diegese, ambientação e tempo dramático A diegese é a realidade própria da narrativa e diz respeito à sua dimensão ficcional. É o que justifica a existência da verossimilhança interna de uma obra. Por exemplo, se no livro Harry Potter e a Pedra Filosofal9 a magia existe e as pessoas podem voar em vassouras, isto se torna válido por causa de uma diegese que regula o “funcionamento” da “realidade” interna e ficcional da obra, mesmo que essas regras sejam completamente opostas às da vida real. Para Coutinho, “a influência do ambiente sobre a história é inegável. O personagem surge do meio, do qual adquire as motivações de sua existência” (COUTINHO, 2008: 60) Por meio da linguagem, somos capazes de construir um modelo de mundo em que inserimos imagens mentais de tudo o que conhecemos. E mais: inserimos imagens de coisas que nunca existiram ou já deixaram de existir no real. Ou seja, criamos coisas mentalmente. Nisso consiste a memória, a imaginação, o raciocínio abstrato, a criação artística... (BIZZOCCHI, 2006) Ninguém pode criar a partir do nada: as estruturas linguísticas, sociais e ideológicas fornecem ao artista material sobre o qual ele constrói o seu mundo de imaginação. A teoria clássica da arte como mímese da vida é sempre válida, quer se conceba a arte como imitação do mundo real, quer como imitação de um mundo ideal ou imaginário. (D’ONOFRIO, 1999: 19-20) No conto maravilhoso, é tácita a concordância do leitor com as situações fantásticas. O leitor aceita que há uma carruagem feita de abóbora que depois vai virar abóbora de novo. O leitor não questiona isso. Tal é o grau de envolvimento que ele tem a partir do texto anterior, daquilo que foi engendrado naquele tecido textual. Ninguém 9 ROWLING, J. K. 53 questiona que uma varinha mágica bateu na abóbora. Há um objeto do mundo factual que é transportado para o mundo ficcional e detém um poder. No panorama teórico do formalismo e do futurismo russo, Chklovski definiu a especificidade da obra de arte em geral e da literatura em particular como um modo “difícil” de organizar a realidade, que deve levar o receptor a estranhá-la e obrigá-lo a uma reflexão para identificá-la, ou seja, é necessário “re-conhecer” a realidade, conhecê-la outra vez. (FERRARA, 2007: 32) As desventuras dos Baudelaire são narradas de modo a não identificar precisamente quando e onde elas acontecem. Ambientada em local e época não facilmente identificáveis, a série conquista um universo autônomo com distintas referências. Um pouco de byronismo em um detalhe, um pouco de expressionismo alemão e dadaísmo em outro, e assim a diegese é controlada por inúmeros dialogismos com o cinema, a moda, as artes visuais, o circo, o teatro, a filosofia, a psicologia e – obviamente – a própria literatura, em um passeio por entre diferentes estilos. Quando se fala no tom cinzento das roupas e paisagens, nas peças enferrujadas, no mofo, nos cantos sujos e úmidos, podemos pensar que se passa em fins do século XIX, no auge do romantismo mórbido, no universo doentio de um Augusto dos Anjos. Entretanto, o autor quebra esta noção de temporalidade – deixando-nos perdidos no tempo – ao inserir um automóvel, um aparelho de fax, um cartão de crédito ou um submarino no meio da narrativa, puxando-nos de volta para o fim do século XX. Tudo o que temos sobre a época e o local são pequenas pistas “cuspidas” propositalmente entre um trocadilho e outro. Às vezes, a ideia é explorada de forma alegórica. De acordo com a ênfase posta nesse ou naquele fator, a ficção torna-se pictórica ou de cor local, ou regional; e de atmosfera. No primeiro caso, predominam os elementos físicos (ambiente geográfico, vestes, costumes, língua etc.); no segundo, um estado emocional e intelectual, que cria um halo indefinível em torno dos personagens e acontecimentos. (COUTINHO, 2008: 61) Disfarçadamente, surgem pistas de que Lemony Snicket escreveu a série muitos anos depois dos fatos terem acontecido, o que gera a suposição de que foi escrita inclusive após a morte de Violet, Klaus e Sunny, uma vez que os comentários a seu respeito são feitos no pretérito imperfeito (“Os Baudelaire eram crianças adoráveis”). Este dialogismo que harmoniza a ambientação será mais explorado no capítulo 5. Novamente retomo os fundamentos do cinema para falar sobre o tempo dramático das desventuras. “A noção de tempo dramático está presente em cada partícula, em cada fragmento da estrutura e, consequentemente, também no produto audiovisual final” (COMPARATO, 2000: 229). Há, portanto, um tempo dramático 54 total e um tempo dramático parcial. O tempo dramático total é a soma de todos os tempos parciais. Embora um filme possa ter uma duração de duas horas de tempo real, quando vemos, vivemos outro tempo, que, evidentemente, não é real, mas sim mágico, de ficção, que nos faz condensar em apenas duas horas toda uma tarde, uma vida inteira ou até dois séculos. (COMPARATO, 2000: 229) Podemos dizer que, na obra de Snicket, o tempo dramático total é representado pelos treze volumes, sendo iniciado no momento em que os Baudelaire estão na Praia do Sal e são avisados sobre a morte de seus pais, e sendo finalizado no desfecho do volume 13, quando os Baudelaire abandonam a ilha com o bebê órfão de Kit Snicket. Comparativamente ao cinema, a recepção de uma obra literária possui um tempo real diferente do que o cinema apresenta. Em uma sala de cinema o filme é emitido de modo uniforme e assim todos os espectadores/receptores possuem o mesmo tempo para receber a mensagem emitida, mesmo que esta recepção seja feita de modo heterogêneo – uma vez que cada receptor possui um repertório e um horizonte de expectativa individuais, o que os leva a reagir à mesma mensagem de modo diferenciado. Já na obra literária o tempo de transmissão da mensagem varia de um leitor para outro, dependendo da velocidade de leitura e da capacidade de compreensão da mensagem que cada um exerce. O tempo da leitura é um tempo irreversível que determina nossa percepção do conjunto, mas pode também tornar-se um elemento literário com a condição de que o autor o leve em conta na história. Por exemplo, no início da página, diz-se que são dez horas; e na página seguinte que são dez e cinco. Esta introdução inocente do tempo de leitura na estrutura da narrativa não é a única possível: existem outras nas quais não nos podemos deter; indiquemos apenas que se toca aqui no problema da significação estética das dimensões de uma obra. (TODOROV, 2008: 246) O tempo dramático possui, portanto, uma “velocidade” constante de emissão ao ser total, e uma “velocidade” diferenciada (pelo ritmo, pela estrutura narrativa ou pelos detalhamentos) ao ser parcial. Pode-se presumir que o tempo dramático total das desventuras compreenda um período inferior a um ano na vida dos órfãos Baudelaire, já que nele é percebido o amadurecimento de Sunny, apenas Klaus “comemora” seu aniversário dentro da prisão na Cidade Sinistra dos Corvos (vol. 7) e nenhuma data comemorativa (Natal, Páscoa, passagem de ano) é mencionada. A manipulação do tempo na narrativa é outro importante problema. Seu uso requer uma grande flexibilidade e apuro. O autor deve usar uma série de artifícios e táticas de narrativa a fim de dar ao leitor a exata ideia da marcha do tempo na estória, ou para encurtá-la e acelerá-la de 55 acordo com as necessidades. (...) O essencial é a impressão final de uma forma coerente interna, na marcha dos acontecimentos e nas descrições (COUTINHO, 2008: 62-63). Já o tempo dramático parcial varia tanto de um volume para outro volume, como de um capítulo para o seguinte. No volume 5 as crianças passam um longo período no internato enquanto toda a história do segundo volume se passa num período de, no máximo, dois dias. Os acontecimentos frenéticos da Sala dos Répteis se contrapõem ao longo tédio do Inferno no Colégio Interno. Outra característica marcante da narração de Snicket é o fato de ele brincar com este tempo dramático parcial, acelerando, reduzindo ou até mesmo interrompendo-o em pleno clímax, como na passagem entre os capítulos 2 e 3 da Sala dos Répteis: (...) e nesse exato momento aconteceu algo que, tenho absoluta certeza, interessará muito a vocês. Com um movimento do rabo, a cobra soltou a trava que mantinha a porta de sua gaiola fechada, deslizou para cima da mesa e, antes que o tio Monty ou qualquer dos órfãos Baudelaire pudesse dizer alguma coisa, ela abriu a boca e mordeu o queixo de Sunny. (Fim do Capítulo 2) (Capítulo 3:) Peço muitas, mas muitas, muitas desculpas, por ter deixado vocês em suspenso desse jeito, mas é que eu estava escrevendo a história dos órfãos Baudelaire quando olhei para o relógio e vi que estava atrasado para um jantar de cerimônia de uma amiga minha, madame diLustro. Madame diLustro é ótima amiga, excelente detetive, e cozinha que é uma maravilha, mas fica uma fúria se a pessoa chega cinco minutos depois da hora estabelecida no convite. Vocês me entendem, não? Não tive outro jeito senão interromper tudo. Vocês devem ter pensado, no final do capítulo anterior, que Sunny morreu e que essa foi a coisa terrível que aconteceu aos Baudelaire na casa do tio Monty, mas prometo a vocês que Sunny sobrevive a esse episódio. Quem vai morrer, infelizmente, é o tio Monty, mas não agora. Quando as presas da Víbora Incrivelmente Mortífera cerraram-se sobre o queixo de Sunny, Violet e Klaus testemunharam com horror os olhinhos de Sunny se fecharem e o rosto ficar inerte. Até que, num movimento tão súbito quanto o da cobra, Sunny sorriu luminosamente, abriu a boca e mordeu a Víbora Incrivelmente Mortífera bem no seu minúsculo focinho escamado. A cobra soltou o queixo da menina, e Violet e Klaus puderam ver que a marca deixada na pele de Sunny era quase insignificante. Os dois Baudelaire mais velhos olharam para o tio Monty, tio Monty retribuiu-lhes o olhar e caiu na gargalhada. A sonora gargalhada do tio ricocheteou nas paredes de vidro da Sala dos Répteis. (SNICKET, Vol. 2: 32-34) Analisando o ponto de vista diegético, notamos que em qualquer tipo de ficção (desenho, pintura, cinema, teatro ou na literatura) se manipula o tempo e o espaço pra se criar uma atmosfera. E os seres que habitam este espaço também são manipulados. 56 Figura 7 - Ilustração de Brett Helquist no capítulo 1 do livro 3 57 4. A CONTEMPORANEIDADE NO ESTILO DO AUTOR A classificação da historiografia da arte em eras, bem como a da historiografia humana universal, é fundamentada em marcos históricos. Na arte, uma simples mudança de temas ou estilos pode caracterizar essa “passagem”. A etimologia da palavra contemporâneo nos remete ao que acontece no tempo em que estamos. Contudo, atualmente, convencionou-se chamar de arte contemporânea ou pós-moderna toda a produção artística gerada a partir da década de 1960 que se diferencia dos conceitos da “prévia” modernidade por absorver características e conceitos das vanguardas sessentistas. A Arte Conceitual em si é uma vanguarda, por propor a desconstrução de valores e significados pré-estabelecidos até a primeira metade do século XX. O que seria o dialogismo senão uma releitura atualizada do antropofagismo cultural das vanguardas modernistas? Para Ítalo Calvino, na sociedade contemporânea “há uma aceitação da heterogeneidade e da relatividade cultural, com seus pluralismos, ambiguidades, localismo, simultaneidade, informalidade, subjetividade, suas verdades múltiplas”. (ANTONIO, 1998: 190) O historiador Eric Hobsbawn (1995) chama o século XX de “Era dos Extremos”. Ainda na primeira metade do século, a humanidade sofreu duas guerras mundiais e o grande holocausto. A bipolarização da Guerra Fria, a partir dos anos 1950, exigiu que cada ator internacional10 – e cada indivíduo – adotasse uma postura, assumisse um lado e aceitasse ou recusasse uma doutrina. A enorme contestação popular – em âmbito global – fez com que a arte adotasse também sua postura perante a reflexão dos acontecimentos – mesmo que fosse uma postura supostamente neutra e cínica. Ergueram-se ditaduras, estipulou-se uma grande censura na liberdade de expressão e muitos pensadores do século XX foram marginalizados da mesma forma que os poetas da Grécia Antiga foram excluídos da cidade perfeita e justa idealizada por Platão, sob o argumento de que a poesia ficcional não teria utilidade pública. Lemony Snicket é um escritor/narrador que vive na clandestinidade, sempre fugindo e se escondendo. 10 Ator internacional é toda entidade que desempenha alguma função no sistema internacional e sobre o qual produz algum efeito (GONÇALVES & SILVA, 2010: 10-11). São atores internacionais: os Estados, ONG’s, corporações transnacionais, blocos, grupos terroristas, igrejas e forças transnacionais, como as epidemias, as catástrofes e até mesmo a opinião pública. 58 Jamais meu nome aparecerá em seus registros infames (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994b: 12). Jair Ferreira dos Santos, por exemplo, cita como características atuais “o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida na pós-modernidade” (SANTOS apud COELHO, 2000: 14). Arthur D. Efland (2005) afirma que no mundo pós-moderno “há menos confiança de que o futuro há de ser, necessariamente, melhor do que o presente ou o passado” (EFLAND, 2005: 176). Para ele, a visão pós-moderna é menos otimista e menos orientadora para o futuro. Este pessimismo pós-moderno em pouco se difere do pessimismo baudelaireano do século anterior. Em meio a todo este contexto, na passagem do século XX para o século XXI, é que Daniel Handler assume o pseudônimo Lemony Snicket e passa a publicar as Desventuras em Série, uma série aparentemente destinada a ser exclusiva para o público infanto-juvenil que, talvez contrariando o horizonte de expectativas do próprio mercado editorial (incluindo talvez os editores, mas certamente os consumidores), não subestima o seu leitor, seja ele de qualquer faixa etária, e consegue abranger temas contemporâneos sem cair nos clichês da pieguice. A qualidade estética da narrativa e a forma de (nem sempre) solucionar os conflitos da estória é um dos principais sinais desta contemporaneidade. O fim satisfatório passa a ser chamado de clausura, por limitar a subjetividade do leitor ao dar um fim coerente à narrativa. A arte contemporânea, diferente do realismo, não se preocupa em dar respostas. Enquanto os realistas explicavam tudo, dando resoluções, o contemporâneo assume o curso da vida, que nem sempre se explica. Ela é retórica e provocativa. A resposta nunca é a mesma para todos os leitores, portanto, cada um que busque suas próprias explicações através da reflexão. A frustração gerada pelo desfecho do volume 13 das Desventuras é um reflexo da sociedade contemporânea: não se pode esperar tanto do que vem pela frente, pois nunca teremos resposta para tudo o que queremos saber. O acontecimento passa, mas a história não precisa ter fim – na vida e na reportagem também é assim. O grande fluxo de informações nos leva a viver um período de meiasnotícias. A superficialidade torna-se comum por termos tantas informações a ponto de quase não nos aprofundarmos em nenhuma. Snicket leva a literatura infanto-juvenil ao rompimento com a tradição literária que a precede. Efland (2005) afirma que, na contemporaneidade, “as tradições do passado não são necessariamente reverenciadas como tradições consagradas, mas podem ser exploradas por meio da sátira e da paródia” (EFLAND: 2005, p. 178). É por 59 isso que, em Snicket, no volume 2, Chapeuzinho Vermelho não é tida como uma pobre vítima do lobo, na concepção naïf, ou seja, inocente e pueril, que se tinha a respeito dos contos da tradição clássica, mas sim que Chapeuzinho é uma boboca. Há outra história a respeito de lobos que provavelmente devem ter contado a vocês e que também é absurda. Estou falando de Chapeuzinho Vermelho, uma garotinha bastante desagradável que, como o Menino que deu Alarme contra o Lobo, insistiu em intrometer-se no território de animais perigosos. Como vocês hão de estar lembrados, o lobo, depois de ser tratado muito rudemente por Chapeuzinho Vermelho, comeu a avó da menina e vestiu a roupa da velha como disfarce. Esse é o aspecto mais ridículo da história, porque mesmo uma garota tão boboca como Chapeuzinho Vermelho saberia na mesma hora notar a diferença entre a avó e um lobo metido numa camisola e calçado com chinelos felpudos. Quando conhecemos muito bem uma pessoa, como nossa avó ou a babá, na mesma hora sabemos dizer se elas são reais ou se são impostoras. Por isso, quando Sunny começou a gritar, Violet e Klaus perceberam de imediato que o grito era absolutamente falso. (SNICKET, Vol. 2: 136-137) Snicket também desconstrói a moral da tradição ao mesmo tempo em que desestrutura o desfecho da obra ficcional na pós-modernidade: "Desenlace” é uma palavra usada para descrever o ato de desamarrar um nó, e se refere ao deslindamento