Trabalho - Sintese Eventos

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.
GT 16: Hospitais e instituições de saúde: Um espaço inspirador para as
pesquisas em Ciências Sociais
Corpo, gênero, "caminho espiritual" e charlatanismo. Notas
metodológicas sobre um campo amazônico
Ana Gretel Echazú Böschemeier
Universidade de Brasília
[email protected]
Corpo, gênero, "caminho espiritual" e charlatanismo. Notas
metodológicas sobre um campo amazônico
Ana Gretel Echazú Böschemeier
Universidade de Brasília
[email protected]
Proposta
No presente trabalho, gostaria de realizar uma reflexão sobre as implicações
de ser mulher e trabalhar em contextos de pesquisa que envolvem a
experiência com psicoativos, e o farei me focando no contexto do chamanismo
que se pratica em cidades da Amazônia peruana. Tal chamanismo é centrado
no diálogo com “plantas maestras” ou “plantas sagradas”, dentre as quais se
conta, de maneira privilegiada, a ayahuasca. Nesse trabalho, me focarei nas
questões de gênero em primeiro lugar, sendo a particularidade da experiência
com psicoativos na pesquisa participativa uma questão que precisa de
discussão e maior articulação com as questões que pretendo colocar aqui1.
Para descrever alguns aspectos relativos a gênero do cenário onde se inscreve
a presente discussão, trarei alguns elementos do meu próprio campo
exploratório de pesquisa de início de 2012 na Amazônia peruana com
curanderos que realizam cerimônias com ayahuasca e visitantes que
participam delas. Finalmente, farei uma reflexão propondo alguns alinhamentos
1
A experiência com psicoativos em contexto chamánico se apresenta em si como um espaço
polimorfo onde múltiplas concepções sobre gênero, corpo e pessoa se debruçam de acordo
com o que elas significam e realizam em relação com os sujeitos envolvidos. Por sua vez,
arrisco que a específica pesquisa participativa com psicoativos revela aspectos da experiência
antropológica que foram pouco problematizados ao longo da história da nossa disciplina. Tais
detalhes podem trazer para o debate questões não só metodológicas, mas também teóricas
caras à disciplina. Poderia citar: critérios de distinção/indistinção entre diferentes “realidades”, a
constituição da pessoa e a individualidade do corpo, a relatividade do self e os conflitos entre
diferentes tipos de intelegibilidade, dentre os quais pode se incluir a racionalidade científica.
Porém, deixaremos as especificidades desse tipo de questões para outra aproximação.
para uma necessária discussão sobre gênero e pesquisa com experiências
chamánicas2 e/ou que envolvem psicoativos em antropologia.
Etnografia em centros ayahuasqueiros
Estive na Amazônia peruana durante o início do ano 2012. Foi um trabalho de
campo curto, embora intenso. Dessa experiência trouxe uma série de
perguntas que desfizeram as próprias hipóteses com as quais parti para campo
(Echazú, 2012a, 2012b), e abriram novos sentidos para continuar indagando a
partir de buscas bibliográficas e experiências etnográficas. Uma das questões
que mais ricas, ambíguas e conflitantes se apresentaram em campo é a
referente à sexualidade, o corpo e o gênero. A princípio, ela se apresenta como
uma reflexão metodológica, mas ela também tem implicações teóricas e
inclusive epistemológicas.
Começarei pela vivência e meu posicionamento dentro dela, pois confio em
que a descrição-interpretação detida de determinados momentos que vivenciei
em campo podem contribuir de maneira efetiva para apresentar o problema
que aqui me concerne. Diversas dúvidas enquanto a escrita se me
apresentaram ao longo do processo de construção desse texto. Escolhas e
decisões foram tomadas, e tentarei explicitá-las aqui. Em primeiro lugar, quero
dizer que enfatizarei um uso o mais vago possível das referências aos centros
ayahuasqueiros nos quais trabalhei. O motivo dessa escolha é que salientarei
aspectos que podem envolver questões problemáticas referentes às pessoas e
ao trabalho que lá desenvolvem. Em razão do dilema entre “deixar pra trás”
questões problemáticas ou de lhes dar forma ainda quando elas pudessem
resultar ofensivas, tento aqui uma espécie de “caminho do meio”: colocar a
2
Como chamanismo entendo a diversidade de sujeitos e práticas extáticas vinculadas com
diversas formas de intermediação com mundos não ordinários. A discussão sobre a pertinência
e abrangência da categoria “chamanismo” não será realizada aqui. A tais efeitos, sugiro a
leitura de Perrin (1997), Martínez González (2009) e Sidky (2010). Para o presente trabalho,
me baseio, junto com Sidky (2010), na noção de que não existem critérios definitivos para
definir, de forma externa, a existência ou não de “autênticos” chamanismos. Como proposta
analítica, sustentarei o tratamento da questão a partir da sua matriz etnográfica, relevando a
freqüente construção nativa do termo “chamã” por diferentes atores sociais (chamãs de origem
peruana, visitantes estrangeiros de diferentes origens, e também peruanos) no contexto
específico da terapêutica ayahuasqueira na Amazônia do Peru.
minha reflexão nos termos mais genéricos possíveis, na medida em que a
necessária localização das vozes etnográficas me permitisse fazê-lo.
Ainda quando genericamente, torna-se imprescindível localizar o espaço em
questão. Na atualidade, há nas principais cidades da selva peruana (Iquitos,
Madre de Dios, Tarapoto, Pucallpa, Moyobamba) dezenas de chamãs,
curanderos ou vegetalistas3 (são todos termos de uso local) que possuem seus
próprios centros. Ali, eles desenvolvem suas atividades de forma continuada:
dietas, purgas e ceremonias con ayahuasca. Essas casas muitas vezes contam
com uma complexa organização da força laboral: nesses casos, ela envolve a
colaboração estável dos chamãs com outros profissionais, como médicos/as,
psicólogos/as, enfermeiros/as e outro tipo de terapeutas (como professores/as
de yoga ou biodanza) e conta com pessoal administrativo, a partir de relações
de trabalho mediadas por acordos salariais formais. Os centros realizam as
ceremonias con ayahuasca periodicamente e de forma mais ou menos fixa, isto
é, uma vez ou duas vezes na semana. Eles comercializam esse serviço: o
preço das sessões varia enormemente, e vai entre 5 e 50 dólares. No que faz
às práticas terapêuticas, uma gramática comum que é própria da medicina
amazônica (tanto indígena quanto mestiça) se mantém: dietas, purgas e
ceremonias de ayahuasca são três procedimentos medulares e fortemente
relacionadas entre si, que se praticam de forma corriqueira em todos os
espaços mencionados. Todas três estão fortemente relacionadas com a noção
de limpeza, em todos os niveles. De acordo com o que tenho observado nos
centros visitados, se considera que esses níveis são três: físico, mental (ou
psicológico) e espiritual. As purgas e ceremonias de ayahuasca se efetuam de
forma consecutiva (primeiro a purga com uma ou várias plantas maestras4,
depois a toma da ayahuasca, considerada por muitos a “purga entre purgas”).
