a descriminalização parcial do aborto

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A DESCRIMINALIZAÇÃO
Liliam Aparecida Caldeira de Oliveira e Tuanne Caroline Ferreira Rodrigues
A DESCRIMINALIZAÇÃO PARCIAL DO ABORTO
THE ABORTION PARTIAL DESCRIMINALIZATION
Líliam Aparecida Caldeira de Oliveira1
Tuanne Caroline Ferreira Rodrigues2
Resumo: A descriminalização do aborto, ainda que parcial, é um tema que sempre gerou
muita polêmica no país. Além do prisma jurídico, os debates sobre o impasse envolvem
enredos de ordem moral, ética, sociológica e religiosa, que acabam por prejudicar uma análise
puramente técnica da matéria. Destarte, de forma mais racional, será estabelecida uma
reflexão acerca das implicações acima citadas, bem como análise penal e constitucional do
problema. Haverá a demonstração da correlação entre o princípio da dignidade humana e o
princípio da autonomia pessoal.
Palavras-chave: Aborto. Direito Penal. Dignidade da pessoa humana. Direito ao corpo.
Abstract: The abortion descriminalization, even if partial, is a theme wich has always
engended a lot polemic in the country. Besides the juridical prism, the debates about the
impasse involves not only moral, but ethics, sociological and religious matter wich prevents a
pure technical analysis of the issue. Thus, in a rational way, it is going to be established a
reflection about the implications of the subject discussed, as well as a constitutional and
criminal analysis of the issue. There will be a demonstration of the interconnection of human
dignity and personal autonomy principle.
Key words: Abortion. Criminal Law. Human Dignity.
Introdução
A descriminalização do aborto, ainda que parcial, é um tema que sempre gerou muita
polêmica no país. Além do prisma jurídico, os debates sobre o impasse sempre envolvem
enredos de ordem moral, ética, sociológica e religiosa, que acabam por prejudicar uma análise
puramente técnica da matéria.
1
Bacharel em Direito. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Direito “Hermenêutica e
Direitos Fundamentais”. Professora e Vice-Diretora da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete. Oficial do
Ministério Público Estadual. Email: [email protected]
2
Acadêmica em Direito na Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete. Estagiária do Ministério Público
Estadual. Email: [email protected]
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Destarte, de forma mais racional, será estabelecida uma reflexão acerca das implicações
acima citadas, bem como análise penal e constitucional do problema.
Objetiva-se constatar o nível de interferência do Estado sobre a intimidade/liberdade de
escolha de cada indivíduo e limitar a atuação do Direito Penal na discussão.
Os reflexos da religião na legislação sobre o aborto
A religião sempre exerceu e continua exercendo grande poder de influência no meio social.
Todavia, antigamente, eram as ideias e conceitos que tinham a Igreja, sobretudo a Católica, a
verdadeira fonte de cognição.
Assim, o aborto vai além dos fatores biológicos e jurídicos, motivo pelo qual é preciso
conhecimento, ainda que ínfimo, acerca dos ditames religiosos que influenciam diretamente
na análise do assunto.
Por mais de uma vez, o papa Bento XVI reafirmou a posição da Igreja contra o aborto e a
manipulação de embriões, asseverando que o ato de negar o dom da vida, de suprimir ou
manipular a vida que nasce é contrário ao amor humano.
Defende ainda que a vida, desde o momento de sua concepção no útero materno, possui
essencialmente o mesmo valor e merece respeito como em qualquer estágio da existência,
sendo inadmissível a sua interrupção.
Estes são os ditames defendidos pela Igreja Católica que, desde o século IV, servem de lastro
à condenação do aborto praticado em qualquer estado e em quaisquer circunstâncias, posto
que a alma é incutida no novo ser no momento da fecundação3.
Aduz que o inalienável direito à vida de todo ser humano inocente é um elemento constitutivo
da sociedade civil e sua legislação4.
Trata o aborto como um ato indiscutivelmente contrário à lei moral instituída pela igreja,
cominando a tal prática a sanção da chamada excomunhão latae setentiae.