de uma história misteriosa e desconcertante, tal como a dos órfãos Baudelaire, ou de qualquer outra pessoa cuja vida esteja cheia de perguntas não respondidas. O desenlace é o momento em que todos os nós de uma história são desfeitos, e todos os fios são desemaranhados, e tudo é exposto claramente para que o mundo veja. Mas o desenlace não deve ser confundido com o fim da história. O desenlace de Branca de Neve, por exemplo, ocorre no momento em que a Srta. Branca acorda do seu sono encantado e decide deixar os anões para trás e se casar com o bonito príncipe, e a velha misteriosa que lhe deu uma maçã se revela como a pérfida rainha. Mas o final de Branca de Neve ocorre muitos anos depois, quando um acidente em um passeio a cavalo mergulha a Srta. Branca em uma febre da qual ela nunca mais se recupera. O desenlace de Cachinhos Dourados e os três ursos ocorre no momento em que os ursos voltam para casa e encontram Cachinhos Dourados tirando uma pestana em sua propriedade privada; eles ou a enxotam do local, ou a devoram, dependendo de qual versão você tem na sua biblioteca, mas o final de Cachinhos Dourados e os três ursos ocorre quando uma tropa de jovens escoteiros se esquece de apagar a fogueira do acampamento e nem mesmo os esforços de um corpo de bombeiros voluntários conseguem salvar de uma morte certa a maior parte da vida selvagem. Há algumas histórias em que o desenlace e o final ocorrem simultaneamente, como La forza del destino, em que as personagens se reconhecem e se destroem no decurso de uma única canção, mas usualmente o desenlace de uma história não é o último evento na vida dos heróis, ou o último infortúnio que recai sobre eles. Com freqüência é o evento que vem antes do último, ou do penúltimo perigo. Enquanto os órfãos Baudelaire seguiam o homem misterioso para fora do hotel e através da nuvem de vapor até a beira da lagoa refletiva, o desenlace da 60 história deles se aproximava depressa, porém o final ainda aguardava pelos três, como um segredo encoberto pela névoa, ou uma ilha distante no meio de um mar encapelado cujas ondas bramiam contra as praias de uma cidade e as paredes de um hotel desconcertante.” (SNICKET, Vol. 12: 158-160) Como podemos notar, já no penúltimo livro da série, Snicket declara que o real desenlace não será dado no livro seguinte. O último grande clímax da série ocorre ao fim do livro 12, quando os Baudelaire incendeiam o Hotel Desenlace, e a série é terminada no anticlímax. Este revezamento clímax/anticlímax é mais uma característica da literatura contemporânea, pois faz uso de um recurso utilizado no cinema. Filmes geralmente terminam em anticlímax, além de serem construídos por um roteiro que reveza os “pontos de atenção” na história. Snicket pode prender a atenção do leitor e tematizá-lo a ponto de se sentir tenso com a leitura para em seguida frear qualquer catarse com uma abrupta interrupção do ritmo da narrativa. Figura 8 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2 61 Figura 9 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2 (cont.) Visualmente, o texto das Desventuras em Série demonstra eventuais referências à poesia concreta dos anos 1960. A disposição dos parágrafos em algumas páginas e a própria falta de palavras em outras impactua o leitor, levando a formatação do texto a adotar uma imagem que leva ao pé da letra o que o autor está querendo expressar. Eis um exemplo de como um texto verbal pode se comportar como um texto não-verbal: Snicket, ao contar que Violet mexeu na rede elétrica para usar uma de suas invenções, diz ao leitor para nunca mexer em eletricidade, mas o faz repetindo a palavra “nunca” por uma página inteira (SNICKET: Vol. 2: 146-148). A repetição da palavra “nunca” induz a uma compreensão compulsória da advertência emitida, de modo a não permitir questionamentos a respeito de sua validade (Figuras 8 e 9). Lemony Snicket é uma personagem que extrapola os limites da ficção, saindo de sua própria história fictícia e passando a ter autoria em outras obras, que nada têm a haver com a história dos Baudelaire, como The Composer Is Dead (O compositor está morto) e The Latke Who Couldn't Stop Screaming: A Christmas Story (A panqueca que não conseguia parar de gritar: um conto de Natal). Snicket assina, inclusive, a capa do 62 livro de Neil Gailman, Coraline, quando esta obra de terror juvenil foi relançada por ter ganhado uma adaptação para o cinema. Este livro conta uma história fascinante e perturbadora que quase me matou de susto. A menos que você queira se esconder debaixo de sua cama, com o dedo na boca, tremendo de medo e fazendo toda a espécie de sons estranhos, sugiro que largue o livro devagarinho e vá procurar uma diversão mais leve, algo assim como um crime sem solução, por desvendar. (SNICKET apud GAIMAN, 2003: quarta capa) A obra literária contemporânea e suas personagens, portanto, não se limitam mais apenas à existência em palavras impressas. Mesmo o escritor não é o único “dono” de sua obra, uma vez que seu conteúdo pertence a cada leitor/receptor, que absorve e transforma a informação emitida por ele e se apropria a ponto de criar além do que foi publicado. A democratização do acesso aos meios de produção permite que grande parte do público tenha condições hoje de pegar uma câmera e fazer sua adaptação fílmica caseira e distribuí-la pela internet. Houve quem produzisse animações contando as histórias dos livros que não entraram na adaptação para o cinema, como, por exemplo, o video Serraria Baixo Astral, disponível no YouTube11. 4.1 – Lemony Snicket versus Daniel Handler Há em Snicket um problema epistemológico que melhor se explica nas palavras de Rosenfeld (1976): É porém a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza. Isto é pouco evidente na poesia lírica, em que não parece haver personagem. Todavia, expresso ou não, costuma manifestar-se (...) um “Eu lírico” que não deve ser confundido com o Eu empírico do autor. (ROSENFELD, 1976: 21) Lemony comporta-se quase como um alter-ego de Daniel Handler. Nas sessões de autógrafos, Handler costuma brincar dizendo que o escritor Lemony não pôde comparecer e que ele veio em seu lugar (Revista Recreio, edição n° 253, 13/01/2005). Mesmo as entrevistas cedidas, ora como Handler, ora como Snicket, contribuem para a consolidação da diegese da obra. Por exemplo, em entrevista ao website A. V. Club12, perguntado sobre qual instrumento musical ele gostava de tocar, Snicket afirma 11 The Miserable Mill, direção de Stephen Horn e produção de Dayakar Padayachee (produzido pela Bouncing Biscuit Studios e apresentado por Stikel Media & Entertainment e Dayakar Productions), disponível no link http://www.youtube.com/watch?v=Tk4RLKUhAn4 12 Texto original e tradução constantes nos anexos 63 estar aprendendo a tocar teremin – um instrumento eletroacústico que emite sons fantasmagóricos, muito usado na sonoplastia de filmes de terror. Lemony também extrapola o universo particular da obra literária. Quando a versão para o cinema das Desventuras em Série foi lançada em DVD13, a distribuidora do filme incluiu um áudio extra com comentários do filme feitos por Lemony Snicket. Era na verdade Daniel Handler tecendo comentários sob um ponto de vista sarcástico que é próprio da persona de Snicket, na cena em que Tia Josephine e as crianças estão sendo atacadas por sanguessugas no barco, Lemony (no áudio dos comentários) diz que está tocando acordeão por considerar mais interessante do que fazer qualquer crítica à adaptação de sua obra e por considerar aquela cena e os gritos muito deprimentes14. Daniel Handler, antes de virar Lemony Snicket, era um escritor que tinha como alvo o público adulto. Apesar de ter dois livros publicados, sentiu recusa de mais de trinta editoras ao tentar publicar mais um romance. Até que então foi-lhe sugerido que escrevesse algo para crianças e daí surgiu a ideia de contar uma história em três volumes contendo finais trágicos. O sucesso foi imediato já no lançamento do primeiro volume e a editora lhe propôs extender a série. Handler achou que o número 13 seria mais adequado, por narrar a história de crianças tão azaradas. Daniel também é roteirista, daí podemos entender por que a elaboração da obra de forma seriada é tão similar à estrutura de um roteiro de cinema. Assim como Lemony Snicket, Handler toca acordeom, como integrante da banda Magnetic Fields. Figura 10 - Daniel Handler tocando acordeão Foucault diz que “a noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da 13 DESVENTURAS em Série. Direção: Brad Silberling. Produção: Laurie MacDonald, Walter E. Parkes e Jim Van Wyck. Roteiro: Rober Gordon. Intérpretes: Jim Carrey; Jude Law; Liam Aiken; Emily Browning; Meryl Streep e outros. [Manaus: Videolar S.A.], 2006. 1 DVD (108 min). 14 Comentários de Lemony Snicket incluídos no DVD supramencionado. 64 filosofia também, e na das ciências” (FOUCALT, 1992: 33). Porém, com esta autoria reservada a um possível alter-ego, Daniel Handler transfere à sua própria personagem (Lemony Snicket) esta autoria. De modo que nem Handler se mostra à vontade para discutir a obra de Snicket. Em todas as entrevistas encontradas com o escritor, ele se refere à obra como sendo de Snicket, e não dele. Esta atitude comprovaria uma possível metalinguagem em seu próprio discurso, uma vez que ele é um escritor que escreve sobre uma personagem que escreveu toda a série. Diz Handler, na introdução da autobiografia de Lemony Snicket: Na posição de representante oficial de Lemony Snicket para todos os assuntos legais, literários e sociais, muitas vezes sou solicitado a responder perguntas difíceis, mesmo quando estou com pressa. As perguntas que tenho ouvido com mais freqüência são: 1. Quer fazer o favor de sair do meu caminho? 2. De onde veio Lemony Snicket: autobiografia não autorizada, de Lemony Snicket? As respostas a essas perguntas são histórias muito longas, e só há espaço aqui para responder a uma delas. (HANDLER apud SNICKET, 2006c: IX) Entre os livros publicados por Handler (sob sua assinatura real), alguns adotam o mesmo senso sarcástico de Snicket já no título da obra. Em um total sarcasmo, o escritor publicou um livro irônico e non-sense chamado How to Dress for Every Occasion by the Pope (ainda não publicado no Brasil, de tradução “Como se vestir para cada ocasião, pelo Papa”), no qual Sua Santidade narra dicas de moda. A resenha do livro diz “Quer se vestir como o Papa? Bem, por que não? Afinal de contas o Papa é uma das pessoas mais importantes do mundo e é convidado para jantares de chefes de estado e coisas do tipo, além de viver num lugar super bem ornamentado chamado Vaticano. (...) Finalmente, o Papa apresenta um livro ensinando você a se vestir bem para cada ocasião”. Para ironizar ainda mais a respeito da falta de variedade dos uniformes papais, há um slogan na capa dizendo “Contém mais de 9 dicas do Papa”. Para escrever o livro Inventors and Creators - Lemony Snicket, Hayley Mitchell Haugen entrevistou Handler e tenta explicar as razões do autor para adotar o pseudônimo. Também explica os motivos de Snicket interromper tanto sua narrativa para dar lições de vocabulário, entre outras curiosidades. A obra literária (como devaneio) é uma continuação do brincar infantil, segundo Sigmund Freud (FREUD, S., 1976). O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca ao criar um mundo de fantasia que ele leva muito a sério. Uma grande quantidade de emoção é investida na obra, por mais que seja mantida nitidamente uma separação entre ela e a realidade. 65 Cabe mencionar também que, durante alguns anos, o rosto e a identidade do homem por trás de Snicket não eram divulgados. Para os curiosos que tentassem encontrar fotos do autor na internet, todas as suas fotos estavam disponíveis em web sites de busca, porém, sempre com o rosto oculto, fosse por uma tarja (Figura 11), um livro que estivesse lendo ao ser fotografado ou mesmo por posar de costas para a foto (Figuras 12 e 13). Figura 11 - Primeira foto de divulgação de Lemony Snicket Figura 12 - Foto de divulgação de Lemony Snicket Figura 13 - Foto de divulgação de Lemony Snicket 66 As entrevistas cedidas à imprensa eram feitas por telefone ou e-mail, sempre com o alter-ego de Snicket encarnado. Somente na ocasião do lançamento dos últimos livros da série é que Daniel Handler mostrou sua face, ainda que não admitisse ser Lemony Snicket, mas sim seu representante, como em uma entrevista para a TV, na qual uma repórter entra em sua sala para entrevistar Snicket e Handler diz que ele não se encontra, mas que poderia responder por ele. A capa do livro de Haugen (Figura 14), lançado em março de 2005, mostra a foto do rosto de Daniel Handler. Figura 14 - Capa do livro de Hayley Mitchell Haugen Como foi dito acima, Handler não pretendia estender a série até que com o lançamento dos primeiros volumes foi-lhe sugerido fazê-lo. A falta de resoluções pode levar alguns leitores inclusive a pensar que Snicket é, na verdade, um charlatão que “encheu linguiça” para faturar com o mercado editorial e que não foi capaz de explicar os mistérios que surgem para prender a curiosidade do leitor, por não ter planejado no início da série um desenvolvimento que levasse a conclusões satisfatórias, ou seja, à clausura à qual os leitores da mass-media15 estão acostumados. Essa característica, de 15 Termo referente à mídia da cultura de massa (ADORNO & HORKHEIMER in LIMA.: 1978) 67 “trapacear” mesmo seu leitor, é um dos motivos que o coloca num nível elevado de originalidade dentro da literatura universal – e não só da dita “infanto-juvenil”. Após o sucesso das Desventuras em Série, Daniel Handler publicou onze títulos diferentes. Dentre estes, os que visavam ao público infantil foram publicados sob o pseudônimo Lemony Snicket, recheados de humor negro. Figura 15 - Handler x Snicket Figura 16 - Daniel Handler 68 5. DIALOGISMO E POLIFONIA Mikhail Bakhtin (BAKHTIN apud STAM), definiu a polifonia como sendo a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam. Já o dialogismo possui uma definição mais ampla por Bakhtin, uma vez que ele o designa como o processo de interação entre textos em que ocorre a polifonia. Tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos. Dialogismo se dá a partir da noção de recepção/compreensão de uma enunciação o qual constitui um território comum entre o locutor e o locutário. Pode-se dizer que os interlocutores, ao colocarem a linguagem em relação frente um a outro, produzem um movimento dialógico. Segundo Bakhtin (BAKHTIN apud STAM), o diálogo pode ser definido como "toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja". Robert Stam explica Bakhtin ao dizer que o dialogismo opera dentre de qualquer produção cultural. “Qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como parte dele” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73) A série Desventuras em Série possui uma inegável riqueza referencial a outras obras, sobretudo à de Charles Baudelaire, dialogismo que será aprofundado no subcapítulo a seguir. Diversas outras obras e movimentos artísticos são incluídos no dialogismo de Snicket. Mas é uma ilusão crer que a obra tem uma existência independente. Ela aparece em um universo literário povoado pelas obras já existentes e é aí que ela se integra. Cada obra de arte entra em relações complexas com as obras do passado que formam, segundo as épocas, diferentes hierarquias. (TODOROV, 2008: 220) Sua escrita dialoga, por exemplo, com a da escritora inglesa Virginia Woolf, que muito escreveu sobre o tédio e que passou parte de sua vida utilizando a escrita para tentar se curar de sua forte depressão que a levou ao suicídio em 1941. As personagens de Snicket vivem em constante tédio, que com a eficácia da narrativa de Snicket pode “contaminar” o leitor tematizado. No volume 2, A Sala dos Répteis, há uma debochada menção à autora inglesa: “e preveniu-os de que nunca, em hipótese alguma, deveriam deixar que a Cobra-Lobo da Virgínia chegasse perto de uma máquina de escrever”. 