PROFESSORES EM REVISTA: A REVISTA DE FILOSOFIA KRITERION E SUA INTERLOCUÇÃO NO DEBATE EDUCACIONAL MINEIRO Lucimar Lacerda Machado [email protected] Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Maria do Carmo Xavier [email protected] Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PALAVRAS-CHAVE: IMPRESSO; ENSINO SECUNDÁRIO; MODERNIZAÇÃO; Que lugar foi reservado ao ensino secundário no projeto de modernização e desenvolvimento mineiro, na década de 1950? Para responder a pergunta é importante considerar que em Minas Gerais, como em outras regiões do país, o debate em torno do ensino secundário – suas finalidades, princípios, objetivos e organização – se articula a história da política educacional brasileira. É possível dizer que desde o século XIX a educação secundária passou por uma profusão de leis e reformas que visavam corrigir seus dilemas e contradições. Contudo, o formalismo e a incompletude das medidas e intervenções propostas pelos governos não conseguiu produzir um sistema escolar público e uma estrutura de ensino secundário que, efetivamente, oferecesse oportunidades a todos. Nesta comunicação focamos elementos da conjuntura nacional que caracterizaram a relação entre a educação e as demandas de modernização e desenvolvimento do país, tendo como fio condutor as propostas de reformas e as críticas à organização do ensino secundário na década de 1950. O objetivo é destacar os antagonismos da modernização brasileira e da estruturação legal do ensino secundário, na sua vinculação com as demandas socioeconômicas do período. Partindo da questão apresentada acima, buscamos compreender o pensamento de um grupo de professores e intelectuais mineiros que manifestou ideias e críticas sobre o ensino secundário, fez considerações sobre a sua natureza, suas deficiências, problemas e necessidade de adequação ao processo geral de modernização brasileira na conjuntura da década de 1950. Para tanto, direcionamos as primeiras investigações para uma única fonte documental: a Revista de Filosofia Kriterion. Este caminho metodológico se justifica pela opção de produzir um mapeamento de informações sobre a temática do ensino secundário a partir de uma fonte específica. Neste caso, um periódico que desempenhou importante papel no debate mineiro à época e que nos ajuda a entender a chamada “Crise do Ensino Secundário” i. O impresso e as ideias em circulação O trabalho com imprensa periódica tem se apresentado como importante recurso para ampliar e aprofundar as pesquisas na área da história da educação. Atentos à materialidade e aos aspectos relacionados aos usos e às estratégias editorias que caracterizam o periódico como um produto cultural específico, os historiadores têm explorado a imprensa periódica como objeto e fonte de pesquisa. Não temos aqui a pretensão de discutir os vários aspectos que emergem desse trabalho, mas, reafirmar a premissa de que cabe ao historiador estabelecer as associações possíveis entre cada fonte, cada documento, e as informações trazidas por outros estudos sobre o tema. No caso desse estudo indexamos 29 artigos publicados entre os anos de 1947 e 1961, que abordavam a educação secundária e os temas que dialogavam diretamente com a temática educação e modernização. Conferências, discursos, palestras, oração de paraninfo, tradução ou adaptação de texto entre outros. E esse banco de dados permitiu situar o debate sobre a educação secundária e apreender suas vinculações com as questões do desenvolvimento e da modernização, dentro do recorte temporal proposto. Ou seja, a criação da revista no ano de 1947 e o momento de aprovação da Lei 4024/61, que, em certa medida encerra uma das etapas da reforma do ensino secundário no Brasil. A revista foi utilizada como fonte, especialmente pelo caráter formativo presente nos textos nela publicados e a intencionalidade do periódico em divulgar e vulgarizar o conhecimento científico entre alunos, professores e demais interessados no assunto em pauta. O teor educativo da revista permitiu sistematizar informações sobre as ideias propagadas no processo de modernização da educação secundária e destacar o repertório cultural do período, além, de abrir caminhos para a percepção dos questionamentos e tensionamentos do projeto político de reforma do ensino secundário em Minas Gerais. Assim, mesmo que restrito a uma publicação específica e a um grupo reduzido de intelectuais, os dados sistematizados permitem compreender o repertório