O significado identificacional: discurso de estudantes de

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
O SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL DO DISCURSO DE
ESTUDANTES DE LICENCIATURA: REVELANDO IDENTIDADES
Mara Lúcia Castilho1
Introdução
No presente artigo proponho-me a apresentar um recorte dos resultados parciais
de minha pesquisa de doutoramento, de caráter teórico-metodológico voltado para a
Análise de Discurso Crítica (ADC), seguindo Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough
([1992] 2008; 2003), cujo objetivo é analisar o discurso das narrativas do percurso
educacional de estudantes de licenciatura em Letras, História e Biologia de uma
instituição privada do Distrito Federal. Apresento parte dos resultados da análise do
significado identificacional, proposto por Fairclough (2003), dos textos produzidos na
entrevista semiestruturada com doze estudantes de licenciatura. O objeto estudado é o
discurso e a pesquisa busca analisar aspectos sociais de representação do mundo e seus
efeitos sobre a construção de identidades, por isso é delineada pelos elementos que
caracterizam a pesquisa qualitativa.
As posições ideológicas incrustadas no uso da linguagem e as relações de poder
subjacentes a ela são, geralmente, obscuras para as pessoas. A ADC tem o objetivo de
tornar os aspectos obscuros do discurso mais visíveis, a fim de esclarecer de que
maneira a linguagem funciona em suas diversas formas de realização, na constituição e
na transmissão do conhecimento, na organização das instituições sociais, e no exercício
do poder e dominação (WODAK, 2003).
Na ADC, o discurso é considerado uma prática de significação de mundo e a
linguagem
é
compreendida
como
sendo
dialeticamente
interconectada
a
outros
elementos da vida social (FAIRCLOUGH, 2003). O uso da linguagem (discurso) é
considerado por Fairclough (2003) como forma de prática social e não como atividade
puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais, uma vez que esse autor
defende que a linguagem se constitui por sujeitos e relações sociais (FAIRCLOUGH,
[1992] 2008). Nesse sentido, as análises levaram em consideração a forma de as
variedades discursivas se realizarem nas práticas sociais por meio do significado
identificacional, conforme propõe Fairclough (2003).
1
Graduada em Letras pelo UniCEUB, Mestre em Educação pela UCB, doutoranda em Linguística
pelo PPGL/UnB.
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A análise de discurso crítica e o significado identificacional
Essa seção é direcionada a esclarecer o que é ADC e alguns termos relacionados à
essa teoria de análise discursiva, a fim de facilitar a compreensão da proposta utilizada
na pesquisa. A ADC é uma abordagem teórico-metodológica de estudo da linguagem na
sociedade. Essa teoria analisa as instâncias reais de interação social e se distingue de
outras abordagens por estabelecer: (a) a relação entre linguagem e sociedade, e (b) a
relação entre a análise e as práticas analisadas (FAIRCLOUGH e WODAK, 1997).
Para traçar a relação entre a linguagem, a sociedade e as práticas sociais, uma
característica da ADC é pressupor que todos os discursos são historicamente situados e,
por isso, devem ser compreendidos em seus contextos, sendo este crucial para as
análises, uma vez que incluem explicitamente componentes sociais, psicológicos,
políticos e ideológicos. São esses componentes que tornam a ADC interdisciplinar. São
muitas as abordagens utilizadas na ADC e elas se distinguem pela proximidade de teorias
que tendem a ser ora mais cognitivo-social-psicológica, ora mais macro-sociológicoestrutural, de acordo com os objetivos a que se propõe.
Entre as diversas abordagens utilizadas pelos especialistas da área está a teoria
social do discurso, desenvolvida por Norman Fairclough, para quem a maneira como o
indivíduo fala ou escreve revela quem ele é, ou seja, a linguagem utilizada pelas pessoas
em determinado contexto de cultura e contexto social pode revelar as identidades dos
indivíduos. Nesse sentido, Fairclough (2003) entende que as análises textuais devem se
preocupar em identificar traços linguísticos que permitam perceber os estilos ou o modo
como o enunciador identifica a si mesmo e como identifica outras pessoas. Esse
entendimento está relacionado ao fato de o discurso ser socialmente influenciado e erigir
efeitos ideológicos de forma a produzir e reproduzir relações de poder por meio da forma
como as pessoas representam discursivamente coisas e posições sociais (FAIRCLOUGH e
WODAK (1997), FAICLOUGH, [1992] 2008).
