Instituto de Registro Imobiliário do Brasil ARTIGO O Registro de Imóveis na perspectiva dos direitos fundamentais: apontamentos para a construção de uma teoria justificadora // Luiz Egon Richter Registrador de imóveis em Lajeado-RS, diretor legislativo do IRIB, mestre em Desenvolvimento Regional, com ênfase em Político-Institucional, pela Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC; doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC; professor de Direito Administrativo e Registros Públicos no Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC e professor de Cursos de Especialização em Direito Imobiliário, Notarial e Registral. 16 XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Introdução O título talvez possa parecer pretensioso demais e o conteúdo do texto absolutamente insuficiente, mas isto não afasta a necessária aproximação doutrinária e hermenêutica do Registro de Imóveis com os princípios, objetivos e direitos fundamentais, porque o Registro de Imóveis no Brasil tem tido, ao longo do tempo, importante função na proteção de direitos e garantias, notadamente no âmbito dos direitos reais relacionados à propriedade imobiliária e também de outros atos e fatos que têm ingresso permitido, com vistas a gerar efeitos constitutivos, declarativos ou de mera publicidade em face de terceiros. Tudo isto em nome da certeza e da segurança jurídica! A segurança jurídica é um tema que permeia, de certa forma, todas as relações jurídicas, assim como as relações entre sujeitos e bens. Embora não se apresente de forma expressa no texto constitucional, parece certa e aceitável a possibilidade de extração implícita do princípio da segurança jurídica. Não é uma meta ou um princípio moral, mas um princípio jurídico que irradia seus efeitos para toda a seara jurídica, por ser inerente ao Direito. Assim como a justiça, também a segurança jurídica é uma exigência da sociedade. Por isso, cabe ao Direito, por meio de instrumentos e mecanismos jurídicos, orientados pela racionalidade jurídica, estabelecer previsibilidades dos efeitos decorrentes da atuação estatal em benefício da proteção dos direitos, notadamente dos direitos fundamentais consagrados na Constituição federal. Por isso, “a segurança jurídica pressupõe organização social, ordem eficaz e justa, dado objetivo, estado de fato de que deriva a certeza jurídica, elemento este subjetivo, a rigor reduzido ao conhecimento do conteúdo e das fontes positivas das liberdades, dos direitos, das obrigações, em determinada sociedade política” (Dip, 1987). É nesse contexto que se insere o Registro de Imóveis no Brasil, como um instrumento, um meio, um método de intervenção assecuratória do Estado na propriedade imobiliária e nos demais direitos que, por força da lei e do Direito, são cometidos a essa organização técnica e administrativa destinada a garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Por essas razões, far-se-ão alguns apontamentos que podem servir para o início de uma construção teórica que justifique a existência dos Registros Públicos como um todo e o Registro de Imóveis em particular, a partir dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são os consagrados na Constituição federal, que tem como eixo principal a dignidade da pessoa humana, com efeitos irradiadores para todo o ordenamento jurídico e impõem, por um lado, obrigações de não fazer ao Estado e, de outro, obrigações de fazer, notadamente quando se fala nos direitos econômico-sociais, que exigem do Estado uma intervenção concreta e objetiva. impõe ao Estado criar mecanismos de proteção com vista a proporcionar certa previsibilidade e, por consequência, estabilidade nas relações jurídicas. Esclarece-se, contudo, que a segurança, muito antes de ser jurídica, cujo surgimento se deu com o Estado de Direito, já era uma preocupação do indivíduo. É a própria autopreservação o principal pressuposto da segurança visada pelo homem. Na pré-história, período que vai do aparecimento dos seres humanos na Terra até o desenvolvimento da escrita, cerca de 3.500 anos a.C. e anterior à escrita (período dividido em três fases: paleolítico, mesolítico e neolítico), o homem satisfazia suas necessidades básicas junto à natureza. Ao que tudo indica, o homem paleolítico ou da pedra lascada, que viveu entre 3 milhões de anos atrás até cerca de 10.000 a.C., preocupava-se, basicamente, com as demandas de sobrevivência, notadamente alimentação e proteção do corpo. Por isso, habitava cavernas compartilhadas com animais selvagens. Tinha uma vida nômade, portanto, sem habitação fixa, e alimentava-se da caça de animais de pequeno, médio e grande porte, da pesca e da coleta de frutos e raízes. A própria linguagem era pouco desenvolvida, baseada em pouca quantidade de sons, sem a elaboração de palavras. Uma das formas de comunicação eram as pinturas rupestres. Através desse tipo de arte, o homem trocava ideias e demonstrava sentimentos e preocupações cotidianas. Supõe-se que a maior preocupação era com a segurança do próprio corpo. Já o homem mesolítico – entre o paleolítico e o neolítico – entre 10.000 a.C até 6.000 a.C, período diretamente ligado à Era Glacial, que provocou drásticas alterações climáticas em alguns continentes – apresentou importante evolução em comparação com o homem paleolítico, porque desenvolveu meios de sobrevivência mais segura. Dominou o fogo, desenvolveu a agricultura e a domesticação dos animais. Isso fez com que o homem diminuísse sua dependência em relação à natureza, o que permitiu a fixação de residência, a divisão do trabalho por sexo. Mesmo com a evolução, a preocupação ainda era com a sobrevivência. E o homem pré-histórico, neolítico ou da idade da pedra polida, atingiu um grau importante de desenvolvimento e estabilidade, porque fixou residência, criou animais, cultivou a agricultura e desenvolveu a metalurgia. Tudo isso potencializou as atividades desenvolvidas até então e, sobretudo, permitiu a produção de excedentes agrícolas e sua armazenagem, garantindo o alimento necessário para os momentos de seca ou inundações. Apontamentos sobre a trajetória do homem desde a Antiguidade Nesse contexto, as comunidades foram crescendo e logo surgiu a necessidade de trocas com outras comunidades, ocorrendo um intenso intercâmbio entre vilas e pequenas cidades. Além disso, foi também nessa época que surgiu “o movimento de apropriação fundiária (...), com a construção das primeiras moradias permanentes e com o cercamento das primeiras hortas e quintais privados” (Mazoyer, 010, p. 376). É nesse período que o homem começa a se dar conta de que precisa de segurança para os seus bens. Embora não conste expressamente na Constituição, a segurança jurídica é um direito fundamental, que À medida que o homem abandona os primeiros estágios da pré-história, certamente a preocupação 17 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil A Idade Média, que abrange o pecom a segurança aumenta. Se duríodo que vai do século V da era rante o período paleolítico a preo"Assim como cristã até a queda de Constantinopla, cupação era com a segurança do a justiça, também capital do Império Romano do próprio corpo, no sentido de Oriente, em 1453, apresenta como mantê-lo vivo por meio da alimena segurança principais marcos a expansão dos reitação extraída da natureza e o jurídica é uma nos bárbaros na Europa, a transforabrigo em cavernas; no período exigência da mação do escravismo em feudalismo, neolítico, especialmente a produo surgimento dos impérios feudais, a ção do excedente e a apropriação sociedade". expansão do cristianismo e do islada terra fez nascer novas preocumismo, o renascimento do comércio pações em termos de segurança. e das cidades medievais e o apogeu da civilização maia, Em razão disso, começa a desenvolver mecanismos na América. Nesse período, havia várias ordens jurídicas, de proteção. muitas vezes se sobrepondo umas às outras. No final da era neolítica, ou seja, da pré-história para a antiguidade, surge a escrita ou, ao menos, os historiaHe aqui como debemos aproximarnos al dores aceitam como certo o aparecimento da esDerecho medieval: como a una gran excrita na Mesopotâmia e no Egito. A partir desse periência jurídica que alimenta en su seno momento, o homem passa a dispor de um meio muito una infinidad de ordenamientos, donde el mais eficaz do que a comunicação verbal, porque a inDerecho – antes de ser norma y mandato formação não se perde facilmente como ocorre com a – es orden, orden de lo social, motor esfala, além de poder perpetuá-la no tempo e, com isso, pontâneo, lo que nace de abajo, de una alcançar um número maior de pessoas. sociedad que se autotutela ante la litigiosidad de la incandescência cotidiana Inicialmente surge a protoescrita, que ainda não pode construyéndose esta autonomia, hornaser considerada uma forma escrita como conhecemos cina propia y auténtica protectora del inhoje, porque não tinha significado linguístico, mas serdividuo y de los grupos. La sociedad se viu de base para a criação da escrita. É a época dos impregna de Derecho y sobrevive porque ideogramas, mnemônicos, entre outras formas que ella misma es, antes que nada, Derecho serviam para registrar algum tipo de informação. É por debido a su articulación en ordenamienvolta de 3.000 a.C. que surge a escrita hieroglífica no tos jurídicos. (Grossi, 1996, p. 5) Egito antigo, assim como outras formas escritas em diEsta infinidade de ordenamentos jurídicos existentes na versos povos. Idade Média acabou por estabelecer os