analítico que circulou em torno do papel do ensino secundário no desenvolvimento e modernização brasileira nos anos de 1950 e seus desdobramentos em Minas. Sobre a revista Kriterion é preciso dizer que ela foi criada em 1947 por um grupo de professores da antiga Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (UMG), interessados em divulgar conhecimentos e a opinião “abalizada” de professores, políticos e estudiosos do campo da filosofia, da literatura e ciências sociais. Destacando-se como uma das mais longevas publicações da atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Kriterion ainda se encontra em circulação, destacando-se como importante espaço de divulgação da produção acadêmica. Com periodicidade trimestral, a revista se destinava a um campo vasto da produção acadêmica versando entre história, literatura, filosofia, educação, dentre outros. No primeiro exemplar da revista (1947) o então diretor da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (FMG), Braz Pellegrino destaca seus propósitos. A revista que ora inicia a sua vida pretende, antes de tudo, conquistar para si o papel de porta-voz da cultura em terras de Minas, contendo em suas páginas o que de mais representativo existe em nosso Estado, no que diz respeito às belas letras, filosofia e ciência. E não se nos acoime de vaidade ao expormos os propósitos que orientam nossa ação (KRITERION, vol. 1, no.1, 1947). A revista fez circular entre 1947 e 1961, um conjunto de artigos e comentários críticos de vários eventos de caráter político, econômico ou social ocorridos na sociedade mineira e brasileira estabelecendo sua correlação e desdobramentos no campo educacional. Como um veículo de divulgação do trabalho científico a revista abriu também espaço para a circulação de ideias e ações da intelectualidade mineira, como sugere o seu editorial: O intelectual, o artista, o filósofo, o poeta são, antes de mais nada, homens de ação, e o ato neles é o mais puro, o mais dinâmico, o mais penetrante, porque mais próximo das fontes onde borbulha o espírito, matriz de tudo quanto existe. É na linha deste raciocínio que criamos a presente revista. Ela determina bem os intuitos que impulsionam até o futuro a Faculdade de Filosofia de Minas Gerais (KRITERION, nº 1, vol. 1 – julho a setembro de 1947). Nos textos publicados no período em tela uma série de análises, informações e sugestões de mudanças no ensino secundário permitem entender a ambiência e as várias facetas do debate mineiro. Como um suposto “porta-voz da cultura em terras de Minas” a Kriterion contribuiu, sobretudo, para fazer circular a pluralidade de ideias e ideais de professores, acadêmicos, filósofos, cientistas e homens públicos, sobre os destinos do ensino secundário. Tratava-se, portanto, de um grupo representativo dos interesses da elite educacional mineira que, naqueles anos, transitavam entre a Faculdade de Filosofia e os estabelecimentos de Ensino Secundário. Esse grupo manifestou suas crenças em relação aos princípios, valores e à organização do ensino secundário; à formação e o recrutamento dos professores; à compreensão sobre o exercício do magistério e a necessidade de uma renovação didática do ensino secundário e do ensino superior, numa época de transformações e mudanças radicais nos comportamentos político e social da juventude belo-horizontina. Mas, para compreender os termos de debate é preciso situá-lo no tempo. O Ensino Secundário e a modernização brasileira Pesquisadores da história da educação, VEIGA (2008) FARIA FILHO (2010) GONDRA e SCHUELER (2008) tem chamado a atenção para a necessidade de relativizar o uso de clivagens macroscópicas para explicar o fenômeno educacional, evitando, assim, incorrer numa visão panorâmica de um determinado período histórico. Neste trabalho buscamos evitar essa compreensão da história e observar o movimento político e cultural que desde meados do século XIX marcou um conjunto de mudanças econômicas, políticas, sociais que alteraram o cotidiano das pessoas e a organização das instituições e hierarquias da vida social. Esse processo, nomeado como de modernização da sociedade brasileira se deu em ritmo diferenciado em cada região e foram evidenciadas, no campo educacional, por um conjunto de reformas e interferências, conduzidas pelo Estado. Ao longo do tempo, as ações do governo, frente às demandas de modernização do país, produziram impactos diretos na vida das camadas populares, que, recorrentemente, foram