Para Fairclough e Wodak (1997), a ADC, fundamentada em Foucault, entende o
discurso – a linguagem oral e escrita em uso – como prática social. Descrever o discurso
como prática social implica uma relação dialógica entre o discurso de um evento
discursivo específico e a(s) situação(ões), a(s) instituição(ões) e a(s) estruturas social(is)
em que o evento está inserido. Essa relação dialógica permite compreender que o
discurso é socialmente constituído, ao mesmo tempo em que a sociedade o constitui. É
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constituído para manter e reproduzir posições sociais da mesma forma que contribui para
transformá-las.
Outro termo fundamental para a compreensão da ADC é práticas discursivas. Para
Fairclough (2008), estas são processos de produção, distribuição e consumo textual,
sendo a natureza desses processos variável nos diferentes tipos de discurso, de acordo
com fatores sociais. Para esse autor, as práticas discursivas contribuem para reproduzir a
sociedade como ela é (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e
crença), mas também contribuem para
sua transformação (FAICLOUGH, 2008).
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21) definem prática, de forma geral, como sendo
“modos habituais de ação social, ligados a um espaço e tempo particulares em que as
pessoas aplicam recursos (materiais e simbólicos) para agir juntas no mundo. [...] As
práticas constituem um ponto de conexão entre estruturas abstratas e seus mecanismos,
e eventos concretos – entre a sociedade e a vida das pessoas”.
Para Fairclough (2008), as instâncias de uso da linguagem, em textos escritos ou
orais, são realizadas (em suas diversas modalidades) pelas ordens de discurso2,
compreendidas como a combinação de gênero, discurso e estilo, que constituem os
aspectos discursivos das redes de práticas sociais. Para Fairclough (2003), as ordens de
discurso podem revelar três diferentes processos: o de identificação (estilos), o de
representação (discurso) e o de ação (gênero).
Como a ADC reconhece a dialética entre o discurso e as práticas sociais
(CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH (1999)), ela investiga como as ideologias são produzidas
e reproduzidas pelos atores sociais nos discursos. Os conceitos de ideologia de Fairclough
(2003) são entendidos como representações de aspectos do mundo que podem contribuir
para o estabelecimento, manutenção ou mudança de poder nas relações sociais. Para
analisar as formas simbólicas ideológicas de estabelecimento e sustentação de relações
de dominação, serão utilizadas as categorias de Thompson ([1990] 2007).
Esse autor busca criar um conceito adequado para analisar como as formas
simbólicas se entrecruzam nas relações de poder, ou seja, como as formas simbólicas de
2
Para Foucault (2002), as ordens de discurso são o conjunto de formações discursivas
pertencentes a determinada instituição ou sociedade. Um dos principais problemas identificados
por Fairclough ([1992] 2008) sobre a proposta de formação discursiva de Foucault – regras de
formação discursiva encontradas em um conjunto de enunciados pertencentes à determinada
prática social (FOUCAULT, 2002) – é que ela atribui papel pré-determinado para o discurso dos
sujeitos sociais, ou seja, as pessoas entram na prática e na interação social com identidades sociais
que são pré-formadas. Para Fairclough ([1992] 2008, p. 70) o discurso é uma prática dialética, que
considera que “os sujeitos sociais são moldados pelas práticas discursivas, mas também capazes
de remodelar e reestruturar essas práticas”.
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ideologia estão inseridas nos contextos sociais. Para Thompson ([1990] 2007), as formas
simbólicas são o amplo espectro de ações, falas, imagens e textos produzidos pelos
sujeitos e reconhecidos por eles e pelos demais como construto significativo. Segundo
esse autor, há vários modos de operação de as formas simbólicas ideológicas servirem
para o estabelecimento e sustentação de relações de dominação, que são: a legitimação,
a dissimulação, a unificação, a fragmentação e a reificação. Não cabe neste artigo
discorrer sobre todas as formas simbólicas de operação da ideologia propostas por
Thompson ([1990] 2007), mas esclarecer o modo de operação identificado no discurso
dos jovens que colaboraram com a pesquisa. Trata-se da Legitimação, que, de acordo
com esse autor são relações de dominação que podem ser estabelecidas e sustentadas
pelo fato de serem representadas como legítimas. Há pelo menos três estratégias para
sua construção simbólica: (a) Racionalização - o produtor de uma forma simbólica
constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender um conjunto de relações sociais
como sendo digna de apoio; (b) Universalização - o produtor tenta convencer que
acordos institucionais servem aos interesses de alguns indivíduos servem ao interesse de
todos; (c) Narrativização - histórias contadas do passado e que tratam o presente como
parte de uma tradição eterna e aceitável.