fundamentos dos ordenamentos jurídicos europeus, notadamente A escrita permitiu um salto significativo, porque as fusobre as bases das sociedades romano-germânicas da turas gerações passaram a tomar conhecimento da hisalta Idade Média. tória das gerações anteriores, que deixavam registrados atos e fatos. Nesse contexto, surgem os escribas, que Os primórdios dos ordenamentos juríditiveram uma importância fundamental na construção de cos europeus encontram-se nas formas relatos escritos e na formulação de textos religiosos e básicas de vida das sociedades romanoleis. Por isso, muitas vezes, são considerados os antegermânicas da alta Idade Média e nos três cedentes dos atuais notários. Ao fazer o segundo breve grandes poderes ordenadores que a antiregistro sobre as notas, Ricardo Dip aponta: guidade tardia tinha deixado: os restos da organização do império romano do ociO mais famoso ancestral dos notários padente, a igreja romana e a tradição escorece ter sido o célebre Thot, um escriba lar da antiguidade tardia, restos que os que na Grécia se confundiu com Trismenovos povos e tribos assentes no antigo gisto (Hermes), que acompanhava as procorpo do império e no centro da Europa cissões da deusa Ísis e talvez não passasse receberam e de que se acabaram por de um funcionário burocrático – embora apropriar. (Wieacker, 1967, p. 15). com caráter mítico-divino (sonho que ainda hoje acalentam inúmeros burocraA pluralidade de ordenamentos jurídicos e a policentas) –, a serviço preferente dos interesses tria do poder político não contribuíram para a instituido poder político (...). (Dip, 1988, p. 30) ção de um sistema de segurança jurídica eficaz, justamente em razão da fragmentação e da pluralidade A escrita não deixa de ser uma forma de segurança, de sistemas jurídicos. A segurança jurídica tem como embora não necessariamente jurídica, a despeito de a um de seus pressupostos a unicidade do Direito, o que origem do Direito situar-se na formação das sociedasó começou a ser construído a partir da Idade Moderna des. Isso remonta a épocas anteriores à própria escrita. – período entre a queda do Império Romano do Oriente O Direito surge com a finalidade de regular as relações e a Revolução Francesa, em 1789, que tem como prinhumanas, visando à paz e à prosperidade social, com cipais marcos o fortalecimento dos Estados nacionais o objetivo de alcançar o bem comum e obter a justiça. monárquicos, a expansão marítima e colonial, o fortaÉ a partir do Direito que surge a noção de segurança lecimento e a expansão do capitalismo – que se torna jurídica, ou seja, a segurança por meio do Direito. Esa forma de produção predominante –, o renascimento clarece-se que a segurança jurídica como a conhececultural e científico, a fermentação revolucionária do mos hoje foi uma construção histórica que passou por iluminismo e a independência norte-americana. diversos estágios. 18 XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Apontamentos sobre a segurança jurídica A segurança jurídica começa a ser moldada com a chegada do Iluminismo e da Revolução Francesa, quando se buscou a segurança jurídica para defender os direitos fundamentais, notadamente o direito de propriedade. Portanto, é a partir da unicidade do Direito – e sua codificação – que se buscou a segurança jurídica. Esse processo condicionou a sociedade e o mundo jurídico, no sentido de que só o Direito pode assegurar a ordem e a segurança necessárias ao progresso. O resultado dessa nova percepção é o abandono tanto da descentralização do poder como do pluralismo de ordenamentos jurídicos, em busca de unificação dos territórios, a fim de permitir a formação de um Estado Nacional soberano e detentor do monopólio de produção das normas jurídicas. (Maciel, 008) Hoje, vivemos no contexto da Idade Contemporânea – que cobre o período do final do século XVIII, a partir da Revolução Francesa, até a atualidade. Os principais marcos são o período napoleônico (1799 a 1815), a restauração monárquica e as revoluções liberais (1800 a 1848), a revolução industrial e a expansão do capitalismo (de 1790 em diante), a disseminação das nacionalidades e das doutrinas sociais (a partir de 1789), o surgimento do imperialismo, a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), as revoluções socialistas, a expansão da democracia, o surgimento do fascismo e do nazismo (1917-1938), a ª Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra Fria (1948-1990) e a desagregação da União Soviética (1991), no qual reaparece o pluralismo jurídico, desafiando novamente a segurança jurídica como um dos fins do Direito. Em linhas gerais, o medo da morte fez com que o indivíduo procurasse segurança para proteger a vida; o medo da destruição das coisas fez com que o indivíduo procurasse segurança para os seus bens; o medo das forças da natureza e do desconhecido fez com que o homem buscasse segurança na religião; o conceito de segurança foi o pai da Arte, da Arquitetura, da Medicina, da Astronomia, da Matemática, da Física, do Direito e de todas as áreas do conhecimento; contudo, a ideia de segurança está no Estado, com fundamento em uma ordem jurídica. Por isso, Direito é, por excelência, o instrumento de segurança. (ávila, 011) imprevisibilidad y la incertidumbre a que está sometido la exigencia de seguridad de orientación es, por eso, una de las necesidades humanas básicas que el Derecho trata de satisfacer a través de la dimensión jurídica de la seguridad. (Perez Luño, 000) A incerteza acompanha o homem e, por mais paradoxal que possa parecer, ao mesmo tempo em que o homem busca a segurança para resolver alguma insegurança, outras inseguranças vão surgindo, o que faz que com busquemos mais segurança. Isso, de certa forma, revela que a segurança jurídica apresenta um grau de limitação. Contudo, a despeito desse cenário, é no Estado de Direito e no seu sistema de segurança jurídica que buscamos nos assegurar. Cabe ao Estado de Direito assegurar os direitos, em particular os direitos fundamentais, assim como os sociais fundamentais que, em face de sua dimensão objetiva, acabam por se irradiar a toda ordem jurídica. Sem essa dinâmica, haverá desproteção aos referidos direitos e não haverá imunização às ameaças e aos riscos. Por isso, a segurança jurídica converte-se em valor jurídico para a concretização de todos os valores constitucionais. Nesse sentido, a segurança jurídica pode ser considerada como um instrumento assecuratório dos direitos que envolvem autonomia privada, notadamente, liberdade e propriedade. Ao prever um direito, o ordenamento jurídico tem que instrumentalizar a ordem jurídica, visando à proteção e à eficácia desse direito. Quanto ao direito de propriedade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 17, prevê que “todo indivíduo tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros, e ninguém será arbitrariamente privado da sua propriedade”. O direito de propriedade, assim como os demais direitos, requer instrumentos protetivos, que podem variar de país para país. O direito de propriedade, como direito fundamental, na sua acepção objetiva, requer a instrumentalização protetiva, que se dá no plano organizacional e normativo. Apontamentos históricos do direito de propriedade e da proteção registral Relatos históricos da humanidade indicam que a propriedade surge inicialmente como coletiva. Com o passar dos tempos, emerge o caráter familiar, passando ao feudal e, posteriormente, ao caráter privado. La formación conceptual de la seguridad A concepção de propriedade privada jurídica, como la de otras importantes caatrelada à religião, ou seja, à adoração tegorías de la Filosofía y la Teoría del Dedos deuses do lar familiar, denota recho, no ha sido la uma interligação dos laços de sanconsecuencia de una gue familiar entre a casa, a sepultura elaboración lógica sino e o campo, pois que, somente era el resultado de las "É a partir da permitido aos membros da família conquistas políticas de unicidade do assistir e participar do culto aos anla sociedad. La seguritepassados, o que visava restringir o dad constituye un Direito – e acesso de terceiros aos cultos, deseo arraigado en la sua codificação – dando origem às delimitações de vida anímica de homque se buscou a cada propriedade, seja através de bre, que siente terror cercas, muros ou fossos. (Compaante la inseguridad de segurança jurídica". rato, 1997, p. 93) su existencia, ante la 19 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil O caráter privativo da propriedade, tanto em Roma quanto na Grécia, iniciou-se no seio familiar e apresentava caráter sagrado, uma vez que as casas eram construídas junto ao local onde estavam enterrados os antepassados de cada família e ali se estabelecia a propriedade, pois era ali que estava o fogo doméstico. (Coulanges, 001, p. 55-56) Ainda que com características diferentes das atuais, o direito de propriedade existiu antes do Estado de Direito moderno, assim como a origem dos serviços de registros imobiliários também é anterior ao próprio Estado, razão pela qual podem ser considerados como atividades pré-jurídicas, isto é, pré-estatais. É com a instauração do Estado de Direito que, aos poucos, essas atividades vão sendo assumidas pelo Estado, como guardião da segurança jurídica. Acerca da publicidade registrária imobiliária na antiguidade, Ricardo Dip anota que a despeito da autorizada opinião de Coviello, para quem a publicidade imobiliária “non è antichissima”,, remontando-a ao Direito medievo (...), parece mais acertado