69 Também dentro da literatura, Klaus, ao vestir um macacão com a foto do escritor Herman Melville, diz: "É um dos meus autores favoritos", disse Klaus. "Eu realmente gosto muito do modo como ele dramatiza a dura condição das pessoas negligenciadas, tais como os marinheiros pobres, ou os jovens explorados, através de sua prosa filosófica insólita, por vezes experimental." (SNICKET, vol. 11: 41) O texto faz inúmeras críticas à literatura infantil tradicional e aos contos de fadas, ao mostrar interpretações que ridicularizam Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e Cachinhos Dourados, por exemplo. Nas artes visuais, há uma referência sutil a um quadro de René Magritte, “O Filho do Homem” (Figura 1), tanto na construção de uma das personagens quanto no suspense que foi criado em torno do autor pela editora. “Senhor” é como chamam o dono da serraria na qual os Baudelaire trabalham no volume 4 e seu rosto e nome são desconhecidos. Mesmo em sua presença é impossível ver seu rosto, por ele fumar um enorme charuto que cobre toda a sua cabeça com uma fumaça espessa. Da mesma forma, todas as fotos de Lemony Snicket divulgadas pela internet, em revistas, jornais e em sua própria autobiografia ocultavam seu rosto, ao mesmo estilo da fruta cobrindo a face do homem retratado por Magritte. Em todos os volumes da série, há uma dedicatória a uma mulher de nome Beatrice, que já está morta. É uma analogia direta com Dante Alighieri, que teve com Beatrice uma trágica história de amor. Tragédias amorosas são também tema do Romantismo Byronista, que tinha o mal-do-século como um dos principais argumentos. Se o verdadeiro mal do século XIX foi a tuberculose, isso leva o leitor a, no mínimo, desconfiar da infinita tosse do Sr. Poe, sempre cobrindo a boca com um lenço imundo para tossir. Até mesmo as personagens das tragédias de Goethe podem ser ligadas ao mood das personagens principais de Snicket, sobretudo o amargurado Werther. As principais características do Expressionismo Alemão, que são a ambientação sombria e a opressão das personagens principais, também estão aqui. “Por toda parte ouço vozes e as relações dialógicas entre elas” (Bakhtin apud STAM: p. 72). Se Bakhtin dizia que “ouvia vozes” em todos os lugares, isso pode ser exemplificado da seguinte forma: uma referência puxa outra, que se liga a outras mais, e desta forma está tecida a “teia” do dialogismo. A trupe do Conde Olaf, em suas atuações, faz uso da farsa e da Commedia Dell’Arte, uma vez que são todos caricatos, estereotipados e parodiam situações cotidianas. Há também um dialogismo com a carnavalização, logo no primeiro volume 70 da série, quando a trupe está reunida na casa de Olaf para festejar, comer, se embriagar e até mesmo “profanar” a comida, jogando-a. O circo é outra expressão artística mencionada, no volume O Espetáculo Carnívoro, cujo título original, Carnivorous Carnival, reforça a ideia da carnavalização. Por carnavalesco, supõe-se uma ala incidência de comida, bebida, sexo, diversão e escatologias. O termo foi criado por Bakhtin, supostamente para ser “subversivo”. Figura 17 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 10 do volume 6 A própria fala da Sunny pode ser vista como uma forma de tentar explicar de modo irônico a formação dos poemas dadaístas, que consistia em escolhas de palavras e sílabas aleatórias com as quais se escreviam frases ininteligíveis – como a fala dos bebês. O dadaísmo também está presente a cada vez que a narrativa se deixa levar pelo non-sense, em situações absurdamente inverossímeis até internamente. Eles não gostaram da idéia de ver a irmãzinha bebê escalando o poço até as portas deslizantes do elevador ersatz usando apenas os dentes, mas não conseguiam pensar em nenhum outro jeito de escapar a tempo de frustrar o plano de Gunther. (...) a mais jovem dos Baudelaire inclinou a cabeça para trás e depois jogou-a para a frente, cravando um dos dentes na parede 71 com um som áspero que faria um dentista chorar durante horas. Mas os Baudelaire não eram dentistas, e as três crianças escutaram atentamente para ouvir se os dentes de Sunny tinham ficado tão firmemente cravados quanto as cavilhas da rede. Para sua satisfação, não ouviram nada — nenhum som de coisas raspando, ou escorregando, ou rachando, ou qualquer coisa que indicasse que os dentes de Sunny não estavam segurando. Sunny até sacudiu um pouquinho a cabeça para verificar se com isso o seu dente não se soltaria com facilidade da parede, mas ele continuou sendo um firme apoio dental. Sunny jogou a cabeça de leve e fincou um outro dente, ligeiramente acima do primeiro. O segundo dente ficou firmemente cravado, então Sunny soltou cautelosamente o primeiro dente e o inseriu de novo na parede, ligeiramente acima do segundo dente. Cravando os dentes a espaços ligeiramente separados, Sunny conseguira subir alguns centímetros pela parede e, quando ela fincou o primeiro dente acima do segundo outra vez, seu pequeno corpo já não tocava mais a rede. (SNICKET, Vol. 6: 168-169) (Figura 17). Outros dialogismos, mais amplos e sutis, podem ser percebidos por leitores mais atentos no que diz respeito à moda, à psicologia, às ciências sociais e até à filosofia. Em tempos de Byronismo, as cores eram frias como as das roupas dos órfãos Baudelaire e Esmé Squalor é uma vilã muito “antenada” nas tendências de moda e decoração. Quanto à psicologia, toda a série dialoga com os traumas de infância e a frustração como possibilitadora de reações agressivas, além de tratar, no livro 7, da manipulação da opinião pública como “psicologia das turbas”16. Numa visão sociológica há uma crítica à exploração do trabalho infantil no volume 4 e uma muito sutil alusão ao pensamento pedagógico de Ivan Ilich, autor de Uma Sociedade Sem Escolas, ao colocar, no livro 5, os órfãos estudando numa instituição em que todo o conhecimento era inútil, sem contar a crítica à pena de morte, que é sentenciada aos Baudelaire no julgamento por um crime que não cometeram no volume 7. Outra sutil comparação seria com o pensamento do filósofo Guy Debord, autor de A Sociedade Do Espetáculo, já que Esmé Squalor e o Conde Olaf buscam o sucesso e a fama a qualquer custo, mesmo sem ter talento algum – a não ser para o crime. A 16 Fazendo referência ao estudo do sociólogo francês Gustave Le Bom (1841 – 1931), A psicologia das multidões. “Para o autor, a multidão é uma entidade onde os indivíduos estão submetidos a uma alma coletiva, pois ela tem sua própria natureza. A multidão, como ele descreve, é feminina, impulsiva, móvel, dominada por uma mentalidade ‘mágica’”. (citado por FERREIRA, Giovandro Marcus. As origens recentes: os meios de comunicação pelo viés do paradigma da sociedade de massa. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz C. e FRANÇA, Vera Veiga (Org.) Teorias da Comunicação; 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2003). 72 jornalista Sra. Morrow, colunista do jornal “O Pundonor Diário”, lido pelas personagens, alardeia fatos comuns, fazendo com que cada notícia se transforme num verdadeiro espetáculo. A própria Juíza Strauss, no primeiro livro, ao ser convidada para integrar o elenco da peça de Olaf, diz: “Sempre quis subir no palco, desde garotinha” (SNICKET, vol. 1: 80). José Aloise Bahia17 diz a respeito do trabalho de Guy Debord: Esta nova sociedade do espetáculo e desinformação, de acordo com o autor, é o universo, onde tudo é possível. Um grande carnaval caracterizado pelo desaparecimento de critérios de verdade e validade, que antes eram referenciados em atitudes e funções específicas desempenhadas no mundo do trabalho. Neste contexto, por exemplo, um médico pode ser cantor e ator ao mesmo tempo, e aparecer na televisão defendendo o uso de determinado produto, marca ou remédio de ponta, de determinado laboratório, como sendo o mais eficaz contra determinada doença, fratura ou inflamação. Bem como pode aparecer também em programas de auditório e novelas, garantindo e corroborando o status científico, e a noção do bom e do belo, do asséptico e o efeito dourado de bem-estar do produto para a saúde dos consumidores e cidadãos. Este seria um outro novo aspecto que alimenta e afirma que o espetáculo não pode parar, e que todos podem um dia ter a possibilidade, nem que seja em 15 minutos de fama, de se tornarem artistas e aparecer na televisão. (BAHIA: 2005) Debord (1997) discute a reestruturação de fenômenos cotidianos (julgamentos, cirurgias, casamentos) em espetáculos que atiçam as massas e confundem a opinião pública. No caso da obra de Snicket, isso se exemplifica quando, por exemplo, Violet é forçada a se casar com Olaf sob disfarce de uma encenação em Mau Começo, quando os Baudelaire se tornam inimigos públicos por causa do tablóide O Pundonor Diário e vão a julgamento ou quando a mais velha dos três é quase submetida a uma cirurgia inédita que tornou-se espetáculo para a classe científica (atraindo, inclusive, a atenção da jornalista do tablóide). O poder do espetáculo, tão essencialmente unitário, centralizador pela força das coisas e de espírito perfeitamente despótico, costuma ficar indignado quando vê constituir-se, sob seu reino, uma política-espetáculo, uma justiça-espetáculo, uma medicina-espetáculo, ou outros tantos surpreendentes “excessos midiáticos”. (DEBORD, 1997: 171) Ainda em relação à filosofia, há uma menção não-nominativa a Nietzsche no volume 10, muito irônica, por sinal: "Quando eu estava olhando para dentro do buraco", disse Klaus mansamente, "lembrei de um livro escrito por um filósofo famoso. Ele disse: 'Quem enfrenta monstros deve cuidar para que, no processo, não se transforme em monstro também. Quando você olha longamente para o abismo, o abismo também olha para você'." Klaus olhou para a irmã, depois para Esmé, que já 17 Jornalista, pesquisador e escritor. 73 se aproximava, e por fim para a madeira que cobria o buraco. "Um 'abismo' é, de fato, um 'buraco'", disse ele. "Nós construímos um abismo para Esmé. Isso é algo que só um monstro faria." Quigley estava copiando as palavras de Klaus no seu livro de lugar-comum. "O que aconteceu com esse filósofo?", perguntou. "Está morto", disse Klaus. (SNICKET, Vol. 10: 225) No Volume 12 está presente uma atmosfera própria da literatura de Agatha Christie. No auge do suspense, todas as personagens dos livros anteriores se hospedam no mesmo hotel e ocorre um crime, surgindo um clima investigativo. No volume 7 é o cinema que será referenciado na figuras dos corvos. A quantidade de corvos voando em bando lembra o filme Os Pássaros (1963) de Alfred Hitchcock, cineasta conhecido por criar suspense. Há também uma referência direta a um poema de Edgar Allan Poe, chamado O Corvo. No livro sétimo das Desventuras em Série, os corvos em questão habitam uma árvore chamada de A Árvore do Nunca Mais. No poema de Poe, todas as últimas estrofes terminam com “Nunca mais!”, única resposta que o corvo sabe pronunciar para o eu-lírico do poema. . Figura 18 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 3 do volume 7 74 O texto de Snicket é recheado de simbolismos, o que podemos entender como um dialogismo com o movimento literário simbolista. Ele também faz uso do método parnasiano de utilizar vocabulário rebuscado, mas zomba disso explicando as palavras “difíceis” de maneira esdrúxula. Em termos de política, o livro A Cidade Sinistra dos Corvos mostra uma cidade que adota características de Platão no que se refere à educação das crianças. O Sr. Poe menciona o aforismo “É preciso uma cidade para educar uma criança” (SNICKET, vol. 7: 21). Os habitantes de C.S.C, como a cidade é conhecida, se revezariam na tutela das crianças. A cidade seria responsável por elas. Outro elemento da política grega clássica é a existência de um Conselho de Anciãos que julga e toma decisões com base em argumentos falaciosos. É uma crítica direta aos Sofistas, que na Grécia Antiga (399 a.C.) condenaram Sócrates, considerado por Platão o mais sábio dos homens. E é por essas analogias que a arte contemporânea se insere no contexto histórico iniciado na segunda metade do século XX, quando toda produção cultural deve absorver, filtrar e recriar ideias, pensamentos e opiniões oriundas de outras obras artísticas, da História, das informações jornalísticas e das próprias transformações sociais. Não se trata apenas de reproduzir o que já existe, mas sim de contestar, criticar e aperfeiçoar, com o devido talento estético. O autor é, em primeira e última instância, um leitor. 5.1 – A influência de Charles Baudelaire na obra de Lemony Snicket Para entender melhor a diegese da obra e a construção das personagens é fundamental conhecer um pouco sobre Baudelaire. Mais que alusões, Snicket faz menções diretas à obra baudelaireana, sobretudo ao batizar os protagonistas das Desventuras em Série com o sobrenome do poeta. Assim como Violet, Klaus e Sunny, Charles Baudelaire foi órfão e era maltratado por seu tutor – no caso do poeta, o padrasto, um general muito austero que se opunha às inclinações literárias do enteado. Charles foi, em seu tempo, considerado um poeta maldito, por retratar em suas estrofes quão ruim pode ser a vida. Sua poesia chocou a sociedade francesa no século XIX por conter temas fúnebres e escatológicos, bem como a poesia de um de seus sucessores temáticos, Augusto dos Anjos, recebeu severas críticas no círculo literário brasileiro poucas décadas depois. 75 Baudelaire entregou-se a vícios e à boemia. Já sofria de depressão antes mesmo de encontrar-se na miséria. E sentiu-se toda a vida perseguido pelo padrasto. Perseguição: eis o argumento-motriz da saga dos órfãos Baudelaire na obra de Snicket. O caráter maldito, porém, coube ao próprio narrador das história, uma vez que vive na clandestinidade e tem medo de ser punido pelas coisas que escreve. O universo baudelaireano inclui a exisência de um flâneur. Baudelaire tentou explicar o complexo sentido do termo como sendo a pessoa cujo papel seria o de entender o processo da modernidade, do urbanismo e do cosmopolitismo através do fluxo da cidade. O flâneur é afetado pelo desenho da cidade e pelo andamento da mesma. Os órfãos Baudelaire, sub-repticiamente são afetados na medida em que transitam pelas cidades. Antes do incêndio que os deixou órfãos, os irmãos “moravam com seus pais numa enorme mansão no centro de uma cidade muito movimentada e muito poluída” (SNICKET, vol. 1: 10). Os nomes dos lugares por onde eles transitam – ou “flanam” –, como a Praia do Sal, o Porto Enevoado, a Aldeia de Tédia, o Rio da Amargura e a Avenida Sombria nos remetem a situações sempre desagradáveis, causando no leitor um mood tão pessimista quanto os poemas de Baudelaire eram capazes de criar. E mesmo com esta intenção, Snicket ironiza a respeito destes nomes próprios: Embora a Avenida Sombria ficasse a apenas alguns quarteirões de distância do lugar onde antes se erguera a mansão Baudelaire, as três crianças nunca tinham estado antes naquelas vizinhanças e presumiram que a palavra "sombria" na Avenida Sombria era simplesmente um nome e nada mais, assim como Bulevar George Washington não indica necessariamente que ali mora George Washington, ou Sexta Avenida não indica que as lojas ali só abrem às sextasfeiras. Mas naquela tarde os Baudelaire perceberam que Avenida Sombria era mais que um nome. Era uma descrição apropriada. Em vez de postes de luz, havia árvores enormes a intervalos regulares ao longo da calçada, de um tipo que as crianças nunca tinham visto antes — e que mal podiam ver agora. No alto de um tronco grosso e espinhento, os galhos pendiam como roupa pendurada para secar, espalhando suas folhas largas e chatas em todas as direções, como um teto baixo e folhudo por cima das cabeças dos Baudelaire. Esse teto bloqueava toda a luz que vinha de cima e com isso, muito embora fosse o meio da tarde, a rua parecia escura como se já fosse noite — se bem que um tanto esverdeada. Não se diria que era um bom jeito de fazer com que os órfãos se sentissem bem-vindos ao se aproximar do seu novo lar. (SNICKET, Vol. 6: 12-13). Para Walter Benjamin (1994b), a dialética da flânerie se descreve da seguinte maneira: “por um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, 76 simplesmente o suspeito; por outro, o totalmente insondável, o escondido”. (BENJAMIN,1994b: 190). A rua conduz o flanador a um tempo desaparecido. Para ele, todas são íngremes. Conduzem para baixo, (...) para um passado que (...) permanece sempre o tempo de uma infância. (BENJAMIN, 1994b) A Beatrice a quem Snicket dedica os treze volumes, além da previamente citada alusão à amante de Dante – poeta que descreve o inferno em sua clássica Divina Comédia –, referencia a destinatária de um dos poemas que compõem a principal obra de Charles Baudelaire, As Flores do Mal, no qual a descreve no poema La Béatrice como “a deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala”. Em outro poema, A Fonte de Sangue, Baudelaire expõe as fatalidades do amor: (...) Eu procurei no amor um sono de esquecer; E é-me somente o amor um colchão de punhais Em que eu dou de beber às amadas fatais! No poema O Letes, Charles fala mais abertamente sobre o amor por uma mulher morta: Nas tuas saias perfumadas, junto Ao teu colo, enterrar fronte saudosa, E respirar, como ressequida rosa, Suave bolor do meu amor defunto. Quero dormir! Dormir o tempo que me sobre! Num sono doce como a morte eu posso Estender os meus beijos sem remorso Nesta carne tão polida como o cobre. Vejamos agora as dedicatórias de Lemony para Beatrice. A cada livro o autor vai deixando uma pista sobre como ela morreu. No Livro 7 ele já informa que Beatrice morreu por falta de ar, e no Livro 12 fica claro que esta falta de oxigênio foi causada por um incêndio: Livro 1: Para Beatrice — querida, adorada, morta Livro 2: Para Beatrice — Meu amor por você viverá para sempre. Você não teve a mesma sorte. 