Para realizar a análise das formas simbólicas de ideologia presentes no discurso
dos estudantes colaboradores da pesquisa, recorri à Linguística Sistêmico Funcional.
A linguagem e a ADC
Halliday (1984), ao propor a Linguística Sistêmico Funcional (LSF), apresenta a
língua como um sistema sócio semiótico. Na LSF, a linguagem é um sistema de
significados constituído por uma diversidade de opções oferecida ao usuário da língua,
que quando selecionadas pelos indivíduos em suas interações diárias, constroem
significados (HALLIDAY, 1984). Esse sistema linguístico aberto é composto por estratos
internos (semântico, lexicogramatical, fonológico, fonético), e externos (o contexto de
situação e o contexto de cultura). Quando um componente linguístico é selecionado do
sistema e realizado pelo usuário da língua, em um determinado contexto, ele exerce uma
função na interação social, daí a noção de funcionalidade nos usos sociais da língua.
A ideia de interação na linguagem é proveniente de Bakhtin ([1929] 2010), para
quem um sistema de normas imutáveis não pode ser efetivo para representar as normas
sociais, uma vez que essas estão relacionadas à consciência subjetiva dos indivíduos que
participam da coletividade regida pelas normas sociais.
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A língua em uso serve ao propósito de expressar as experiências humanas, de
representar as relações sociais estabelecidas entre as pessoas. Por essa razão, Halliday e
Matthiessen
(2004)
entendem
que
a
linguagem
se
realiza
por
meio
de
três
macrofunções: uma ligada à representação do mundo (metafunção experiencial); outra
ligada
ao
relacionamento
entre
as
pessoas
(metafunção
interpessoal);
e
outra
relacionada ao status da sentença no texto (metafunção textual).
De acordo com Eggins (2004), os usuários da língua interagem para construir
significados e não para simplesmente trocar palavras ou sentenças uns com os outros.
De acordo com essa autora, na LSF, a linguagem é vista sob três metafunções ou
significados: a metafunção ideacional, que se refere ao assunto, conteúdo ou tópico
sobre o qual as pessoas falam; a metafunção interpessoal, que se refere às relações
estabelecidas entre as pessoas, a maneira como elas representarem a si mesmas e aos
outros nas relações pessoais e sociais; e a metafunção textual, que é a maneira como as
pessoas organizam a fala e a escrita segundo o propósito que desejam e de acordo com
as exigências do meio social, histórico e cultural em que estão inseridas.
Fairclough (2003) propõe uma articulação entre as macrofuncões de Halliday e os
conceitos de gênero, discurso e estilo (ordem de discurso). Sugere, no lugar das funções
da linguagem, três tipos de significado para o texto: o acional (modo de agir), o
representacional (modo de representar) e o identificacional (modo de ser). Para
Fairclough (2003, p. 29), discursos (significados representacionais) são realizados em
gêneros (significados em ação), discursos (significados representacionais) são inculcados
em estilos (significados de identidade), ações e identidades (incluindo gêneros e estilos)
são representados em discursos (significados representacionais). Esse autor entende que
esses três significados devem ser levados em consideração na análise das práticas
sociais.
Como
o
foco
deste
trabalho
é
estabelecer
relação
entre
o
significado
identificacional do discurso (FAIRCLOUGH, 2003) e a construção das identidades dos
estudantes, darei enfoque ao significado identificacional, que está relacionado ao estilo,
aspectos discursivos do modo de falar de uma pessoa, que revelam seu modo de ser,
suas identidades. Nesse sentido, esse autor entende que as análises textuais devem se
preocupar em identificar traços linguísticos que permitam perceber os estilos ou o modo
como o enunciador identifica a si mesmo e como identifica outras pessoas. Os processos
de identificação envolvem, portanto, efeitos constitutivos do discurso (FAIRCLOUGH,
2003) e devem ser vistos como processos dialéticos nos quais os discursos estão
assimilados pelas identidades.