o entendimento de que as manifestações públicas de transferência dominial, em povos da antiguidade, representassem verdadeira formalidade publicitária, ainda que nelas acaso não se vislumbrasse a preocupação de garantir direitos de terceiros. O autor relata, também, que na Babilônia, além dos cadastros e arquivos que, instituídos com finalidade administrativa, se prestavam a consultas para dirimir conflitos referentes a situações prediais, outra forma 0 de notoriedade dominial de imóveis se manifestava com as “pedras de limites” (koudourrous), que remontariam à ascensão dos cassitas (aproximadamente por volta de 1750 a.C.). Tais pedras, que se colocavam sobre os terrenos, ademais da finalidade religiosa de atrair a proteção dos deuses, eram, nas palavras de Pugliatti, “mezzo di prova durevole”, realizando “una generica funzione pubblicitaria”. Acrescenta que o Egito possuiu o mais perfeito sistema de publicidade imobiliária que o mundo antigo conheceu. Cadastros e arquivos, voltados embora à finalidade primeiramente fiscal, foram instituídos também com relevância publicitária no âmbito das situações jurídicas prediais. Em Atenas, tabuletas de pedra (oroi) eram colocadas sobre os imóveis garantes de hipotecas, com função publicitária da oneração real. Além do oros, o Direito grego antigo possuía um sistema de publicidade de técnica semelhante aos registros modernos: o anagraphe, inscrição dos contratos relativos, especialmente, às transferências dominiais. Em Rodes, o anagraphe era condição de validade para a aquisição do direito. No Direito romano, enquanto a res nec mancipi podia adquirir-se por ato despido de publicidade, a res mancipi sempre reclamava o que Colorni chamou de nominatività, característica da forma solene de publicidade de sua transferência. Sabido que as res mancipi, no Direito clássico, apresentavam muito maior relevância do que as res nec mancipi, inferese a importância publicitária a que se destinava a mancipatio. XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Por fim, no Direito germânico primitivo, a transmissão imobiliária realizava-se necessariamente diante de testemunhas, entre as quais deviam contar-se crianças, com a finalidade de que memória houvesse, por mais tempo, da transferência dominial. O Direito medievo apresenta sistemas publicitários muito próximos dos registros modernos. (Dip, 1988) "O homem só é livre se tiver disponibilidade sobre seus bens". Feitas essas considerações sobre a trajetória do homem na construção da sua história, relacionada em particular com a apropriação privada de bens, que aos poucos foi se transformando em propriedade, assim como alguns apontamentos sobre instrumentos protetivos da propriedade, que em alguns casos se aproximam dos atuais registros públicos imobiliários, faz-se a partir de agora uma breve incursão nos direitos fundamentais e a sua repercussão no direito de propriedade. Apontamentos sobre os direitos fundamentais e a repercussão no direito de propriedade As principais perspectivas de abordagem dos direitos fundamentais são: a filosófica ou jusnaturalista – para a qual direitos de todos os homens, em todos os tempos e lugares; universalista ou internacionalista – para a qual os direitos dos homens, em todos os lugares, em um certo tempo e estatal ou constitucional – que reconhece os direitos dos homens, em um determinado tempo e lugar. Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado constitucional, constituindo, nesse sentido, não apenas parte da constituição formal, mas também elemento nuclear da constituição material. (Sarlet, 007, p.70) Todavia, foram os contratualistas que desenvolveram as primeiras teorias acerca do reconhecimento de direitos, com base no contrato social, com vistas a proteger os direitos individuais, notadamente a liberdade. É no âmbito do direito fundamental à liberdade que se insere o direito de propriedade, viabilizador dela. O homem só é livre se tiver disponibilidade sobre seus bens! O primeiro contratualista a reconhecer direitos fundamentais, inerentes à condição humana, foi Thomas Hobbes – 1588 a 1679. Para ele, a sociedade civil se forma pelo contrato social, em razão do medo que reside na condição humana, provocado pela discórdia entre os homens, gerada pela competência, desconfiança e glória, o que impõe às pessoas a se organizarem politicamente. Todo o esforço é direcionado à autopreservação e, nesse sentido, almeja um estado civil de segurança, paz e estabilidade. Para Hobbes, no estado de natureza cada coisa pertence a quem a tem e a conserva pela força, a qual não é nem propriedade, nem comunidade, mas incer- teza, portanto, impossível. “Pois, embora qualquer homem possa dizer, de qualquer coisa, ‘isto é meu’, não poderá, porém, desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender que é dele essa mesma coisa” (Hobbes, 199, p.38). Por essa razão, a propriedade somente é possível no estado civil. Mas, este mesmo Estado pode suprimir a propriedade, o que deixa claro que a propriedade é instituída pelo Estado. Portanto, na perspectiva hobbesiana, o Estado é que vai garantir uma propriedade que ele próprio constitui, porque ela é um efeito do Estado. Outro foi John Locke – 163 a 1704 – para o qual a propriedade existe no estado de natureza, como um direito absoluto à posse, porém, existe incerteza quanto à sua fruição, tornando-a muito insegura, arriscada, em face da potencial invasão de terceiros. Para Locke, a propriedade é anterior à sociedade, por isso, um direito natural e inviolável. “(...) é perfeitamente claro que Deus, como diz o Rei Davi (S1 115, 61), deu a terra aos filhos dos homens, deu-lhes para a humanidade em comum” (Locke, 1998, 405406). Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum, além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. (Locke, 1998, p.407-409). Nesta última afirmação reside o fundamento da propriedade no trabalho, porque ao retirar da natureza um bem qualquer, mediante seu trabalho, o homem dá início à propriedade. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza proveu e deixou, mistura-a ele com seu trabalho e lhe junta algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. (...) Por ser esse trabalho propriedade inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade deixada em comum para os demais. (Locke, 1998, p. 409) Para Rousseau – 171 a 1778 – o estado de natureza era o mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Todavia, o homem é corrompido pela sociedade, o que gera conflitos e discórdias. O estabelecimento da propriedade privada é seu último termo. Rousseau, diferentemente de Locke, não atribui à propriedade a categoria de direito natural. Para ele, “o direito de primeiro ocupante, embora mais real que o do mais forte, só se torna um verdadeiro direito após o estabelecimento do direito de propriedade” (Rousseau, 1998, p.7). 1 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil A teoria rousseauniana impõe algumas condições autorizativas para que alguém possa exercer o direito de ocupação, independentemente de título jurídico, sobre um terreno qualquer: Primeiro, que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para substituir; terceiro, que dele se tome posse, não por cerimônia vã, mas pelo trabalho e o cultivo, únicos sinais de propriedade que, na ausência de títulos jurídicos, devem ser respeitados pelos outros. (Rousseau, 1998, 7-8) avanço, porque serviu como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade, que mais tarde tomariam caráter universal. A primeira declaração de direitos em sentido moderno do termo surge na Virgínia, uma das 13 colônias inglesas na América, em 1/1/1776, portanto, anterior à Declaração de Independência dos Estados Unidos. Artigo 1° - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais, dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Com o contrato social e o estabelecimento das leis, o homem perde a liberdade natural e o direito ilimitado a tudo, mas ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui – a liberdade natural é limitada pelas forças do indivíduo, a liberdade civil é limitada pela liberdade geral e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante. (Rousseau, 1998, 6) O direito de primeiro ocupante, ainda que mais real que o do mais forte, só se torna um verdadeiro direito após o estabelecimento de propriedade. Todo homem tem naturalmente direito a tudo o que lhe é necessário; mas o ato positivo, que o torna proprietário de qualquer bem, o exclui de tudo o mais. Tomada a sua parte, deve limitar-se a ela, e já não goza de nenhum direito à comunidade. Eis por que o direito de primeiro ocupante, tão frágil no estado de natureza, é respeitável para todos os homens civis. (Rousseau, 1998, 7). Em síntese, pode-se dizer que, para Hobbes e Rousseau, não existe um direito natural à propriedade, porque ela precisa da sociedade civil para existir. Portanto, a propriedade privada é um efeito do contrato social. Locke, ao contrário, pensa que a propriedade é um direito natural do homem, e a primeira propriedade é o próprio corpo. Ainda que os contratualistas partam de premissas distintas, o certo é que uma das funções do Estado é proteger a propriedade privada. Artigo 7° - Nenhuma parte da propriedade de um vassalo pode ser tomada, nem empregada para uso público, sem seu próprio consentimento, ou de seus representantes legítimos; e o povo só está obrigado pelas leis, da forma por ele consentida para o bem comum. Artigo 13° - Nas causas que interessem à propriedade ou os negócios pessoais, a antiga forma de processo por jurados é preferível a qualquer outra, e deve ser considerada como sagrada. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Embora posterior às declarações americana e inglesa, configura-se como a declaração de maior repercussão, sobretudo devido a seu caráter universal. Aprovada na França, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi marcada por profundo liberalismo e pretensão de universalidade, buscando a libertação do homem farto do absolutismo e do opressivo regime feudal. Nesse sentido, as teorias desenvolvidas pelos contratualistas contribuíram para o reconhecimento do direito de propriedade como um direito fundamental, sem o qual o homem não teria como exercer outro direito fundamental, que é a liberdade. Nessa perspectiva, o direito de propriedade é condição para o gozo da liberdade e, por isso, a necessidade de reconhecêlo como direito assegurado e protegido pelo Estado. Antes, porém, da constitucionalização contemporânea dos direitos fundamentais, alguns direitos fundamentais, notadamente os de primeira geração, que impõem ao Estado obrigações de não fazer, foram positivados em declarações de direitos. Nesse sentido, temos a Magna Carta, de 115, na Inglaterra, a qual representou um grande "Uma das funções do Estado é proteger a propriedade privada". Artigo 1º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. Artigo º - A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Artigo 17 - Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, "Por meio de sem justa indenização. A Constituiações concretas, ção francesa de 1791, por sua vez, já Em 10 de dezembro de 1948, foi contemplava direitos fundameno Estado busca proclamada a Declaração Universal tais, destacando-se o artigo 3º, no materializar o princípio dos Direitos do Homem, não por qual ficou estabelecido que a um país como, até aquele moda igualdade em Constituição garante a inviolabilimento, era a praxe jurídico-política, dade das propriedades, ou a justa sentido material". mas pela Assembleia Geral das Nae prévia indenização daquelas proções Unidas. priedades cuja necessidade pública, legalmente comprovada, exija o sacrifício. Artigo 1º - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em diA origem dos direitos fundamentais, como são vistos reitos. Dotados de razão e de consciência, hodiernamente, é resultado da reação que os colonos devem agir uns para com os outros em americanos opuseram à metrópole, a Inglaterra, em espírito de fraternidade. face do déficit de liberdade, porque eram submetidos Declaração Universal dos Direitos do Homem Artigo º - Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita qualquer distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. Artigo 3º - Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 17 - Toda pessoa, individual ou coletivamente, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. Convenção Americana dos Direitos Humanos Pacto de São José da Costa Rica – 1969. Artigo 1. Direito à propriedade privada: 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. . Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei. As Constituições americana e francesa foram as precursoras no reconhecimento de direitos fundamentais, destacando-se inicialmente a Constituição americana de 1787. Embora não contivesse inicialmente uma declaração de direitos fundamentais, em 1791 foram aprovadas dez Emendas, às quais se acrescentaram outras, até 1975, constituindo o Bill of Rights do povo americano. Na emenda ficou estabelecido, entre outros, que ninguém será privado da vida, da liberdade ou dos bens, sem processo legal; à Coroa Inglesa. Uma das características dos direitos de liberdade ingleses era a de que estavam ancorados apenas ao nível do direito comum e, portanto, não constituíam uma defesa contra as limitações da liberdade decididas no parlamento. Os colonos americanos forçaram o rompimento com a metrópole, apelando ao direito natural e à construção de um poder estatal próprio. Nesse contexto, os direitos de liberdade ingleses, vigentes nas colônias, foram elevados à categoria constitucional, com escassas modificações de conteúdo e opostos em face do Poder Legislativo. Essa mudança tem uma importância política reconhecida há muito tempo, por ser uma ordem social liberal protegida contra abusos do Estado, ou seja, existe uma defesa constitucional contra a intervenção do Estado em face dos direitos fundamentais, como função original. A França, país europeu onde se originaram os direitos fundamentais, apresenta um cenário diferente. Podese dizer, por um lado, que a Revolução Francesa se assemelhou à americana quanto à eliminação do poder estatal opressor, de maneira revolucionária, e erigindo um novo, igualmente com base em uma constituição escrita, que definiu as condições de legitimidade do poder político, ao mesmo tempo em que fundava e limitava suas atribuições. Por outro lado, as revoluções se diferenciaram no ponto de partida e nas metas: enquanto as colônias americanas desfrutavam, no século XVIII, de uma ordem social consideravelmente liberal, que só ocasionalmente foi perturbada pela metrópole, a ordem social na França não se caracterizava pela liberdade nem pela igualdade, senão por deveres e obrigações, limites estamentais e privilégios. Nesse contexto, as constituições contemporâneas passaram a dar um tratamento especial aos direitos fundamentais, alçando o cidadão como protagonista político e jurídico, colocando a constituição como o centro do ordenamento jurídico, e os direitos fundamentais, como o núcleo irradiador de comandos para todo o ordenamento jurídico, inclusive na esfera privada, gerando o que se chama de eficácia horizontal. Os direitos fundamentais apresentam um quadro teórico com três, às vezes, quatro dimensões. Nesse quadro, estão demarcados os direitos fundamentais de primeira dimensão, marcadamente de cunho individual, como aqueles em que o cidadão se opõe em face do Estado, por isso, qualificados como direitos de de- 3 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil fesa, demarcando a esfera da autonomia individual, com o afastamento da intervenção do Estado. “Assumem relevo, no rol desses direitos, especialmente pela notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a Lei” (Sarlet, 007, p.56). "As atividades jurídicas executadas pelo Estado têm finalidade distinta das atividades sociais ou materiais". Já os direitos fundamentais de segunda dimensão são os direitos de natureza econômica, social e cultural, que exigem do Estado um comportamento ativo na concretização da justiça social. “Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado” (Sarlet, 007, p.57). Por meio de ações concretas, o Estado busca materializar o princípio da igualdade em sentido material. futuro, tal caráter institucional lhes revela a função de propiciar unidade sistêmica à constituição e a todo ordenamento jurídico. (Melo, 009, p.78) O artigo 1º da Constituição federal prevê expressamente que: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e V - o pluralismo político. Já o artigo 3º da Constituição federal dispõe: Os direitos fundamentais de terceira dimensão destinam-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação) e caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Os mais citados são: direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. No contexto constitucional dos direitos fundamentais, salienta-se a necessária dimensão objetiva dos princípios, objetivos e direitos fundamentais e a sua eficácia irradiadora para todo o ordenamento jurídico. A eficácia dos direitos fundamentais ficaria prejudicada, se não houvesse uma sintonia eficacial com os princípios e objetivos fundamentais. Por essa razão, faremos breves comentários sobre a dimensão objetiva deles. Apontamentos sobre os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais e sua dimensão objetiva na Constituição brasileira A Constituição federal brasileira apresenta um conjunto de princípios, objetivos e direitos fundamentais que irradiam eficácia para todo o ordenamento jurídico, tanto no momento da feitura da lei, quando de sua aplicação, assim como da sua execução. Em outras palavras, todos os atos e negócios jurídicos estão sujeitos à incidência dos princípios, objetivos e direitos fundamentais, pouco importando se na esfera pública ou privada. A relação de recíproca afirmação entre os direitos fundamentais dos indivíduos e a estrutura organizacional do Estado corresponde ao duplo caráter dos direitos fundamentais. De fato, além da dimensão subjetiva ou individual, os direitos fundamentais assumem um aspecto institucional, na medida em que também atuam como elementos conformadores da ordem estatal e social. Eles tanto falam da conformação presente da vida da comunidade, como indicam os fins e objetivos perseguidos; e, falando do presente ou do 4 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. E o artigo 5º da Constituição federal estabelece que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...). Além dos artigos citados, também o artigo 170, ao estabelecer as diretrizes da ordem econômica, prevê que: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV – (...); V – (...); VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. E por fim, o artigo 5 da Constituição federal dispõe que: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Após a transcrição desses artigos da Constituição, ao menos duas observações