3
Ética,
religião,
política
e
aborto.
Disponível
em:
http://abortosimounao.webnode.com.pt/aborto/etica,%20religi%C3%A3o,%20politica%20e%20aborto/. Acesso
em: 02/11/2013.
4
Catecismo da igreja católica. Disponível em: http://catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/a/aborto.html.
Acesso em: 02/11/2013.
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Diferentemente da Igreja Católica, a doutrina religiosa dos protestantes encara a questão de
forma menos homogênea, apresentando, pois, enfoques mais flexíveis a respeito. Não aceitam
o aborto como método de controle de natalidade, mas somente o aborto terapêutico, que
ocorre quando a vida da genitora está em risco. Sob esta ótica, defendem o direito à vida da
mãe. Todavia alguns já admitem o aborto eugênico, que é opcional quando o feto está
acometido por algum tipo de doença grave ou anomalia5.
Na religião islâmica se defende que o ser gerado passa por diferentes estágios até tomar a
forma humana, momento este em que se dá a “animação do ser”, isto é, em que ele recebe sua
alma. De qualquer forma, mesmo que o aborto ocorra antes da “animação”, que se dá no
quarto mês de gestação, seja ele intencional ou não, deverão todos os envolvidos ser
penalizados6.
Já no que diz respeito ao aborto provocado após o período de “animação”, os envolvidos
também deverão ser sancionados, só que agora com penas mais graves.
Para as doutrinas espíritas, o espírito de um ser sempre existiu, desligando-se pela morte e
encarnando em outro corpo. Há uma concordância geral no que tange ao aborto, sendo este
como crime considerado. Diferencia-se, porém, das razões apontadas pela Igreja Católica.
Veem os espíritas no ato abortivo uma recusa aos desígnios de Deus7.
Todavia, em contrapeso, consideram a vida do ser já existente como prioritária em relação ao
ser em potencial existência. Por esse motivo, havendo risco para a mãe, a interrupção da
gravidez pode ser praticada. Se o ato for injustificável, defendem que os causadores terão
naquele espírito um inimigo perigoso, causa de males futuros.
Sabe-se que a Constituição veda quaisquer interferências do Poder Estatal em Igrejas ou
cultos religiosos, não se confundindo, destarte, a hierarquia religiosa com a hierarquia civil, a
moral, a eclesiástica e a moral da sociedade como obrigação. Entretanto, destaca-se que há,
ainda, grande influência da moral religiosa no Brasil. Daí a importância de se abordar o tema
central sobre o prisma religioso, mesmo que superficialmente.
De modo geral, os religiosos vêm tentando, por meio do Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei
nº 478 de 2007), fazer dessa prática um crime hediondo em sua totalidade, inclusive das
5
As religiões e o aborto. Disponível em: http://www.aborto.com.br/religiao/. Acesso em: 02/11/2013.
As religiões e o aborto. Disponível em: http://www.aborto.com.br/religiao/. Acesso em: 02/11/2013.
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As religiões e o aborto. Disponível em: http://www.aborto.com.br/religiao/. Acesso em: 02/11/2013
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exceções previstas em lei. No entanto, o que se percebe é a falta de informação. Ora, a
retirada de um feto é apenas a última etapa de um procedimento8.
Na prática, milhares de mulheres, de todas as religiões, praticam o aborto no Brasil todos os
anos, sendo que sua prática é a quinta maior causa de mortalidade materna no Brasil, de
acordo com o Conselho Federal de Medicina9.
Em um país onde as políticas públicas assertivas em relação à educação sexual são de extrema
escassez, a ação de popularização dos métodos contraceptivos e ao combate à depreciação
feminina é necessária, mas há uma camada maior de contrassenso que se cobre da restrição da
liberdade individual das mulheres, do direito ao seu corpo.
Como se não bastasse a falta de condições psicológicas, a maioria das mulheres não tem
acesso a hospitais e médicos, o que as fazem ficar à margem da sociedade e, muitas vezes,
enseja uma sentença de morte.