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Identidades e ADC
Sobre as identidades, a ADC tem se preocupado em estudar as relações de poder
estabelecidas nas práticas discursivas e sociais, e a construção das identidades no
cenário de transformações econômicas e sociais, consequência da modernidade tardia
(GIDDENS, 2002). De acordo com Fairclough (2008), essas transformações afetaram
profundamente as atividades, as relações sociais e as identidades sociais e profissionais
e, consequentemente, as práticas discursivas e sociais. Segundo esse mesmo autor,
essas transformações são verificadas por meio do discurso, que é “socialmente
constitutivo e contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social
que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e
convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes”
(FAIRCLOUGH, 2008, p. 91).
A concepção de identidades é constituída a partir das noções de igualdade e de
diferença construídas socialmente, as quais são a moeda do jogo de construção das
identidades (KEMP, 2001). Para Woodward (2008), esse movimento de constituição do
sujeito é um movimento de diálogo entre os símbolos e as regras que fazem parte da
cultura dos diferentes sujeitos e, de acordo com Hall (2008) é um processo é inacabado e
multifacetado.
Para Hall (2008), as identidades são construídas por meio da diferença e não fora
dela. As identidades, então, só são construídas por meio da relação com o outro, da
relação com aquilo que não é. Hall (2008, p. 111-12), diz utilizar o termo identidade
para:
significar o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que
tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos
lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os
processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos
quais se pode “falar”. As identidades são, pois pontos de apego temporário às
posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós.
Ainda segundo Hall (2008), as identidades são as posições que a pessoa é
obrigada a assumir, embora sempre saiba que elas são representações, construídas ao
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longo de uma “falta”, a partir do lugar do Outro (Hall, 2008, p. 112) e que nunca podem
ser idênticas.
A identidade é marcada pela diferença e a construção da identidade é tanto
simbólica quanto social (WOODWARD, 2008; HALL, 2008). Todavia, algumas diferenças
parecem ser mais importantes que outras, em momentos e lugares particulares,
conforme apresentarei a seguir, juntamente com os procedimentos metodológicos da
produção dos dados de pesquisa.
Percurso teórico metodológico de produção do corpus e de sua análise
Para selecionar a amostra dos cursos a serem pesquisados na instituição escolhida
para a pesquisa, busquei fundamentação em Bauer e Aarts (2010), que entendem que a
pesquisa social preocupa-se em selecionar evidências para argumentar e necessita
justificar a seleção do referencial utilizado para demonstrar, provar ou refutar um
problema orientado de pesquisa. A partir das ideias desses autores, propus-me, então,
construir um corpus como princípio alternativo de produção de dados, que garantisse a
eficiência na seleção do material para caracterizar o todo. Para Bauer e Aarts (2010), a
construção do corpus pode ser entendida conforme Barthes (1967, p. 96 apud Bauer e
Aarts, 2010, p. 44) “uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo
analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual irá trabalhar”.
Fundamentada nesses autores, optei por pesquisar, aproximadamente, cinquenta
por cento dos cursos de licenciatura ofertados pela instituição colaboradora da pesquisa,
dos quais foram, aleatoriamente, sorteados três: Ciências Biológicas, História e Letras.
Não me preocupei, contudo, com a representatividade da amostra em relação a todos os
estudantes de licenciatura no Brasil ou mesmo da instituição pesquisada. Preocupei-me
em construir um corpus, para análise, representativo para os objetivos a que a pesquisa
se propôs. A composição da amostra de colaboradores de pesquisa foi organizada em
razão da quantidade de alunos matriculados no segundo semestre de cada um dos cursos
sorteados - aproximadamente trinta alunos – e, então, estabeleci que quatro alunos de
cada um participaria da pesquisa.