excluídas dos projetos modernizadores conduzidos pelo Estado. A análise das políticas públicas nos ajuda a compreender os desequilíbrios regionais e dimensionar o lugar conferido à educação escolar, especialmente, nos confrontos em torno do alargamento da concepção de educação pública que, a partir com a ascensão dos discursos republicanos, uniu as elites em torno da crença de que o progresso da nação dependia da escolarização do povo. Nesse movimento a imposição da ordem republicana se deu a partir de um conjunto de reformas sociais. A reforma urbana de Pereira Passos e do movimento de Canudos, dois exemplos ocorridos no início da república, nos ajudam a explicar como o governo organizou o processo de modernização da sociedade brasileira a partir da exclusão das camadas populares. Situação que se repetiu ao longo de décadas ampliando as desigualdades regionais e acentuando o quadro de desordem social. No século XX, várias reformas urbanas, foram implantadas no Brasil desencadeando uma série de mudanças no âmbito público e privado. Basicamente essas reformas visavam ajustar a população em geral aos interesses político-administrativo, econômico e social dos grupos dominantes. Pedagogicamente criteriosas, as reformas sociais tentaram impor novas formas de organização e planejamento social. Foi o caso da reforma Pereira Passos, que definiu um novo ordenamento no uso do espaço urbano demarcando espaços de moradia, de circulação e de sociabilidade dos diferentes grupos sociais, segregando e expulsando a população pobre para as áreas periféricas aos grandes centros, sem infraestrutura urbana e social. Na mesma lógica, a repressão ao movimento de Canudos, ocorrido no interior do nordeste brasileiro no final do século XIX, demarcou a ação brutal do governo frente aos questionamentos da ordem republicana. Nos dois exemplos é clara a imposição do Estado sobre a sociedade. De lá para cá, o país agrário e latifundiário, fundado na tradicional cultura escravocrata e na economia cafeeira, continuou reprimindo, segregando e dificultando a participação política das camadas populares. Marcado por antagonismos o projeto modernizador brasileiro excluiu a população pobre das benesses de uma política pública social que verdadeiramente assegurasse seus direitos básicos. O projeto moderno não foi capaz de produzir reformas que, efetivamente, se ajustasse à realidade nacional. A inadequação do projeto nacional de modernização e desenvolvimento econômico e social do país, também demarcou as políticas educacionais. A dimensão do direito a educação como direito social (o que inclui a questão da gratuidade e da obrigatoriedade) foi silenciando em todas as constituições republicanas, exceto na de 1988, que o consagrou no âmbito da educação básica. Apesar dessa conquista ainda são muitos os limites e dificuldades para a formalização desse direito para toda a população. No Brasil as profundas desigualdades sociais dificultaram a concretização de um projeto de modernização capaz de assegurar às camadas populares acesso aos direitos sociais, condição fundamental para a construção da ordem republicana. Não resta dúvida de que a escola teve e ainda tem um papel importante na produção dessas desigualdades. O seu caráter homogenizador da cultura e sua prática discriminatória e essencialmente meritocrática forjou, historicamente, o seu distanciamento das demandas populares. A ideia da produção da escola como assunto de governo provocou entre os anos de 1920/30 calorosos debates envolvendo educadores, intelectuais e o Estado. Protagonizado por intelectuais com representatividade política – Carneiro Leão, Francisco Campos, Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho – esse movimento, de defesa de uma educação nacional que adequasse a escola primária e secundária às mudanças que ocorriam no país, produziu o campo educacional dividindo opiniões e polarizando o debate entre renovadores e conservadores. Para Chagas (1998) “Convencidos de que ações modernas são obras de arte política” esses intelectuais fundaram a Associação Brasileira de Educação (ABE) e em 1932 redigiram um Manifesto político, endereçado “ao povo e ao governo”, por meio do qual se demarcou os princípios que deveriam produzir a obra de reconstrução educacional, ou seja, a escola de massa. A resposta do Estado, encarregado de pensar a educação escolar, se deu a partir de um rol de decretos, que ficaram conhecidos como a Reforma Francisco