A dieta, que é o tratamento mais longo em termos de tempo, se pratica com
menos freqüência, mas é considerada fundamental na cura de desordens mais
enraizadas, assim como é medular no próprio processo de formação do
3
Apesar de escutar com freqüência que há algumas, não cheguei a conhecer chamãs
mulheres. Dessa maneira, todas as referências que aqui se farão são relativas a chamãs
homens.
4
São chamadas dessa maneira o conjunto de plantas “que ensinam” com as quais trabalham
os chamãs. Segundo as fontes, as plantas utilizadas por eles são ao redor de 90 espécies
pertencentes a mais de 38 famílias (Riba, 2003).
curandero. No que refere à modalidade de cada uma dessas práticas e da sua
combinação para os pacientes⁄visitantes, cada curandero ou centro terapêutico
realiza sua própria síntese.
Outras terapêuticas que coadjuvam nesses três tratamentos principais são:
banhos de vapor, banhos de florecimiento, banhos de asiento (onde a pessoa
fica sentada sobre uma água preparada com determinados vegetais), preparos
cicatrizantes feitos com o interior de uma madeira vegetal chamada “sangre de
grado” para curar as feridas, massagens corporais com a finalidade de
desbloquear regiões obstruídas ou acalmar as dores, banhos quentes com
fricção de plantas no corpo, uso de resinas como emplastos (para reacomodar
os ossos ou extrair o mal dos corpos), sopladas com tabaco, chupadas no
corpo (para extrair o mal) e finalmente observei que muitas vezes acompanha o
trabalho curanderil uma complexa listagem de bebidas afrodisíacas dos mais
curiosos nomes, como RC ou Rompe Calzón (Quebra Cueca), Siete Veces Sin
Sacar (Sete Vezes Sem Tirar), Levántate Lázaro, Achuni Ullo (feito com
aguardente de cana e o pênis de um animal chamado Achuni) etc5.
Focalizando a experiência do corpo em campo: interdições, excessos e
“corações”
É a respeito dessas ultimas, as bebidas afrodisíacas, que quero introduzir um
fator que me pareceu diferenciador entre os próprios centros ayahuasqueiros,
não só os visitados, mas também aqueles divulgados pela imprensa local. É
preciso destacar que meu trabalho de campo se centrou em centros que,
segundo fui descobrindo, estavam bastante institucionalizados, no sentido em
que contavam com um diálogo forte com a biomedicina, por uma parte, e a
também com a cultura da new age, pela outra. Os chamãs e pessoal de apoio
de, ao menos, dois deles faziam referência explícita à não adesão a práticas
mágicas ou divinatórias, como preparos afrodisíacos ou jogada de cartas de
5
Essas informações me foram fornecidas por dois irmãos que conheci no vôo Lima-Santiago,
na minha volta do campo, e me ajudaram a sistematizar sentidos que tinham passado
desapercebidos para mim a partir de anúncios de curandeiros na imprensa local e de
conversas fragmentárias com pessoas do lugar.
baralho. Porém, em jornais das cidades tenho visto freqüentes referências a
esse tipo de práticas vinculadas também a curandeirismo, que pelo visto são
amplamente utilizadas no meio local, porém afastadas dos interesses dos
centros mais institucionalizados –os que, coincidentemente, gozam em maiores
proporções de uma freguesia de “visitantes” estrangeiros/as6. Tais práticas
locais, vinculadas à bruxaria e trabalhos afetivo-sexuais em relação com a
ayahuasca permanecem como um espaço bastante interessante para tecer a
análise em torno de concepções locais de corpo, gênero e a relação com
plantas, animais e forças da natureza dos grupos sociais envolvidos. Mas isso
permanece como uma intuição, pois não tenho tido acesso a esses centros
durante a minha visita.
Examinarei a minha experiência em três centros ayahuasqueiros a respeito
dessas questões. Nos centros efetivamente visitados, me pareceu que as
questões relativas à sexualidade eram colocadas sempre do lado da interdição.
Assim, se enfatizava de forma explicita e repetidas vezes a importância de uma
conduta sexual vinculada à abstinência por parte do curandero, e também a
abstinência sexual daqueles/as que participem em dietas ou purgas, com a
finalidade de manter uma espécie de fronteira do próprio corpo frente a
relações que ensucian. Isso, junto com a abstinência de determinadas comidas
como frituras e carne de porco, assim como o uso de perfumes e a proibição de
falar em determinados momentos. Tudo isso faz parte do modelo de tratamento
de afeições baseado na limpieza física, psíquica e espiritual que se apresenta,
nos espaços visitados, como “tradicionalmente amazônico”. Para as mulheres,
as restrições são maiores, já que quando estão menstruadas são impedidas de
realizar dietas ou ceremonias con ayahuasca, e ainda de conviver com as
pessoas que participam dessas atividades. Em um dos centros que visitei, as
6
Seguem alguns exemplos de jornais locais: “Brujo macumbero. Extermino tu enemigo y rival
de amor. Absoluta discreción” (Jornal Trone, 13/01/2012;Ano 9 Ed. 3735; p. 2). “Huaringuero.
Huancabambino. Curandero espiritista. Ojo yo soy el único registrado por INDECOMI. Nivel
nacional e internacional” (ídem, p. 10). “Lily. Centro Esotérico Naturista. Lecturas del tarot,
rituales y baños de florecimiento para el amor, dinero y salud. Terapia de regresiones” (Jornal
Hoy, 15/01/2012; Ed. 1542; p. 5). “Amarres, rituales y pactos para el amor. Baruck, poseedor
del Gran Libro de la Muerte para acabar com todos tus enemigos” (Jornal Ahora, 17/01/2012;
Ano XVI Ed. 5099; p. 12).
próprias terapeutas mulheres são orientadas para não ir a trabalhar durante os
dias que estão menstruadas.
Com o passar dos dias, observei que as restrições de gênero iam além de
simples regras enunciadas nas falas de chamãs, terapeutas e administradores.