77 Livro 3: Para Beatrice — Preferiria que você estivesse viva e com saúde. Livro 4: Para Beatrice — Meu amor voou como uma borboleta Até a morte pousar como um morcego. Como disse a poeta Emma Montaria McElroy: "Aí acabou-se a história". Livro 5: Para Beatrice — Você estará sempre no meu coração, na minha memória e no seu túmulo. Livro 6: Para Beatrice — Quando nos conhecemos, minha vida começou. Logo depois, a sua terminou. Livro 7: Para Beatrice — Quando estávamos juntos, eu ficava sem fôlego. Agora, foi você quem ficou. Livro 8: Para Beatrice — O verão sem você é frio como o inverno. O inverno sem você é mais frio ainda. Livro 9: Para Beatrice — 78 Nosso amor partiu meu coração, e parou o seu. Livro 10: Para Beatrice — Quando nos conhecemos você tinha a beleza e eu, a solidão. Agora, só tenho uma bela solidão. Livro 11: Para Beatrice — Mulheres mortas não contam histórias. Homens tristes as escrevem. Livro 12: Para Beatrice — Ninguém conseguiu extinguir o fogo do meu amor, nem o da sua casa Livro 13: Para Beatrice — Meu amor apareceu, o mundo empesadeleceu. Livro Último (capítulo extra ao fim do Volume 13): Para Beatrice — Nós somos como barcos navegando pela noite — especialmente você. Há um poema em francês escondido nos créditos do capítulo 14 do volume 13. O eu-lírico do poema dirige sua fala à Morte. Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre! Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! Si le ciel et Ia mer sont noirs comme de l'encre, 79 Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons! Livre tradução: Ó, Morte, velho capitão, é tempo! Zarpemos! Esse país cansa-nos, ó morte! Pronto! Se o céu e o mar são negros como tinta, Nossos corações, que você conhece, estão cheios de luz! O tom excessivamente fúnebre das dedicatórias de forma alguma recusa a influência de Baudelaire sobre a ambientação, à diegese e ao mood em geral da obra. Outro elemento na obra de Charles Baudelaire que não deve ser esquecido é o que o próprio poeta chamava de spleen. Trata-se de um estado de espírito no qual se contempla o nada e no qual a alma se enche de melancolia. Na obra de Snicket, as paisagens descritas são cinzentas. As casas são feias, há sujeira por toda a parte. E a atitude passiva dos Baudelaire, bem como seu resígnio nos momentos em que lutar mostra-se inútil, reforça esta ideia. O spleen predomina nos versos de Charles Baudelaire. E o fim das Desventuras em Série pode causar semelhante efeito no leitor, que lê até o fim em busca da verdade e não a encontra. Pode-se dizer que a própria frustração vivida pelo leitor ao fim da série é um exemplo de spleen. [Kit Snicket diz] “Eu gostaria que tivéssemos mais tempo para conversar, mas já é terça-feira. Do jeito que as coisas vão, vocês mal terão tempo de comer o seu importante brunch antes de vestir os disfarces de concierges dar início às observações como flâneurs.” “Concierge?", perguntou Violet. "Flâneurs?", perguntou Klaus. "Brunch?”, perguntou Sunny. (SNICKET, Vol. 12, p. 12-13) Figura 19 - Personagens principais (Violet, Klaus, Sunny e Olaf) ilustrados de modo sombrio por Brett Helquist (ilustrações presentes na segunda capa de todos os livros) 80 6. A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E DO EFEITO E O HORIZONTE DE EXPECTATIVA Para poder demonstrar a importância da estética de Lemony Snicket torna-se imprescindível para esta pesquisa explorar o campo da teoria da informação que abrange a estética da recepção e do efeito. A estética da recepção, por mais que possa parecer empírica, é devidamente teorizada. A recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade das reações por ela provocadas – que incluem tanto o fechamento de um livro, como o ato de decorá-lo, de copiá-lo, de presenteá-lo, de escrever uma crítica ou ainda o de pegar um papelão, transformá-lo em viseira e montar a cavalo. (STIERLE, 2001: 135-136) O que podemos depreender a respeito do leitor? Como ele recebe e percebe uma obra? A obra produz, de fato, algum efeito no leitor? E quais efeitos seriam esses? Podemos colocar os leitores em duas categorias: o leitor estético (de arte) e o leitor bestseller (de consumo ou de massa). A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada. (CANDIDO, 1985: 53) O leitor estético é o que quer arte, e que não quer esquemas simples, repetitivos, gastos, do tipo “entendi tudo ao final”. Esse lado simplista e esquemático é a razão da enorme popularidade e massificação das telenovelas. A ponto de existir pessoas que acreditem que as novelas de TV são histórias reais. Obras esquemáticas são mais fáceis para o leitor decodificar, mas tornam-se previsíveis. A língua é esquemática mesmo, qualquer linguagem é esquemática. Quanto mais a palavra – o signo –, está na construção de uma estrutura oracional, ou uma estrutura fílmica de maneira discreta, sem ser problematizado, os esquemas ficam fáceis. E o leitor é enganado, uma vez que é ele quem está decodificando, embora tenha sido o autor que elaborou aquele esquema de maneira ao previsível, apesar de cheia de efeitos e apelos, que o leitor se encanta e não percebe que está lendo a mesma coisa que já foi mostrada diversas outras vezes. Confirmou-se que a literatura de consumo não é determinável sem referência à função estética e social da literatura “elevada”. (JAUSS, 2001: 50) 81 Esquemas são jogos de palavras que constituem ideias que ativam na nossa mente situações que já conhecemos, da realidade, do passado, presente ou futuro. Quando os esquemas se tornam muito fáceis e repetitivos, os chamamos de maquinação. Todas as linhas de estudo da arte são conhecimentos parciais. A leitura de uma obra de arte se dá por camadas, níveis, filtros esclarecedores. São aproximações que nos revelam uma das muitas faces da arte. (OLIVEIRA, Ruy de, 2008: 30) Snicket aponta um caminho para a leitura estética mesmo fazendo uso deste recurso. A repetição em sua obra objetiva um efeito entediante e é elaborada com um esforço que demonstra a ruptura com os padrões simplórios. As Desventuras em Série estão numa posição limítrofe entre o mercado estético e o de best-sellers, e é neste limite em de transição em que seu leitor se encontra ao absorver sua obra. Mesmo que o caráter “de massa” seja um disfarce para enganar este público-alvo e fazê-lo consumir uma obra estética. Snicket também é leitor da tradição, e por isso vai tematizar o leitor dos contos maravilhosos consagrados pela tradição ocidental e desconfigura seu repertório, desconstruindo o status quo desta tradição, ao contestar o valor simbólico de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo. E ele faz isso justamente numa série direcionada para o público infanto-juvenil, bem como o filme Shrek (2001), que faz sátiras a este mesmo status quo simbólico. Stierle diz que “A ampliação do potencial de recepção ganho pelo contato com uma ficção experimental permite que se apresentem as ficções do passado sob novas premissas de recepção.” (STIERLE, 2001: 171). Wolfgang Iser inclui junto à teoria da recepção uma teoria do efeito estético, que leva, a partir dos processos de transformação, à constituição do sentido pelo leitor e que descreve a ficção como uma estrutura de comunicação. Para Jauss, a literatura possui uma dupla tarefa: diferençar metodicamente os dois modos de recepção. Ou seja, de um lado esclarecer o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos. A aplicação, portanto, deve ter por finalidade comparar o efeito atual de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua experiência e formar o juízo estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção. (JAUSS, 2001:46) Jauss também menciona a existência de três funções da ação humana dentro da atividade estética, na qual a Poiesis representa a técnica, a Katharsis seria a forma de comunicação e a Aisthesis a visão de mundo. Em sua tese conclusiva, Jauss diz: 82 A conduta de prazer estético, que á ao mesmo tempo liberação de e liberação para realiza-se por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua própria obra (poiesis); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto na realidade externa, quanto da interna (aisthesis); e, por fim, para que a experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas. (...) (...) As três categorias básicas da experiência estética, poiesis, aisthesis e katharsis não devem ser vistas numa hierarquia de camadas, mas sim como uma relação de funções autônomas: não se subordinam umas às outras, mas podem estabelecer relações de sequência. Em face de sua própria obra, o criador pode assumir o papel de observador ou de leitor; sentirá então a mudança de sua atitude, ao passar da poiesis para a aisthesis, diante da contradição de não poder, ao mesmo tempo, produzir e receber, escrever e ler. (JAUSS,2001: 81) Ele também discute a adesão do juízo de gosto do indivíduo a um juízo lógico universal, por este apresentar razões, uma vez que cada indivíduo espera um acordo dos outros. O expectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazeirosa, como se participasse de uma cura (katharsis). Esta descoberta e justificação do prazer catártico (...) nos deu a única resposta até hoje convincente sobre a questão de por que a contemplação do mais trágico acontecimento nos causa o mais profundo prazer. (JAUSS, 2001: 65). Esta afirmação pode responder à pergunta “Por que ler as Desventuras em Série?”. Se a própria capa do livro sugere que só desgraças acontecerão e que a leitura não será de todo modo agradável, por que então o leitor prossegue sua leitura? Será mesmo prazeroso ler sobre tragédias alheias? Jauss responde: O expectador no teatro ou o leitor de romances pode “gozar-se como uma figura importante se entregar de peito aberto a emoções normalmente recalcadas”, pois o seu prazer tem “por pressuposto a ilusão estética, ou seja, o alívio da dor pela segurança de que, em primeiro lugar, de que se trata apenas de um outro que age e sofre, na cena, e, em segundo lugar, de que se trata apenas de um jogo, que não pode causar dano algum à nossa segurança pessoal”. Deste modo, o prazer estético da identificação possibilita participarmos de experiências alheias. (JAUSS, 2001: 78) Ainda segundo Jauss, para analisar a experiência do leitor ou de uma “sociedade de leitores” de um determinado tempo histórico, torna-se necessário diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre os dois lados da relação texto e leitor. Ou seja, entre o efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepção, como o momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial, trazido pelo leitor 83 de uma determinada sociedade. Isso é necessário a fim de se discernir como a expectativa e a experiência se encadeiam e para saber se, nisso, se produz, um momento de nova significação. No entanto, o estabelecimento do horizonte de expectativa interna ao texto é menos problemático, pois derivável do próprio texto, do que o horizonte de expectativa social, que não é tematizado como contexto de um mundo histórico. Por isso, enquanto a psicologia do processo de recepção for tão pouco esclarecida quanto o papel e a produção da experiência estética no sistema das estruturas de ação de um mundo histórico, é pouco apropriado esperarse um esclarecimento total sobre o comportamento dos leitores pelas análises fundadas em classes e camadas, bem como procurar na literatura da moda, a literatura trivial e de consumo, a mais rigorosa expressão das relações econômicas e os interesses disfarçados de poder. (JAUSS, 2001: 49-50) O horizonte de expectativa é uma característica fundamental de todas as situações interpretativas. Para Jauss, o horizonte de expectativa de um texto diz respeito às expectativas que o leitor nutre em relação ao texto. Mas é com base na teoria de Stierle que exponho tal característica: Se a ficção for interpretada como uma indicação para o cumprimento de uma figura de relevância, exigida por sua forma, daí decorrerá a pergunta sobre até que ponto o leitor porá em jogo o mundo como horizonte de ficção e quais as conseqüências disso quanto à distância histórica entre o texto e a recepção. Por fim, com a pergunta complementar sobre a função vital da ficção, i.e., sobre a ficção como “horizonte do mundo”. (STIERLE, 2001: 137) O horizonte de expectativa de um leitor está diretamente ligado ao seu repertório particular. Membros de uma mesma sociedade tendem a compartilhar sensos comuns, i. e., equilíbrio de significações simbólicas, padrões comportamentais (cumprimento de regras, tipo de vestuário, hábitos alimentares etc.) e valores morais. Estes elementos variam tanto de uma sociedade para outra como de um tempo para outro ou entre indivíduos de uma mesma sociedade. Cada informação, conhecimento ou ponto de vista que um indivíduo absorve contribui para a formação de seu repertório. Mesmo membros de uma mesma família que residem juntos possuem conhecimentos diferentes. Se o escritor dá instruções para o leitor imaginar, o leitor, por sua vez, é um imaginador. Imagina, quer dizer, busca na sua memória experiências vividas e seleciona imagens e as recria, visando torná-las coerentes com o contexto. Esse modelo, talvez excessivamente subjetivista, parece, no entanto, explicar certos desvios de interpretação, certas associações não-autorizadas pelo contexto, enfim, certas “viagens” dos leitores. No caso de leitores iniciantes, a falta de conhecimento linguístico, de conhecimento de mundo ou de experiências pessoais compatíveis com as situações do texto pode dificultar o encontro de imagens coerentes e, dessa forma, comprometer a compreensão. (CAMARGO, 2006: 10) 84 A obra de Snicket possui um caráter acessível, principalmente pelo fato de ser destinada a crianças e adolescentes, que requerem as intervenções do autor para explicar o significado de uma expressão ou provérbio que possivelmente ainda não esteja incluído no repertório do público-alvo não-adulto. Isso demonstra que mesmo o escritor possui um horizonte de expectativa: o escritor também nutre expectativas em relação ao seu leitor (Quem lerá o meu livro? Que idade terá esta pessoa? É membro de uma sociedade laica, cristã ou islâmica? Quais características das personagens que crio podem não estar de acordo com a moral deste leitor?). Contudo, mesmo que o público-alvo sejam os menores, Snicket não os subestima, deixando pistas e referências a outras obras que também povoam o imaginário coletivo do Ocidente (Robinson Cruzoé, Chapeuzinho Vermelho, Lewis Carroll, os irmãos Grimm e algumas lendas populares). Provavelmente, com o excessivo refinamento de algumas citações, é possível depreender que o leitor adulto também está contemplado no horizonte de expectativas de Snicket, uma vez que ele referencia a literatura constante do repertório adulto (Virginia Woolf, T. S. Elliot, Baudelaire, Platão e Shakespeare, entre outros). Stierle afirma que “o sujeito da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como sujeitos isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como sujeitos ‘transubjetivos’”. (STIERLE, 2001: 143) A auto-reflexividade da ficção não implica a sua autonomia quanto ao mundo real. O mundo da ficção e o mundo real se coordenam reciprocamente: o mundo se mostra como horizonte da ficção, a ficção, como horizonte do mundo. O âmbito da recepção dos textos ficcionais demarca-se apenas na apreensão desta dupla perspectiva. (STIERLE, 2001: 171) Mas é pela explicação de Ieda de Oliveira que esta relação autor-leitor torna-se mais compreensível: O Eu-comunicante e o Tu-interpretante são pessoas reais, com identidade psicossocial, ao passo que o Eu-enunciador e o Tu-destinatário são entidades do discurso, só tendo existência teórica. (...) O Eu-comunicante, portanto, é quem fala ou escreve e o Tu-interpretante é quem ouve ou lê (e interpreta) o texto, seja este oral ou escrito. O Tu-destinatário é a imagem que o Eucomunicante tem do Tu-interpretante, ou seja, é uma hipótese formulada pelo Eu-comunicante sobre quem seja o Tu-interpretante. Ocorre que essa é a “imagem” que o Eu-comunicante se dirige. Se o Tu-destinatário coincidir com o Tu-interpretante (se, portanto, a hipótese do Eucomunicante estiver correta) a comunicação será bem sucedida. Caso contrário, ela fracassará. 