se fazem necessárias: uma é no sentido de que os artigos referidos não são os únicos que integram a estrutura constitucional irradiadora de eficácia para o ordenamento jurídico; a outra é no sentido de que a qualificação e a materialização dos atos no Registro de Imóveis não podem ser feitas à margem dos princípios, objetivos e direitos fundamentais. Ainda que a natureza dos atos praticados no Registro de Imóveis seja administrativa, os atos não são de Administração Pública, porque a atividade registral se caracteriza como função jurídica, típica de Estado e não se esgota na simples vinculação à lei. O oficial do Registro de Imóveis concretiza o Direito Registral Imobiliário no caso concreto, com fundamento na lei e no Direito, o que compreende os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais. Na sequência faremos breve abordagem do Registro de Imóveis no Brasil, como um sistema de publicidade que assegura a estabilidade das situações jurídico-prediais, notadamente na garantia do direito de propriedade constituído ou declarado por meio de ato registral, assim como os demais direitos reais que recaem sobre o direito de propriedade, sem prejuízo assecuratório de outros direitos de matiz não real. Apontamentos sobre o Registro de Imóveis no Brasil No cenário brasileiro, o Registro de Imóveis, instituição jurídico-formal, é que tem por finalidade dar segurança jurídica aos direitos e aos fatos inscritos. No plano organizacional, o Registro de Imóveis no Brasil, de organização técnica e administrativa, é destinado a garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos que lhe competem. Já no plano normativo, a função registral imobiliária é tipicamente estatal, portanto, jurídica. Destaca-se que, a partir da vigência da Lei Imperial nº 601/1850, a publicidade da legitimação de posse dos imóveis passou a ser feita em livro da Paróquia Católica, o chamado registro do vigário. Portanto, não era o Estado que assegurava a legitimidade da posse, mas a Igreja. O Estado, por meio da Lei Orçamentária nº 317/1843, regulamentada pelo Decreto nº 48/1846, criou o registro de hipotecas como instrumento de segurança jurídica para o crédito. (Carvalho, 1997, p.-3) lizadas, excetuados os Tabelionatos e os Ofícios Distritais e de Sede Municipal, e os respectivos cargos isolados, de provimento efetivo, serão providos mediante concurso público, obedecidos os critérios e exigências da lei. Além disso, as taxas e custas previstas em lei serão recolhidas aos cofres do Estado, salvante as custas devidas aos tabeliães e aos oficiais Distritais e de Sede Municipal. Esclarece-se que o artigo 15 e seu parágrafo único têm a redação dada pela Lei Estadual nº 8.131/1986, anterior à Constituição federal de 1988, e permanecem inalterados. A partir da vigência da Constituição de 1988, instaurou-se uma nova ordem nessa matéria, em face de disposição expressa de que esses serviços são executados por delegados. O artigo 36 da Constituição federal foi regulamentado pela Lei Federal nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, que dispõe sobre o estatuto do notário e do registrador público das pessoas naturais, das pessoas jurídicas, de títulos e documentos e de registro de imóveis. Essa lei, contudo, não define de forma clara a natureza jurídica do vínculo de delegação e, além disso, se o serviço é federal ou estadual. Na perspectiva do Estado democrático de Direito, o Estado executa inúmeras funções públicas, com o fito de atender às demandas públicas. Para tanto, utiliza o instrumental que a ordem jurídica disponibiliza e executa atividades tipicamente estatais e outras atípicas, mas de sua responsabilidade por imposição constitucional. Atividades típicas de Estado são aquelas com expressão jurídica, ou seja, contribuem para a segurança jurídica do cidadão e da sociedade. Nesse sentido, “atende-se à preservação do direito objetivo, à ordem pública, à paz e à segurança coletivas” (Tácito, 1975, p.198-199). Uma das características que diferenciam as atividades típicas ou jurídicas do Estado das atividades atípicas ou sociais é a fruição indivisível pela sociedade, em benefício de seus interesses primários, em oposição à fruição divisível que caracteriza os serviços atípicos, em benefício de seus interesses secundários (Moreira Neto, 006, p. 45). Ordinariamente, as atividades jurídicas são consideradas como indelegáveis, pois, de acordo com Diogo de O Estado brasileiro, ao assumir as atividades, repassou Figueiredo Moreira Neto, são “impostas como próprias a execução delas em favor de pessoas naturais, que, do Estado, e necessária condição de sua existência” embora atreladas ao Poder Judiciário, não faziam (Moreira Neto, 006, p. 11). Essas atividades, a rigor, parte do quadro de servidores titulares de cargos do são executadas pelo próprio Estado ou de forma desJudiciário. No Estado do Rio Grande centralizada por meio de entidades do Sul, foram denominados de serautárquicas. Neste caso, o Estado, ventuários do Foro Extrajudicial, tiao criar a autarquia, já lhe transfere "A instituição Registro tulares de cargos isolados, de por força de lei a titularidade do seracordo com o Código de Organizaviço e a consequente execução. de Imóveis tem por ção Judiciária. finalidade prevenir Essas atividades não são consideraconflitos e dar Esse Código, em seu artigo 15, predas serviço público em sentido técvia que: nico, porque não contemplam ações segurança jurídica de natureza prestacional, capazes em face dos atos e As serventias do Foro de serem fruídas individualmente. fatos da vida civil". Extrajudicial são oficiaAo contrário, as atividades jurídicas 5 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil visam imediatamente ao Estado ou à sociedade indistintamente considerada, assim como a atividade de polícia administrativa (Aragão, 007, p. 167). Efetivamente, as atividades jurídicas executadas pelo Estado têm finalidade distinta das atividades sociais ou materiais. A primeira é indelegável, porque é condição de manutenção da ordem jurídica e social, enquanto que a segunda visa a atender as demandas públicas capazes de serem fruídas individualmente, a despeito de entendimentos diversos na doutrina estrangeira. No Direito italiano, por exemplo, forjou-se a separação entre função pública e serviço público. De acordo com Marçal Justen Filho, “essa divisão parece ter sido uma necessidade para a qualificação técnico-jurídica das atividades da Administração Pública” (Justen Filho, 003, p. 86-87). Na sequência, o autor explica de modo genérico essa distinção, conforme a seguir transcrito: De modo genérico, difundiu-se que “a função pública” compreenderia todo tipo de atividade jurídica autoritativa, inerente à soberania do Estado, tais como a polícia e a diplomacia, destinada a satisfazer os interesses da coletividade no seu conjunto. A função pública seria a expressão do poder administrativo. Por serviço público, entendeu-se uma atividade social, imputável, direta ou indiretamente, ao Es- 6 tado ou a um ente público, caracterizada pela prestação técnica ou material em favor dos cidadãos (segundo alguns, singularmente considerados). O serviço público, como atividade administrativa, não estaria revestido de autoridade. A instituição Registro de Imóveis tem por finalidade prevenir conflitos e dar segurança jurídica em face dos atos e fatos da vida civil. Ela compreende serviços voltados diretamente ao cidadão, por meio de instituições (Cunha e Dip, 001, p. 61), denominadas instituições da comunidade (Erpen, 199, p.103-104), que podem ser consideradas como parcelas do Estado. No plano doutrinário, as atividades registrais imobiliárias, assim como as notariais e dos demais registros públicos, ainda carecedoras de estudos acadêmicos, têm por objeto enfrentar questões como conceitualização, classificação, natureza jurídica, delegação, entre outros pontos, o que gera controvérsias. Esse fato é corroborado por José Afonso da Silva, ao asseverar que: É antiga a controvérsia sobre a natureza jurídica desses serviços. Não raro são chamadas serventias de Justiça, de acordo com a concepção de que seriam auxiliares da Justiça. Mas, essa caracterização só tem sentido real em relação a escrivães e secretários do juízo. O mesmo, porém, não se dá em relação aos XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil notários e registradores, visto que, como são profissionais autônomos pelos atos de seu ofício, ‘gozam de independência no exercício de suas atribuições’ – bem o diz o art. 8 da Lei nº 8.935/1994. De fato, a doutrina contemporânea excluiu do quadro dos auxiliares da Justiça todos aqueles que exerçam atividades que não sejam inerentes às que se realizam no processo, como são as serventias do foro extrajudicial. (Silva, 005, p.873). São atividades que contribuem para viabilizar a concretização dos direitos fundamentais do cidadão, razão pela qual a natureza pública é inafastável. Contudo, não possuem natureza prestacional, como as atividades materiais que o Estado executa ou coloca à disposição da sociedade para maior comodidade ou utilidade pública. No plano conceitual, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma “que a atividade notarial e de registro, embora não considerada um serviço público de ordem material (atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestada pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes, sob um regime de direito público), o é de ordem puramente jurídica” (Mello, 1979, p.17). A Constituição federal - art. 36 - qualifica as atividades notariais e de registros públicos como serviços e estabelece que sejam exercidas em caráter privado, por delegação do poder público. Se a execução desses serviços por particulares pressupõe prévia delegação, induvidosamente, são considerados serviços públicos. Na sequência, o parágrafo primeiro do artigo 36, dispõe que a lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. Ou seja, a execução desses serviços está orientada e condicionada pelo Direito, o que afirma sua natureza jurídica e, ao mesmo tempo, ao controle do Poder Judiciário. Ademais, os notários e os registradores públicos estão sujeitos a um estatuto jurídico (Lei Federal nº 8.935/1994) de Direito público, que estabelece os direitos, obrigações, responsabilidades e impedimentos do vínculo de delegação. A cobrança de emolumentos, que são considerados taxas tanto pela doutrina e também pelo Supremo Tribunal Federal (STF), não é de livre estipulação pelos notários e registradores. A Lei Federal nº 10.169/000 dispõe a respeito das regras gerais, e os Estados da Federação, por meio de leis estaduais, disciplinam a cobrança, dispondo sobre os fatos geradores, bases de cálculo, alíquotas e isenções. atos e negócios, ora conectados ao aparato administrativo e cartorial que serve de suporte à prestação jurisdicional. Nada impede que o legislador cobre taxas pela prestação dos serviços públicos, específicos e divisíveis, ligados à certificação de atos e negócios ou ligados à prestação jurisdicional. Nada o impede de destinar a outros fins o produto arrecadado. O Estado não está obrigado a aplicar apenas no setor público que a gerou o produto da arrecadação da taxa e, desde que a lei permita, poderá direcioná-lo até mesmo para pessoas (tabeliães) ou instituições, com o fito de cooperar em fins assistenciais e previdenciários (fins públicos). É que para a caracterização jurídica da taxa é irrelevante o destino de sua arrecadação. O Supremo Tribunal Federal (STF – ADIN 1.378-5), em face do regime jurídico dos serviços notariais e de registros públicos e da consequente natureza jurídica, função revestida de estatalidade, sujeita a um regime jurídico de Direito público, firmou entendimento no sentido de que emolumentos possuem natureza de taxa. A jurisprudência do STF firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se (...) ao regime jurídico constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade. A atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de Direito público. Na mesma ADIN 1.378-5, o STF também concluiu que os notários e os registradores públicos são órgãos da fé pública, instituídos pelo Estado, e executam, nesse contexto, atividade eminentemente pública, carregada de estatalidade, qualificando-os como agentes públicos. Os serviços notariais e de registros públicos são considerados como atividades jurídicas específicas, prestadas ou colocadas à disposição dos interessados, de forma divisível. Logo, os emolumentos cobrados pela sua prestação são taxas. Nesse sentido, averba-se o entendimento de (Sacha, 1999, p. 44-45): A possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de registro ser efetivada “em caráter privado, por delegação do poder público” (CF, art. 36), não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa. As serventias extrajudiciais, instituídas pelo poder público para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas “a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (Lei nº 8.935/1994, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores públicos. Aceite-se que as custas e os emolumentos são taxas pela prestação dos serviços públicos ora ligados à certificação dos As atividades, por serem eminentemente públicas, são executadas por agentes públicos, pessoas naturais que executam funções regidas predominantemente por um 7 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil regime de Direito público. “A função é o círculo de assuntos do Estado que uma pessoa, ligada pela obrigação do direito público de servir ao Estado, deve gerir”. (Cretella Júnior, apud Mayer, 1999, p. 157) "A aquisição do direito não ocorre sem que tenha havido previamente o ato registral de publicidade constitutiva". A ideia de função está intimamente ligada à noção de atividade, de um facere e não é exclusivamente pública. É pública quando regida pelo Direito público. Nesse sentido, (Cretella Júnior, apud Basavilbaso, 1999, p. 157) afirma: “A ideia de função implica, necessariamente, em atividade, e quando esta se refere a órgãos do Estado (lato sensu) é pública ou estatal”. Função pública, no entender de José Cretella Júnior, é a “realização de qualquer ato juridicamente prescrito e, portanto, relativo ao sistema do Estado considerado em sua unidade, o que constitui o exercício duma função, e o agente que concorre para a perfeita integração do ato é órgão do Estado” (Cretella Júnior, 1999, p. 157). Exercer uma função pública também não é exclusividade de agente público titular de cargo público, vinculado a órgãos do poder público central ou entidades de natureza autárquica, assim como de ocupantes de empregos públicos. Função pública pode, também, ser desempenhada por agente delegado. A despeito de opiniões em contrário, as expressões função pública e funcionário público não são correlatas, porque “não só existem funções públicas que são desempenhadas por agentes estranhos aos quadros do funcionalismo como também inversamente, há funcionários que podem acidentalmente não estar, de modo ativo, no desempenho de suas funções” (Cretella Júnior, 1999, p. 157). Induvidosamente, a atividade registral imobiliária é desempenhada no exercício de uma função pública, a despeito de serem executadas a partir de cargos ou empregos públicos, mas por força de delegação do poder público. Corrobora, nesse sentido, as lições de (Silva, 005, p. 873-874), a seguir transcritas: É fora de qualquer dúvida que as serventias notariais e registrais exercem função pública. Sua atividade é de natureza pública, tanto quanto o são as de telecomunicações, de radiodifusão, de energia elétrica, de navegação aérea e aeroespacial e de transportes, consoante estatui a Constituição (art. 1, XI e XII). A distinção que se pode fazer consiste no fato de que os últimos são serviços públicos de ordem material, serviços de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, enquanto que os prestados pelas serventias do foro extrajudicial são serviços de ordem jurídica ou formal e, por isso, têm antes a característica de ofício ou de função pública, mediante a qual o Estado intervém em atos ou negócios da vida privada para conferir-lhes certeza, eficácia e segurança jurídica; por isso, sua prestação indireta 8 configura delegação de função ou ofício público, e não concessão ou permissão, como ocorre nas hipóteses de prestação indireta de serviços materiais – consoante justa observação de Celso Antônio Bandeira de Mello. Ou seja – conforme Frederico Marques: o registro público desempenha uma função de administração pública de interesses privados. O Registro de Imóveis é uma instituição que executa serviço público de natureza jurídica, pois, de acordo com Ricardo Dip, “assenta no seu caráter social e na sua teleologia (ou enteléquia) de segurança jurídica, que não se passa, em definitivo, em um âmbito de somatórios individuais” (Dip, 005, p. 186). O mesmo pode ser dito em face da atividade notarial, que na sua teleologia também tem compromisso com a segurança jurídica. A despeito da natureza pública da função registral, nem por isso, necessariamente, se trata de atividade estatal, por ser “definido o caráter público das funções, atividades e serviços ordenados à segurança jurídica, (...) nem por isso se hão de julgar necessariamente estatais esses serviços, funções e atividades, com que se engastaria o radical equívoco de supor que o direito público é o mesmo que direito do Estado (...), ignorando o pluralismo jurídico, o amplificado papel (até mesmo normativo) dos corpos intermediários e as exigências do princípio da subsidiariedade” (Dip, 005, p. 186). Em nível de conclusão, (Silva, 005, p. 874) afirma que “as serventias de notas e de registro público são organismos privados que prestam um serviço público, desempenham uma função pública” e que “atuando em nome próprio e por sua conta e risco, desempenham uma função em substituição da Administração Pública”. O Registro de Imóveis pode ser conceituado como uma instituição jurídico-formal, a cargo de um oficial público por força de delegação, que tem por atribuição legal a capacidade para publicizar (registrar, averbar e informar) fatos jurídicos que dizem respeito a bens imóveis, com efeitos constitutivos ou declaratórios do direito real de propriedade, ou direitos reais que recaem sobre o direito real de propriedade imobiliária e, ainda, direito de natureza obrigacional, bem como atos ou fatos que dizem respeito aos sujeitos que figuram nos registros, sempre que a lei assim impuser ou autorizar, com a finalidade de dar autenticidade, segurança e eficácia jurídica. Portanto, a instituição Registro de Imóveis no Brasil compreende um conjunto de atividades jurídicas, qualificadas como função pública, regidas por leis e atos administrativos normativos, notadamente das Corregedorias-Gerais de Justiças dos estados e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sob responsabilidade de uma pessoa natural, delegatária de função pública, cuja finalidade é dar segurança jurídica a atos e fatos jurídicos, relacionados