Em um dos centros, que chamarei de Centro 1, se oferece a possibilidade de
internação de pessoas que se reconhecem como “viciadas em drogas”. Porém,
nele não se permite a internação de mulheres. Durante os nove meses que os
pacientes homens permanecem ali dentro, lhes é proibido ter intercurso sexual
algum. Mas porque se optou por tratar homens, e não mulheres? “Eran
incompatibles con los hombres”, me comentou um psicoterapeuta do centro.
Perante a minha surpresa, continuou: “Tuvimos problemas. Eran histéricas,
problemáticas y difíciles de controlar. Hubo casos de mujeres que tuvieron
relaciones con hombres aquí dentro del centro, eso interrumpe todo el
tratamiento”. Perante a pergunta de por que se escolheu continuar trabalhando
com homens e não com mulheres, um jovem que é da localidade e que já foi
paciente internado ali enunciou a possibilidade de serem mais homens do que
mulheres os que estatisticamente precisassem tratamento para “sair das
drogas”7. Também circulava outra hipótese, centrada nos chamãs, e não nos
pacientes. Um dos pacientes lá internados, de nacionalidade argentina, me
disse que tal vez, devido a que os chamãs são sobretudo homens, o atual seria
o modelo mais “compatível” para todos, pois estaria baseado em homens
tratando homens. Uma maior afinidade genérica garantiria uma maior eficiência
à cura? Por sua vez, dois terapeutas desse centro (um médico e um psicólogo,
os doishomens –não tive a possibilidade de conversar com as duas únicas
mulheres, que permaneceram menos acessíveis) ofereceram uma série de
limitações a meu trabalho de campo. Eu, como “mujer-joven” (e eu agregaria
“blanca”) devia ir com roupas que não fossem “provocativas”, pois os pacientes
lá internados fazia tempo que “no han visto mujer”, encontrando-se em
condições de abstinência sexual faz meses. No dizer desses terapeutas,
7
A esse respeito, a psicóloga de outro centro, o Centro 2, ao falar da não internação de
mulheres no Centro 1, reforçou essa noção. Ela me disse: “probablemente no haya tantas
mujeres en el tema de las drogas porque ellas están preocupadas con otras cosas, como la
maternidad”. De acordo com essa fala, as mulheres é que teriam maior senso de
“responsabilidade” de acordo com as suas próprias condições de gênero.
também estavam tomando plantas maestras que podiam ter efeito afrodisíaco e
piorar a situação.
No Centro 2 fomos eu e a nova amiga que conheci na viagem8 para “conocer
algo del trabajo” que lá estava sendo feito. A nossa intenção era comparar
outros centros com o Centro 1, amplamente reconhecido no nível regional.
Tivemos a oportunidade de encontrar o chamã que organiza o centro e seu
único integrante visível, pois ele não trabalha no modelo conjunto de chamãs e
psicoterapeutas, como nos outros dois centros que aqui analisamos (1 e 3). Ele
nos convidou para conversar no interior do seu escritório. Ele era um homem
de uns cinqüenta anos, com traços indígenas, vestia jaleco branco e, uma vez
que nos convidou a nos sentarmos, se sentou por trás de uma escrivaninha
forrada com fotos e objetos dos mais diversos, entre os quais se contava um
imenso caracol petrificado, canetas, papéis e estatuetas de aparência indígena.
Quero transcrever aqui uma parte da entrevista que gravei com a sua
anuência:
Yo te digo lo que sé, lo que he comprobado, lo que vivo! Y lo que vivo chamánicamente,
cierto? (…) yo nací curandero, en realidad, porque mi madre fue… chamana!
Descendiente de una tribu de los (…), que está al norte del país… y luego después
increíble, pero a mí me jalaba eso! Entré a la universidad de Trujillo, estudié filosofía, me
fui a Lima, estudié pedagogía, filosofía, antropología y todas las “gías”! (…) [en Lima] me
doctoré y allí comienzan los cuarenta y tantos años de mi vida chamánica. Pero mi
madre, descendiente de esta tribu, me enseñó desde niño a manejar algunas plantas,
pero como ayudante! “hijito, tráeme tal plantita…” “tal plantita aquí, la plantita ésta”… Y
yo escuchaba cómo les enseñaba a los pacientes a preparar! Y eso me encantaba!
Cómo es eso de sanar problema de estómago, de intestino, de faringe etc…yo decía, es
maravilloso! Entonces vine acá, y aquí fue donde encontré verdaderamente mi camino,
no? (…) lo que yo he tenido que ir atrás de técnicas novedosas de innovación científica
en la selva! Por eso es que le digo que mi técnica es investigar, pero probando las
cosas! Vacunándome contra víboras con veneno de víboras, y después ir probando las
medicinas que les estoy dando a mis pacientes para ver si funcionan en mi organismo
(…) yo no estoy enfermo, pero yo lo siento! (…) He tenido sesenta maestros en las tribus
amazónicas y también maestros en la ciudad de Iquitos que procedían de estas tribus,
me iniciaron y me condujeron, y luego de diez años yo era un maestro chamán! Diez
años de aprendizaje! (...) mire esta foto, es increíble! Es um grupo de rusos! Él es
psiquiatra, él es neurólogo, él es doctor en medicina… (…) en otros lugares soy
muchísimo más conocido! Miren [muestra más fotos] (…) mide un metro ochenta… ahí
está con su peso ideal, pesaba ciento treinta quilos! Era un chancho! Con el pelo largo,
la barba crecida, una desgracia! Y luego trajo un tumor en el estómago más grande que
esto! [señala un caracol petrificado] Y la camisa… se le podía tocar el tumor por fuera! Y
luego ustedes lo ven ahí, sin tumor, sin nada…[sin intervención quirúrgica?] no, no…
absolutamente… (…) como ustedes comprenderán, porque estamos hablando entre
8
Ela é uma antropóloga européia, branca e com menos de trinta anos. Ela estava
desenvolvendo sua pesquisa centrada nos usos das “plantas maestras” por curandeiros
indígenas e mestiços.
antropólogos…son canciones curativas! Así como la aromaterapia, la musicoterapia…
ahí entran los ícaros! Hay que darles sones… yo toco los tambores! Toco los
instrumentos… y la ceremonia… por eso yo les dije, siquiera hagan una ceremonia de
manera que la entrevista no sea tan fría! Cosa que la digan ustedes, pero sintiendo! Una
cosa es como yo hago ahorita bla bla bla bla pues, pero, y ya tomaste? “No, nunca he
tomado, pero me han dicho!”. Ah, eres igual que ese señor que dice, pero no hace!