85 (...) Quanto ao Eu-enunciador, é a imagem de si mesmo que o Eu-comunicante pretende passar para o Tu-interpretante e que este poderá “comprar” ou não. Na verdade existem dois “eus” enunciadores, imaginados um pelo Eu-comunicante e outro pelo Tu-interpretante. (...) Em outras palavras, o Eu-comunicante não tem domínio sobre o Tu-interpretante e a imagem do Eu-enunciador que o primeiro tenta passar ao segundo pode ser recusada por este. (OLIVEIRA, Ieda de, 2003: 28-29) No caso específico da literatura infantil, uma das condições para o sucesso do projeto de comunicação – que se corre sempre o risco de negligenciar em virtude da diferença de idade entre o Eu-comunicante e o Tu-interpretante – é a adequação à faixa etária. Os contratos variam conforme os elementos da situação comunicativa e o Tu-interpretante (com sua faixa etária) é um desses elementos. (OLIVEIRA, Ieda de, 2003: 35) 6.1 – Aspectos Gráficos: Marketing, editoração e ilustração É inegável que os aspectos gráficos influenciem a decisão sobre a escolha da leitura. A primeira leitura de uma obra é a leitura não-verbal de sua capa. A imagem (fotografia ou desenho, colorida ou P&B), o tipo de material com o qual se confeccionou o livro (capa de couro, papel reciclado...) e o design (editoração, fonte tipográfica, posição de inserção das ilustrações) podem dizer muito sobre o livro. Os critérios de avaliação e de escolha de livros ilustrados são geralmente baseados no âmbito da “preferência pessoal”, alicerçados em gostos e aversões não-justificados. Assim como existe uma sintaxe das palavras, existe também uma relativa sintaxe das imagens. (Ruy de Oliveira, 2008: 29) E no caso das Desventuras em Série isso não é diferente. O tom mórbido da capa, acentuado pela palidez do bege e pelas ilustrações com motivações de arte gótica, induz o comprador/sócio de biblioteca a imaginar que temas são ratados na obra. Os departamentos de marketing das editoras planejam o lançamento de uma obra de forma muito bem calculada. Tudo é pensado no projeto: qual será o público-alvo, que estilo de ilustração será mais adequado, o que colocar na contracapa e até mesmo as dimensões do livro. Para o lançamento do quinto volume, a editora Cia. das Letras disponibilizou um livreto, contendo a capa, os créditos e o primeiro capítulo, distribuído gratuitamente nas grandes livrarias e megastores das regiões metropolitanas do Brasil. (ver Anexos) Outro fator de enorme contribuição para o sucesso da obra no Brasil foi a classificação da mesma como “altamente recomendável” pela FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. 86 As contracapas de todos os livros das Desventuras em Série contêm uma carta de Lemony Snicket praticando a psicologia reversa ao informar quais são os “ingredientes” do livro e sugerir que o leitor prefira outro livro àquele. Caro Leitor, Se você esperava encontrar uma história tranqüila e alegre, lamento dizer que escolheu o livro errado. A história pode parecer animadora no início, quando os meninos Baudelaire passam o tempo em companhia de alguns répteis interessantes e de um tio alto-astral, mas não se deixem enganar. Se vocês têm uma leve noção da incrível má sorte dos irmãos Baudelaire, já sabe que, no caso deles, até mesmo acontecimentos agradáveis acabam sempre em sofrimento e desgraça. Nas páginas que você tem em mãos, as três crianças sofrem um acidente de carro, vêem-se às voltas com uma serpente mortífera, um cheiro pavoroso, um facão enorme e o reaparecimento de uma pessoa que esperavam nunca mais ver. Infelizmente, é meu dever pôr no papel esses trágicos episódios. Mas nada impede que você coloque este livro de volta na estante e procure algo mais leve. Respeitosamente, Lemony Snicket (SNICKET, Vol. 2: contracapa) As ilustrações de Brett Helquist, assim como o texto de Snicket, nos informam. Há três tipos de ilustrações: informativa, persuasiva e narrativa. As de Helquist se dividem entre a segunda e a terceira categoria, por estarem direcionadas ao marketing ao mesmo tempo em que se relacionam com o texto. Sua ilustração chega a se fundir com o texto, contendo este (Figura 23). Outro exemplo são as ilustrações das páginas 160 e 161 do livro 6. Elas sucedem o trecho em que as crianças são atiradas no poço do elevador e consistem em dois retângulos totalmente preenchidos pela cor preta, que cobrem todo o espaço destinado ao corpo do texto (Figuras 20, 21 e 22). 87 Figura 20 - Páginas que antecedem as páginas em preto (Vol. 6) Figura 21 - Páginas em preto (Vol. 6) 88 Figura 22 - Páginas que sucedem as páginas em preto (Vol. 6) Figura 23 - Ilustração de Brett Helquist contendo trecho do texto (Vol. 12, cap. 13) 89 As personagens e paisagens da diegese de Snicket são retratadas pelo ilustrador em tons sombrios e com traços que remetem ao byronismo. Espinhos, grades, dentes afiados e objetos pontiagudos prevalecem em suas ilustrações (Figuras 24 e 25), de modo a representar o perigo constante, como se, metaforicamente, a própria capa tornasse o livro perigoso demais para ser segurado. Em outras palavras, o trabalho de Helquist foi bem sucedido por estar em consonância com o discurso do autor. Figura 24 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 4, cap. 5) Figura 25 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 5) 90 O programador visual ou o ilustrador devem ter um apurado conhecimento de projeto gráfico para que possam transformar o livro em um objeto físico e sensorial, de contemplação estética. (...) A atenção aos aspectos plásticos de um livro não se justifica somente no auxílio à competição e à concorrência, como se o livro fosse um produto de prateleira. Tal esmero com o gráfico é para inserir a eternidade do livro na contemporaneidade – esta é sua função maior. O legado artístico que movimentos nos deixaram é o salvo-conduto para essa inserção. (OLIVEIRA, Ruy de, 2008: 45) Quanto à classificação das Desventuras em Série como obra estética ou obra de massa, já foi mencionada anteriormente uma ambiguidade. É uma obra estética que se aproveita da elaboração das obras de consumo em massa. O livro estético quer ser vendido em larga escala, e por isso, Snicket, de forma inteligente, engana o leitor bestseller, para que este compre o livro, embora a narrativa da obra demonstre uma preocupação maior para com o leitor estético. Jauss discursa sobre a arte vista como mercadoria: O discurso pouco crítico sobre o “caráter de mercadoria” da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não considera que, até mesmo os produtos da “indústria da cultura”, permanecem como mercadorias sui generis, cujo caráter permanente de arte é tão pouco compreendido pelas categorias de valor de uso e de mais-valia, quanto a sua circulação o é pela relação de oferta e procura. É só de modo parcial que a necessidade estética é manipulável, pois a produção e a reprodução da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não consegue determinar a recepção: a recepção da arte não é apenas um consumo passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa, e, por isso, em grande parte não sujeita ao planejamento mercadológico. (JAUSS, 2001: 56-57) E por ser contemporânea, a obra de Snicket extrapola o limite gráfico/editorial ao se incluir em outras mídias. Parte da obra (os três primeiros volumes) foi adaptada para o cinema e produziram-se comerciais de TV para promover os lançamentos de cada volume. Um deles, que anunciava o último volume, propunha contar em 120 segundos toda a história dos 12 livros anteriores para quem ainda não tinha lido nenhum e desejasse ler o último. Este comercial foi transmitido a um número maior de espectadores, por ter sido lançado também no site YouTube18. Por fim, um web site19 sobre a série foi criado, com textos assinados por Lemony Snicket, no qual são divulgados novos produtos com a assinatura do autor. 18 Disponível no link http://www.youtube.com/watch?v=ej3hAZ1QnqA 19 Endereço: http://www.lemonysnicket.com/ 91 Até a Revista MAD20, em uma edição norte-americana, fez uma grande e inteligente referência às Desventuras em Série. Trata-se de uma sátira da obra, criticando o excessivo número de volumes e as tediosas repetições de esquemas do enredo. Embora a revista critique a repetição, ela demonstra reconhecer que o discurso da obra é inteligente. O jogo com o discurso, isto é, a elaboração discursiva, descarta a massificação desses livros, pois é o mercado que vai incluir a obra na recepção. O leitor é muito mais influenciado pelo mercado do que pela própria qualidade da obra. Ele desconhece a qualidade até que tenha, de fato, lido. É o mercado quem diz para ele o que deve ser lido. E não adianta dizer “esse livro é bom”, o mercado precisa criar estratégias para conquistar o leitor e, cada vez mais, essas estratégias têm que ser mais inteligentes, para conquistar o leitor inteligente. Figura 26 - Matéria comparando a obra de Snicket à de J. K. Rowling 20 Ver Anexos 92 6.2 - Classificação etária Como pode uma série aparentemente destinada a crianças e adolescentes ter conquistado também o público adulto? Seria mesmo esta coleção uma obra infantojuvenil ou também trata-se de uma “jogada” de marketing de psicologia reversa dizendo aos adultos que não devem ler aquilo para instigar sua curiosidade? O mercado editorial – incluindo a editora que publicou a série – vive uma enorme instabilidade. Não se pode prever o sucesso de uma obra literária até que ela chegue às prateleiras, daí a preocupação dos editores em garimpar novos talentos e consultar especialistas da área a fim de poder especular se aquele produto (o livro) será consumido em grande escala. A literatura infantil e juvenil é, antes de infantil e juvenil, LITERATURA. E esta arte se destina a quem quer que possa por ela se interessar – exceto em casos de obras inadequadas para menores. A série aqui analisada possui um caráter ambíguo, devido à própria fluência de sua narrativa e ao sarcasmo diversas vezes empregado. Vulgarmente, a expressão “literatura infantil” sugere de imediato a ideia de belos livros coloridos destinados à distração e ao prazer das crianças em lê-los, folheá-los ou ouvir suas histórias contadas por alguém. Devido a essa função básica, até bem pouco tempo, a literatura infantil foi minimizada como criação literária e tratada pela cultura oficial como um gênero menor. Ligada desde a origem à diversão ou ao aprendizado das crianças, obviamente sua matéria deveria ser adequada à compreensão e ao interesse desse peculiar destinatário. E como a criança era vista como um “adulto em miniatura”, os primeiros textos infantis resultaram da adaptação (ou da minimização) de textos escritos para adultos. Expurgadas as dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima da compreensão infantil; retiradas as situações ou os conflitos não-exemplares e realçando principalmente as ações ou peripécias de caráter aventuresco ou exemplar... as obras literárias era reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode proporcionar, no campo do real ou do maravilhoso. Compreende-se, pois, que até bem pouco tempo, em nosso século [séc. XX], a literatura infantil fosse encarada pela crítica como um gênero secundário, e fosse vista pelo adulto como algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou útil (nivelada à aprendizagem ou meio para manter a criança entretida e quieta). (COELHO. 2000: 29-30) Se para um leitor infantil os trechos abaixo, por exemplo, podem ter caráter meramente informativo, para adultos pode indicar plena ironia ao explicar termos que talvez não façam parte do vocabulário de uma criança: 93 Queimar formigas, não resta dúvida, é um passatempo abominável — a palavra abominável está aqui usada com o sentido de “habitual do conde Olaf quando ele tinha mais ou menos a idade de vocês” (SNICKET, Vol. 3: 154) Durante toda a conversa, Sunny ficou olhando fixo para a frente, e, para um bebê, “olhar para a frente” significa “olhar para as pernas das pessoas". (SNICKET, Vol. 3: 171) “Duc!”, gritou Sunny, num desabafo genérico de frustração, e socou o chão com o pequeno punho. A palavra “genérico” aqui significa “quando a gente é incapaz de pensar em qualquer outra coisa para dizer”, e não era somente Sunny que se via nessa situação: Violet e Klaus já não tinham mais idade, naturalmente, para dizer coisas como “Duc!” mas bem que gostariam de desabafar assim. (SNICKET, Vol. 2: 84) Apesar do pavor que sentiram ao serem encurralados no retiro secreto dele — expressão que aqui significa “lugar imundo onde se arquitetam planos maléficos” —, na verdade a permanência na torre revelou-se bem proveitosa. (SNICKET, Vol. 2: 126-127) Quando vocês eram muito pequenos, talvez alguém tenha lido para vocês a insípida história — a palavra "insípida" aqui quer dizer "indigna de se ler para alguém" — do Menino que deu Alarme contra o Lobo. (SNICKET, Vol. 2: 135). O dinheiro é um incentivo - a palavra incentivo aqui quer dizer “recompensa oferecida a alguém para que faça algo que não quer fazer” - para ler livros compridos, chatos e difíceis. (SNICKET, Vol. 1: 78) Os bastidores se converteram num completo pandemônio – expressão que aqui quer dizer “lugar em que atores e auxiliares de cena correm em todas as direções para resolver detalhes de última hora”. (SNICKET, Vol. 1: 127) Uma criança talvez não tenha o senso de humor apropriado para rir do deboche, da mesma forma que para um adulto pode não ser necessário que o autor interrompa a narrativa para expor seu glossário particular, com a intenção de não causar ambiguidade. Entretém um adulto e alimenta o vocabulário do leitor jovem, através da utilização de vocábulos eventualmente rebuscados e não tão corriqueiros na oralidade, como a palavra “pérfido”, diversas vezes usada para adjetivar os vilões. Cabe mencionar que a diferença de idade implica na variação dos repertórios e dos horizontes de expectativas dos leitores. Mesmo com a possibilidade de variação, o texto de Snicket é claro e acessível, sem que o autor tenha que “baixar o nível” de maturidade da obra, mostrando que respeita o leitor adulto e não subestima o leitor infanto-juvenil. Não se trata de um livro exclusivamente infantil e juvenil. Mas o que faz o mercado colocar estes 13 livros numa seção diferenciada das livrarias é a capa e as ilustrações, além da linguagem acessível devido a uma certa linearidade narrativa. Afinal, sempre que uma criança quer um livro é o adulto quem vai à loja comprar. E por 94 mais que um escritor pense num público-alvo quando escreve, é a editora quem vai direcionar a faixa etária. Nely Novaes Coelho classifica o leitor infanto-juvenil da seguinte maneira (COELHO, 2000: 37-40): a) Pré-leitor: categoria inicial que abrange duas fases. A primeira é chamada de “primeira infância” (dos 15/17 meses aos 3 anos), quando a criança começa a conquista da própria linguagem e passa a nomear coisas). Na “segunda infância” (a partir dos 2/3 anos) predominam o valores vitais e sensoriais e a criança passa a ser sugestionada por imagens. b) Leitor iniciante (a partir dos 6/7 anos): fase de aprendizagem da leitura, predomínio na leitura ainda é em relação a imagens. Os textos já existem, mas elaborados com palavras de sílabas simples e frases curtas nominais. c) Leitor-em-processo (a partir dos 8/9 anos): Surge atração pelos desafios e pelos questionamentos de toda espécie. Requer um esquema linear (início, meio e fim). d) Leitor fluente (a partir dos 10/11 anos): Fase de consolidação do domínio do mecanismo da leitura e da compreensão do mundo expresso no livro. A leitura segue apoiada pela reflexão. O leior está mais engajado em se concentrar e as imagens já não são indispensáveis. e) Leitor crítico (a partir dos 12/13 anos): Fase de total domínio da leitura, podendo atingir a visão de mundo ali presente. Desenvolve o pensamento reflexivo e crítico. Assim, a inclusão do leitor em determinada “categoria” depende não apenas de sua faixa etária, mas principalmente da inter-relação entre a sua idade cronológica, nível de amadurecimento biopsíquico-afetivo-intelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura. Daí que as indicações de livros para determinadas “faixas etárias” sejam sempre aproximadas. (COELHO, 2000: 32) Não é incomum no mercado norte-americano que livros “infanto-juvenis” que abarcaram grande parte do público adulto sejam reeditados com capas diferenciadas, com uma fotografia em vez de um desenho, de modo que o consumidor adulto não se sinta constrangido ao ler o livro em locais públicos. A série Harry Potter, por exemplo, teve duas edições diferenciadas para adultos em alguns países. Foi relançada com capa de couro e com fotografias em preto e branco ou em cores sóbrias que remetiam a situações da obra sem acusar, entretanto, o caráter mágico da obra. Na capa de Harry 95 Potter e o Prisioneiro de Azkaban, por exemplo, há na capa a fotografia da ilha em que fica a masmorra da prisão. Figura 27 - Versão adulta da capa de um dos livros da série Harry Potter Andressa Bezerra da Silva, preparadora e revisora da coleção no Brasil, pela editora Companhia das Letras, esclarece: "A Companhia das Letras divide os livros em 3 selos: adulto (Companhia das Letras), infanto-juvenil (Cia das Letras) e infantil (Companhia das Letrinhas). De fato, as Desventuras estão no selo que atende ao público juvenil (depois do filme, o número de leitores mais novinhos aumentou, mas o humor negro é para os mais velhos... as crianças não entendem). Após a aquisição dos direitos de tradução dos livros é que os editores decidem em que selo vai entrar, de acordo com a faixa etária. Isso não significa que vá restringir a idade dos leitores." (Recado publicado como recado no site de relacionamentos Orkut por Andressa, que autorizou o uso desta citação por e-mail21). As capas diferenciadas para adultos denotam uma flexibilidade editorial. São as editoras que fazem a distinção dos leitores, mas é com análises como esta que se reconhece esta flexibilidade. Há, portanto, uma total imprevisibilidade da recepção dos livros pelo público. Não se sabe, de fato, como prever seu sucesso ou que tipo de público irá consumir aquele produto. É tudo muito especulativo. 