predominantemente a direitos reais que envolvem imóveis. Feitas essas considerações acerca da segurança jurídica e da instituição Registro de Imóveis, passaremos XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil às considerações sobre o direito de propriedade na perspectiva constitucional, assim como o Código Civil e a legislação que regra os mecanismos de proteção do direito de propriedade, notadamente no âmbito do Registro de Imóveis. A Constituição federal, no artigo 5º, inciso XXII, prevê expressamente que é garantido o direito de propriedade e, na sequência, expressa que a propriedade deve se sujeitar à função social. Além da função social, a propriedade tem uma função econômica, afirmação que pode ser extraída do artigo 170 que inaugura a Ordem Econômica, como também tem uma função ambiental, pelo que se depreende do artigo 5 da Constituição federal. não haja acordo de vontade, a segurança jurídica dependerá, também, da validade do título apresentado para a publicidade registral desses fatos. O sistema Registral Imobiliário brasileiro, a despeito de ser constitutivo, não adotou a eficácia saneadora, típica dos sistemas que adotaram a fé pública, que opera efeitos juris et de jure. Adotou o princípio da legitimação registral que opera a eficácia juris tantum. O sustentáculo da segurança jurídica dos atos jurídicos praticados no Registro de Imóveis, com a finalidade de proteger os direitos inscritos, reside na presunção juris tantum que eles gozam. A Lei de Registros Públicos – Lei nº 6.015/1973 – dispõe em seu artigo 17 que: Nesse cenário Constitucional, o Registro de Imóveis, por meio de um sistema de publicidade, assegura a estabilidade das situações jurídico-prediais, notadamente na garantia do direito de propriedade constituído ou declarado por meio de ato registral, assim como os demais direitos reais que recaem sobre o direito de propriedade, sem prejuízo assecuratório de outros direitos de matiz não real. Por isso, o Registro de Imóveis está voltado precipuamente para cumprir as exigências da segurança jurídica estática dos direitos reais inscritos, embora estejamos caminhando para a segurança jurídica dinâmica - Lei Federal nº 13.097/015 -, que, segundo (DIP, 1987), é a que dá segurança jurídica “ao comércio e ao crédito predial”. O Código Civil contempla o direito material relacionado aos direitos reais e à Lei de Registros Públicos - Lei nº 6.015/1973, entre outras - e dispõe sobre o direito adjetivo, ou seja, estabelece o regramento processual que rege a inscrição dos atos e fatos jurídicos no Registro de Imóveis, com vistas à segurança jurídica. No artigo nº 1.7, o Código Civil dispõe: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem com o registro no cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (artigos 1.45 a 1.47), salvo os casos expressos neste Código”. O Brasil adotou um sistema registral imobiliário publicista-constitutivo, ou seja, as aquisições que têm como causa um negócio jurídico entre vivos somente se constituem por meio do ato registral no Registro de Imóveis. Em outras palavras, a aquisição do direito não ocorre sem que tenha havido previamente o ato registral de publicidade constitutiva. A segurança jurídica dependerá não apenas do ato registral válido, mas também da validade do negócio jurídico causal, porque todo ato registral constitutivo de direito real tem como fato gerador um negócio jurídico. Não dependem de publicidade constitutiva as aquisições que decorrem de fatos, aos quais a própria lei atribui o direito, independentemente de um ato de vontade, como ocorre, por exemplo, com as aquisições por força de fato morte, usucapião, desapropriação etc. Embora No Registro de Imóveis, serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade. A escrituração no âmbito do Registro de Imóveis é feita por meio de atos de registro e de averbação. Os primeiros são os principais, também chamados de autônomos, porque não são dependentes de outros atos, razão pela qual são os praticados para a publicidade constitutiva e declaratória de direitos, enquanto que os atos de averbação são atos acessórios, que alteram, modificam, cancelam, entre outros, outro ato registral previamente existente. Esclarece-se que o Registro Imobiliário brasileiro é inscritivo de atos e fatos jurídicos dos quais resultam direitos que gozam de presunção juris tantum, e descritivo de fatos que não gozam de presunção juris tantum. Os fatos compreendem o imóvel em termos fáticos e sua configuração geodésica, assim como a qualificação dos sujeitos, entre outros. A descrição geodésica do imóvel na matrícula e os dados identificadores dos sujeitos não gozam da mesma presunção que os direitos inscritos. Por outro lado, a descrição correta dos elementos fáticos é imprescindível para a segurança jurídica dos direitos constituídos ou declarados por meio do ato registral. Exemplificando, para a segurança jurídica de um direito real é necessário que se saiba com exatidão sobre qual bem real o direito incide. Por isso, a matrícula do imóvel - fólio real - exige a descrição geodésica pormenorizada. Só assim será aumentada a certeza e, por consequência, a segurança, em termos de "Tratando-se incidência do direito sobre o bem real. de direitos fundamentais, é necessário que se extraia a força normativa da Constituição". Portanto, para a constituição, a transferência e a extinção de direitos relacionados com o direito de propriedade imobiliária é necessária não apenas a publicidade registral, mas que ela tenha como suporte fá- 9 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil tico e jurídico um fólio real com a especialização do bem imóvel. Sem esses pressupostos não se torna seguro e oponível em relação a terceiros, sem afastar a ideia de que a publicidade registral é indispensável para a disponibilidade dos direitos. Em uma perspectiva da segurança jurídica dinâmica, ou seja, aquela que protege o comércio e o crédito predial, tivemos recentemente uma inovação legislativa, a Lei nº 13.097/015, estabelecendo que os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel informações que têm por objeto citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; constrição judicial, ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença; restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus, quando previstos em lei; e decisão judicial comprovando a existência de outro tipo de ação, cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. Isso quer dizer que, se não forem averbadas as informações referidas, o terceiro que faz um negócio jurídico relacionado a determinado bem imóvel será considerado de boa-fé, com base no princípio de que aquilo que não consta no Registro de Imóveis não está no mundo jurídico. Por isso, não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados os alcançados pela ineficácia, nos casos de decretação de falência e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. Em rápidas conclusões pode-se afirmar que o Registro de Imóveis brasileiro é uma instituição jurídica, que tem por fim dar segurança jurídica aos direitos inscritos, gozando de presunção juris tantum, com oponibilidade em face de terceiros, salvo nas hipóteses em que a própria lei a afasta, assim como certa segurança jurídica de terceiros que realizam negócios jurídicos prediais, em sintonia com os princípios, objetivos e direitos fundamentais. Apontamentos sobre os direitos fundamentais e a repercussão no Registro de Imóveis O Registro de Imóveis é uma instituição jurídica protetiva de direitos, notadamente do direito de propriedade como direito fundamental de primeira dimensão, considerando que ela viabiliza a concreção do direito à igualdade. É nessa perspectiva que o caput do artigo 5º prevê a inviolabilidade do direito de propriedade. No mesmo artigo 5º, porém, no inciso XX, está prevista a garantia do direito de propriedade, e no inciso XXIV, a previsão de que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia 30 indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos na Constituição. No inciso XXV, está a previsão de que, no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano. No inciso LIV, temos que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Portanto, aí estão os contornos e as diretrizes do conteúdo do direito de propriedade. Nesse cenário, o Registro de Imóveis é protagonista como instrumento de segurança jurídica, ao constituir o direito de propriedade e não permitir que o direito de propriedade seja afetado, salvo quando a lei e o Direito permitirem. Nessa perspectiva, o Registro de Imóveis tem por finalidade a proteção do direito de propriedade e os direitos correlatos. Além da função protetiva do direito de propriedade, na perspectiva dos direitos fundamentais de primeira dimensão, o Registro de Imóveis tem uma função viabilizadora da concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão. Nesse sentido, o Registro de Imóveis atuará no exercício de suas atribuições, na perspectiva da igualdade alcançando direitos de natureza econômica, social e cultural. Por exemplo, o inciso XXIII, do artigo 5º da Constituição prevê que a propriedade atenderá a sua função social. E em complemento a esse comando, vários outros dispositivos constitucionais passaram a vincular a propriedade ao cumprimento de vetores sociais, como ambiental (art. 186-II), econômico (art. 186-I), trabalhista (art. 186-III), cultural (art. 16, parágrafo 1º), urbanístico (art. 18, parágrafo º) e preventivo criminal (art. 