Campos, que, dentre outras providências, produziu uma estrutura orgânica para o ensino superior, secundário e comercial em todo o território nacional (Romanelli, 2002). Entre 1942 e 1946, o ministro Gustavo Capanema estabeleceu um novo conjunto de leis, conhecidas como Leis Orgânicas do Ensino, destinadas a cada área específica, normatizando a formação propedêutica e o ensino profissional. Em ambos os casos as reformas se apresentaram como formulações de uma política educacional que acentuava as incongruências do sistema nacional de ensino. Marcadamente autoritárias essas reformas consolidaram uma legislação restritiva para a educação secundária, o que contribuiu para hierarquizar ainda mais esse nível de ensino. As reformas estruturaram o curso secundário a partir de um currículo enciclopédico, de caráter elitista, e um processo de avaliação extremamente rígido e altamente seletivo. Ao regulamentar o ensino comercial e industrial, destinados à formação de algumas profissões técnicas, restringiu o currículo à preparação de jovens, especialmente das camadas populares, para o atendimento das demandas dos setores industriais. Naturalizando as diferenças sociais e reforçando o dualismo do ensino secundário estruturado em dois seguimentos; um que dava acesso ao ensino superior e outro destinado o ensino profissional, tanto a Reforma Campos quanto a Reforma Capanema consolidaram as contradições do sistema nacional de educação. O fosso entre a classe média, que buscava no ensino secundário um lugar de distinção social, e as camadas populares, que reivindicavam para seus filhos melhores condições de vida e trabalho reforçou ainda mais as desigualdades entre ricos e pobres. Podemos concluir que, sem produzir a universalização dos direitos sociais o projeto modernizador do ensino secundário conduzido por Francisco Campos e Gustavo Capanema, ampliou as distancias entre a educação brasileira e as exigências do mundo moderno. O ensino secundário no debate mineiro Como se produziu na capital mineira o debate sobre o ensino secundário? A resposta a essa pergunta nos conduziu ao cruzamento do discurso governamental, sistematizado nas Mensagens dos Governadores apresentadas à Assembleia Legislativa, e o discurso acadêmico e intelectual que circulou na revista Kriterion, fonte preciosa neste estudo; na Revista do Ensino; e nos Boletins do Centro Regional de Pesquisas Educacionais. O trabalho permitiu a identificação de seis aspectos que indicam aproximação do debate sobre o ensino secundário em Belo Horizonte e o projeto de modernização nacional. São eles. 1. As considerações sobre a origem e a natureza do ensino secundário. 2. As críticas ao curso primário, secundário e o superior. 3. As precariedades pedagógicas do curso (exames de admissão, currículos, processos de avaliação, didática e metodologias de ensino). 4. A formação dos professores, diretores. 5. A origem familiar e socioeconômica dos alunos. 6. A relação entre as demandas da vida moderna e a crise do ensino secundário. De uma maneira geral, as fontes analisadas associam o imperativo das mudanças no ensino secundário aos problemas políticos e sociais advindos do processo de modernização e desenvolvimento econômico em curso no estado. Na avaliação dos governadores e dos articulistas das revistas consultadas, a questão da formação da infância e da juventude se configurava num problema a ser equacionado pela ação dos governos, com a efetiva participação das instituições culturais, encarregadas de conduzir a “verdadeira” obra de difusão da cultura, do progresso material e o aperfeiçoamento das sociedades humanas. Segundo o Governador Clóvis Salgado, A condição oriunda do progresso material, o ritmo apressado da vida moderna, que exigia a cada passo, novas formas de adaptação e comportamentos individuais, concorria para colocar a educação no plano das responsabilidades estatais de maior premência e responsabilidade. (MENSAGEM, 1955, P.159) Para o governador, os dados sobre o ensino demonstravam um incessante crescimento da rede escolar do estado nos seus diferentes graus. No entanto, pedidos de criação de novas instituições escolares não paravam de chegar ao Departamento de Educação. Na avaliação de Clóvis Salgado e de outros governadores que o antecedeu e sucedeu a questão da demanda escolar não se resolveria apenas com a instalação de escolas. Era fundamental dar-lhes assistência e orientação técnica que a preparasse para sua missão pedagógica e