21 Correspondência em anexo 96 6.3. Psicologia A saga dos irmãos Baudelaire combina uma série de fatores, muitos já mencionados, que contribuem para a lógica interna dos livros. Especificamente, numa leitura dos elementos psicológicos presentes no texto, podem-se mencionar dois métodos de análise: a psicologia reversa e a psicologia infantil. A primeira, além de ter sido empregada com maestria no marketing editorial, é muito bem aplicada nas interferências – leia-se “interrupções da narrativa – que o autor/narrador faz quando se dirige diretamente ao leitor para incentivá-lo a desistir de continuar sua leitura. Este tipo de psicologia consiste em induzir alguém a fazer determinada tarefa (ler todos os livros) por meio da sugestão de um ato contrário (sugerir que pare de ler), como no seguinte trecho: Por três vezes no decurso da história as personagens estarão em algum lugar terrível com poucas esperanças de escapar com vida, e por essa razão, se eu fosse você, poria o livro de lado e escaparia com vida, pois essa deplorável história é tão profundamente sombria, e desgraçada, e deprimente que você poderá sentir-se na barriga da fera e chegar à conclusão de que o tempo pouco importa. (SNICKET, Vol. 09, p. 10). Já a psicologia infantil, uma área de estudo muito complexa e ainda não totalmente explorada, abrange alguns elementos observados na obra de Snicket. Tomando como base de fundamentação os estudos de Anne Freud e Dorothy Burlinghan publicados no livro Meninos Sem Lar (1958), que aborda a psicanálise infantil aplicada a crianças órfãs, é possível entender melhor o comportamento das crianças que protagonizam as Desventuras em Série. Em relação ao desenvolvimento da linguagem, papel que cabe a Sunny desempenhar ao longo dos treze livros (assunto que será explorado com mais detalhes no capítulo 8), Freud & Burlinghan afirmam que uma criança entre os 9 e os 10 meses já é capaz de balbuciar, emitindo diversos ruídos e sons, além de outras melopeias ou melodias destinadas a chamar certas pessoas (FREUD & BURLINGHAN, 1958: 24). Com 1 ano de idade a criança possui em média duas palavras habituais que repete inclusive para designar coisas diferentes. Sunny ficou batendo numa panela com uma colher de pau, enquanto cantava uma canção um tanto repetitiva que ela havia composto (SNICKET, Vol. 1: 46). A frustração sofrida por crianças gera um comportamento agressivo e/ou antissocial, conforme as psicanalistas informam no capítulo “Satisfação e frustração instintivas”. Contudo, poucas vezes os órfãos Baudelaire, por mais oprimidos que 97 estejam sendo, apresentam tal comportamento. Sua frustração tem como consequência o mais simples resígnio – mesmo que fiquem com muita raiva, eles raramente externam isso fisicamente no decurso da obra (agressividade latente, isto é, uma forma de agressividade mais sutil, presente nos pequenos gestos ou na voz). De qualquer forma, este silêncio dos oprimidos – grupo do qual também fazem parte os irmãos Quagmire – pode representar um grito interno, sinal de depressão mais grave, difícil de ser detectado. Em matéria publicada na Revista Isto É Gente, o Dr. Brunini22 afirma que a criança tem seus gritos interiores e o comportamento depressivo é um desses gritos. De acordo com o Dicionário Técnico de Psicologia, o termo “deslocamento de agressividade” se refere a uma “ação agressiva dirigida contra uma pessoa ou objeto que não foi (ou não é) a causa da frustração” (CABRAL & NICK, 2006: 15). O termo, longe de ser de aplicação exclusiva na psicologia infantil, pode também ser utilizado para demonstrar o comportamento dos vilões ao terem seus planos frustrados. Cabe, porém, destacar os casos em que a agressividade toma conta das crianças Baudelaire. No capítulo 11 do terceiro volume, Snicket conta que “Violet já não tinha paciência (...) e estendeu a mão e arrancou a rede da cabeça de tia Josephine” (SNICKET, Vol. 3: 150). No capítulo seguinte é a vez de Klaus agredir Olaf verbalmente, chamando-o de “demônio do inferno” (SNICKET, Vol. 3: 164). O simples desejo de matar ou agredir também é uma agressividade, apesar de reprimida. No volume 1, Violet “olhou com tristeza para o prato de comida do conde, e se surpreendeu desejando ter comprado veneno no mercado para acrescentar ao molho” (SNICKET, Vol. 1: 52), e em seguida sugere aos irmãos, como astuciosa maneira de se defender: “Poderíamos quebrar garrafas ao meio e usá-las como facas” (SNICKET, Vol. 1: 120). Anne e Dorothy (1958) afirmam também que a criança, ao se sentir abandonada ou desprotegida, pode adotar um comportamento autodestrutivo para chamar a atenção das pessoas. É o que acontece quando os Baudelaire provocam alergia em si próprias com balas de hortelã-pimenta para escapar do novo tutor (SNICKET, Vol. 3: 90-92). Surge, então, a seguinte indagação: e o leitor? Não é difícil imaginar que um final frustrante como o volume 13 provoque alguma reação, mesmo que seja um pequeno spleen. Peço licença para abordar um assunto particular, mas eu, como leitor, 22 Carlos Roberto Brunini é pediatra, mestre em homeopatia, doutor em clínica médica, membro da American Academy of Pediatrics, diretor da FACIS (Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo) e autor de mais de 20 livros 98 tive vontade de rasgar o livro 13 ao terminá-lo, mas contentei-me em praguejar Lemony Snicket. Minutos depois raciocinei e concluí que aquele comportamento era exatamente o que o autor tencionava provocar em quem acompanhasse a série até o fim. Nas entrelinhas de tudo aquilo, havia um grande “Eu bem que avisei” por trás de toda a psicologia reversa que insistia para que eu deixasse o livro de lado. Sob o meu ponto de vista, esta foi a grande genialidade de Lemony Snicket. É o que o torna diferente da maior parte dos escritores para o público infanto-juvenil, pois ele trata o mero leitor como um leitor refinado para as devidas apreciações estéticas. Não é de se admirar que se publique uma série sobre eventos frustrantes e que ao final de tudo transfira a frustração para o leitor, sobretudo numa época – início do século XXI – em que a psicologia diagnostica stress e depressão causados por frustração na infância, e na qual milhares de crianças recebem psicotrópicos e isso é abertamente discutido pela imprensa de modo geral. Crianças e adolescentes, hoje, integram o rol dos consumidores de antidepressivos. Em março de 2003, o FDA23 liberou o uso do Prozac para crianças a partir de 7 anos24. Estima-se que a depressão atinja 2% das crianças e 5% dos adolescentes em todo o mundo (Revista Isto É Gente, 08/05/2006). Na Santa Casa de Misericórdia do Rio, por exemplo, o número de casos aumentou 10% de 1995 até 2000. Dos pacientes atendidos nesse período, 76% chegaram ao hospital sem que os pais soubessem do estado depressivo dos filhos25. Snicket indica que, mesmo anos depois do ponto em que termina a narração dos fatos da série, Klaus sofreria de depressão: Mas, anos depois, deitado na cama, Klaus amargava o pensamento de que talvez,(...) se houvesse agido a tempo, poderia ter salvado a vida do Tio Monty” (SNICKET, Vol. 2: 49) A própria curiosidade é um motivo de frustração, segundo as pesquisadoras Freud & Burlinghan. No caso em que os pais, embora não impondo restrições, não chegam a fornecer respostas satisfatórias, são as próprias condições do meio familiar que elucidam as crianças. Elas observam atentamente as reações entre os pais, suas fisionomias, anotam pedaços estranhos de frases, ruídos ouvidos à noite... (FREUD & BURLINGHAN, 1958: 114). 23 U. S. Food and Drug Administration 24 VEIGA, Aida & BURCKHARDT, Eduardo. O desafio da depressão. Revisa Época, ed. 259 (05/05/2003). 25 Artigo publicado no endereço eletrônico http://www.psique.med.br/content/index.php?option=com_ content&view=article&id=176:depressao-infantil&catid=64:disturbiosdepressivos&Itemid=89) 99 É com este repertório de observações que a criança arquiteta suas próprias respostas. Os órfãos Baudelaire estão em busca de respostas. Quem foram seus pais na verdade? Eles estão mesmo mortos? Qual era a verdadeira função da sociedade secreta da qual seus pais faziam parte? Qual o grande mistério envolvendo o açucareiro que tantos adultos morreram para proteger? Que fim tiveram os trigêmeos Quagmire? Essas são algumas das muitas dúvidas que surgem para os protagonistas – e para o leitor – que em momento algum serão satisfatoriamente respondidas. Assim como na citação de Freud & Burlinghan (1958), o leitor terá que buscar suas próprias respostas, uma vez que – conforme já foi dito no capítulo 3 – a arte contemporânea não se importa em dar respostas. Assim como os textos de Platão, ela vem nos trazer mais indagações, fato que mexe com o fator psicológico do leitor. Snicket é competente em instigar o leitor, não importa qual seja a sua faixa etária. Os mergulhos psicanalíticos, a decifração da imagem pelos labirintos semiológicos, os reducionismos da obra de arte às questões históricas e sociais, os idealismos de que as imagens se originam de imagens e seguem indiferentes aos clamores humanos individuais e coletivos, enfim, todas essas leituras – e existem outras – o nome já as define bem, são leituras da obra de arte. Necessárias. Importantes. No entanto, são aproximações, camadas reveladoras da criação artística. (OLIVEIRA, Rui de, 2008: 30) Importante é ressaltar que não pretendo com estas afirmações ser determinista, uma vez que nem sempre a psicanálise enxerga os fatos da mesma forma. Devemos sempre levar em conta as singularidades dos casos analisados. Entre os polêmicos temas explorados na obra de Snicket, o que mais se destaca é, sem dúvida, o sentimento de abandono e descaso sentido pelos órfãos. O trauma infantil decorrente de abusos, agressões e sentimentos de culpa também se inclui neste assunto, bem como as frustrações originadas pela criação de expectativas vãs e da falta de atenção e respeito por parte dos adultos. As crianças Baudelaire estão sempre criando expectativas, a respeito de outras pessoas e do próprio destino, que se mostram enganosas poucas páginas depois. “O Dr. Montgomery seria uma pessoa legal? (...) Melhor que o Conde Olaf, pelo menos?” (SNICKET, Vol. 2: 16). É grave o sentimento de abandono, pois compromete o desenvolvimento saudável das crianças, uma vez que toda criança demanda atenção e apoio. Em relação ao abandono dos Baudelaire, Snicket diz: “a maioria de seus amigos, desde a morte de seus pais, pararam de telefonar ou escrever para eles, não apareceram nem uma vez para ver como estavam, deixando-os muito solitários” (SNICKET, Vol. 1: 37). Outro trecho 100 que demonstra a enorme necessidade de apoio dos órfãos é quando o autor diz que “às vezes o simples fato de você dizer que detesta alguma coisa e ter alguém que concorda com você pode ajudá-lo a superar uma situação horrível” (SNICKET, Vol. 1: 35-36). "Bom dia, crianças", disse o Sr. Poe. "(...) encontrar um novo lar para vocês foi uma tarefa um tanto aborrecida. (...) Fiz telefonemas para uma porção de parentes distantes de vocês, mas todos eles ouviram falar das coisas terríveis que tendem a acontecer onde quer que vocês se encontrem. É compreensível, eles ficam desassossegados demais por causa do conde Olaf para concordar em tomar conta de vocês. 'Desassossegado', aliás, quer dizer 'nervoso'. Há mais uma..." Um dos três telefones em cima da mesa do Sr. Poe interrompeu-o com um toque estridente e feio. "Com licença", disse o banqueiro às crianças, e começou a falar ao telefone. "Aqui é Poe. OK. OK. OK. Foi o que eu pensei. OK. OK. Obrigado, Sr. Fagin." O Sr. Poe desligou o telefone e fez uma marca em um dos papéis sobre a sua escrivaninha. "Era um primo de vocês em décimo nono grau", disse o Sr. Poe, "e a minha última esperança. Achei que poderia persuadi-lo a ficar com vocês, só por uns poucos meses, mas ele recusou. Não posso culpá-lo. Receio que a reputação de vocês como encrenqueiros esteja arruinando até mesmo a reputação do meu banco.” (SNICKET, Vol. 7: 16-17) O descaso para com os Baudelaire não se trata apenas de uma falta de atenção ou afeto, uma vez que muitos dos adultos que deveriam ter um pouco mais de responsabilidade sobre suas vidas pouco parecem se importar, o que é notado quando Bruce diz: “Seja lá aonde quer que vocês sejam enviados” (SNICKET, Vol. 2: 174) após a morte do tio Montgomery (tutor dos Baudelaire no vol. 2), mas se trata também da própria recusa em dar ouvidos aos apelos das crianças, como o Sr. Poe, que não quer ouvir sua versão dos fatos envolvendo a morte de Montgomery (SNICKET, Vol. 2: 130131) e menosprezando, portanto, sua opinião. Os Baudelaire, já no terceiro volume, se decepcionam ao constatar que sua segurança não era uma prioridade para os adultos (SNICKET, Vol. 3: 136), após testemunharem o ato covarde de sua tia Josephine. Lidar com a morte de alguém também é complicado, sobretudo para uma criança. E Snicket explora este assunto: É uma coisa curiosa, a morte de um ente querido. Todos nós sabemos que nosso tempo neste mundo é limitado, e que eventualmente todos nós acabaremos embaixo de algum lençol para nunca mais despertar. E no entanto é sempre uma surpresa quando isso acontece com alguém que conhecemos. É como subir as escadas para o nosso quarto no escuro e pensar que há um degrau a mais do que de fato existe. Seu pé cai pelo ar e há um momento doentio de sombria surpresa, enquanto você tenta reajustar o modo como pensa nas coisas. (SNICKET, 2009: 117) Em situações mais desagradáveis, as crianças têm que lidar com o alcoolismo dos adultos e a agressão oriunda destes. “O Conde Olaf pegara uma garrafa de vinho 101 para se servir da bebida como café-da-manhã” (SNICKET, Vol.1: 89). Crianças em ambientes assim tendem a sentir culpa pelos problemas dos pais ou responsáveis, bem como o sentimento de culpa em relação à morte de seus genitores ou tutores, como o “peso” que sentem após o assassinato do tio Monty (SNICKET, Vol.2: 93-94). Por mais que saibam que não foram culpados diretamente pela morte, sentem culpa por sua impotência em evitar o crime. Quanto às agressões, podem ser citados os seguintes trechos: Em seguida, [Olaf] acertou o rosto de Klaus. O garoto caiu no chão (SNICKET, vol. 1: 54). Com um rápido movimento da perna de pau chutou Sunny para o outro extremo do barco (SNICKET, vol. 3: 163) O comportamento dissimulado é outra característica transformadora da personalidade dos Baudelaire. Violet explica aos irmãos sobre o “segredo do sucesso na espionagem” (SNICKET, Vol.2: 123-124) para mencionar vantagens de mentir e ser dissimulado. “Você é tão generosa em nos dar todas essas coisas”, disse Violet, porque era bem-educada, não acrescentou que aquelas coisas estavam bem longe do agrado deles. (SNICKET, Vol. 3: 25) Sunny, mesmo sendo um bebê, já consegue dissimular – fato que, pelo menos na ficção, é possível. Ao se enroscar na Víbora Incrivelmente Mortífera, Sunny grita para fingir estar em perigo. Diz Snicket: Quando conhecemos muito bem uma pessoa, como nossa avó ou a babá, na mesma hora sabemos dizer se elas são reais ou se são impostoras. Por isso, quando Sunny começou a gritar, Violet e Klaus perceberam de imediato que o grito era absolutamente falso. (SNICKET, Vol. 2: 137). Figura 28 - Ilustração de Brett Helquist (cap. 10, vol. 2) 102 7. TEMATIZAÇÃO DO LEITOR Esta pesquisa não procura de modo algum em teorizar a tematização do leitor, mas apenas fazê-la entendida. A tematização ocorre quando o leitor passa juntamente com a personagem pelas mesmas sensações, no mesmo momento. As ordens, as interdições, as alegrias, os medos. Não se trata de sensibilizar o leitor após a leitura, i.e., fazer com que ele sinta pena, mas sim fazer com que ele vivencie o sentimento da personagem em “tempo real” ao longo de sua leitura. Assim como o leitor, as personagens não sabem o que (ou como o fato) vai acontecer e o leitor também fica na mesma expectativa por uma questão de elaboração. Snicket, em suas interrupções, faz o leitor