Brasil tenta reduzir dor de seus pacientes No início dos anos 90, o Brasil foi denunciado em foros internacionais por deixar pacientes sofrerem dores intensas e desnecessárias. Na semana passada, um relatório das Nações Unidas sobre o uso da morfina para o alívio da dor voltou a advertir os países em desenvolvimento por não cuidarem do sofrimento de seus doentes. O Brasil continuava entre eles. "Menos de 20% dos pacientes terminais e daqueles que sofrem com o câncer ou traumatismos, no Brasil, recebem tratamento adequado para o alívio da dor", diz Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e um dos membros da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes das Nações Unidas. Segundo o informe da ONU, das 400 toneladas anuais de morfina produzidas para fins analgésicos, 80% são consumidas por apenas dez países, quase todos europeus. Significa que a maioria dos pacientes graves, da grande maioria dos países em desenvolvimento, está vivendo ou morrendo com dores desnecessárias. No Brasil, apesar de ainda incluído entre aqueles que pouco fazem pela dor de seus pacientes, o quadro começa a mudar. De 1996 a 2001, a média de morfina importada foi de 1.100 quilos anuais. A estimativa para 2002 passou para 5.500 quilos. O salto se deve a uma série de medidas do Ministério da Saúde no sentido de facilitar o acesso à morfina e a seus derivados. Desde o ano passado, toda instituição de saúde que solicitar pode ter em sua farmácia três diferentes tipos de droga opiácea. O médico da instituição pode prescrever a morfina em receituário comum. Até junho, o Ministério da Saúde pretende autorizar todos os médicos a receitar opiáceos em seus talonários comuns, valendo-se de "selos" fornecidos pelos conselhos de medicina. Hoje, receitar drogas entorpecentes exige talonário amarelo controlado e o registro do médico na Secretaria de Estado da Saúde. Dos cerca de 200 mil médicos do Brasil, estima-se que menos de 10% solicitaram registro para prescrever a droga. Por outro lado, cursos patrocinados pela Associação Médica Brasileira, pelo Ministério da Saúde e por laboratórios vêm tentando diminuir o preconceito dos médicos com relação à morfina. As farmácias, por sua vez, evitam a venda da morfina por causa das exigências da Vigilância Sanitária, do pouco lucro e do medo de serem assaltadas por traficantes. Estima-se que menos de 5% das farmácias vendam a droga. Campos de papoula A morfina é um derivado extraído da papoula, a mesma planta da qual se extrai o ópio e a heroína. Enquanto a última é empregada e temida como droga ilegal com grande poder de dependência, a primeira é o mais potente analgésico que a medicina dispõe. No mesmo rol dos entorpecentes de uso médico, estão os opióides sintéticos e semisintéticos, todos feitos em laboratórios para o alívio da dor. O cultivo da papoula para uso médico é feito em países da Europa e da Ásia, sob o controle e a fiscalização da Junta de Entorpecentes das Nações Unidas. No informe deste ano, além de alertar para a falta de morfina nos países pobres, a ONU advertiu para o aumento da produção nos países produtores. Sem uma distribuição igual, a morfina em excesso poderia alimentar o tráfico. As quantidades de morfina são solicitadas por cada país. Até 2001, a cota pedida pelo Brasil oscilava em torno de 1.100 quilos. "Apesar das iniciativas em várias frentes, ainda não aconteceram grandes avanços", diz João Figueiró, do Grupo de Dor do HC, coordenador do Programa Nacional de Educação em Dor da AMB e assessor do grupo de dor do Ministério da Saúde. Para Elisaldo Carlini, os 1.100 quilos de morfina, transformados em doses diárias, seriam suficientes para tratar por um ano de 30 mil a 40 mil pacientes. "Em estimativas moderadas, o Brasil teria 500 mil pessoas que se beneficiariam dessas drogas", diz Figueiró. Segundo os especialistas, a razão para o baixo consumo está no temor de dependência da droga e na crença de que seu uso já seria o último recurso. "Não há nenhum motivo para se temer a dependência", diz Carlini. "A morte faz parte do ciclo final da vida e deve ser vivida com dignidade. O idoso, que já deu sua contribuição para a sociedade, merece morrer sem dores." Ministério quer um aumento de 20% no consumo. Em menos de dois anos, o Brasil está fazendo pelas vítimas da dor mais do que fez no século passado inteiro. Pelo menos no papel. Em julho de 2002, o Ministério da Saúde criou um Programa Nacional de Acesso Gratuito aos Opiáceos. Pelo programa, todas as unidades da rede pública, de postos de saúde a hospitais, poderão ter em suas farmácias três opíáceos: morfina, codeína e hidroxicodona. Qualquer médico da instituição pode prescrevê-los em receita comum. Em outro programa, ainda em teste, o ministério pretende até julho acabar com os talonários amarelos e o credenciamento exigido para os médicos que receitam entorpecentes. "Ainda estamos estudando a melhor forma", diz Silas Paulo Resende Gouveia, chefe de gabinete da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A tendência é adotar selos com código de barra, que seriam repassados aos conselhos de classe de médicos, farmacêuticos, dentistas e veterinários. Para prescrever um opiáceo, bastaria ao profissional colar esse selo no seu receituário comum. "As farmácias, por sua vez, enviariam essas receitas à Anvisa, que teria então um controle da prescrição e do uso dessas drogas em todo o país", diz Gouveia. As farmácias terão os controles