Após realizar entrevista semiestruturada com todos os estudantes colaboradores e
solicitar que escrevessem um relato sobre seu percurso escolar antes e depois de
ingressar na graduação, organizei o corpus de análise, levando em consideração os
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elementos que possibilitariam fundamentar o problema de pesquisa. Os resultados
apresentados, resumidamente, neste trabalho foram fundamentados na análise do
significado identificacional do discurso (FAIRCLOUGH, 2003) a partir das teorias de
legitimação de Thompson ([1990] 2007) e de van Leeuwen (1997).
As estratégias de legitimação no discurso dos estudantes
A análise do significado identificacional do discurso dos estudantes revelou que
suas crenças são reveladas por meio da legitimação. Sobre esse tema, fundamentei-me
em Thompson ([1990] 2007) e van Leeuwen (1997).
De acordo com Thompson ([1990] 2007) um dos processos de dominação
ideológica pode se dar por meio da legitimação, ou seja, por processos que envolvem
relações de dominação estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas
como legítimas. Esse processo pode ser encontrado na forma de narrativização, isto é,
por histórias contadas ou ouvidas que legitimam determinada crença.
Para van Leeuwen (1997) a legitimação pode se dar por meio da avaliação moral,
embasada por valores morais percebidos como normais ou naturais de serem cumpridos.
Esse processo pode ser negativo ou positivo.
Legitimação por narrativização
A análise do discurso dos estudantes revela marcas da cultura brasileira,
principalmente aquelas que se referem à vida dura que os habitantes do nordeste levam.
Percebe-se, no discurso dos estudantes, a presença de discursos pré-estabelecidos a
respeito das dificuldades vivenciadas pelo povo nordestino. O compromisso dialógico de
negociação de sentido se dá por meio do uso de elementos provenientes de outros textos
presentes no discurso dos estudantes. Esses elementos situam-se no contexto de cultura
com marcas de brasilidade, conforme se pode identificar nos trechos abaixo. Um dos
colaboradores se utiliza da saga da família nordestina, relatada no romance Vidas Secas,
de Graciliano Ramos, para expressar o quanto é batalhadora e conseguiu driblar todos os
obstáculos para poder ingressar em um curso superior.
(1) [...] eu costumo até brincar que de vez em quando eu falo pros meninos que
a minha vida é a vida daquele romance “Vidas Secas”, tirando só a parte da
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seca que não era, tinha muita água, mas o resto... o resto é aquilo lá, casinha,
caminha dura, os meninos sem nome, quer dizer o menino sem nome
conseguiu chegar aqui [...]. (Let )
Percebe-se, no exemplo (1), que a citação da saga da família do personagem
Fabiano, de Vidas Secas, é utilizada para mostrar o grau de pobreza da família do
colaborador de pesquisa e, ao mesmo tempo, mostrar que foi recompensador ele ser
batalhador, pois conseguiu ingressar no ensino superior, fato raro para aqueles que
possuem a mesma condição social na região em que foi criado. O discurso desse
colaborador revela as barreiras vencidas para chegar nesse nível de ensino. Seu discurso
quer revelar, principalmente, que é um vencedor mais que todos os outros, pois seus
obstáculos parecem ter sido bem maiores que os de seus colegas de turma.
Nos exemplos (2) e (3), percebe-se a presença do discurso próprio do contexto
cultural brasileiro no que se refere às condições de vida do povo nordestino e sua
obstinação em mudar de vida. Nos trechos abaixo, os estudantes retomam as condições
de vida do Nordeste para tentar justificar a interrupção dos estudos dos pais.
(2) [...] Minha mãe eu não tenho certeza, mas eu acho que é ensino fundamental
e meu pai, acho que ele fez até a quarta série só, foi muito básico, eles são do
interior, são do Nordeste e eles tiveram pouquíssimas oportunidades. (Het)
(3) [...] nós vinhemos com esse intuito de estudar e alcançar o nível superior,
que pros termos do nordeste, do interior é algo que pra gente era muito
importante, [...] E cheguei aqui com muita dificuldade, tô muito feliz. Pra mim
era uma coisa assim que era de fundamental importância. [...] (Lip)
As dificuldades dos habitantes do Nordeste e da falta de recursos materiais e
educacionais são temas diários dos jornais de amplitude nacional e regional. A referência
à região Nordeste, muitas vezes, é utilizada como sinônimo de pobreza, e ao mesmo
tempo em que possui carga semântica negativa para os fatos relacionados às questões
materiais e de infraestrutura, pode adquirir valor semântico positivo quando relacionado
aos cidadãos que conseguiram mudar seu destino. O discurso dos estudantes também
revela a noção de que o ensino básico da rede pública brasileira não é bom, fato este que
pode ser vinculado às questões culturais de nosso país. Sobre esse assunto, os
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resultados das avaliações em larga escala realizadas pelo governo indicam que a
qualidade do ensino das escolas brasileiras não é boa.