ficar com uma sensação de medo e continuar com ela, para depois desfazer essa sensação. Ele controla o leitor. Ele conversa com o leitor como se ele (o autor) fosse uma personagem conversando com outra (o leitor) fora da história. O que Snicket tanto repete não é simplesmente um esquema de situações, o que o autor provavelmente quer dizer é algo a respeito da situação de crianças órfãs e abandonadas que têm que sobreviver. Mas a formulação discursiva distancia esses esquemas dos esquemas comuns. O esquema existente está no nível da história dos Baudelaire. No nível da história, o esquema é massificante. Agora, o grande barato é que isso foi intencionalmente esquematizado para enganar o leitor, tematizando-o com o mesmo tédio pelo qual passam as personagens. Snicket utilizou os esquemas previsíveis da cultura de massa para criticar esse próprio tipo de organização narrativa, de produção textual ficcional. A tematização do leitor é uma experiência estética diferenciada da experiência pós-leitura. É uma problematização. Não é necessário ter terminado de ler a obra para ter tido a experiência que dela deriva. A experiência do leitor está no interior da obra, junto com a experiência das personagens. A personagem apenas age, quem constrói o horizonte de expectativa e os sentimentos é o leitor. É possível ganhar uma experiência de vida através da estética. Se a leitura for capaz de tematizar o leitor, ele vai ser capaz de sentir na pele as sensações da personagem. Por exemplo, no livro As Horas de Michael Cunningham, há um trecho em que a personagem Clarissa vê Richard, seu melhor amigo de toda a vida, que é soropositivo e encontra-se em estágio terminal, sentado na janela com a intenção de se 103 matar. A tematização é tão forte que, mesmo um leitor que nunca passou por esta experiência será capaz de vivenciar o drama de ver um amigo se matando, mesmo que isso nunca venha a acontecer na vida “real” do leitor. A experiência empírica também se adquire “por tabela”, i.e., é possível conhecer uma experiência ao ouvir alguém que passou pessoalmente por aquela experiência falando a respeito. O mesmo se dá com a leitura. Para mostrar exemplos de como isso acontece muito na literatura contemporânea (apesar de já ter ocorrido no realismo machadiano), escolhi citar trechos de João Ubaldo Ribeiro e Michael Cunningham, nos quais o leitor está recebendo aquilo que as personagens também estão recebendo (informação → expectativa → reação de sentimento). O primeiro trecho é o de Michael Cunningham, que foi mencionado acima: Ela chega para ajudar Richard a se aprontar para a festa, mas ele não responde às batidas na porta. Bate de novo, mais forte, depois rapidamente, com nervosismo, destranca-a com sua própria chave. O apartamento está inundado de luz. Da soleira, Clarissa sufoca uma exclamação de espanto. Todas as persianas estão erguidas, todas as janelas estão abertas. (...) Corre até o outro aposento e encontra Richard ainda de roupão, montado no parapeito da janela aberta, uma perna emaciada ainda dentro, a outra, invisível, pendurada no ar cinco andares acima do chão. “Richard”, ela diz, severa. “Desça daí.” “Está tão bonito lá fora. Que dia. (...) Eu tomei o Xanax e o Ritalin. Juntos eles funcionam que é uma maravilha. Me sinto ótimo. (...)” “Querido, por favor, ponha as pernas no chão. Você faz isso por mim?” “Acho que não vou conseguir ir à festa. Desculpe.” “Você não precisa ir. Você não precisa fazer nada.” “Que dia, este. Que dia mais lindo, lindo.” (...) [Mais três páginas de diálogo tematizam o leitor com toda a tensão possível] (Richard:) “Receio que eu não possa ir à festa.” “Por favor, eu lhe peço, não se preocupe com a festa. Nem pense na festa. Me dê sua mão.” “Você tem sido tão boa para mim, Mrs. Dalloway.” “Richard – ” “Eu amo você. Isso lhe soa banal?” “Não.” Richard sorri. Sacode a cabeça. Diz: “Acho que ninguém pode ter sido mais feliz do que nós fomos”. Inclina-se um pouco, escorrega delicadamente do parapeito e cai. Clarissa grita: “Não – ” 104 Ele parece tão seguro, tão sereno, que por um instante Clarissa imagina que não tenha acontecido nada. Chega à janela a tempo de ver Richard ainda no ar, o roupão esvoaçando, e ainda nesse momento parece que talvez não passe de um acidente pequeno, algo passível de reparação. Ela vê quando ele atinge o chão, cinco andares abaixo, vê quando ele se ajoelha no concreto, vê quando a cabeça bate, ouve o som que ela faz e, ainda assim, acredita, pelo menos por mais um instante, debruçada no parapeito, que ele vai se levantar outra vez, meio zonzo, quem sabe, sem fôlego, mas ainda ele mesmo, ainda inteiro, ainda capaz de falar. Ela chama seu nome, uma vez. O som sai em forma de pergunta, bem mais baixo do que pretendia. Ele jaz onde caiu, de cara para o chão, o roupão atirado sobre a cabeça, as pernas nuas expostas, brancas contra o concreto escuro. Ela sai correndo do quarto, atravessa a porta, que deixa aberta. Desce correndo as escadas. Pensa em pedir ajuda, mas não pede. O próprio ar parece ter mudado, ter se separado um pouco; como se a atmosfera fosse feita, de modo palpável, de substância e de seu oposto. (CUNNINGHAM, 1999: 155-159) João Ubaldo Ribeiro articula o discurso de seu narrador-personagem, de modo que ele se reporte diretamente ao leitor e o insulte, provocando a ira deste: Faz dois dias, parei de escrever este livro, que, aliás, me tem saído bem menos dificultoso do que eu imaginava antes, no que desmistifico mais um pouco a suposta possessão dos escritores pelas musas, ou a necessidade de aptidões especialíssimas para escrever um livro. Além disso, aprende-se com a prática (...). Não vou corrigir nada, até porque não está mal escrito. (...) (...) Sei que, irremediavelmente, cada um que ler estas páginas vai fazer uma ideia individual, diversa das alheias, embora talvez semelhante nas linhas gerais. Mas compete a mim manter a disciplina narrativa sob controle racional, procurando evitar tanto quanto possível interpretações equivocadas, irritantes e enervantes. Se você acha que posso estar me referindo a você, tem toda a razão, porque a maioria lê através de filtros a que se apega de forma demente e não vejo motivo para você ser exceção. Há muita gente, gente demais, que lê nas entrelinhas, um perfeito exercício de imbecilidade, (...) aqui não são oferecidas entrelinhas, à merda o entrelinhador, pode largar este livro e ir gastar seu tempo ruminando o bolo alimentar de sempre. Melhor do que ler textos diretos querendo ser esperto e vendo nele coisas indiretas. (...) E algum idiota, inclusive possivelmente você, ao menos segundo meus critérios estatísticos, poderá ficar pensando em denúncias e outras tolices semipanfletárias, em sua maior parte cretinas. (...) não vou deixar o que venha de você atingir-me, mas exasperação contra a burrice geral, o que me leva a reiterar que leia se quiser; se não quiser, vá pastar com as outras alimárias. (RIBEIRO, 2002: 179-182) Diz Jauss sobre os ensaios no campo da experiência estética: (...) encontram sua limitação necessária na competência do especialista em literatura. Ainda quando estes ensaios incluam testemunhos da história de outras artes e se apóiem nos resultados da história da filosofia e da história dos conceitos, de modo algum desmentem que o autor adquiriu sua experiência, assim como que sua reflexão hermenêutica se formou na práxis da interpretação literária. (JAUSS, 2001: 45) 105 Então, a questão da recepção não é uma vivência própria. Vive-se também a experiência do outro. Lemony Snicket, por exemplo, é leitor de Charles Baudelaire e passa a tematizar seus próprios leitores com a tematização de Baudelaire. A experiência estética é a experiência de quem leu, mesmo que essa “leitura” tenha sido por outras linguagens artísticas, como a leitura não-verbal de uma pintura ou a leitura sonora de uma música. (Stierle: “O sujeito da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como sujeitos isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como sujeitos ‘transubjetivos’.”). Snicket, tematizado por Baudelaire, vai trazer em sua escrita uma nova leitura de Baudelaire, que não é o Baudelaire dos poemas, mas sim o das tragédias, representado por um nome de família, nem que seja apenas uma parcela da biografia de Charles Baudelaire. Eu fui tematizado por Snicket e, por consequência, por Charles Baudelaire. Uma obra de arte perdura. E para entender como a posteridade a recebe, isto é, quando uma geração posterior à do autor tem acesso à obra, faço novamente uso de Jauss para explicar o que ocorre neste caso: Quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto, revelar-se-á o hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção ao propósito com que compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e na interpretação sucessivas, uma multiplicidade de significados que, de muito, ultrapassa o horizonte de sua origem. A relação entre poiesis e katharsis tanto pode se dirigir ao destinatário, que deve ser persuadido ou ensinado pela retórica do texto, quando remeter ao próprio produtor: o autor pode tematizar expressamente o “poetar do poetar”, como se a liberação d sua psique fosse um efeito da poiesis – cantando Il duol si disacerba (“com o canto, a dor se abranda”), como diz o famoso verso de Petrarca, verso em que a ficção extinguiu o hiato entre a emoção e a distância própria à escrita. (JAUSS, 2001: 81) De acordo com Jauss, a catarse liberta o expectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer no outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar. A distância estética não pode ser compreendida apenas como uma relação unilateral e solidária, apenas contemplativa e desinteressada quanto ao objeto “distanciado”. Na reação de prazer ante o objeto estético, realiza-se, ao invés, uma reciprocidade entre sujeito e objeto, em que “ganhamos interesse em nossa ausência de interesse”. Este interesse estético se explica de forma mais simples pelo fato de que o sujeito, enquanto utiliza sua liberdade de tomada de posição perante o objeto estético irreal, é capaz de gozar tanto o objeto, cada vez mais explorado por seu próprio prazer, quanto seu próprio eu, que, nesta atividade, se sente liberado de sua existência cotidiana. (JAUSS, 2001: 76) 106 Lemony Snicket consegue, ao longo de treze volumes, encadear uma série de sentimentos no leitor que abrange desde o tédio da repetição até a frustração pelo desenlace insatisfatório, e o faz com maestria, planejando a construção desta tematização em consonância com a narrativa que constitui seu tecido textual. Figura 29 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 2) Figura 30 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 9) 107 8. SUNNY E A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM Dos três irmãos Baudelaire, Sunny é a personagem mais intrigante e menos inverossímil da história. Entretanto, é a única que mostra alguma modificação de comportamento, pois nela ocorrem transformações. Por ser ainda um bebê, sua fala não é desenvolvida, mas esta evolução da linguagem vai ocorrer a partir da metade da série. Sunny é pura, a linguagem nasce nela, pois ela ainda não foi contaminada por outros sentidos pré-determinados. Semiologicamente, ela representa o grande desafio à expressão: seu esforço para comunicar-se, assemelha-se ao esforço do poeta, do artista que elabora sua linguagem, no sentido de surpreender, provocar o assombro, sendo na temática, a partir de um ponto de vista inusitado, ou na construção do discurso, a partir de associações originais de palavras, de recursos expressivos singulares. Sua fala apresenta incertezas e indecisões, podendo simbolizar a dificuldade de expressão do autor. “Eu simplesmente não entendo”, disse Klaus, o que não era algo que ele dissesse com muita freqüência. Violet concordou com a cabeça e depois disse alguma coisa que também ela não dizia com muita freqüência: “É um quebra-cabeça que não tenho certeza se somos capazes de resolver.” “Pietrisycamollaviadelrechiotemexity”, disse Sunny, o que era algo que ela só tinha dito uma vez antes daquela. Significava alguma coisa na linha de: “Devo admitir que não tenho a mais pálida idéia do que está acontecendo”, e na primeira vez em que a mais jovem dos Baudelaire dissera isso, ela acabara de ser trazida para casa do hospital onde nascera e estava olhando para os irmãos quando eles se debruçaram sobre o berço para saudá-la. (SNICKET, vol. 8: 68-69) Retomando a observação da psicanálise, o que mais chama a atenção no trabalho das duas psicanalistas para os objetivos desta pesquisa é a seguinte observação: “Certas crianças reservam para sua mãe uma linguagem ou uma série de sons especiais.” Segundo Anne Freud & Dorothy Burlinghan (1958), a criança adota uma espécie de grunhido para indicar que não gosta de algo e um grasnar para indicar o que gosta, de modo que apenas quem está familiarizado com ela – geralmente a mãe – consiga entender suas necessidades. Com Sunny não é diferente. Apesar do seu tatibitate habitual, que nunca é entendido pelos adultos, apenas seus irmãos – e o narrador – sabem exatamente o que ela quer dizer. Esta característica, além de curiosa, cria todo um sentido irônico, uma vez que, na narrativa, são de Sunny as idéias e comentários mais brilhantes – como no 108 trecho a seguir –, embora seus interlocutores não entendam mais do que grunhidos – Olaf chega a comparar sua fala à de um macaco no primeiro livro. Disse Klaus melancolicamente, “nem sequer sabemos o que o conde Olaf pretende fazer.” “Bem, vamos tentar tirar isso a limpo”, disse Violet, usando uma expressão que aqui significa “esmiuçar uma questão, discutindo-a e analisando-a até compreendê-la inteiramente”. “O conde Olaf, sob o falso nome de Stephano, veio para essa casa disfarçado e é evidente que está atrás da fortuna dos Baudelaire.” “E”, continuou Klaus, “uma vez que se apodere dela, planeja matar-nos.” “Tadu”, murmurou Sunny solenemente, com a provável intenção de significar algo como “Estamos metidos numa encrenca dos diabos.” (SNICKET, Vol. 2: 83) É a própria fala de Sunny que ajuda o autor a fazer referências simbólicas à cultura da tradição ocidental, ao referir-se a contos tradicionais infantis. Na segunda metade da série, por exemplo, quando Sunny está separada de seus irmãos por ter sido raptada pela gangue de Olaf, a caçula dos Baudelaire torna-se mão-de-obra escrava para seus malfeitores. Tão logo é encontrada pelos irmãos, que lhe perguntam como tem passado, ela – que a essa altura da série já possui um vocabulário mais lógico, apesar de não formar frases – resume tudo o que passou com uma única palavra: “Cinderela!”. No trecho a seguir, Violet e Quigley acabam de encontrar Sunny na montanha: "Arigatô”, disse Sunny, o que queria dizer alguma coisa parecida com: “Apreciamos a sua ajuda, Quigley”. “Foi você quem enviou um sinal para nós?”, perguntou ele. “Eu”, disse Sunny. “Lox” “O conde Olaf andou obrigando você a preparar a comida?”, perguntou Violet, perplexa. “Carmiga sopratudo”, disse Sunny. “Olaf a obrigou até a limpar as migalhas do carro”, traduziu Violet para Quigley. “Isso é ridículo!”, disse Quigley. “Cinderela”, disse Sunny. Ela queria dizer algo do gênero de: “Tive de fazer todas as tarefas domésticas e fui humilhada o tempo todo”, mas Violet não teve tempo de traduzir, pois a voz rascante do conde Olaf soou. “Onde está você, Bebelaire?”, perguntou ele, somando um apelido absurdo à sua lista de insultos. “Tenho tarefas para você.” As três crianças se entreolharam em pânico. “Escondesconde”, sussurrou Sunny, e nem foi preciso traduzir. (SNICKET, Vol. 10: 184) Cinderela, mais do que personagem da cultura oral popular anglo-saxã na Idade Média – e depois da cultura escrita, por ter sido imortalizada pelo texto dos irmãos Grimm –, faz parte do imaginário coletivo ocidental, devido à universalização dos contos de Grimm, e é um dos itens da cultura de massa. Por “Cinderela”, mesmo que 109 não seja pela boca de Sunny, entende-se o sentido de “trabalhos forçados e maus tratos por parte de um adulto”. Por que o nome da personagem clássica torna-se um símbolo de sua atitude, comportamento ou destino? Inconscientemente, cada leitor faz uma leitura semiológica ao ler o nome de Cinderela. Um nome próprio que adquire valor de símbolo, quando seu sentido corresponde às funções de um adjetivo. Apesar da dificuldade de comunicação com os adultos, e, pode-se dizer, de provocar um grau considerável de entropia no curso de sua mensagem, (uma vez que não foi prevista pelo narrador nenhuma chave decodificadora dos signos que emprega para elaborar seu discurso, e assim eliminando a chance de o leitor compreender suas intenções comunicativas), Sunny demonstra ter inteligência de níveis superiores aos de sua fala. Ela ainda não sabe pronunciar e nomear corretamente o que tem para dizer, mas tem de fato algo a dizer. Chomsky (CHOMSKY apud LUFT) diz que “Uma criança que adquire a língua (...) sabe evidentemente muito mais do que aquilo que ‘aprendeu’. O seu conhecimento da língua vai muito além dos dados lingüísticos primários que lhe foram apresentados” (CHOMSKY apud LUFT, 2006: 54). Para Luft “o ser humano nasce provido de uma gramática genérica”. É a tese do inatismo. É o que Dubois (DUBOIS apud LUFT) explica no seguinte trecho: “A linguagem repousa sobre uma estrutura inata, ativada pelo meio [social] num processo que é o da aquisição da linguagem. A linguagem aparece, com efeito, como aptidão própria da espécie humana” (DUBOIS apud LUFT, 2006: 52). Luft afirma também que “algumas expressões infantis são verdadeiras criações artísticas, com metáforas, sinestesias, imagens variadas – coisa de fazer inveja a calejados poetas”. Não seria a poesia dadaísta de certa forma inspirada nesta raiz lingüística, que é a fala dos bebês? Sobre o fato de Sunny aprender a pronunciar palavras próximas do nome correto, como carmiga (= migalhas do carro) no trecho acima, o teórico da linguagem continua explicando: Esse domínio restrito de palavras-nomes se comprova no estágio da ‘fala telegráfica’, no qual a criança se expressa e se comunica com essa classe de vocábulos, sem recorrer a elementos gramaticais de encadeamento frasal ou estruturação sintática. A criança simplesmente aponta o objeto e diz seu nome, sem construir frases (orações ou fragmentos de oração). (LUFT, p. 60) O autor menciona como exemplo seu próprio filho, que até aprender corretamente a pronunciar a palavra travesseiro, seguiu um processo no qual foi desmontando e reconstruindo a palavra até acertar: *sevelo → *tassevelo →*tavesselo → *travesseiro. 