reduzidos e a obrigatoriedade de ter o remédio em estoque. "Facilitando o acesso, o governo permitirá que menos pacientes sofram com dores. Mas não basta aumentar o acesso, tem que aumentar o consumo." Com essas medidas, o ministério espera aumentar em pelo menos 20% o uso da morfina no país. (AB) Especialistas fazem ressalvas a iniciativa. As iniciativas do Ministério da Saúde para facilitar o acesso às drogas opiáceas foram elogiadas pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Seus especialistas, no entanto, fazem ressalvas. Por exemplo, o Programa Nacional de Acesso Gratuito aos Opiáceos ainda se limita a algumas instituições. Os três opiáceos colocados à disposição restringem o tratamento. "Há pacientes que são alérgicos ou não respondem a determinadas drogas, outros necessitam de um rodízio delas", diz Sandra Caires Serrano, neurologista infantil e uma das responsáveis pela Central da Dor do Hospital do Câncer. "Achamos que o médico tem o direito de prescrever a droga que considera mais indicada para o seu paciente, assim como ocorre com os doentes de Aids." Para a médica, que desde os sete anos convive com a morte de familiares por câncer, os pacientes hoje estão informados de seu direito de não sentir dor e cobram isso da instituição e do Estado. O país dispõe de mais de 20 tipos de opiáceo, incluindo os de última geração. A oxicodona, de liberação controlada, por exemplo, tem apenas duas tomadas diárias e é bem tolerada. Mas não é oferecida pela rede pública e "seu custo ainda é um pouco elevado", diz o professor Manoel Jacobsen Teixeira, do Centro de Dor do Hospital das Clínicas. No geral, Teixeira avalia que mudanças favoráveis aos pacientes vêm ocorrendo no mundo todo. "Antes, não se dava muita atenção aos sintomas", diz. O médico pouco se importava se o paciente estava ou não sentindo dor. "Esse quadro vem mudando por conta das campanhas e dos cursos de complementação médica", diz. "Médios e grandes hospitais têm hoje grupos de dor." Vários laboratórios têm programas de informação voltados para os médicos, como o "Divulga Dor", que já atendeu cerca de 500 médicos em muitas cidades brasileiras. A ONG Aliviador, assim como a Associação Médica Brasileira e suas associadas em cada Estado, participam de programas de informação em parceria com o Ministério da Saúde. No próximo dia 22, a Associação Paulista de Medicina promove uma jornada científica batizada de "Dor: Como eu Trato". Em abril, a USP realiza seu congresso sobre o alívio da dor, com atenção especial para as novas drogas. Segundo Teixeira, no Brasil os opiáceos são mais usados para dores do câncer, quando o maior número de pacientes sofre com dores crônicas como fibromialgias e osteoartrose e doenças causadas por lesões no sistema nervoso. "Para esses pacientes, a resistência por parte dos médicos em receitar opiáceos é ainda maior", diz. (AB) Dores faziam estilista perder os sentidos. Por dez anos, a estilista Maria Lúcia Braga, 59, sentia dores tão fortes que desmaiava com frequência. "Doía da ponta dos pés à ponta dos cabelos." Só anos depois a causa foi diagnosticada como uma fibromialgia grave. Quando as dores chegavam ao abdômen, ela perdia os sentidos. Como morava próximo ao Hospital do Câncer, para onde era levada nesses casos, ela passou a ser tratada pela Central da Dor daquele hospital. Hoje, toma três medicamentos, um deles derivado da morfina. "A dor não desapareceu de todo, mas voltei a ter o prazer de fazer minhas coisas. Devo isso às médicas Sandra Caires e Ana Cecília Guedes, porque nem todos os médicos são sensíveis à dor. Alguns diziam que minha dor era imaginária." O estudante Lucas Lopes dos Santos Cintra, 15, está voltando para Itororó, no sul da Bahia, onde está matriculado no primeiro ano do ensino médio. "Estou animado para as aulas, só não vai dar para jogar bola, por enquanto." Há dois anos, Lucas foi operado de um tumor na perna, mas a família só soube do diagnóstico de câncer nove meses depois. Quando o Hospital do Câncer fez os exames, constatou que o menino sofria de sarcoma, um câncer do tipo vertebral, já com metástases. Desde novembro, ele está em tratamento no hospital com quimioterapia, à espera do melhor momento para uma cirurgia. "Era difícil para uma mãe ver um filho com tantas dores", diz a mãe, Wilma Lopes Cintra, 35. Tratado na Central de Dor do hospital, Lucas diz se sentir animado e bem disposto. "Com o remédio, a dor passa em 15 minutos e não sinto enjôo", diz. A família está voltando para Itororó com um estoque de remédios para a dor e quimioterapia via oral que ele receberá na própria cidade. "A metástase não progrediu", diz o pai, Carlos Leônidas Miranda Cintra, 40, comerciante e vereador em Itororó. "Agora, o Lucas está nas mãos da medicina e do Todo Poderoso". A dermatologista Alba Trindade, 50, conhece a dor como paciente e como médica. Há quatro anos, ela foi submetida a duas cirurgias de hérnia de disco, que, embora bem sucedidas, lhe deixaram com muitas dores em todo o lado direito do corpo. "Eram dores terríveis, que me impediam de qualquer atividade." A médica conheceu o Centro de Dor do Hospital das Clínicas por meio da fisiatra Lin Yeng. "Hoje me sinto muito bem. E estou convencida de que o tratamento da dor precisa ser multidisciplinar, com médicos, fisioterapeuta e terapeuta. A morfina é importante, mas precisa fazer parte de um conjunto de ações. A dor é complexa. Ela tira a realidade da vida."