A mídia tem publicado notícias e reportagens sobre esses resultados e sobre a má
qualidade da educação básica da rede pública brasileira. Para ilustrar3, busquei
compreender o que endossa a crença dos estudantes quanto à qualidade do ensino
público brasileiro e cito algumas manchetes dos jornais de maior circulação no país,
como é o caso de O Globo e a Folha de São Paulo, que divulgam constantemente textos
que discorrem sobre os resultados dos exames que medem a qualidade do ensino
brasileiro. Algumas notícias veiculadas nos últimos anos, nesses jornais, trazem os
seguintes títulos: Má qualidade do ensino atrasa alunos brasileiros ”[...] Alunos do Pará
são exemplo do mau aprendizado” 4; Vizinhos de SP têm o pior ensino público “[...]
cidades da Grande São Paulo - como Ribeirão Pires, Jandira, Santana de Parnaíba e
Francisco Morato - apresentam médias inferiores a de municípios do interior do
Nordeste”5; Ensino público de qualidade: por Fernando Haddad e Mangabeira Unger. 6 O
início do texto da primeira notícia é “O brasileiro sabe que o aluno da escola pública
estará em desvantagem quando tiver de disputar um lugar no ensino superior.” (grifo
nosso) Segundo este último texto, uma pesquisa do Ibope mostra que na opinião dos
brasileiros, a má qualidade do ensino é o terceiro maior problema da educação no Brasil.
A segunda notícia, da Folha de São Paulo, discorre sobre os resultados da Prova
Brasil, exame que avalia a qualidade do ensino. De acordo com o texto, a Folha de São
Paulo tabulou os dados a partir da Prova Brasil e percebeu que as cidades da Grande São
Paulo - como Ribeirão Pires, Jandira, Santana de Parnaíba e Francisco Morato apresentam médias inferiores a de municípios do interior do Nordeste. O texto do jornal
corrobora o discurso dos colaboradores de pesquisa. O contexto de cultura mostra que o
Nordeste é uma região que tem muitas dificuldades e quando há resultados que mostram
que a situação de algum segmento é inferior à realidade nordestina, significa que a
situação é muito ruim.
3
As manchetes não fazem parte do corpus da pesquisa, mas são citadas para ilustrar que a crença
de que o ensino público brasileiro é ruim é proveniente não só dos resultados das avaliações
realizadas pelo Ministério da Educação, como também da mídia.
4
Notícia extraída no site do jornal O Globo, veiculada em 18/03/2009 no endereço
:<http://g1.globo.com/jornaldaglobo/0,,MUL104912816021,00-MA+QUALIDADE+DO+ENSINO
+ATRASA+OS+ ALUN OS +BRASILEIROS.html> . Acesso em 27/12/2011.
5
Veiculado em 11/02/2007 Extraído do site http://www1.folha.uol.com.br /folha/educacao
/ult305u19363.shtml. Acesso em 27/12/2011
6
Veiculado em 18/02/2008 Extraído do site http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/
inde18022008.htm
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O terceiro texto, escrito pelo então Ministro Haddad e por Mangabeira Unger,
Ministro de Assuntos Estratégicos na época, é iniciado com a seguinte frase: “Melhorar a
qualidade do ensino público é hoje reconhecida prioridade da Nação.”