formativa. Boa parte dos homens públicos mineiros partilhava o argumento do governo. “A educação é um processo de elaboração lenta e de influência nem sempre imediata para o complexo social”. A expansão da escolarização pública exigia dos governos gastos que implicavam um longo período de tempo para obter-se retorno. Para Faria Tavares ii, secretário de educação no governo Magalhães Pinto (1961-1965) “o problema educacional” mineiro se assentava na demanda moderna por criação de escolas de ensino primário e secundário, bem como na formação e preparação do homem para a vida produtiva, isto é, para o mercado de trabalho. A expansão da escolarização, ao contrário dos setores industriais e tecnológicos, no quais se obtinha retorno rápido e compensadores, implicava um longo período de tempo para se obter o retorno dos investimentos. Esse raciocínio fundamentou o argumento de que o investimento no custeio da educação não poderia resultar em inúteis resultados. Tanto no discurso do governo quanto no de muitos intelectuais, a deficiência do ensino foi apresentada como o grande desafio a ser vencido. Segundo Tavares, não era possível equacionar o problema da qualidade do ensino de maneira imediata, porque, na adoção das medidas para solucioná-lo, entraria o fator tempo, já que o processo de preparação do homem e formação de professores é lento e a construção de uma rede escolar dependeria dessas e tantas outras condições de implemento difícil e vagaroso. Daí, a necessidade de que amadureça, no curso do tempo, uma consciência viva de que o problema não se resolve pelo esforço de uma geração ou duas, mas pela ação conjugada, permanente e contínua de várias gerações. (...) Encaramos no momento, a educação como o problema de maior relêvo e significação para a vida administrativa e política do Estado; sem a sua solução não teremos condições para a nossa emancipação econômica e muito menos para a nossa autentica vivencia democrática (Revista do Ensino, ano XXXI, nº 213, p. 59-61, dezembro de 1962). O argumento da falta de recurso e da precariedade do ensino é recorrente na fala dos governantes e dos intelectuais mineiros. Em aula inaugural, proferida no ano letivo de 1953, na Faculdade de Filosofia da UMG, publicada na Kriterion em separata aos números 23/24 janeiro e junho, Abgar Renault iii chamava atenção para a natureza e a complexidade da crise do ensino brasileiro. Ao destacar a responsabilidade da Faculdade de Filosofia na formação de professores para o curso secundário ele reafirma a sua compreensão sobre a missão do curso “a matriz das elites intelectuais e morais” - para, em seguida, apontar os problemas vividos naquele nível de ensino. Na sua avaliação os problemas do ensino refletiam “a nossa vocação para o simulacro” iv. Ou seja, a crise do ensino no Brasil podia ser claramente percebida na forma como a nossa sociedade se relaciona com a realidade. Citando como exemplo a situação do curso secundário ele afirma que, apesar de conhecermos o ínfimo grau de eficácia desse nível de ensino, muitos afiançam, como valor, a necessidade de criação de “estabelecimentos de ensino secundário onde o ensino primário mal existe e mal merece o nome que tem”. A seu juízo o fracasso do secundário podia ser dimensionado no “descalabro das reprovações” nos exames de português aplicados aos candidatos à admissão ao Colégio Pedro II e aos cursos superiores no Brasil; “na falta de preparação pedagógica do professor”; na precariedade cultural e moral de diretores e funcionários dos estabelecimentos de ensino, capazes de atitudes inadmissíveis como a alteração de notas e resultados de exames para beneficiar aqueles que deveriam ser reprovados. Renault destaca também o comportamento dos pais de alunos que, “no desejo irrefreável de ver vitorioso quem não procurou adquirir, e não adquiriu as condições para a aprovação”, recorrem aos expedientes absurdos para garantir o diploma. Para Renault, no Brasil os simulacros não eram meramente mediações da realidade, nem mesmo mediações enganadoras da realidade; eles simplesmente ocultavam que algo como a realidade era irrelevante para nossa cultura, marcada por privilégios. E nesse raciocínio apontava as questões que precisavam ser equacionadas em relação ao ensino secundário. Dentre elas a compreensão das “raízes da estranha condição do ensino secundário brasileiro”. A necessidade de identificar as causas do seu fracasso e a urgência de se conhecer os aspectos da “verdade