GATTACA - A EXPERIÊNCIA GENÉTICA E O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA FLÁVIA GARCIA GUIDOTTI Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil [email protected] LUIZ CARLOS RIGO Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil [email protected] Introdução Este trabalho toma o filme Gattaca - experiência genética (1997) para refletir a respeito da relação entre o neoliberalismo e a biopolítica. A análise baseia-se na obra Nascimento da Biopolítica de Michel Foucault, em especial a aula ministrada por ele no Collège de France no dia 14 de março de 1979, na qual o professor Foucault versa sobre a relação entre a teoria do capital humano e suas implicações econômicas e genéticas. O avanço das pesquisas em engenharia genética e a possibilidade de desvendamento da seqüência do DNA humano têm provocado polêmicas. De um lado estão os entusiasmados com a possibilidade de cura de doenças metabólicas hereditárias, de origem genética; de outro os mais pessimistas, preocupados com a possível conseqüência deste conhecimento e suas implicações discriminatórias. O filme Gattaca, ao apresentar uma via pela qual a sociedade poderá descambar a partir dos conhecimentos desvendados pela engenharia genética, traz a tona esses questionamentos e possibilita que façamos uma reflexão a respeito dos limites e possibilidades da ciência e como ela pode ser utilizada para gerar novas formas de segregação social. Sobre a Biopolítica de Foucault Foucault inicia a obra Nascimento da biopolítica analisando o liberalismo, em especial sua faceta de racionalização do exercício do governo, e o tomando como instrumento para tecer uma crítica da governamentalidade anterior, baseada no poder do soberano, "que, desde o fim do século XV havia procurado na existência e no fortalecimento do Estado o fim capaz de justificar uma governamentalidade crescente e de regular seu desenvolvimento" (FOUCAULT, 2008, p. 432). A partir daí entra em cena uma forma mais "natural" de governar, o liberalismo, que segundo Foucault é o quadro geral da biopolítica, a razão é a autolimitação, ou, nas palavras de Senellart, vale a lógica de "governar menos, para ter eficiência máxima, em função da naturalidade dos fenômenos com que se tem de lidar" (SENELLART, 2008, p. 442). A reflexão liberal, para Foucault, parte da sociedade, que questiona a necessidade do governo "o que é que torna necessário que haja um governo e que finalidades deve ele perseguir, em relação a sociedade, para justificar sua existência" (FOUCAULT, 2008, p. 434). Foucault analisa o liberalismo em suas vertentes alemã e americana e o neoliberalismo através das escolas ordoliberalista alemã e anarcoliberalista americana. Para Foucault, no mundo contemporâneo o mercado é o responsável pela constituição da verdade e, assim, possui sua própria limitação interna. A partir dessa perspectiva são estabelecidas formas mais maleáveis e tênues de controle das pessoas e das multidões. Se o mercado é tomado como realidade, a economia política é a teoria pela qual Foucault move-se em Nascimento da Biopolítica. O professor salienta, [...] a economia política é uma espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes numa sociedade. A economia política, a FIEP BULLETIN - Volume 80 - Special Edition - ARTICLE I - 2010 (http://www.fiepbulletin.net) meu ver, é fundamentalmente o que possibilitou assegurar a autolimitação da razão governamental. (FOUCAULT, 2008, p. 19) Esta economia política, segundo Foucault formou-se em sintonia com a razão de Estado, com o objetivo de enriquecimento do Estado, mas aos poucos essa lógica vai mudando para uma nova razão governamental, a razão de Estado mínimo. Há, neste momento, o deslocamento do lugar de jurisdição para o lugar de veridição – o mercado aos poucos vai constituindo-se como um lugar de verdade para a prática governamental. O homem do pós-guerra é, para o professor Foucault, o homo oeconomicus, agente do mercado de trocas. Foucault estabelece uma relação entre o homo oeconomicus e a "teoria do capital humano" dizendo que, além de um agente do mercado de trocas "o homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo [...] sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda" (FOUCAULT, 