O discurso da mídia está presente no discurso dos colaboradores de pesquisa, que
reproduzem o discurso da “desvantagem quando tiver que disputar um lugar no ensino
superior”, conforme veiculado no jornal do Estado do Rio de Janeiro. Os exemplos abaixo
revelam as crenças dos estudantes sobre o ensino brasileiro e sua relação com a
realidade de vida deles:
(4) [...], eu sabia que não tava muito preparado pro vestibular da UnB, eu
tinha que estudar mais em casa, [...] porque tudo que eu aprendi no ensino
médio e no ensino fundamental ainda não me preparou pra conseguir
uma vaga numa universidade pública, [...], que o nível do vestibular tá
mais alto do que o ensino médio ensina. (Hax)
(5) [...] Por conta do ensino defaso [sic] que foi, né? O ensino que foi... Aqui em
Brasília mesmo. O ensino básico não dá nenhuma base pra você fazer um
vestibular, assim em relação a UnB, por exemplo. (Hip)
(6) [...] Mas a gente vê essa diferença de escola pública, toda a diferença,
infelizmente tem. (Hov)
Os elementos discursivos revelam as crenças dos alunos sobre a má qualidade da
educação brasileira e como a experiência deles reflete essa realidade cultural. Esses
discursos parecem estar inculcados nas identidades dos estudantes e parece fazer com
que se sintam predestinados ao insucesso.
(7) [...] Sinceramente não, tanto é que eu nunca tentei uma prova da UnB
exatamente pela bagagem, [...], então eu não me sentia preparada pra
fazer a prova. (Lip)
As identidades reveladas por esse processo voltam-se para indivíduos que se
sentem, de certa forma, inferiores, sem oportunidade, porém, que se esforçaram e
alcançaram outro nível de vida.
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(1) quer dizer o menino sem nome conseguiu chegar aqui [...]. (Let )
É nesse sentido que Fairclough ([1992] 2008) entende que os sujeitos sociais são
capazes de remodelar e reestruturar as práticas sociais. Os estudantes fazem uso de
práticas discursivas comuns à cultura brasileira, mas isso não significa que se renderam
às ideologias consagradas no discurso de muitos. A representação de mundo presente do
discurso desses jovens mostra que suas práticas discursivas podem mudar o rumo de
suas histórias de vida.
As estratégias de legitimação por avaliação moral
As
estratégias
discursivas
utilizadas
pelos
estudantes
para
mostrar
seu
pertencimento ao nível superior de ensino estão voltadas para o processo de legitimação
por avaliação moral, ao qual se refere van Leeuwen (1997). Segundo este autor, esse
processo é baseado em valores expressos pelos usuários da língua por meio de palavras,
como, por exemplo, “mau”, “bom” ou outra cujo significado expresse valores negativos
ou positivos. Todavia, não são realizadas por meio de imposição por parte de algum tipo
de autoridade (VAN LEEUWEN, 2008). Na maioria dos casos, a avaliação moral está
ligada a discursos específicos de valor moral e, na análise de discurso, sua percepção não
se dá por meio da identificação de uma ocorrência linguística especifica, mas pelo
reconhecimento a partir de critérios baseados em conhecimento cultural.
Os estudantes mostram-se, muitas vezes, (in)seguros e (in)capazes de participar
das atividades propostas pelos professores, ora porque a linguagem dos textos é difícil,
ora porque não conhecem os gêneros acadêmicos a serem produzidos, conforme
mostram os exemplos (8) e (9).
(8) Ah assim, dá o sentimento de incapacidade, primeiro momento você
fica “Gente, será que é só comigo?”. (Hov)
(9) Eu sinto algum... um pouco de dificuldade porque aqui é diferente. Tipo,
eu não aprendi, no segundo grau, a fazer um projeto de pesquisa igual eu
aprendi agora, tipo uma resenha também. (Hax)
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Ao mesmo tempo, o julgamento que fazem sobre sua preparação para ingressar
na educação superior é negativo, pois o discurso mostra (in)capacidade para realizar o
processo seletivo, conforme mostram os exemplos de (4) a (7). Busquei, então,
compreender de que maneira os estudantes se mostram engajados com as práticas
sociais acadêmicas, uma vez que não se sentem tão capacitados para desenvolvê-las.
Van Leeuwen (1997) diz que os usuários da língua fazem uso de recursos
linguísticos para legitimar seus discursos. Um deles é a estratégia de legitimação por
avaliação moral. Esta foi a estratégia identificada no discurso dos estudantes, utilizada
para se mostrarem aptos a participar das práticas sociais inerentes à vida universitária.