No final de 2012, o aborto foi legalizado no Uruguai. Nos primeiros seis meses, nenhuma
mulher morreu em decorrência deste procedimento10.
A maior parte dos países desenvolvidos têm o procedimento abortivo legalizado em seus
códigos, até a décima segunda semana de gestação.
Porém, ao analisar o citado preconceito religioso, seja ele advindo de qualquer das religiões
acima descritas, é possível concluir que a descriminalização do aborto está muito longe de
acontecer, tendo em vista o grande poder da religião diante de um Estado que não assume sua
laicização.
Lamentável, pois, denota-se que a interferência da religião, mesmo que indireta, por si só, não
obsta a prática do aborto, mas tão somente potencializa o preconceito contra quem o pratica.
Aspectos Científicos/ Biológicos: A discussão sobre o início da vida
8
MARTINS, A. P.; BRAGA, G. S., Descriminalização do aborto efetiva autonomia da mulher. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2013-out-03/descriminalizacao-aborto-efetiva-direito-autodeterminacao-mulher.
Acesso em 03/11/2013.
9
MARTINS, A. P.; BRAGA, G. S., Descriminalização do aborto efetiva autonomia da mulher. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2013-out-03/descriminalizacao-aborto-efetiva-direito-autodeterminacao-mulher.
Acesso em 03/11/2013.
10
MARTINS, A. P.; BRAGA, G. S., Descriminalização do aborto efetiva autonomia da mulher. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2013-out-03/descriminalizacao-aborto-efetiva-direito-autodeterminacao-mulher.
Acesso em 03/11/2013.
11
MOURA, Elayne Cristina da Silva. Descriminalização do aborto no Brasil e o direito à vida previsto na
Constituição Federal. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4278. Acesso em:
23/11/2013.
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Segundo afirma Thereza Baptista Mattos11, o início da vida deverá ser definido pela Biologia
e, ao jurista, cabe apenas o enquadramento legal desse direito. Em relação a esse direito,
tratou a Biologia de estabelecer seis teorias.
A teoria da fecundação/concepcionista, aduz que o início da vida se baseia no encontro entre
óvulo e espermatozoide, ou seja, quando ocorre a fecundação. É neste encontro que o feto
adquire individualidade, sendo diferente de sua mãe, pai ou qualquer outra pessoa, desde a
concepção.
A teoria repudia as pesquisas com embriões, mesmo aqueles in vitro, aduzindo que tal prática
caracterizaria crime de aborto, posto que haveria destruição de um embrião já considerado ser
humano com vida própria.
Trata-se de teoria defendida pela Igreja Católica que impõe que o embrião merece respeito e
dignidade tal qual é dispensada a todo homem.
A teoria da nidação diz que a vida se inicia quando o embrião se fixa na parede uterina,
momento em que é considerado individualmente como pessoa. Esta teoria serviu de
embasamento ao fato de que a ingestão da pílula do dia seguinte até 72 (setenta e duas) horas
após a relação sexual não é aborto. Foi também a partir desta teoria que o Supremo Tribunal
Federal fundamentou que a utilização de embriões para fins de pesquisa com células-troncos
não viola o direito à vida, defendendo que o pré-embrião que encontra excedente não é
considerado como nascituro, posto que este significa a possibilidade de vir a nascer, o que não
é o caso dos embriões inviáveis ou que são destinados ao descarte. “Não seria viável falar de
vida humana enquanto o blastócito ainda não conseguiu a nidação, o que se daria somente no
sétimo dia, quando passa a ser alimentado pela mãe”, completa Scarparo (1991, p. 42).
Trata-se de teoria defendida por grande número de ginecologistas que se o embrião fecundado
em laboratório não for implantado no útero da mulher ele morre, sendo, portanto, irrelevante
para a ciência jurídica.
No entender dessa teoria, como o início da vida ocorre com a implantação e nidação do ovo
no útero materno, não há nenhuma vida humana em um embrião fertilizado em laboratório,
sendo inexistente a pessoa humana e, desnecessária sua proteção como tal12.