Porque el que no sabe no puede! (…) el problemita del stress, es un juego para mí! Una
ceremonia de ayahuasca, y no hay stress, no hay nada! (…) Decisión! La decisión se
toma acá! [señala su cabeza] Algunos creen que se toma acá [apunta al corazón] no no
no, el corazón no piensa, ni siente, ni nada! Cuando a ustedes les diga un varón “yo te
quiero con todo mi corazón”, mándenlo a la mierda! No señor, quiéreme con tu cabeza,
no con tu corazón… es como si me estuvieras queriendo con tus… pies. Hay que ser
correctos. O sea que hay gente que malinterpreta! Y no solamente malinterpreta, sino
que hace quedar mal al chamanismo. (…) Mire, tenemos una escuela de chamanismo
amazónico, compuesta por cuarenta y tres profesionales. Y es lamentable decirlo, pero
hay que decirlo porque es la verdad… todos ellos son extranjeros! (…) Tuve la
posibilidad de hacer ceremonias en Barcelona, en Islas Baleares, en Madrid, en Dakar o
sea en África ya…(…) yo tengo mucha familia en el mundo. Soy millonario! De hermanos
y hermanas...
A partir dessa narrativa, um tanto desordenada e apressada, podemos inferir
que existe uma relação desse chamã com saberes da biomedicina e da cultura
new age, embora não possamos saber detalhadamente como elas são de fato.
Vemos traços desses dois referenciais “ocidentais” nas concepções do corpo e
de cura que se exaltam. E, nesse marco de relações com Ocidente, vemos que
aparecem as relações terapêuticas e comerciais entre locais e estrangeiros,
assim como se enunciam certas redes informais dele como chamã que viaja no
mundo, especialmente aquele compreendido como “civilizado”. Há tantas
pontas a partir das quais poderíamos começar a tecer questões significativas!
Porém, quero propor aqui o resgate do clima da entrevista, coisa que não é
diretamente visível a partir da leitura do texto, mas que me parece é possível
intuir, pela parte do/a leitor/a, talvez no entusiasmo exagerado, nos longos
trechos, na exposição aberta dos mais diversos temas. Dessa maneira, a
biografia
pessoal
dele
se
misturava
com
os
conselhos
relativos
a
relacionamentos que nos eram dirigidos. Em um clima cada vez mais ambíguo
e desconfortável para nós, pedimos para tirar uma foto. Ele colocou um
aparelho de auscultar e tirou duas fotos conosco como se fosse um doutor,
colocando-o no meu peito. Enquanto pretendia nos auscultar, afirmava ser o
“doctor corazón”. Eu estava visivelmente incomodada, mas não falei nada e até
participei, mesmo que a desgosto, da tal performance. Por outra parte, o
convite repetitivo para tomar ayahuasca, que eu percebi como clara pressão
para participarmos, junto com a provocação de que “quem não prova, não
sabe”, acabaram contornando o clima tenso da entrevista. Tempo depois, todas
essas emoções que apareceram ambiguamente me pareceram sintomas de
dos conflitos que surgiram da tensão entre pretender obter informação do
chamã e o risco de fazê-lo contra as minhas próprias atitudes éticas de ser-nomundo.
No Centro 3 o primeiro encontro com o chamã, um homem de uns quarenta
anos, e a psicóloga, uma mulher de uns trinta e cinco nos sofás da recepção,
foi agradável. Fomos, de novo, com a nova amiga antropóloga, com quem
sentia que podia fazer mais à vontade um trabalho no qual solitariamente talvez
teria me sentido mais vulnerável. Ela pensava da mesma maneira. Além de nos
acompanharmos,
compartilhávamos
insights
sobre
nossos
respectivos
“campos” (constituídos tanto pelos espaços que visitávamos quanto pelo olhar
diferente de cada uma a respeito deles) e caminhadas por feiras de artesanato,
bares e restaurantes vegetarianos.
O Centro 3 estava localizado na periferia da cidade, tinha uma “mesa de areia”
para fazer desenhos à maneira da terapêutica jungiana, como soube depois.
Tinha umas janelas enormes e os pássaros iam tocá-la o tempo todo. Do outro
lado era espelhado, e os pássaros brincavam com isso. Nos encontramos,
segundo combinado alguns dias antes, às 10 da manhã. O encontro durou até
o meio-dia, enquanto tomávamos sedentamente uma deliciosa limonada, bem
açucarada, que a esposa do chamã nos servia. Tínhamos comentado era para
conhecer o trabalho que lá se fazia. Nos apresentamos explicitamente como
antropólogas e também como potenciais interessadas em realizarmos
cerimônias de ayahuasca como experiência “pessoal”. Tanto o chamã quanto a
psicóloga e o administrador do centro nos falaram, como no Centro 1, acerca
da importância da abstinência sexual durante os dias anteriores à cerimônia
com ayahuasca. Da mesma maneira, ao tocar o tema da conduta do chamã, se
enfatizou a importância de práticas de abstinência (alimentar e sexual) para
poder levar a cabo um bom “trabajo espiritual” com as pessoas que
requeressem seus serviços. O centro parecia equilibrar “saberes modernos” e
“saberes tradicionais”, investidos na existência de um chamã homem
trabalhando junto com uma psicoterapeuta mulher. Eles referenciavam esse
equilíbrio como um avanço em termos do diálogo entre saberes. O “pacote” de
serviços terapêuticos mais comum, e que foi nos oferecido, consistia em três
encontros no total: uma sessão de psicoterapia com a terapeuta prévia à
experiência com ayahuasca, a própria cerimônia com ayahuasca com o chamã,
e finalmente outra sessão de psicoterapia, novamente com a psicoterapeuta.
Eu e minha nova amiga decidimos “comprar o pacote”. Dessa maneira, cada
uma de nós se encontrou separadamente com a psicoterapeuta em um bar da
cidade, em encontros que duraram uma hora, onde foi possível falar do
“objetivo personal” com o qual cada uma ia realizar o trabalho.