nacional”. Neste ponto o seu discurso é pessimista. Diz ele: Não temos coesão nem intensidade social para sustentar o pomposo estilo de vida que exibimos ao espanto do turista mais distraído. A nossa construção social é uma pirâmide invertida, isto é, não tem base de sustentação que lhe suporte a superestrutura, tão pesada quanto artificial. Crescemos em vão e multiplicamos inconscientemente as nossas instituições básica, especialmente as da educação, sem poder socorrê-las em suas enfermidades de herança, que se declaram no justo momento em que entram a funcionar. Em vez de estratificar e consolidar as primeiras conquistas, as fundamentais, cuidamos logo de aumentar-lhes o número em prejuízo de um mínimo de boa qualidade. Possuímos o que somos incapazes de manter em funcionamento eficaz. Somos um povo incompetente, em marcha forçada para a desagregação, pois está a falecer-nos coragem para ouvir a verdade e corrigir s erros, falhas e desmandos crassos que ela exibe. (KRITERION, N.23/24, Jan/jun,1953) Menos cético que Renault, o professor Arthur Versiani Velloso, catedrático de História da Filosofia da UMG, destaca em artigo publicado na Kriterion em 1951, intitulado “A Filosofia como matéria de ensinança” o seu entendimento sobre papel e a missão da Faculdade de Filosofia na formação de professores para o ensino secundário. Como diretor da Faculdade e um incentivador da formação e do aperfeiçoamento docente, ele critica a maneira “imatura” com a filosofia vinha sendo ensinada nos cursos secundário e superior propondo uma estruturação dos estudos filosóficos a partir de um currículo sistematizado e maior rigor metodológico. Para ele a filosofia deveria ser compreendida como um campo científico, pautado por etapas de estudo e a necessidade da lógica como meio de apoio. Ao criticar a precariedade do ensino de filosofia numa instituição considerada vital na organização do sistema universitário Arthur Versiani faz coro à análise de Dom Beda Kruse, catedrático da Faculdade de Filosofia da PUC-SP, que em três artigos publicados na Kriterion (jan/jun e jul/dez de1952 e jan/jun de 1953) discuti dois temas centrais ao ensino superior; o “Desenvolvimento e importância das Faculdades de Filosofia no plano brasileiro de 1936 a 1950” e “o problema das universidades brasileiras”. Os artigos discutem as finalidades e a essência da universidade destacando que no Brasil a universidade só estabeleceu com a instauração do regime republicano, num sistema de simples reunião de cursos superiores. Somente na década de 1920, no bojo da discussão acerca do lugar da universidade ganharia visibilidade no debate sobre as mudanças econômicas e as novas demandas profissionais que impunham a necessidade de adequação da formação técnica e profissional e a formação científica e humanista. D. Beda defende a organização de um sistema universitário que contemple o equilíbrio entre os interesses culturais e os profissionais, num duplo sentido, o de preparar tecnicamente e de proporcionar as vocações desinteressadas. Ao seu ver a Faculdade de Filosofia atendia esses propósitos porque, além de preparar para o domínio do conhecimento da alta cultura e para as ciências puras, tinham também o escopo de formar professores para o ensino secundário. Embora reconheça certa autonomia da universidade brasileira, D, Beda chamava a atenção para as muitas restrições na organização didática e disciplinar e para a natureza predominantemente utilitária proposta no estatuto da universidade que primordialmente atendia as necessidades sociais e econômicas do país. Ao reconhecermos esta verdade o faremos em virtude das condições reais em que se criou a universidade. A finalidade utilitária predomina acentuadamente a estrutura da universidade. Apesar disto encontramos nela os elementos essenciais e constitutivos que correspondem ao verdadeiro sentido de uma universidade: elevação do nível da cultura geral pelo cultivo da investigação cientifica e a habilitação ao exercício de profissões que exigem preparo técnicocientífico superior. (KRITERION, jan/jun,1952, p. 84) O problema da incorporação de novos institutos de ensino superior de natureza técnica ou cultural volta à cena em 1937 com a Lei n.452 cria Universidade do Brasil estabelecendo o modelo e a finalidade dessa instituição: o “desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística”. Nessa lógica, em Belo Horizonte, a Faculdade de Filosofia da UMG foi concebida em 1939 como o ‘coração da universidade’. Na mesma vertente discursiva o governador Milton Campos v em sua oração de paraninfo pronunciada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais em 11 de dezembro de 1948, intitulado “A Missão da Faculdade de Filosofia” e publicado na Kriterion, em 1949, sinaliza a necessidade da existência das escolas superiores profissionais ao mesmo tempo em que ressalta o “o gosto dos mineiros pelos estudos desinteressados”. Como um bom político tenta valorizar a ideia da tradição e vocação de Minas para a Política e para a Cultura: Sempre foi apanágio do mineiro o gosto pelos estudos desinteressados lembrese que nunca nos faltaram grande mestres, “técnicos em ideias gerais”, segundo a pitoresca e exata expressão, é certo que as próprias inclinações do nosso espírito, uma tradição, cujos marcos podem ser facilmente assinalados através da história, estavam a exigir um instituto como este, que abrigasse aquelas tendências e assegurasse a sua continuidade. Escolas que tenham por finalidade a formação pura e simples do profissional são indubitávelmente necessárias e merecem todo estímulo. Ao lado delas, porém, ou melhor, acima delas, como que servindo-lhes de cúpula, cumpre manterem-se instituições cujo escopo seja o desenvolvimento contínuo da Cultura, em seu sentido mais amplo. Esse o aspecto dir-se-ia arquitetural da Universidade, e que só se poderia evidenciar através de uma Escola de Filosofia, Ciências e Letras. A esta Faculdade que ora entrega ao ensino e à educação, em nosso Estado, mais uma turma de mestres, está confiada a missão precípua de amparar e desenvolver a arraigada vocação de cultura que é, no consenso geral, uma característica de Minas. (KRITERION, jul a dez/1949, no 9/10, p. 329/330) Nos artigos assinalados fica claro o reconhecimento do lugar da faculdade de filosofia na formação das elites intelectuais e políticas mineiras e a perspectiva da origem familiar e socioeconômica dos alunos que frequentavam a universidade na década de 1950. Outro aspecto observado é o perfil dos professores do ensino secundário, formados pela faculdade de filosofia, responsável também por ministrar cursos de aperfeiçoamento de professores do ensino secundário. A preocupação em inserir os alunos nos domínios da alta cultura teria por escopo formar professores capacitados para as exigências do ensino secundário. Nessa linha Mário Casasanta, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, em aula inaugural do curso de férias para o aperfeiçoamento de professores secundários, publicada na Kriterion em 1947, se posiciona em defesa da formação dos professores e faz críticas a União ao perguntar. “Como pode o governo descuidar da formação daqueles a quem se reserva necessariamente a função, sobre todas importante, de dirigir e orientar a comunhão. E do ensino médio que saem as classes dirigentes.” (KRITERION, 1947) A partir dos artigos publicados na revista Kriterion convém salientar que em Belo Horizonte a Faculdade de Filosofia era espaço de encontro de intelectuais e de debate de ideias e valores culturais. Existe um forte vinculo entre professores e alunos da Faculdade e o ensino secundário na medida em que essas modalidades de ensino são complementares na formação universitária. Contudo, observa Abgar Renault, em seu artigo “Sentido Autotélico do Ensino Secundário” essa finalidade não pode ser tomada como sua principal função. O ensino secundário tem por uma de suas finalidades a preparação para os cursos superiores, mas guarda, irrecusavelmente, um sentido autotélico, que é o da formação do espírito ou do homem como um todo, neutro e indiferente entre as carreiras profissionais. Uma das missões da universidade tem suas raízes, como se vê, no ensino secundário. (Revista Kriterion, p. 104, vol. 19-20, 1952) Se por um lado Abgar Renault afirma o sentido autotélico do ensino secundário, de outro, o professor Aires da Mata Machado Filho no artigo “Fé na Educação e na Cultura”, publicado em 1949 constrói sua crítica ao secundário remetendo-se aos problemas do ensino primário. Expõe os problemas de inadequação das disciplinas e conteúdos, acentuando a defasagem entre esses níveis escolares que, por conseguinte, atropelam o ensino superior. Diz ele. “[...] permanece o ensino secundário, em pontos de metodologia e de pedagogia, mais de cem anos atrasado em relação ao de primeiro grau. Depois de um curso primário insuficiente, já que por indescupável espírito de economia