12
SOUZA, Priscila Boim de. Teorias do início da vida e lei de biossegurança. Disponível em:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1863/1773. Acesso em: 01/12/3013.
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A teoria neurológica ou das primeiras atividades cerebrais define a vida pelo inverso, ou seja,
a morte. Para a medicina atual, conforme disposto na Lei 9.434/97 em seu artigo 3º, só será
permitida a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e
tratamento, quando o cérebro deixa de atuar/funcionar, ou seja, constatada a morte cerebra:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo
humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de
diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos
não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização
de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho
Federal de Medicina.
Assim, seria mais viável supor que, se a vida acaba quando o cérebro para, aquela só começa
quando este se forma. Este é o pensamento dos defensores desta corrente. Segundo Luís
Roberto Barroso:
A vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema
nervoso para de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se
formasse ou, pelo menos, começasse a se formar. Continua, ainda, dizendo
que isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da
chamada placa neural. (BARROSO, 2006, p. 27).
O momento em que se daria a formação encefálica ainda não é uníssono na doutrina, sendo
recorrente a discussão a respeito.
Alguns cientistas dizem haver sinais cerebrais na oitava semana, quando o feto já teria as
feições faciais mais ou menos definidas, e um circuito básico de três neurônios. A segunda
hipótese aponta para a vigésima semana, quando a mulher consegue sentir os primeiros
movimentos do feto, sendo que é nessa fase que o tálamo, a central de distribuição de sinais
sensoriais dentro do cérebro, está pronto. Verifica-se, no entanto, que se trata de uma teoria
em potencial, já que possui fundamentação científica, mas falta provas de que ali já existe
vida, e não seria a formação do sistema nervoso mais uma etapa do desenvolvimento
embrionário13.
Salienta-se, todavia, que o direito brasileiro adotou esse momento para considerar alguém
morto por motivação essencialmente utilitária, conforme o disposto no artigo 3º da Lei
9.434/97, citada anteriormente.
13
SOUZA, Priscila Boim de. Teorias do início da vida e lei de biossegurança. Disponível em:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1863/1773. Acesso em: 01/12/3013.
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Mister considerar também o julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental) nº 54, que acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de
aborto quando se tratar de feto anencéfalo.
FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER –
LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE –
AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME –
INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção
da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e
128, incisos I e II, do Código Penal.
A tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal segue a linha de raciocínio adotada pela
medicina, que considera o feto anencéfalo um natimorto cerebral.
Para a doutrina que adota a teoria genético-desenvolvimentista, até que o desenvolvimento do
ser humano atinja o ato final, ele passa por diferentes fases: pré-embrião, embrião e feto,
observando-se que, em cada fase, o novo ente em formação apresenta características
diversas.
Ao contrário da teoria concepcionista, para esta teoria não haveria vida humana desde a
concepção e, portanto não teria o caráter humano, o ser formado com a união dos gametas,
logo no início é comparável a um mero aglomerado celular14.
Entendem os adeptos da referida teoria, que o embrião humano, nas etapas
iniciais do seu desenvolvimento, não apresenta ainda caracteres suficientes a
individualizá-lo e, desse modo, identificá-lo como “pessoa”. O
reconhecimento de sua dignidade e necessária proteção se dá em um
segundo momento, que é aquele no qual já é possível identificá-lo como
único e individualizado, para tanto há a necessidade de se estabelecer
critérios de identificação dos elementos capazes de determinar a sua
individualidade. (MEIRELLES, 2000, p. 114).
É uma teoria de difícil ramificação, face à dificuldade em identificar elementos capazes de
determinar a individualidade do novo ser, já que tais critérios não possuem tamanha
assertativa.
A teoria da potencialidade da pessoa humana classifica o embrião como ser humano desde a
concepção, porém não afasta a ideia dele vir a se tornar humano, a corrente aponta ao embrião
desde o primeiro momento de sua existência uma autonomia que não é “humana” nem
14
SOUZA, Priscila Boim de. Teorias do início da vida e lei de biossegurança. Disponível em:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1863/1773. Acesso em: 01/12/3013.