Três dias depois, bem cedo no horário da manhã partimos para o local onde a
experiência com ayahuasca se realizaria. Esse local ficava a mais de duas
horas da cidade onde estávamos pernoitando, e para chegar lá era necessária
pequena travessia que incluía trajetos de carro, de barco e também uma
caminhada de uma hora aproximadamente. Uma vez que chegamos lá,
passamos três dias no centro, o qual se encontrava relativamente isolado e
sem mais do que “tambos”9 para dietar por perto. De manhã cedo, quando
chegamos, começamos o trabajo. A minha amiga, um homem jovem de
nacionalidade peruana e eu bebimos a nossa purga de tabaco e vomitamos
copiosamente frente ao rio. Posteriormente, tivemos uma breve conversa com
o chamã na cozinha aberta e com teto de palha, e ele nos instou a descansar
para fazer “un buen trabajo a la noche”. Na noite do mesmo dia houve a
cerimônia, na maior maloca do prédio, uma bela construção circular com teto
de palha, colunas de madeira rústica e chão de cimento. No total, sete fomos
os participantes da cerimônia: o chamã, um senhor que o ajudava (quem
também era encarregado, junto com a sua família, de manter a limpeza do
prédio), três jovens “estrangeiras” (eu e mais duas), e dois homens peruanos
de media idade. A minha experiência com ayahuasca foi muito boa, mas não
será narrada aqui – isso pertenceria ao momento da elaboração reflexiva do
meu trip account, que deixarei para outro lugar.
9
Chamam-se dessa maneira as construções nas quais a pessoa se isola para dietar.
No dia seguinte, o chamã nos recomendou que tomássemos banho no rio, para
continuar com a limpieza. Com a minha amiga fizemos uma breve incursão rio
arriba, conversando sobre nossas respectivas experiências. Os dois homens
que tinham participado da cerimônia já tinham ido embora do centro. Ficamos
lá somente nós duas. À tarde, pedi para o chamã conversar comigo sobre
algumas visões e “enseñanzas” que eu tinha recebido durante a sessão de
ayahuasca. Estava escurecendo e todas as pessoas foram descansar. Fomoz
na cozinha, e nos sentamos lado a lado. Lhe comentei algumas das visões e
sensações, consultei-lhe se isso poderia significar isto ou aquilo. E, quase sem
eu percebê-lo, o tom do discurso do chamã começou a mudar. Quando
percebi, foi de repente: “Ah, allá en tu tierra todos los hombres se deben
enamorar de ti”. Não era a primeira vez que eu vivenciava uma “cantada”, mas
sim a primeira vez que ela vinha de parte de um chamã. Corajosa, eu resolvi
ficar conversando mais: “Y como hacen ustedes, curanderos, con los placeres
de la vida?”. Ele falou: “Ah, nosotros somos como todos los otros, tenemos
necesidades como cualquiera”. Aí eu quis saber mais. Naquela noite devemos
ter conversado umas duas horas, nas quais ele me contou como tantas
mulheres estrangeiras o “perseguían”. Me contou como nas suas viagens (que
incluíam uma viagem para a França e outra para a Holanda) ele teve a
possibilidade de conhecer muitas mulheres, “jóvenes, y tan bonitas! Para
morirse, de lo lindas que eran”. E continuou: “Yo no entiendo cómo hacen para
estar tan mal... pero lo están. Y buscan en mí el refugio. Si vieras, algunas me
agarran, se me tiran encima!”. Ele comenta que também no próprio centro às
vezes lhe acontecem esse tipo de coisas: “las mujeres vienen a dietar… una de
las que vino a dietar, una francesa, me quiso hacer masajes, dijo que deseaba
mi cuerpo... y yo qué le voy a hacer! Se lo entregué”. Eu lhe perguntei o que
sua esposa achava disso todo. “Ah, yo no le cuento nada... yo creo que ‘ojos
que no ven, corazón que no siente’… ella sabe que mi trabajo es difícil, que
tengo que viajar mucho y que a veces tengo mis necesidades”… Depois, ele
me contou de um relacionamento longo que manteve com uma mulher do
Chile, ligada ao aprendizado do chamanismo. Viam-se depois dos encontros
chamánicos, aos quais viajavam. Ela tinha a sua família e ele a sua, e ele tinha
a sua profissão carregada de interdições sexuais, mas isso não impediu que se
estabelecesse um relacionamento amoroso que durou, no total, algo assim
como um ano. Ele evocava a essa mulher como a que “más placer me dió en la
vida”. Já no final da conversa, voltaram os oferecimentos para mim, mas dessa
vez sob uma iniciativa um tanto diferente. “Tú eres fuerte, tu poderias ser
chamana. Quédate conmigo três años, aqui. Yo te paso mi saber. Te doy
certificado. Eso si, no tendrías que tener marido ni nada. Tendrías que estar
concentrada en el aprendizaje de las plantas, conmigo”. Eu continuava
escutando, e lhe perguntando como é que seria isso. Quando a conversa se
tornou suficientemente repetitiva, me despedi dele, lhe dei um abraço e ele me
agradeceu pela escuta. Volvei para meu quarto surpreendida, e pensando
como faria eu para ressaltar as experiências “espirituais” de um contexto onde
o “corporal” tinha tanto valor intrínseco.
No dia seguinte, quando a minha amiga e eu fomos embora, o chamã, que
também morava na cidade onde já voltávamos, decidiu ficar no centro. Quando
nos despediu (estávamos em cima do morro e já descíamos para tomar nosso
bote no rio), ele disse para agente, em um tom que me pareceu um pouco
risonho, um pouco sentido: “Yo voy a tener dos mujeres, una acá y la otra allá”.
A pesar da repentina fala, a minha amiga não se surpreendeu: o chamã
também tinha lhe feito oferecimentos parecidos com os meus em algum
momento do nosso “retiro”. Ela me disse, desiludida: “él es como las otras
personas de aqui, Le gusta tomar los fines de semana y es machista con las
mujeres… él es un peruano más!”.
Gênero, “Espiritualidade” e “corporalidade” na prática ayahuasqueira
Questões referentes a uma “romantização” da prática chamánica são
freqüentes nesse campo de estudos. Eu diria que quase constitutivas10. De
10
O termo “chamanismo” tem uma origem local – dentre os agentes de cura da Sibéria, mas
posteriormente é tirado de seu contexto para definir as práticas de cura mais diversas. Mircea
Eliade (1951), um autor clássico dentro do campo, assemelha o chamanismo a uma técnica de
contato direto com certo ser Supremo Celestial. Porém, têm surgido outros/as
pesquisadores/as que criticam essa suposta “espiritualidade universal” romantizada à qual
acederiam os chamãs, caracterizando-a como uma projeção de Ocidente – que torna
monoteísta, ainda quando místico, tudo aquilo no qual seus olhos pousam. Autores/as que
criticam essa concepção propõem esquemas baseados na possessão de espíritos e, portanto,
fato, quando vamos falar em chamanismo hoje, para interlocutores ocidentais,
devemos ter cuidado com duas tendências: considerá-lo uma forma de
charlatanagem ou sermos tentados pela excessiva romantização da prática
chamánica (Dobkin de Rios e Rumrill, 2008). Tanto uma como outra tendência
mostram as pontas de um discurso que aparece muito matizado, enunciado
desde trajetórias e espaços de poder bastante desiguais.