dos estudos elementares duram menos entre nós que em muitos países civilizados, o aluno que pode ingressar no curso secundário muda, subitamente, de atmosfera metodológica.” (KRITERION, vol. 11/12, 1950) As precariedades pedagógicas e metodológicas e a defasagem do curso secundário apontadas pelo professor Aires da Mata Machado Filho reforça os argumentos dos intelectuais sobre os problemas da educação primária em Minas Gerais. Para Mata Machado, faltam investimentos que possibilitem a preparação do aluno na passagem do primário para o secundário. A questão se agrava no âmbito da educação rural que se encontra distante da ação do Estado e das legislações educacionais. Podemos perceber que no cenário mineiro o debate sobre o ensino secundário esteve em sintonia com as questões de modernização nacional e desenvolvimento econômico. No caso mineiro os artigos analisados reforçam um descompasso entre a estrutura do sistema educacional mineiro e a urgência da modernização. CONCLUSÃO No propósito de apresentar a interlocução de um grupo de professores que fizeram circular suas ideias sobre os problemas da educação em Minas Gerais e no Brasil nos anos de 1950 a revista Kriterion foi uma fonte privilegiada na compreensão do debate sobre o ensino secundário. Ela nos possibilitou adentrar num campo de análise ainda pouco explorado por pesquisadores da educação. Os artigos analisados permitiram identificar uma vasta produção intelectual dos professores e a pluralidade de ideias de cientistas políticos e homens públicos sobre a relação educação e modernização no panorama brasileiro. Os argumentos mobilizados por esse grupo mostram que em Belo Horizonte, como nas demais regiões do país, o debate sobre o ensino secundário esbarravam nos entraves políticos e econômicos de um governo centrado na perspectiva do progresso sem, contudo, investir em ações necessárias para a sua concretização. Nesse sentido, o apelo retórico e discursivo do Estado na defesa da qualidade da educação, tendo em vista as demandas da vida moderna e do desenvolvimento econômico, acabou provocando um maior distanciamento de um projeto de educação democrática. Os dados indexados a partir da revista indicam que pouco se fez pela educação das camadas populares. Como sugere o professor Aires da Mata Machado Filho, em Minas a “fé na educação” como instrumento das mudanças sociais permaneceram nos discursos. A escolarização das camadas populares foi incorporada às políticas públicas como questão de menor relevo, ao contrário dos investimentos dos setores industriais e tecnológicos. O pouco investimento na educação pública acentuou a dualidade entre escolas para ricos e pobres reforçando, ainda mais, as desigualdades econômicas, sociais e culturais. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Editora Perspectiva, 1968 BICCAS, Maurilane de Souza. Impresso Pedagógico como objeto e fonte para a História da Educação em Minas Gerais: Revista do Ensino (1925-1940), Autentica, Belo Horizonte, 2008. CHAGAS, Marta Maria Carvalho, A configuração da historiografia educacional brasileira, IN. Historiografia Brasileira em Perspectiva, FREITAS, M.C, São Paulo, Contexto,1998. GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. VEIGA, Cynthia Greive. Escola Pública para os negros e pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39, set-dez.2008 ROMANELLI, Otaiza. História da Educação no Brasil. Editora Vozes, Petropólis, 2002 Notas i A expressão, recorrente nos debates educacionais das décadas de 1930 a 1960 indica os intensos conflitos no campo educacional, político e econômico. Nessa época a discussão do lugar do ensino secundário ganhou centralidade no discurso intelectual e político, sendo apontado como um dos grandes impasses para o desenvolvimento do país. ii José de Faria Tavares, em entrevista a Elisabeth Vorcaro Horta. Revista do Ensino, ano XXXI, dezembro de 1962, no. 213. iii Abgar Renaut.... iv Segundo Baudrillard a sociedade moderna substituiu a realidade por significados por símbolos e signos, tornando a experiência humana uma simulação da realidade. Os simulacros não são meramente mediações da realidade, nem mesmo mediações enganadoras da realidade; eles simplesmente ocultam que algo como a realidade é irrelevante para nossa atual compreensão de nossas vidas. v Milton Soares Campos (1900-1972): político, professor, jornalista e advogado brasileiro. Foi governador do Estado de Minas Gerais no período de (1947-1954).