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“biológica”, e sim “embrionária”. A corrente assegura que o ovo, formado da fecundação do
óvulo pelo espermatozóide contém potencialmente o ser completo que virá a ser mais tarde15.
Posicionamento a respeito:
Porém o que a teoria assegura é que, desde o momento da concepção,
encontram-se no genoma do ser que se forma as condições necessárias para
o seu completo desenvolvimento biológico. Ainda que insuficientes tais
condições são necessárias, o que vem a significar que desde a concepção
existe a potencialidade e a virtualidade de uma pessoa. (BERNARD e
MEIRELLES, 2000, p. 138).
Significa dizer que as características do ser humano, qual seja seu material genético, já se
encontram no embrião, em estado de “incubação”. Diante dessa assertiva, o embrião
considerado como pessoa em potencial, necessita de amparo jurídico para que não seja tratado
como objeto, e que lhe assegure a vida e dignidade que lhe são inerentes16.
E por último, segundo a teoria natalista, a personalidade da pessoa inicia-se com o nascimento
com vida, sendo que para fazer jus aos seus direitos, posta-se como requisito precípuo o
nascimento com vida. Seria o nascituro, então, um ser em potencialidade, cujo gozo dos
direitos se submete à existência extrauterina, ainda que dê somente um suspiro. Assim, o
nascituro coloca-se como um ser com expectativa de direitos.
Para os natalistas, o nascituro não é pessoa, tendo desde sua concepção, somente uma
expectativa de direitos.
Aspectos jurídicos
O Código Penal de 1940, ainda em vigor, em seu Art. 128, permite a prática de aborto nas
seguintes situações: se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário); se a
gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando
incapaz, de seu representante legal (aborto sentimental ou humanitário).
15
SOUZA, Priscila Boim de. Teorias do início da vida e lei de biossegurança. Disponível em:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1863/1773. Acesso em: 01/12/3013.
16
SOUZA, Priscila Boim de. Teorias do início da vida e lei de biossegurança. Disponível em:
http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1863/1773. Acesso em: 01/12/3013.
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O aborto por má formação fetal incompatível com a vida extrauterina e, independentemente
do motivo, pela livre vontade da mulher, não são autorizados pela atual legislação penal
brasileira.
Recentemente foi aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça o substitutivo ao Projeto
de Lei 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, que pretende impedir, em qualquer
hipótese, a prática do aborto, culminando em pretensas alterações nos artigos 124 a 128 do
Código Penal Brasileiro de 1940. Tal projeto pretende um enrijecimento da legislação penal
sobre o aborto aumentando as penas, excluindo as hipóteses de permissibilidade até então
previstas no Art. 128 do Código Penal, passando a tipificar a modalidade culposa e incluindo
o aborto no rol dos crimes hediondos.
Por outro lado, também está em trâmite o projeto de reforma do Código Penal Brasileiro que,
a seu turno, além de pretender reduzir as penas do auto aborto e do aborto praticado por
terceiro com consentimento da gestante, amplia as hipóteses de permissibilidade do aborto,
passando a permitir sua prática. Por esse projeto, além dos dois casos já admitidos pela atual
legislação penal, em mais três hipóteses seria admitido o aborto, a saber: a) Se a gravidez
resulta do emprego de técnica não consentida de reprodução assistida; b) Se comprovada a
anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a
vida extrauterina, em ambos os casos atestados por dois médicos; c) Se por vontade da
gestante, até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher
não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Conforme se vê, sobre o mesmo assunto, existem dois projetos de lei conflitantes.
Observa-se que o projeto de alteração do Código Penal parece querer aderir à teoria da
atividade cerebral, permitindo o aborto por vontade da gestante até a décima segunda semana
de gestação, quando o novo ser ainda tem o aparelho neurológico formado. Porém, demonstra
a timidez em aderir a tal teoria, quando passa a exigir laudo psicológico no sentido de que a
gestante não tem condições psicológicas para arcar com a maternidade.