Discursivamente, os colaboradores de pesquisa representam seus colegas de turma como
àqueles que conversam muito, que não assistem às aulas, conforme se pode verificar nos
exemplos de (10) a (13), quando os estudantes de referem aos colegas de turma como
os “outros” que não perguntam, faltam às aulas, conversam o tempo inteiro:
(10) Eu acho que alguns se esforçam, têm outros que eu vejo também não se
esforçando, mas não sei se... Talvez porque não pergunta ou porque
faltam à aula [...] Eu me esforço, os outros eu não sei. (Hax)
(11) [..] mas também tem outros alunos super desinteressados que ficam as
aulas todas lá fora conversando, bebendo [...] (Het)
(12) A turma de um modo geral não presta atenção em nada, eles ficam
muito... conversando o tempo inteiro, a gente mudou de lado da sala
porque não tava aguentando conversinha, entendeu? (Bip)
(13) por mais que eu seja a mais nova da sala, às vezes eu acho que eu tenho
mais consciência de que eu estou
no ensino superior do que muita
gente mais velha lá na sala, [...], estão achando que no ensino médio que
está aqui só pra curtir, (Lax)
Woodward (2008) diz que as identidades são construídas pela diferença. A
diferença, neste caso, é marcada por representações simbólicas vinculadas às práticas
sociais dos estudantes no que se refere ao cumprimento de regras sociais tácitas, como,
por exemplo, prestar atenção às aulas, fazer todas as tarefas solicitadas pelo professor,
não faltar às aulas, entre outras.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
As identidades dos colaboradores de pesquisa parecem se firmar com valores que
se esperam serem seguidos por um estudante universitário, qual seja, ser esforçado para
ultrapassar as barreiras intelectuais, assistir às aulas sem conversar com os colegas,
realizar as atividades propostas pelos professores, cumprir os prazos estipulados para
entrega de trabalhos, não conversar, não gazear aulas, entre outras.
Considerações finais
A análise do discurso dos estudantes revela marcas ideológicas sobre as condições
sociais da cultura brasileira, principalmente aquelas que se referem às condições de vida
dos moradores da região Nordeste e revela, de certa forma, a crença de falta de
oportunidades que aqueles cidadãos, como justificativa da (in)capacidade intelectual.
Como demonstram dificuldade em ter as habilidades que se entendem necessárias ao
ingresso na educação superior, as identidades reivindicadas pelos estudantes que
colaboraram com esta pesquisa são construídas a partir do jogo de poder de
desqualificação do colega, mostrando que ele não cumpre as regras propostas para um
estudante universitário e que, portanto, não podem ser confiáveis.
A negociação se dá por meio do uso de elementos provenientes de outros textos
presentes no discurso dos estudantes. Esses elementos situam-se no contexto de cultura
com marcas de brasilidade e, por esse motivo, podemos entender, conforme Fairclough
([1992]2008), que todos os discursos são historicamente situados e, por isso, devem ser
compreendidos em seus contextos, sendo este crucial para as análises, uma vez que
incluem explicitamente componentes sociais, psicológicos, políticos e ideológicos.
Esse dados, ainda que em processo de apreciação, mostram que as crenças dos
estudantes podem ser identificadas por meio da análise do significado identificacional do
discurso e são reveladas por meio de estratégias de legitimação, conforme Thompson
([1990] 2007) e van Leeuwen (1997). A partir disso, é possível perceber que os
processos ideológicos envolvem relações de dominação estabelecidas e sustentadas por
práticas discursivas que tendem a transformar as condições sociais.
O uso de estratégias de legitimação por avaliação moral faz com que as
identidades sejam negociadas linguisticamente, para mostrar que os colaboradores de
pesquisa são esforçados, confiáveis. A utilização dessa estratégia de avaliação moral está
inserida nas relações de poder estabelecidas pelos estudantes e pode ser entendida como
luta hegemônica a partir da crença de que o fato de cumprirem com as regras
estabelecidas para os “bons alunos” faz com que se sintam pertencentes ao grupo. Trata-
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DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
se, portanto, de práticas ideológicas, conforme Fairclough ([1992] 2008, p. 94), para
quem “o discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os
significados de mundo de posições diversas nas relações de poder”. No caso dos
estudantes colaboradores desta pesquisa, as relações de poder são estabelecidas por
uma prática de negociação de confiabilidade moral e não de capacidade intelectual.
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