2008, p. 311). Sendo um empreendedor de si mesmo, ele precisa aprimorar-se profissionalmente de forma contínua para poder competir no mercado. Depois dessa constatação, Foucault aponta a genética como atuante nesse terreno, salientado que a biogenética será, no futuro, uma forma que o homo oeconomucus terá de potencializar suas aptidões e desempenhos. Há aí um deslocamento da vida para o centro dos investimentos, uma capitalização da vida simples e de sua dimensão estética, é a ligação entre o neoliberalismo e o homo oeconomicus, num movimento em direção a combinação da economia e da genética. Sobre as implicações da genética, Foucault salienta, Ela possibilita, em particular, estabelecer para um indivíduo dado, qualquer que seja ele, as probabilidades de contrair este ou aquele tipo de doença, numa idade dada, num período dado da vida ou de uma maneira totalmente banal num momento qualquer da vida. Em outras palavras, um dos interesses atuais da aplicação da genética às populações humanas é possibilitar reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm ao longo da sua existência. (FOUCAULT, 2008, p. 313) Essa possibilidade de correr riscos os colocariam fora do mercado de trocas, desta forma, Foucault diz que é possível imaginarmos, que os bons equipamentos genéticos - isto é, [os] que poderão produzir indivíduos de baixo risco ou cujo grau de risco não será nocivo, nem para eles, nem para os seus, nem para a sociedade -, esses bons equipamentos genéticos vão se tornar certamente uma coisa rara, e na medida em que será uma coisa rara poderão perfeitamente [entrar], e será perfeitamente normal que entrem, em circuitos ou em cálculos econômicos, isto é, em opções alternativas. (FOUCAULT, 2008, p. 313) Percebe-se que Foucault fala em combinações genéticas, mas sempre citando o método tradicional de reprodução humana como forma de combinação de dois "bons equipamentos genéticos". As reflexões de Foucault ocorrem em momento em que este assunto está apenas começando a entrar em pauta, mas que ainda não haviam descobertas cientificas capazes de colocar o tema em um novo patamar de discussão. Frédéric Keck e Paul Rabinow, ao fazerem um exercício arqueológico e genealógico da genética a partir de Mendel, destacam que depois 1980, com a produção do ADN em série, "[...] em vez de 'gene ente que se tornou cada vez mais vago, os biologistas falam agora de ''genoma', pelo qual compreendem o conjunto do material molecular contido nos pares de cromossomos de um organismo particular, e transmitido de geração em geração" (KECK; RABINOW, 2008, p. 86). No momento em que transcorria o curso (1979), o professor Foucault não imaginava que a partir do ano de 1990 mais de cinco mil cientistas do mundo inteiro fariam um esforço coletivo em pesquisas voltadas prioritariamente para o estudo do genoma, e "em 2001, o Estado norte-americano, a fundação britânica Wellcome Trust e a empresa biotecnologia FIEP BULLETIN - Volume 80 - Special Edition - ARTICLE I - 2010 (http://www.fiepbulletin.net) Celera Genomics anunciavam a realização do primeiro mapa completo do genoma humano", (KECK; RABINOW, 2008, p. 88). A partir daí abre-se também as condições de possibilidades para que a reprodução humana seja geneticamente assistida e programada com mais eficácia. Essa possibilidade suscitou mais uma vez, uma série de novas questões éticas e políticas e possibilitou vislumbrar para um futuro não tão distante o que há pouco tempo seriam matérias exclusivas de filmes ou livros de ficção científica. A possibilidade cada vez mais próxima de convivermos com a invenção do humano programado geneticamente. Neste cenário marcado pelas novas descobertas cientificas e invenções genéticas, cabe refletirmos a respeito de determinadas questões éticas e políticas que gravitam em torno de temas transversais peculiares do século XXI como, por exemplo, as controvérsias que envolvem o tema da reprodução humana pautada pelo controle genético. Assim, a seguir, trazemos uma breve análise do filme Gattaca - Experiência Genética, objetivando problematizar algumas destas questões que, ao que parece, logo farão parte dos nossos mundos. 