Convém ressaltar que o aborto está inserido no Código Penal Brasileiro no título dos crimes
contra a pessoa e no capitulo dos crimes contra a vida. Destarte, inevitável a abordagem dos
conceitos jurídicos de pessoa e de vida, como forma de demonstrar a inexistência de razão
que justifique a proibição absoluta do aborto.
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A discussão que se propõe não é simples, já que afeta direitos igualmente fundamentais. De
um lado, o direito (ou a expectativa de direito) à vida do nascituro. De outro lado, os direitos à
saúde e ao corpo, autonomia da vontade e dignidade da mulher.
É importante optar por um desses direitos igualmente constitucionais, ou seja, privilegiar a
vida criada ou a vida criadora.
Destaca-se que os parlamentares se baseiam no entendimento da própria Lei que, por sua vez,
é ambígua. De um lado se defende o fato de que o sujeito é detentor de direitos após seu
nascimento. Todavia, concomitantemente também garante ao nascituro, embrião fecundado e
não nascido, alguns direitos.
Interpreta-se que o nascituro é, em verdade, possuidor de uma expectativa, ou seja, se vier a
nascer poderá usufruir de direitos conquistados mesmo antes do nascimento. No entanto, se
não nascer com vida, aquele direito outrora resguardado será perdido. É o caso do nascituro
cujo pai falece durante a gravidez. O feto não tem direito à herança, porém, nascendo com
vida poderá usufruir dos bens deixados pelo genitor.
O fato de afirmar que a personalidade tem início a partir do nascimento com vida, não quer
dizer que o nascituro não tenha direito antes do nascimento. Se o nascituro, durante toda a
fase intrauterina, tivesse personalidade, não haveria necessidade de o Código distinguir os
direitos, ou melhor, a expectativa de direitos que se consolida com o nascimento com vida.
Conclui-se que o nascituro, de acordo com esta teoria, não tem personalidade jurídica nem
capacidade de direito, sendo protegido pela lei apenas os direitos que terá possivelmente ao
nascer com vida, os quais são taxativamente enumerados pelo Código Civil.
Corroborando a opção, nem em todos os casos, pelo direito ao próprio corpo, há que existir
para a mulher a liberdade de se estabelecer ou não nesta situação. Afinal, é preciso limitar a
atuação do Estado na esfera íntima de cada um.
Aspectos sociais
Mais que uma questão religiosa, biológica e jurídica, trata-se a descriminalização do aborto de
tema também de cunho social.
A problemática nasce com a falta de informação, pois ainda que a educação em relação à
saúde esteja, a cada ano, melhorando, milhares são as mulheres que carecem de conhecimento
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acerca de métodos contraceptivos e pouco tem acesso a programas de planejamento familiar,
ocorrendo, portanto, a gravidez indesejada.
De acordo com matéria publicada pelo site Agência Brasil em 30/05/200717 o índice de aborto
na Região Norte é mais elevado e ocorre em torno de 40 abortos a cada 100 gestantes,
enquanto nas Regiões Sul e Sudeste o índice é menor sendo de 20 abortos a cada 100
gestantes. E a causa da ocorrência de gravidez indesejada nessas regiões é a falta de
informação e acesso a métodos anticoncepcionais. Por mais incrível que pareça, o índice de
ocorrência de aborto é maior entre mulheres casadas, adultas e de classe média, sendo que a
maioria já possuía, pelo menos, um filho na época.
O número de clínicas clandestinas é desconhecido, posto que diante da proibição da prática, é
impossível contabilizá-lo, bem como dificulta a criação de programas que deverão ser
aplicados ao locais onde o índice de prática abortiva se demonstra maior.
Conforme aduz Maria Berenice Dias18, atualmente, só a elite, que tem condições de atender
aos exorbitantes valores cobrados pelas clínicas particulares, pode exercer o direito de
escolha. Aquela que não tem como pagar precisa submeter-se a procedimentos clandestinos,
cujos riscos são por demais conhecidos, sujeitando-as a sequelas que todos sabem quais são.
