Universidade sem Cultura? A Propósito de um Manual de Filosofia

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From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha
August 17, 2011
Universidade sem Cultura? A Propósito de um
Manual de Filosofia do Direito
Paulo Ferreira da Cunha, Universidade do Porto
Available at: http://works.bepress.com/pfc/126/
RAZOAR
UNIVERSIDADE SEM CULTURA?
A Propósito de um Manual de Filosofia do Direito
Dizem que estou em férias. Na verdade, entre mil outras tarefas menos
interessantes, estou a cogitar um novo manual de Filosofia do Direito. Isso me sugeriu
algumas linhas de meditação sobre universidade e cultura. Von Wahlendorf disse que
aquilo de que mais precisamos, hoje, é de filosofia do Direito. Se acreditarmos em
Chesterton, que advertiu ser importante estudar hidráulica quando Roma arde, talvez
lhe venhamos a dar ao primeiro plena razão. Mas muitas destas notas ultrapassam
largamente esta matéria...
Um manual (como um programa) que aspirasse a falar de tudo estaria
condenado à óbvia incompletude. Seria maçadoria sem fim, de superficialidade
revoltante, e quiçá ainda não pouco ridículo.
Com a liofilização actual dos cursos, é preciso fazer dolorosas escolhas,
seleccionando matérias formativas, essenciais, no limite quase por amostragem. Ao
não compreenderem isso, muitos teimam numa luta desesperada contra o tempo, e
bellum omnium contra omnes, tentando cada um puxar para as suas disciplinas a
manta do currículo, irremediavelmente estreita. Haveria que separar o essencial do
acessório, e dar lugar ao ilustrativo.
Temos licenciaturas comprimidas e com crescentes cadeiras técnicas a
reivindicar o espaço das formativas gerais e humanísticas. Para além do crescimento
até de outras cadeiras de racionalidades diferentes, mormente económicas, que
também precisam de lugar ao sol. E ainda seria muito desejável que houvesse mais
sociologia, história, antropologia, comparatismo, metodologia verdadeira, desde logo
hermêutica, devidamente autonomizadas.
Se antigamente (como Gombrich recorda) o aluno normal entrava na
Universidade já com uma cultura humanística muito boa, o ensino secundário de hoje
(por razões sobre as quais não caberia aqui alongarmo-nos) efectivamente não
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propicia (nem a educação informal fornece) aos nosso caloiros a bagagem
indispensável.
Fazem falta as bases. Não só para os universitários compreenderem muito do
que elementarmente se lhes diz, mas ainda para que possam aproveitar o leccionado.
E para se imbuírem do espírito universitário. Universidade não é bafio, é
compromisso com a ciência e o saber, comunidade formativa e de investigação.
Há porém, infelizmente, uma tendência para a infantilização na Universidade,
para que concorrem estudantes e professores, num círculo vicioso.
E a tal acresce uma perspectiva utilitarista: muitos dos que demandam a
Universidade nela procuram (mesmo com fraudes, por todo o mundo) meramente um
diploma (quantas vezes para promoção social), ou apenas um saber-fazer imediatista,
virado para uma carreira profissional, sem qualquer interesse pela problematização,
ignorando o saber pelo saber. São levados pelo pensamento dominante.
Pior estão os saberes que se não reduzem a umas tantas fórmulas ou chavetas
de definições. Dir-se-ia até que esse estudo sebenteiro e dogmático é o exacto
contrário do que pretende a Universidade, e sobretudo os estudos filosóficos.
Mas contrariá-lo, pedir diferente, impacienta alguns alunos (talvez mesmo lhes
chegue a repugnar), habituados a fazerem os seus cursos com o uso quase exclusivo
da memória, quando não de auxiliares de memória nem sempre legais.
Qualquer pedagogia ao arrepio do consabido causa ainda, naturalmente,
estranheza. Mesmo em estudantes aplicados e inteligentes, mesmo aos que
aproveitaram o melhor possível o ensino secundário, a net, a televisão e o mundo, mas
que, mergulhados desde caloiros em cursos tecnicistas ou de exigência liceal, se
sentem então sem pé, no oceano de um saber crítico, problematizante. Pior ainda se
ele convoca também referências culturais que, na melhor das hipóteses, ficaram
esquecidas e relegadas para um plano muito secundário, pela urgência de se fazer um
curso concentrado, qual corrida de obstáculos muito juntos (v.g., acabaram as épocas
de exames de Setembro). E não se trata agora apenas de fazer um curso, mas de o
concluir competitivamente, com as melhores das melhores classificações, já com mira
na selecção feroz de um futuro mercado de trabalho (ou de desemprego?). Como é
que haveria tempo para lazer, cultura, zonas verdes, se durante o currículo formal se
exigir quase só resposta a reflexos condicionados?
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Há contudo muitos estudantes interessados em ver o outro lado. Alguns nos
confessam, nos últimos anos, quando cursam Filosofia do Direito, que finalmente
começaram a compreender, e até – o que para nós, aprendizes mais velhos da arte, é a
máxima coroa de louros – que finalmente começaram a gostar do Direito...
O problema é toda a concepção curricular, toda a sua funcionalização para
produzir futuros “burocratas da coacção”... mesmo sem que disso haja consciência, e
por vezes com rasgadas declarações em contrário.
Que fazer? Resistir à massificação, tecnocracia, economicismo. A existência
da Filosofia do Direito é já símbolo de resistência, dir-se-ia mesmo de contra-ataque.
Como ensinar, porém, para todos, esta matéria exigente e complexa?
Vacinando-os com minudências e preciosismos para que nunca mais queiram pensar
no assunto? Ou cativando-os sem baixar o nível?
O que se pode fazer, no presente contexto, parece-nos ser uma panorâmica,
um conjunto de aperitivos para que depois os interessados, a quem uma vocação
tocou, completarem a sua formação.
Cremos que é numa sólida ponte entre o clássico e o futuro em construção que
se joga a aventura da Filosofia do Direito. Tem ela de descer da ebúrnea torre
muralhada de problemas abstrusos e linguagens cifradas de um escol de iniciados, e
passar a discutir-se na Ágora. Como ocorreu no seu alvorecer, na mãe Hélade, que
ganhou há séculos o lugar cimeiro na notação das coisas do Espírito, de todas as mais
importantes e valiosas.
Paulo Ferreira da Cunha
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