1 Sobre Gattaca - Experiência genética Gattaca - Experiência Genética é um filme americano, lançado em 1997, escrito e dirigido por Andrew Noccol, que também foi roteirista de O Show de Truman (1998). O filme passa-se no futuro, em uma sociedade onde a manipulação do código genético é uma prática usual. A sociedade de Gattaca é dividida em duas "classes": os Válidos, frutos da engenharia genética, que possuem genes perfeitos; e os Inválidos, frutos de reproduções naturais e, consequentemente, geneticamente imperfeitos. Gattaca narra a história de dois irmãos, um "válido", manipulado geneticamente, e outro "inválido", concebido pelo método natural, o protagonista da história. O ator Ethan Hawkw interpreta Vincent Freeman, o sujeito geneticamente imperfeito que sonha em ser astronauta, porém, devido aos seus "problemas" genéticos é condenado a tarefas degradantes. Com a ajuda de um médico Vincent assume a identidade genética de Jerome, um homem geneticamente perfeito, ex-atleta, que se torna alcoólatra depois que um acidente o torna paraplégico e dependente de uma cadeira de rodas. 1 O filme Gattaca - Experiência Genética foi trabalhado também por Alfredo Veiga-Neto no artigo "Usando Gattaca: ordens e lugares". A análise de Veiga-Netto centra-se na utilidade pedagógica do filme que é estudado através de dois eixos: a busca da ordem e da limpeza; e o lugar como espaço idealizado e abstrato. FIEP BULLETIN - Volume 80 - Special Edition - ARTICLE I - 2010 (http://www.fiepbulletin.net) Algumas considerações Gattaca se configura em um filme-ensaio sobre uma sociedade futurista, em que os sujeitos deixam de ser vigiados pela disciplina e passam a ser controlados por meio de uma programação genética. Em Gattaca o capital humano de cada indivíduo é representado por seu potencial genético, uma espécie de capital. Vigora nessa sociedade uma nova hierarquia social pautada pela estratificação e segregação genética. O filme destaca também como a genética atravessa inclusive as relações afetivas e amorosas. Aos se conhecerem, além da carícias corporais os jovens trocam também fios de cabelo, que funcionam como uma espécie de confissão de quem são eles, suas identidades genéticas. Se por um lado Gattaca destaca a perspectiva do controle e da segregação, por outro, no entanto, o filme também mostra o tempo todo que, por mais eficiente que a sociedade de controle genético possa parecer, nela também há movimentos de sabotagem, revoltas periféricas, reforçando a conhecida máxima foucaultiana de que onde há poder também há resistência. Mas, em Gattaca a resistência não aparece na tradicional forma de movimentos coletivos organizados. Sutil e clandestina ela emerge muito mais do inconformismo e da das insubordinações que alguns sujeitos ousam sustentar diante do sistema instituído. Essas insubordinações acompanham o personagem Vincent Freeman e também os cúmplices que a ele somam-se, produzindo rachaduras no sistema instituído. Assim, em Gattaca a resistência acontece através daquilo que Deleuze chamou de "Linhas de fuga". Segundo Peter Pál Pelbart (2003, p. 25), isso significa que diante do poder que se apodera da vida, a resistência mais eficiente está na própria "potência da vida", nas novas formas de subjetividades que emergem no contexto contemporâneo. FIEP BULLETIN - Volume 80 - Special Edition - ARTICLE I - 2010 (http://www.fiepbulletin.net) Referências FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção Tópicos). KECK, Frédéric; RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: COURTINE, Jean-Jacques (org.). História do Corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 83-105 PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. SENELLART, Michel. Situação do curso. In: FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção Tópicos). p. 441-446. VEIGA-NETO, Alfredo. Usando Gattaca: ordens e lugares. In: TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro; LOPES, José de Sousa Miguel. (Orgs.). A escola vai ao cinema. 2. ed. BElo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 73-90. Autor principal: Flávia Garcia Guidotti Rua Gonçalves Chaves, 3063/503A Pelotas,RS, BRasil CEP 96015-560 Telefone: (53) 32722463 E-mail: [email protected] FIEP BULLETIN - Volume 80 - Special Edition - ARTICLE I - 2010 (http://www.fiepbulletin.net)