Segundo o Portal do Governo Federal19, em 2006, somente na rede pública de saúde, foram
constatadas 230.523 internações de mulheres para a realização de curetagens pós-aborto. Por
sua vez, o periódico Globo Online informa que os abortos ilegais internaram 1,2 milhão no
SUS em 5 anos20. E, ainda, que 13% dos óbitos obstetrícios ocorreram por causa de abortos
ilegais, sendo esta a terceira causa de morte materna no País.
De acordo com o Jornal Tecido Social21, “a cada ano acontecem cerca de 800 mil abortos no
Brasil, e cerca de 240 mil mulheres são internadas nos hospitais públicos em decorrência de
17
MOURA, Elayne Cristina da Silva. Descriminalização do aborto no Brasil e o direito à vida previsto na
Constituição Federal. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4278. Acesso em:
23/11/2013.
18
DIAS,
Maria
Berenice.
Aborto
uma
questão
social.
Disponível
em:
http://www.mariaberenice.com.br/uploads/aborto_uma_quest%E3o_social.pdf. Acesso em: 11/12/2013.
19
SANTOS, Jeifson Ribeiro dos. Legalização do aborto: pela efetivação do direito natural à liberdade de
escolha. n. 3, p. 42-47, maio, 2008.
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SANTOS, Jeifson Ribeiro dos. Legalização do aborto: pela efetivação do direito natural à liberdade de
escolha. n. 3, p. 42-47, maio, 2008.
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SANTOS, Jeifson Ribeiro dos. Legalização do aborto: pela efetivação do direito natural à liberdade de
escolha. n. 3, p. 42-47, maio, 2008.
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sequelas de abortos clandestinos. Em suma, se da prática clandestina não resulta o óbito, resta
para a mulher vitimada a esterilidade, incapacidade sexual, patologias, entre outros.
Em meio aos problemas acima citados, surge também a dificuldade em detectar e denunciar
os “atuantes” clandestinos. Aduz Jeifson Ribeiro dos Santos que:
Pelo fato do aborto, além de crime, ainda ser tabu, esforçam-se as pessoas
por ocultar, até mesmo de seus familiares, as trágicas experiências com esse
“profissionais”, o que contribui para o aumento de riscos desses
procedimentos. (SANTOS, 2008, p.45).
Não se pode olvidar que “caso o feto sobreviva às precárias tentativas de matá-lo, não está
afastada a eventual ocorrência de anomalias fisiológicas ou psíquicas, com consequências
econômicas e sociais”, conforme também atesta Jeifson Ribeiro Santos (2008, p.45), o que
agrava mais ainda o cenário onde a prática do aborto se amolda como crime.
Extremamente forte são as palavras de Ginette Paris que diz que:
Até hoje o aborto tem sido julgado de acordo com o dogma cristão; é pecado
porque é proibido pela Igreja, e a Igreja não pode mudar de posição, pois
está escrito na Bíblia, e se começarmos a mudar o dogma escrito a realidade
toda ruirá. As religiões monoteístas baseadas num livro (cristão, judeu,
muçulmano) funcionam de acordo com códigos escritos (dogma), que divide
o comportamento em pecado e virtude, de uma vez por todas. Mas, tão logo
adotemos uma perspectiva mais global e menos dogmática, podemos ver a
loucura que é sacrificar a mãe pelo bebê, a estupidez dos procedimentos
obstétricos que só consideram o conforto e a segurança do feto (como se a
mãe e filho não fossem interdependentes), e a loucura de uma posição moral
que força as mulheres a ter filhos quando a primeira necessidade de uma
criança é ser querida. (PARIS,1991, p. 31).
Conclusão
Destarte, mister se faz pensar acerca da consolidação do Estado laico, aperfeiçoamento da
democracia e promoção dos direito sexuais e reprodutivos da mulher, bem como sua saúde.