43). Saliente-se, contudo, que, a exemplo dos direitos de primeira dimensão, também os direitos sociais (tomados no sentido amplo, ora referidos) se reportam à pessoa individual, não podendo ser confundidos com os direitos coletivos e/ou difusos da terceira dimensão. (Sarlet, 007, p.57) Dessa forma, o Registro de Imóveis é copartícipe de políticas públicas, relacionadas com o direito social à moradia, que se concretiza pela aquisição da propriedade, como, por exemplo, o Programa Minha Casa Minha Vida; participa de políticas públicas relacionadas às regularizações fundiárias urbanas e agrárias, entre outras. A concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão requer políticas públicas e aí se abre um espaço importante para o Registro de Imóveis, atuando como copartícipe dos governos, seja por imposição legal, convênios ou outros instrumentos jurídicos. Acerca dos direitos fundamentais de terceira dimensão, o Registro de Imóveis também tem uma teleologia viabilizadora de concretização dos direitos fundamentais, especialmente no âmbito dos direitos fundamentais ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito à comunicação, no âmbito do qual está inserido o direito à informação. XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Podemos citar, nesse contexto, os atos relacionados ao meio-ambiente, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o registro eletrônico e os seus desdobramentos relacionados com o direito fundamental à informação. São direitos fundamentais que transcendem a esfera individual para alcançar a esfera dos grupos humanos, tais como a família, o povo, a nação. Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes consequências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais. (Sarlet, 007, p.58). Ainda que sejam breves apontamentos, é possível demonstrar que o Registro de Imóveis é uma instituição, cuja função vai além da mera constituição ou declaração de direitos reais ou obrigacionais previstos em lei, porque tem a nobre função de contribuir para a viabilização e a concretização de direitos fundamentais. Todavia, para alcançar esse desiderato, é necessário avançar no sentido de extrair a máxima efetividade das normas constitucionais. Apontamentos sobre o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais – princípio da supremacia da Constituição A República Federativa do Brasil é democrática, porque o poder deriva do povo e em seu nome deve ser exercido, orientado pelo princípio da supremacia da Constituição, seja no âmbito dos direitos e interesses de particulares quanto aos interesses públicos. A supremacia da Constituição não só impõe que toda atuação do poder público se conforme, material e formalmente, com os preceitos e diretrizes por ela estabelecidos, como também determina [...] que o poder público obrigatoriamente atue quando para tanto for exigido. A supremacia constitucional ficaria comprometida – e, de resto, toda ordem jurídica – se as imposições constitucionais não fossem realizadas. Em consequência disso, todos os órgãos do Poder Político – Legislativo, Executivo e Judiciário – acham-se vinculados e obrigados a satisfazer os fins e tarefas impostas pelo texto magno. (Cunha Júnior, 004, p.5). É no contexto da supremacia da Constituição que o princípio da máxima efetividade, também denominado de princípio da interpretação efetiva, orienta o intérprete a atribuir às normas constitucionais o sentido que maior efetividade lhe dê, visando a otimizar ou maximizar a norma para dela extrair todas as suas potencialidades. Mesmo não havendo lei editada, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais - da qual decorre a autoaplicabilidade - autoriza a concretização de atos jurídicos, desde que não haja fundamento insuperável a impedir que isso ocorra. O princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais é uma decorrência do princípio da supremacia da Constituição, cuja finalidade é a de concretização 31 Instituto de Registro Imobiliário do Brasil dos direitos fundamentais, porque, além da autoaplicabilidade, precisam alcançar toda a sua potencialidade. Isso porque aceita-se a premissa de que todas as normas constitucionais, inclusive aquelas que se expressam por meio de princípios, são dotadas de alguma eficácia. Dessa eficácia das normas constitucionais, decorre naturalmente a vinculação dos órgãos e dos agentes públicos com o princípio da dignidade da pessoa humana, eixo em torno do qual giram os direitos fundamentais, exigindo respeito e proteção de terceiros e obrigação de concretização por parte do Estado. Da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que - de forma direta ou indireta - consagra a ideia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado. (Sarlet, 007, p.117) No Estado Constitucional, a propriedade é um fator de liberdade (Melo, 009, p.85) “e a garantia dos direitos de liberdade constituem uma das principais (se não a principal) exigência do princípio da dignidade da pessoa humana” (Sarlet, 0007, p.119). Portanto, a dignidade da pessoa humana é um dos norteadores da atuação do oficial do Registro de Imóveis. A dignidade da pessoa humana é simultaneamente condição de limite e tarefa dos poderes estatais. Na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido e alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações, tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade (...). (Sarlet, 007, p.119) reside justamente na sua eficácia, ou seja, na capacidade de operar as mudanças na realidade. O desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende, como dito, só do conteúdo da Constituição, mas também de sua práxis. A concepção de vontade de Constituição deve ser partilhada por todos os partícipes da vida constitucional. O comprovado respeito à Constituição é fundamental, sobretudo naquelas situações em que sua observância revela-se incômoda (exemplo: sacrifica-se um interesse, ou alguma vantagem justa em favor da preservação de um princípio constitucional). (Hesse, 1991, p.1-). Dessa forma, o oficial do Registro de Imóveis, ao desempenhar a função qualificadora do título, notadamente quando tiver por objeto a proteção de um direito qualificado como fundamental pela Constituição federal, deverá se orientar, hermeneuticamente, pelo princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, extraindo das regras e dos princípios constitucionais, assim como da legislação infraconstitucional, toda a força jurídica necessária para a concretização do direito e a sua proteção. Apontamentos finais Ainda que o título seja pretensioso e os apontamentos insuficientes para iniciar a construção de uma teoria justificadora do Registro de Imóveis com fundamento nos direitos fundamentais, notadamente o direito de propriedade imobiliária e os direitos fundamentais conexos, não se pode desconsiderar a relação que existe entre o direito fundamental à propriedade e o Registro de Imóveis. Essa relação se dá seja para constituir e declarar o direito de propriedade, seja para a proteção do próprio direito constituído ou declarado, além da viabilização e concretização de outros direitos fundamentais que têm na propriedade o seu suporte, ainda que parcial, como exemplificativamente pode se referir o direito à liberdade e à moradia. A teleologia justificadora do Registro de Imóveis sempre foi a segurança jurídica, assim considerada pela legislação e pela doutrina, que não está equivocada, até porque a segurança jurídica é também um direito fundamental. Todavia, à luz da teoria dos direitos fundamentais é possível e, talvez, necessário construir uma A materialização do princípio da dignidade da pessoa justificativa ampliada, com amparo humana pode exigir um trabalho no direito de propriedade e em ouhermenêutico, como interpretação tros direitos fundamentais conexos. constitucional dos direitos funda"O princípio da mentais. O ato de interpretar a máxima efetividade Trata-se de um desafio para os renorma jurídica impõe que se retire gistradores de imóveis e os estudela os conteúdos formal e substandos direitos diosos da matéria. A despeito de a cial necessários para que se alcance fundamentais é uma Constituição federal já estar coma proteção do bem jurídico. Tradecorrência do pletando quase 30 anos, ela contitando-se de direitos fundamentais, é nua rendendo frutos, em particular necessário que se extraia a força princípio da no núcleo dos direitos fundamennormativa da Constituição. supremacia da tais, cujo eixo principal é a digniConstituição". dade da pessoa humana. A A força normativa da Constituição 3 XLII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil dignidade deve ser protegida e concretizada, de sorte que, por um lado, o Estado e a sociedade devem se abster de prejudicá-la e, por outro, devem desenvolver todos os esforços para concretizá-la, notadamente no tocante aos direitos de natureza socioeconômica. Nessa perspectiva, o Registro de Imóveis, além de constituir e proteger o direito de propriedade, pode contribuir para a viabilização da concretização de direitos fundamentais de segunda dimensão, em particular àqueles que, em termos materiais, concretizam a dignidade da pessoa humana, como é o caso do acesso à moradia, via aquisição do direito de propriedade; do controle ambiental, como direito fundamental difuso; do acesso à informação, via registro eletrônico; e da participação em políticas públicas. Referências bibliográficas ARAGÃO, Alexandre Santos de. 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