a lei natural em s. tomas de aquino

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A LEI NATURAL EM S. TOMÁS DE AQUINO:
Introdução, tradução e notas da questão 94 da
Summa Theologiae Ia-IIae1
BENTO SILVA SANTOS
(UFES – Departamento de Filosofia)
Uma reflexão sobre o conteúdo do Direito em S. Tomás de Aquino, que propõe
como fundamento de toda ordem jurídica o célebre adágio bonum est faciendum et
prosequendum et malum vitandum, parecerá certamente anacrônico para aqueles que
assumiram a dicotomia de matriz kantiana entre Direito e Moral, relegada ao interior da
consciência2. Não é de hoje que se nutre uma rejeição cada vez mais acentuada da
possibilidade de harmonia entre Ética e Metafísica, pilares indispensáveis da Razão
clássica. De um lado, entre certos filósofos e juristas predomina a tendência das
racionalidades modernas que se caracterizam por ser fundamentalmente “operacionais”,
onde os valores ético-jurídicos suprapositivos tornam-se oscilantes e são arbitrariamente
interpretados. De outro lado, porém, como conseqüência da crise do Positivismo Jurídico
do século XX, superou-se a rígida distinção entre Direito e Moral. Neste sentido, existe
uma abertura da Filosofia do Direito contemporânea aos valores ético-políticos.
Concretamente, tal abertura encontra-se nas chamadas teorias constitucionalistas3 ou na
nova teoria do Direito Natural4.
1
Publicado em Agora Filosófica (UNICAP) 2 (2003) 17-39.
2
Este divórcio se estabelece a partir da reflexão kantiana dobre o Direito consignada na primeira
parte da obra Metafísica dos Costumes. Esta é o terceiro dos textos críticos de Kant sobre filosofia
moral. O primeiro é a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). O segundo é a Crítica
da Razão Prática (1788). A terceira obra está dividida em primeiros princípios metafísicos da
“Doutrina do direito” e da “Doutrina da virtude”: cf. edição brasileira: I. KANT, A Metafísica dos
Costumes. Trad. Edson Bini.São Paulo, Edipro,2003
3
A abordagem constitucionalista é antecipada na concepção do Direito como integridade em R.
DWORKIN. Em outras palavras: a conexão entre Direito e Moral é argumentada à base do processo
de inclusão de conteúdos morais no Direito expressos nos princípios e nos direitos invioláveis dos
indivíduos. O texto programático de R. DWORKIN surgiu em 1977: Taking rights seriously.
Cambridge: Harvard University Press,1977 (tr. bras. Levando os direitos a sério. São Paulo:
Martins Fontes, 2002). Nesta mesma abordagem, destaca-se o estudo de R. ALEXY que sustenta a
tese da conexão “conceitual e normativamente necessária” entre Direito e Moral
(Verbindungsthese): cf. sua obra Begriff und Geltung des Rechts.Freiburg i.B.-München: Alber,
1992.
2
Ora, uma vez que o Direito trata de regrar as ações humanas e que a Ética é a
passagem obrigatória de todo humanismo, no contexto do pensamento jurídico clássico, tal
Ética só tem um sentido racional na perspectiva metafísica da causalidade final, por onde se
remonta até Deus como princípio primeiro da normatividade. Na síntese de S. Tomás de
Aquino (1225-1274), é esta a função da lei, luz e regra pedagógica dos atos humanos, em
vista de seu fim imanente e transcendente: a efetividade da vida social na comunidade
política e a comunhão com Deus na vida para além da morte. Foi nesta linha, portanto, que
S. Tomás de Aquino, assumindo a herança do pensamento jurídico antigo (Aristóteles e
particularmente o Estoicismo com a afirmação da lei natural), de S. Agostinho de Hipona
(354-430)5 e dos juristas romanos, repensando-os à luz da Revelação cristã, transmitiu à
civilização sucessiva o “jusnaturalismo” como fundamento das leis positivas6.