Por sua vez, como tem observado Colpron (2005), o lugar do gênero em
relação com o chamanismo goza de certa “invisibilidade institucional” no campo
da antropologia. A existência majoritária de chamãs-homens se coloca como
um ponto fora da discussão, enquanto que a dicotomia homem/mulher própria
de Ocidente tende a ser projetada de forma acrítica. Temas como a experiência
situada no corpo, a afetividade e a sexualidade são marginalizados, quando
não diretamente invissibilizados. Talvez isso tenha a ver com a direta relação
de gênero com corpo, e com a distância que Ocidente concebe para a relação
entre “corpo” e “espírito” –sendo no segundo grupo de problemas que
ingressaria a prática chamánica. Corpo e o espírito foram, desde o medievo,
considerados duas entidades com existência paralela, e o misticismo
desprovido de toda ligação com a carne. Marcel Mauss, em seu já clássico
ensaio sobre a noção de pessoa ([1938] 2003), coloca em questão a divisão
entre essas categorias “que acreditamos inatas” (p.369), descrevendo um
percurso possível para a constituição da indissolubilidade da pessoa a partir da
divisão cristão primeiro, e depois cartesiana, entre “substância e modo, corpo e
alma, consciência e ato” (p. 393). Porém, talvez desde o ponto de vista dos
chamãs que comandam as cerimônias ayahuasqueiras nas urbes amazônicas,
tal vez isso não seja necessariamente dessa exata maneira. Outras pesquisas
desenvolveram questões a respeito da construção de uma noção de pessoa
mais complexa vivenciada por povos indígenas amazônicos (Seeger, Da Matta
e Viveiros de Castro, 1979; Guimarães, 2005)11, o que deixa a porta aberta
sustentados na existência de múltiplas divindades no universo. Ver Lewis (1971) e Sidky
(2010).
11
Porém, não podemos nos basear nessa informação sem antes testá-la etnograficamente. O
espaço do “indígena” pode resultar inspirador, mas é preciso ter o cuidado de não colocá-lo
como o fato básico “primordial” que os processos de mestiçagem foram distorcendo. De fato,
as próprias comunidades indígenas amazônicas vêm sofrendo faz décadas a intensa pressão
do capitalismo. Uma abordagem normativista da cultura impediria observar a riqueza dos
para questionamentos referentes a uma relação diferente entre gênero, corpo,
sexualidade e maneiras de vivenciar a espiritualidades.
Por sua vez, talvez a própria “espiritualidade” que entendemos como ocidental
não esteja tão desligada, na prática cotidiana, de certos usos do corpo e de
esquemas de pessoa e gênero previamente existentes. Alguns autores
observaram que o emergente campo da “espiritualidade new age” em Ocidente
segue formas organizacionais altamente instáveis e seu domínio de autoridade
se funda no intrínseco do sujeito (Heelas e Woodhead, 2008). Ao mesmo
tempo que tais propostas pretendem alcançar dimensões cósmicas, são
baseadas em concepções altamente individualizadas do ser e do viver
(Langdon, 2010). Por sua vez, “la espiritualidad contemporánea tal vez debe
menos a las tradiciones místicas que a la expansión del concepto de
‘bienestar’”, sugere Cornejo (2012: 331). É com a finalidade de atingir esse
bem-estar que muitas pessoas perseguem a experiência chamánica em
contextos distantes dos seus locais de origem. Há autoras que denunciaram a
“retórica terapêutica” de certo feminismo que inventa um espaço imaginário do
chamanismo no mundo não-ocidental12. E outros colocaram as diferenças de
gênero que podem estar presentes no próprio modo de lidar com processos de
adoecimento e buscas do “caminho espiritual”13, onde as mulheres são
movidas por uma motivação e desejo de auto-transformação que seriam mais
intensos e “radicalizados” que os dos homens.
Todas essas são hipóteses que precisam ser contrastadas em situações de
alteridade vivenciadas em campo. Mas o que posso dizer é que a observação e
vivência das experiências compartilhadas por pessoas que pertencem a
hibridismos (Langdon, 2010) que se tendem entre mundos, tanto indígenas quanto mestiços,
com concepções diferentes de corpo, pessoa, gênero e processos corporais.
12
Laura Donaldson (1999) analisa as narrativas de escritoras feministas que bebem da
espiritualidade nativa com o fim de empoderar às mulheres. Segundo Donaldson, esses
trabalhos adolescem de “éticas do contexto” (1999:679), em prol de formas genéricas de
espiritualidade e indianidade. Ela chama essas formas de chamanismo de “neocolonialismo
pós-moderno”, associando-o com os processos de produção do capitalismo tardio e as formas
de consumo que se desprendem dele.
13
Walter Frank (1993) observou em vários textos auto-biográficos que descrevem processos
de adoecimento e cura que enquanto os homens tendem a relatar mudanças graduais, que ele
chama de “cumulative epiphanies” (p.45), as mulheres tendem a relatar mudanças radicais, se
colocarem como Fênix que a través da transformação radical da experiência da doença,
renascem das cinzas da sua antiga identidade.
diferentes “mundos” são um território muito promissor a respeito de hibridismos
possíveis entre essas questões. É ali onde aparecem as nuances, as
traduções, os trânsitos.
Langdon (2010) sustém que assim como Ocidente bebeu do chamanismo para
constituir as novas geografias da suas práticas espirituais, os chamãs locais
também beberam de Ocidente, adaptando-se a ele das mais variadas
maneiras. Para essa autora, o discurso da new age tende a colocar o chamã
como “possuidor de poderes não usuais com uma espiritualidade primordial e
universal” (2010: 164). Donaldson, por sua vez, critica (1999: 683, minha
tradução):
Como seu ancestral, o Nobre Selvagem, o Indígena da New Age é um ser inatamente
espiritual que vive em perfeita harmonia igualitária com todas as formas de vida e, dessa
maneira, reformula os erros do capitalismo patriarcal.
Porém, há registros de uso da ayahuasca com finalidades que não poderiam
ser definida como “netamente espirituais” de acordo com o cânone ocidental.
Segundo Riba (p.7; tradução minha), há três grandes formas de prática
ayahuasqueira encontradas entre os grupos indígenas da Amazônia:
- Como forma de contato com o mundo supranatural, prática da divinação ou bruxaria,
- Como forma de determinar as causas da doença, e curá-la,
- Como forma de obter prazer, facilitar a atividade sexual e a interação
social.