Ao contrário do que ocorre em outros países, que optaram pela vida e pelos direitos da
mulher, o Brasil estancou a discussão sobre o tema, vetando direitos essenciais à
democracia.
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Nota-se que, por uma nítida influência religiosa, criou-se a ficção jurídica de que o embrião
não é parte do corpo da mãe, pois já teria direitos a serem reconhecidos. Há no país uma clara
dificuldade em reconhecer a existência do direito à autonomia sobre o corpo22.
Em uma simples reflexão sobre o cotidiano, é possível notar que na vida real milhares de
mulheres que engravidam contra a vontade, ausente de planos e desejos, mesmo com a
criminalização da prática do aborto, continuam interrompendo gestações de forma clandestina
e insegura.
Trata-se de um reconhecido problema de saúde que, ainda que em um país laico, sua
abordagem vem sendo manipulada e acuada por grupos religiosos principalmente, que se
recusam a discutir, analisar e apoiar possíveis mudanças na legislação afim.
O conceito de laicidade deve ser entendido como um dispositivo democrático garantidor da
liberdade religiosa, em sua ampla diversidade ora mencionada, e que proporciona a
independência do Estado em solucionar conflitos relacionados ao interesse público. Sob outra
ótica, trata-se o Estado laico de um marco Constitucional, posto que confere aos nacionais a
liberdade religiosa, o que demanda a imparcialidade estatal, que não se deixa influenciar por
referências e valores religiosos.
Por outro lado, agora puramente jurídico, a lei não se baseia em teoria de matéria biológica.
Ora, não há, em relação à configuração do teor normativo, respaldo absoluto algum, o que
evidencia a influência de cunho não social e político nas decisões que regulamentam a vida
em sociedade.
É necessário refletir sobre a liberdade individual de escolha que está sendo limitado pelo
Estado “Democrático” de Direito. Corrobora o que foi dito, a assertiva que diz que “o direito
de escolha é uma das facetas dos direitos humanos e, no seu bojo, encontra-se o direito de
decidir o prosseguimento de uma gravidez. A partir desta ótica, Estados soberanos,
potencializando a democracia dos seus cidadãos, permitiram que estes escolhessem destinos
do próprio corpo. Afastando as concepções religiosas, tais Estados perceberam que a
maternidade passa, necessariamente, pelo direito dos interessados em aceitar ou não eventuais
resultados biológicos do envolvimento sexual” (SANTOS, 2008, p. 42).
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VIANNA, Túlio. O direito ao próprio corpo. Disponível em: http://tuliovianna.org/2012/10/02/o-direito-aoproprio-corpo/. Acesso em: 12/12/2013.
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A vida é o maior bem jurídico do ser humano e goza de proteção constitucional. Todavia, essa
inviolabilidade não é absoluta. Tanto é verdade que o próprio legislador penal permite, no
artigo 128 do Código Penal, que a gestante realize aborto quando não houver outro meio de
salvar a sua vida, ou quando a gravidez resultar de estupro.
No Brasil, o critério jurídico de definição de morte é o da morte cerebral, ou seja, para o
direito, encerradas as atividades cerebrais da pessoa, ela é considerada juridicamente morta,
estando autorizada a retirada de seus órgãos e tecidos para doação, caso se trate de um doador.
Nessa linha de raciocínio, o feto que antes da décima segunda semana de gestação sequer tem
início de atividade cerebral, juridicamente não pode ser considerado um ser vivo, razão pela
qual a sua vida intra-uterina ainda não pode ser objeto de proteção pelo Direito Penal,
independentemente de laudo psicológico.
Nesse viés, garantir à mulher grávida o direito de escolha até a décima segunda semana de
gestação equivale a respeitar o principal fundamento da bioética, que é o respeito à dignidade
da pessoa humana. Este, por sua vez, é princípio do Estado Democrático de Direito, conforme
dispõe o artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988. O respeito a este princípio está
intimamente ligado ao respeito à autonomia pessoal, que garante liberdade ao ser humano
para conduzir sua existência e ser respeitado como sujeito de direitos.
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