110 Portanto, existem exemplos de situações em que mesmo uma pessoa que sabe o uso correto da língua não sabe se comunicar. Sunny é, entre outras coisas, a metáfora que explica por que saber a língua não se confunde com saber se comunicar. "Quem irá tomar conta de nós?", disse Klaus, o olhar perdido no horizonte. "Ninguém", disse Violet. "Teremos de tomar conta de nós mesmos. Teremos de ser autosustentáveis." "Como a casa móvel auto-sustentável a ar quente", disse Klaus, "que pode viajar e sobreviver sozinha." "Como eu", disse Sunny e, de repente, pôs-se em pé. Violet e Klaus soltaram um gritinho abafado de surpresa quando a sua irmã bebê deu os seus primeiros passos cambaleantes, e depois foram andar bem perto ao lado dela, prontos para segurá-la se caísse. Mas ela não caiu. Sunny deu mais alguns passos auto-sustentados, e então os três Baudelaire ficaram em pé juntos, lançando longas sombras na direção do horizonte à luz moribunda do ocaso. (SNICKET, Vol. 7: 225-226) Figura 31 - Ilustração de Brett Helquist ao fim do livro 7 111 9. A ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA O filme Desventuras em Série foi dirigido por Brad Silberling e consiste na adaptação de um corte da obra correspondente aos três primeiros volumes, Mau começo, A sala dos répteis e O lago das sanguessugas. A direção de arte mostrou-se impecável na criação de ambientes fiéis ao universo proposto pelo texto literário. Os tons em cinza e sépia predominam tanto nos cenários e figurinos quanto na iluminação e na fotografia. Não é só o aspecto visual retratando as ilustrações de Helquist que cumpre a função de recontar a história dos Baudelaire, o roteiro também foi elaborado de acordo com a estética narrativa de Snicket. O filme, diversas vezes, é interrompido pelo narrador – Jude Law interpretando Lemony Snicket –, que sugere ao espectador que saia imediatamente da sala de cinema, sala de estar ou avião (!) em que este filme estiver sendo exibido. E sugere outro filme que, segundo ele, está em cartaz e é bem mais agradável: O menorzinho dos elfos. O papel de Jude Law, além de narrar a história, consiste em fortalecer o caráter maldito da identidade do escritor. O Lemony do filme datilografa suas estórias numa sala escura, secreta e com vista para um cemitério, tal qual o narrador dos 13 volumes. O rosto do ator em nenhum momento aparece claramente, está sempre na penumbra. Outro arranjo criativo feito no roteiro para abordar a comunicação de Sunny foi inserir legendas durante suas falas (que são falas de bebê mesmo, pronunciadas pelas gêmeas bebês que se revezam no papel da caçula dos Baudelaire). Diferentemente da obra literária, Sunny é uma personagem plana, e não esférica, uma vez que ela não sofre transformações (no filme ela já sabe andar desde o começo e sua fala não se desenvolve como nos livros). O papel de Conde Olaf coube ao ator Jim Carrey, que soube utilizar sua experiência com atuações em filmes de comédia para construir uma personalidade caricata (Carrey é especialista em fazer caretas) para Olaf. Os exageros do ator costroem um personagem mais desagradável e chato do que ele já era nos livros. Entretanto, suponho que esta era a intenção do diretor, por isso Carrey está no elenco. Outros grandes nomes da interpretação compõem o elenco do filme: Billy Connolly, Timothy Spall, Catherine O’Hara e Meryl Streep – chamando muita atenção no papel da paranóica tia Josephine. 112 Isto poderia prejudicar a construção das personagens, se levarmos em consideração o seguinte trecho de Paulo Emílio Salles Gomes: As indicações a respeito de personagens, que se encontram anotadas no papel ou na cabeça de um argumentista-roteirista-diretor, constituem apenas uma fase preliminar de trabalho. A personagem de ficção cinematográfica, por mais fortes que sejam suas raízes na realidade ou em ficções pré-existentes, só começa a viver quando encarnada numa pessoa, num ator. Chegados a este ponto, está prestes a revelar-se a profunda ambiguidade da personagem cinematográfica. Se a encarnação se processa através de uma pessoa, de um ator que nos é desconhecido, (...) ele fica sendo a personagem e não há maiores problemas. (GOMES: 1976, p. 114) Contudo, os atores cumprem muito bem seus papéis, trazendo, inclusive, uma riqueza maior para a cena com os improvisos e diálogos criados durante os ensaios. Há cenas que, de tão improvisadas, parecem reel gags, ou seja, os erros durante as filmagens, o que só tornou o filme mais divertido e autêntico. O material bônus do DVD inclui cenas de ensaios e maquiagem nas quais pode ser vista a contribuição de Jim Carrey para a versatilidade de Olaf e seus disfarces. Nestas cenas Jim aparece testando sotaques e posturas e criando falas improvisadas. A passagem de um volume do livro para o próximo se dá de maneira rápida e ágil. Poucas cenas foram criadas sem ter uma equivalência nos livros (como a cena em que Olaf prende as crianças num carro estacionado em cima da linha férrea e Violet tem de inventar um artefato para salvar a si e aos irmãos de serem atingidos pelo trem). A abertura do filme é uma enganação – mais um dos truques de Snicket – mas o narrador logo informa que aquele filme bonitinho e florido não é o que será exibido a seguir. Corta então para os Baudelaire na Praia do Sal recebendo do Sr. Poe a notícia da morte de seus pais. Daí em diante Olaf entra na história e os maus tratos começam, até que a cena do trem interrompe a sequência do livro 01 e o Sr. Poe logo leva os órfãos para a casa do tio Monty, que também não demora a ser morto. A passagem do livro 02 é muito dinâmica e ele chega ao fim depressa. A parte referente ao volume 03 também é contada depressa, tendo o maior clímax na cena em que a casa da tia Josephine cai aos pedaços por causa do furacão. Depois da morte da tia, o roteiro retoma a metade final do primeiro livro, que consiste na cena da peça/casamento envolvendo Violet e Olaf. O final do filme é, na verdade, o final do primeiro livro, e, assim como nos livros, o desenlace não é de todo satisfatório. O filme não consegue responder a todas as perguntas que surgem no espectador. 113 O mais importante desta adaptação é que com ela não se deturpou a diegese da obra de Snicket. Cada característica da narrativa do escritor está presente no decorrer das cenas. Figura 32 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto de Sunny Figura 33 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto de Violet, Olaf e Klaus 114 Figura 34 – Pôster norte-americano de divulgação do filme 115 10. CONCLUSÃO Há possibilidade de enganar-se hoje quem define se uma obra literária está direcionada para jovens ou para adultos. Corre um risco de não estar sendo rigoroso. Ou isto não precisa estar sendo encarado com rigor hoje? Na obra de Lemony Snicket há uma interpenetração do imaginário da criança, do adolescente e do adulto. Os esquemas do imaginário infantil são formados com base numa estrutura familiar convencional. Com isto, se a existência de uma madrasta é negativa ela se torna a “bruxa”. Lemony Snicket trabalha com esses elementos, agregando a eles a problematização e o deboche próprio do adolescente, além da ironia fina que atende ao leitor adulto. Geralmente, na maior parte das obras, há um predomínio de um desses elementos do imaginário (infantil, juvenil ou adulto), enquanto em Snicket eles se interpenetram em todos os capítulos: o jogo, que está mais presente na produção para crianças; a dúvida e o questionamento dessas questões já postas, sobre o maravilhoso, no qual a criança acredita, mas o jovem desconfia e quer desconstruir; e as duas coisas juntas sob uma perspectiva irônica e simbólica que é o adulto quem vai absorver. Para o adulto, tudo isto se torna simbólico, devido ao fato de seu repertório contemplar mais convenções, ou talvez até mesmo por causa do caráter dialógico da obra. O complexo entendimento disso está em um nível analítico. O engendramento do tecido textual pra se contar essas historias é complexo. Snicket assumiu os esquemas de mercado atuais próprios da divulgação de massa (divisão em 13 volumes, gancho de um livro para outro, ingredientes da história na contracapa), mas sua obra não pode ser considerada exclusivamente literatura de massa por seu caráter estético como arte. Portanto, trabalhou-se nesta monografia o potencial narrativo da obra e o valor artístico de sua elaboração. É possível afirmar que a forma de divulgação é para iludir o leitor desavisado, que só quer ler estórias. O leitor de Snicket não apenas “lê estórias”, pois sua narrativa não se trata apenas de uma história bem contada. É uma história elaborada com intenções de entretecer situações que povoam o imaginário do leitor de qualquer idade. Há prazer estético em sua leitura, e sobre esta forma de prazer, Hans Robert Jauss (2001) comenta sobre a teoria do prazer estético de Agostinho: [O trabalho de Agostinho] distingue entre o uso dos sentidos para o prazer e para a curiosidade: o primeiro refere-se ao belo, ao harmonioso, ao perfumado, ao gostoso, ao agradável de tocar, em suma, às sensações positivas dos cinco sentidos, o segundo é esclarecido também por seu 116 oposto, como pela fascinação por um cadáver mutilado ou ainda apenas pela lagartixa que caça moscas. (...) A curiosidade, que paradoxalmente pode-se deleitar ante fenômenos desagradáveis e até mesmo repugnantes, é vista e condenada por Agostinho como o avesso do deleite estético, pois “ela não ‘goza’ de seus objetos como tais, mas goza de si mesma, pelo poder de conhecimento confirmado por eles”. (JAUSS, 2001: 65) Quanto ao fato de a obra não possuir um desenlace previsível, já foi exposto e argumentado que a contemporaneidade não requer tantas explicações. Nesta primeira década do século XXI, o pensamento universal, de certo modo, é povoado mais pelas suposições do que pelas verdades absolutas, e o autor zomba do leitor com isso. Suposições são coisas perigosas de fazer e, como em todas as coisas perigosas de fazer — bombas, por exemplo, ou certas sobremesas complicadas —, basta cometer um pequeno engano para dar um problema dos diabos. Fazer suposições consiste simplesmente em acreditar que as coisas são desta ou daquela maneira, sem haver prova alguma ou prova suficiente de que a crença esteja correta, e você bem pode imaginar como isso é capaz de causar um problema dos diabos. Por exemplo: certa manhã você poderia acordar e supor que sua cama está no mesmo lugar em que sempre esteve, embora você não tivesse nenhuma prova real. Mas, quando saísse da cama, poderia descobrir que ela havia sido levada pelas águas e transportada para o mar, e imagine só o problema dos diabos em que estaria metido, tudo por causa de uma suposição incorreta. Dá para ver que é melhor não fazer muitas suposições, especialmente pela manhã. (SNICKET, Vol. 5: cap. 12) Não restam dúvidas, obviamente após o que foi discutido neste trabalho, sobre a riqueza de figuras de linguagem, principalmente a ironia, mesmo que esta, por diversas vezes, dê à obra um caráter non-sense. Se alguém é alérgico a alguma coisa, o melhor que tem a fazer é jamais colocar essa coisa na boca, especialmente se se tratar de gatos. (SNICKET, Vol. 3: 91) Roubar, não resta dúvida, é um crime, e é próprio de quem não tem nenhuma educação. Mas como a maioria das coisas que faz quem não tem nenhuma educação, é desculpável dependendo das circunstâncias. Roubar não é desculpável, por exemplo, se a pessoa está num museu, resolve que um determinado quadro ficaria melhor em sua casa e simplesmente leva o quadro para casa. Mas se a pessoa está morrendo de fome e não tem outro meio de conseguir dinheiro, é desculpável que ela leve o quadro para casa e o coma. (SNICKET, Vol. 3: 118-119) Com relação ao efeito produzido, e com base na teoria da recepção e do efeito, conclui-se que Lemony Snicket teve uma atitude totalmente intencional ao frustrar o leitor e deixá-lo com dúvidas e mistérios não resolvidos. Contudo, ele mesmo encerra sua obra afirmando que, na vida, é melhor não ficar sabendo de algumas coisas. Tal qual como a vida, de fato, é. A bebê parou e olhou para a parte de trás do barco, onde tinha sido afixada a placa com o nome. Ela não tinha como saber isso, é claro, mas a placa tinha sido pregada na popa do barco 117 por uma pessoa que estava exatamente no mesmo lugar onde ela estava agora — pelo menos, até onde minha pesquisa revelou. A criancinha estava em pé em um ponto na história de outra pessoa, durante um momento que era seu, porém ela não estava pensando nem na história distante no passado nem na sua própria, que se estendia futuro adentro como o mar aberto. Ela estava olhando para a placa, e sua testa estava franzida de concentração. Finalmente, ela pronunciou uma palavra. Os órfãos Baudelaire perderam o fôlego ao ouvi-la, mas não podiam dizer com certeza se ela estava lendo a palavra em voz alta ou apenas declarando o seu próprio nome, e certamente jamais ficariam sabendo. Talvez essa última palavra tenha sido o primeiro segredo da bebê, juntando-se aos segredos que os Baudelaire estavam guardando dela, e todos os outros segredos imersos no mundo. Talvez seja melhor não saber precisamente o que ela queria dizer com essa palavra, pois algumas coisas é melhor deixar no grande desconhecido. Algumas palavras, é claro, seria melhor deixar impronunciadas — mas não, acredito que não a palavra pronunciada pela minha sobrinha, uma palavra que aqui significa que a história acabou. Beatrice. (SNICKET, Vol. 13, Livro Último – Capítulo Catorze: 9-10) Figura 35 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 2, cap. 13) 118 Conclui-se, portanto, que as surpresas da arte literária infanto-juvenil são elaborações estéticas que se realizam por meio de um complexo padrão narrativo permeado por polifonias, referências culturais, recursos retóricos e linguísticos, além de incontáveis formas de associação de idéias e palavras que ativam o leitor em sua capacidade de construir imagens e de fazer correspondências de situações, de acordo com sua vivência e seu repertório geral. Desse modo, o prazer estético despertado pela arte literária, integra o desenvolvimento emocional, sensível e social do homem. A criança, o adolescente, o jovem, o adulto tecem, cada um deles, seu próprio texto, quando tomados pelo encanto de um bem elaborado texto literário, independentemente de esquemas previsíveis e direcionados a qualquer grande quantidade de público, salvo, obviamente, intenções estéticas dignas de se considerar exemplares por se constituírem, conforme referido anteriormente, referências culturais, polifonias, experimentações dialógicas. Figura 36 - Ilustração de Brett Helquist (vol. 13, cap. 12) 119 11. REFERÊNCIAS: 11.1. Bibliográficas ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. A indústria cultural. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. ANTONIO, Irati. Autoria e cultura na pós-modernidade. In: Revista Ciência da Informação, vol. 27, nº 2. Brasília: IBICT, maio/agosto de 1998. ARIÈS, Philippe e FLAKSMAN, Dora. 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