No trabalho de campo, foi possível observar que as duas primeiras formas
aparecem explicitamente, enquanto a terceira também aparece, só que de
forma indireta ou solapada. De fato, a atividade dos centros que eu visitei,
certamente os melhor organizados em termos de infra-estrutura, e também os
mais acessíveis a turistas, está mais ligada à questões tais como “recuperação
de aditos”, “evolução pessoal” ou “tratamento e cura” de diversas afeições
(físicas, mentais ou espirituais, como temos colocado anteriormente). Todas as
atividades estão fortemente ligadas à promoção de certo discurso relativo a
uma “espiritualidade indígena” aprendida na selva com maestros respetados.
Porém, questões relativas à gênero e sexualidade apareceram, de uma forma
ou outra, em praticamente todos os cenários etnográficos visitados. Isso tem
um interesse teórico para a antropologia. Aqui podemos colocar a questão do
relativismo cultural a respeito dos comportamentos sexuais e dos esquemas de
gênero que os regulam. De maneira preliminar, podemos inferir que circulam
de maneira permanente uma série de códigos sobre gênero e sexualidade que
são pouco enunciáveis, mas que fazem parte como força dentro das
experiências e regem, de maneiras diversas, a posição de corpos, desejos e
afetos no mundo social. Isso, não só respeito às regras e interdições rituais
relativas a dietas, purgas e ceremonias con ayahuasca que os chamãs
convidam a fazer aos e às “visitantes”; mas também nos comportamentos de
fato observáveis nesses espaços de interação.
Na imprensa local, nacional e internacional, relatos de mulheres-estrangeiras
que denunciam “abusos sexuais” por parte de chamans homens não são
infreqüentes14. Ao mesmo tempo, experiências sexuais “desejadas” com
chamãs “nativos” também parecem não serem incomuns. Como é que pode
começar a ser compreendida a complexidade desse tipo de experiência nesses
contextos? Como criar uma relação produtiva entre modelos analíticos que
organizem noções em torno das “espiritualidades” em consonância com
modelos analíticos que se focalizem nas experiências-no-corpo? Como
compreender os rituais com ayahuasca como espaço de potencial “cura” e
também
14
como
lócus
de
possíveis
“abusos
sexuais”?
Como
definir
Pode-se seguir o caso do chamã peruano Carlos Clever na Espanha, e o “estupro” da turista
alemã na Selva Peruana. A respeito do primeiro caso:
- Un Chamán de “Manos Largas”. Diário De. 19-04-2011. Em: http://www.cuatro.com/diariode/chaman-manos-largas_0_1379262081.html
- Procesan a chamán peruano em España. TV Peru, Notícias digitais. 15-02-2011. Em:
http://www.tvperu.gob.pe/noticias/locales/policiales/18727-procesan-a-chaman-peruano-enespana.html
- Carlos Clever, chamán peruano: "Lo que ha hecho Mercedes Milá me ha desprestigiado
mucho".
Jornal
Periodista
Digital.
25-04-2011.
Em:
http://www.periodistadigital.com/inmigrantes/vida-cotidiana/2011/04/25/chaman-peruano-todoha-sido-un-montaje-carlos-clever-apus-sexo-abuso-sexual-sevilla-brujeria-chacrasmontaje.shtml
A respeito do segundo:
- Cayó el ‘chamán’ que violo turista alemana. 23-03-2010. Perú 21. Em:
http://peru21.pe/noticia/450826/tarapoto-cayo-uno-chamanes-que-golpeo-violo-turista-alemana
- Joven alemana fue violada y golpeada salvajemente durante uma sesión de ayahuasca en
Iquitos. El Comercio. 21-03-2010. Em: http://elcomercio.pe/comentarios/450258/joven-alemanafue-violada-golpeada-salvajemente-durante-sesion-ayahuasca-iquitos
antropologicamente os limites, tensões e possibilidades da relação chamãpaciente na sessão ayahuasqueira e no marco ritual, quando quem participa é
mulher e não-peruana? E quando ela é mulher e peruana? Limeña? Da própria
selva? E quando o sujeito em questão é homem? As perguntas se sucedem.
Inicialmente, posso dizer que não pode ser atribuída aleatoriedade a priori a
essas práticas. Como sugere John Gagnon, a posta em prática da sexualidade
exige a orquestração de “seqüência de atos interpessoais socialmente
estruturados e [também] atenção para instruções culturais, não [é] o simples
desdobrar de imperativos biológicos” (2005:373).
Poderíamos sugerir que talvez os atos que se interpretam como “abusos
sexuais” de acordo com o molde ocidental podem ser uma secreta forma de
“iniciação”, entendida nos termos da antropologia clássica15, a saber, como a
transmissão de certos saberes por parte de alguém já iniciado para um/a
novício/a, dessa vez pela via de contatos corporais sexualizados? Isso chama
a outras incursões a campo.
À distância, surgem mais perguntas: como é possível “demonstrar a
especificidade cultural da prática sexual” (Gagnon, 2006: 372) considerando
também as violências de gênero que podem decorrer delas? Tal pergunta está
contida numa questão mais ampla: como reconhecer a desigualdade de gênero
em contextos de diferença cultural? Machado (2010) chama a atenção para o
reducionismo que pode estar presente em análises de gênero que denunciem
“abusos” a partir de modelos de justiça genérica baseados em um específico
tipo de relacionamento entre homens e mulheres, pretensamente universalista,
mas fundido sob a moldura de sujeitos capitalistas, brancos e ocidentais. Ela,
assim como outras estudiosas do feminismo pós-colonial, assinala o risco do
uso da linguagem acrítica de um “nós feminista, progressista e liberalista”
(Machado, 2010: 5) para esse tipo de questões. Por sua vez, a ênfase
excessiva na “violência de gênero” responderia aos mesmos modelos. Em
contrapartida, que poderíamos ter para dizer sobre a “violência de classe”
15
Bastide (1999) escreve a respeito do termo “iniciação”: “S’est généralisé aujourd’hui pour
signifier le fait de mettre au courant un individu aussi bien d’une science, d’un art que d’une
profession (...) alors qu’il désignait primitivement et surtout l’ensemble des cérémonies par
lesquelles on était admis à la connaissance de certains ‘mystères’”.
nessas situações? As reflexões acadêmicas que incorporam a variável de
classe no contexto da prática chamánica nas cidades amazônicas são
infreqüentes. Há, porém, uma hipótese interessante, proposta por um
pesquisador europeu. Ela é chamada de inversão ritual. François Demagne,
(2002: 11), antropólogo que fez seu trabalho de campo com chamãs da alta
Amazônia peruana, observa:
No matter how respected a knowledgeable master healer may be in the vegetalista circle,
he inevitably finds himself in a lower social scale than his western foreign apprentices.
Their economic differences are sharply marked (…) their living conditions also differ
greatly, as most foreigners live in the best neighborhoods of the city whilst indigenous
healers lives in the poorer areas of the countryside (…) nevertheless, the economic
difference between foreign apprentices and indigenous healers is reversed at the ritual
level, and foreigners explicitly recognize their dependency upon their indigenous masters.
O autor salienta que, ao mesmo tempo em que a condição de classe do
estrangeiro (branco, capitalista, ocidental) é geralmente superior frente ao
chamã, ocorre uma inversão dentro do próprio contexto ritual, tornando a sua
situação de “superioridade” em “vulnerabilidade”. Essa vulnerabilidade é vista
como o lugar onde ocorre uma possível inversão das assimetrias, e onde, por
assim dizer, o poder de classe se veria contra-restado por um poder que
devém do poder especifico do chamã, advindo da sua capacidade de “cura” por
meio da interlocução com outras formas de realidade. A fortaleza de um se
tornaria, assim, vulnerabilidade.
Essa hipótese apresenta análises correlatas. De Rios e Rumrill (2008) chamam
a atenção para os possíveis abusos decorrentes dessas pré-noções nas quais
navegam os protagonistas do drug turism, onde não são infreqüentes situações
nas que os chamãs se encontram perante “a näive and often troubled
audience” (p. 3). Essa concentração de poder no contexto ritual pode trazer os
variados problemas, refletidos nas mais diversas formas de manipulação,
chantagem e abusos por parte de certos chamãs locais de “borrowed
misticism”
(p.2).
Psico-tecnologias,
sugestibilidades,
cumplicidades,
vulnerabilidades: quanto é que as expectativas de uns alimentam as
expectativas dos/as outros/as? Como é que elas podem ser colocadas em
contextos onde a experiência psicoativa, intrinsecamente desestruturadora,
joga um importante papel?
A questão não é absolutamente nova, e é vista como problemática por
determinados agentes. Faz poucos anos, a UMIYAC, Unión de Médicos
Indígenas Yageceros Colombianos16, elaborou um código de ética para o
manejo do yagé, ou ayahuasca, em rituais chamánicos. Eles apresentam a
interessante perspectiva de uma reflexão ética interna aos próprios chamãs
associados:
Todo conocimiento y todo regalo está sujeto a la libertad humana. El hombre tiene la
autonomía de hacer un buen o mal uso. Así como un cuchillo es una herramienta valiosa
para las actividades humanas, también puede ser un arma para atentar contra la vida.
No por esto podemos calificar al cuchillo como algo contrario a la razón o a la moral. El
problema no es del objeto, sino del corazón del hombre.
Proponho uma reflexão que se situe além do modelo do “chamã charlatão” vs.
o “chamã honesto”, problematizando todos os atores em cena e os modelos de
compreensão do mundo desde donde eles/elas bebem, e a partir dos quais
constroem a sua experiência e memória. Se quisermos levar em conta o
“corazón del hombre” podemos nos perguntar: onde é que esses “corações” se
encontram? É diferente o “corazón del hombre” daquele “da mulher”, das
mulheres?
O corpo em campo: interferência, oportunidade?
Proponho que essa análise relativizadora e situada pode ser também feita no
caso específico das antropólogas mulheres que ingressam em campo em
espaços que poderiam trazer algum tipo de “risco” para os limites que a sua
integridade culturalmente condicionada lhes impõe. No caso sob estudo, o
trânsito nesses espaços sociais envolve, de maneira quase regulamentar, o
uso de psicoativos –e eles são substâncias que alteram a percepção ordinária
das coisas, e que poderiam permitir “aberturas morais” que mais tarde não
possam ser ressignificadas como tais. Proponho pensar nessa relação a partir
16
Unión de Médicos Indígenas Yageceros de la Amazonía Colombiana. 2000. Código de ética
de la medicina indígena del piedemonte amazónico colombiano. Disponível em:
www.bialabate.net. Acesso em 09/06/2011.
dos processos de “negociação da intimidade” (Moure, 2005: 52) que todo
antropólogo/a vivencia no percurso de seu trabalho de campo.
Finalmente, algumas palavras sobre o território em disputa: o corpo. Ele pode
ser entendido não como tabula rasa sobre a qual a sociedade inscreve seus
valores, mas como fonte de agência e intencionalidade. A partir desta
perspectiva, o ele já não pode ser considerado um dado da natureza, mas uma
noção inteiramente problemática: ele tem uma história e é produto de discursos
historicamente situados. Começa a ser criado um espaço para que sejam
estudadas as múltiplas imagens que estimulam necessidades e desejos
corporais. Sem a objetividade monolítica da biologia o corpo é transformado de
objeto em agente. Assim mesmo, ele já não pode ser considerado uma
entidade fechada, pois seus limites são problematizados. Muito mais podemos
encontrar dentro desse “campo metodológico indeterminado definido pela
experiência perceptual e pelo modo de presença e engajamento no mundo”
(Csordas, 1999, p. 182). É desde nossos corpos que enxergamos o mundo, e
construímos a experiência nele. A análise se constrói a partir de nossos corpos
sexuados e generizados, que são também, no caso sob estudo, os corpos que
ingerem o psicoativo nos rituais chamánicos. Para as antropólogas-mulheresque-pesquisam-no-âmbito-dos-chamanismos, são várias as questões que
podem definir riscos e espaços “seguros” no acesso a tais experiências.
Dessa maneira, assim como ao nos aproximarmos ao chamanismo urbano
amazônico podemos decidir narrar histórias “sanitizadas” onde todos esses
elementos conflitantes sejam silenciados, também podemos optar pela labor de
tecê-las a partir de novos biases de significado que contribuam à compreensão
etnográfica do problema em suas múltiplas dimensões. Para isso, em termos
metodológicos, é preciso caminhar a passos curtos e observando os detalhes
da interação, incluindo as variáveis pertinentes não só no nível do discurso
falado, mas também na “prática social, corporal, gramatical” (Fleischer,
2011:29) dos atores. Para o estudo do chamanismo no contexto analisado,
considero importante trazer as variáveis de gênero e também de raça e classe.
Devido ao poder desestabilizador dessas categorias em campos como aquele
da “espiritualidade” ou da “autenticidade do indígena”, elas podem ampliar e
enriquecer a discussão sobre a vivência mística e terapêutica das pessoas que
fazem parte dos rituais ayahuasqueiros das urbes amazônicas.
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