1. O TRATADO DAS LEIS NO CONTEXTO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE S.
TOMÁS DE AQUINO7
Antes de tematizar a doutrina sobre a Lei Natural em S. Tomás de Aquino, convém
recordar que o Doutor Angélico não redigiu, a rigor, nenhum verdadeiro tratado de filosofia
política. A expressão de seu pensamento no âmbito jurídico encontra-se inequivocamente
nos seguintes textos:
4
Cf. J. FINNIS, Natural Law and Natural Rights.Oxford: Oxford University Press,2000
5
Sobre a influência do pensamento jurídico de S. Agostinho, cf. especialmente M. TOMÁS
RAMOS, A Idéia do Estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho (um estudo comparado
do Epistolário com o “De Civitate Dei”).São Paulo: Loyola,1984; IDEM, Ética e Direito em
Agostinho (um ensaio sobre “A Lei Temporal”), Síntese Nova Fase 25/80 (1998) 107-132
6
Para uma abordagem mais detalhada do pensamento jurídico de S. Tomás de Aquino, cf. L. A.
PEROTTO, Stato e giustizia distributiva. La dimensione morale-politica della Giustizia distributiva
nel “De Iustitia” di S. Tommaso.Milano,Massimo,1984; R.M. PIZZORNI, Diritto naturale e diritto
positivo in San Tommaso d’Aquino.Bologna,Ed. Studio Domenicano,31999; IDEM, Diritto-moralereligione. Il fondamento etico-religioso del diritto secondo san Tommaso d’Aquino.Città del
Vaticano,Urbaniana University Press,2001
7
Cf. J. L. WIDOW LIRA, La verdad política en el pensamiento de santo Tomás de Aquino.
Romae: Pontificia Universitas S. Thomae in Urbe,2001; L. A. DE BONI, De Abelardo a Lutero.
Estudos sobre filosofia prática na Idade Média.Porto Alegre: Edipucrs,2003, 77-102.103-126
3
A) Os textos acerca de Aristóteles, sobre o Comentário sobre a Ética a Nicômaco8;
acrescente-se ainda seu Comentário sobre a Política de Aristóteles intitulado Sententia
Libri Politicorum, que permaneceu incompleto (a parte autêntica termina no Livro III, cap.
6). Acerca da relação entre S. Tomás de Aquino e Aristóteles, coloca-se a questão da
utilidade desses comentários para reconstruir o pensamento tomasiano. Entre as maneiras
possíveis de compreender esta relação, é plausível sustentar uma fidelidade objetiva básica
na interpretação dos textos aristotélicos, embora devamos reconhecer um desvirtuamento
da doutrina de Aristóteles em pontos decisivos, como no Comentário sobre a Ética, guiado
pelo princípio explicitamente cristão da visão beatífica, ou naquele sobre a Metafísica,
orientado no sentido de uma metafísica do ser que lhe era inteiramente estranha9. Seja
como for, através desses comentários sobre as obras aristotélicas, S. Tomás de Aquino
procurou refinar seu instrumental lógico e conceitual, bem como assimilar a substância do
pensamento do Estagirita para, em seguida, elaborar a própria reflexão filosófica e
teológica. Se é verdade o fato de que S. Tomás de Aquino emerge desses comentários assaz
aristotélico, não menos verdade também é que o Aristóteles do qual se fala seria um tomista
ante litteram10. Enfim, um critério hermenêutico se impõe: poderemos servir-nos dos
comentários sobre Aristóteles, para conhecer a filosofia política de S. Tomás de Aquino,
somente quando o texto em questão remeta a uma doutrina expressão na Summa
Theologiae, no De regno, ou em outras das suas obras mais pessoais.
B) Existe um texto diretamente político, o De regno ou De regimine principum.
Trata-se de uma obra de conselhos a pedido e na intenção do rei de Chipre11. Os estudiosos
8
Cf. as traduções modernas do comentário à Ética a Nicômaco de ST. THOMAS AQUINAS,
Commentary on Aristotle’s Nicomachean ethics (translated by C.I. Litzinger; foreword by R.
McInerny).Notre Dame,Dumb Ox Books,1993; S. TOMMASO D’AQUINO, Commento all’etica
nicomachea di Aristotele.vol 1: Libri 1-5; vol 2: Librio 6-10.Introduzione, traduzione e glossario a
cura di Lorenzo A. Perotto.Bologna,Ed. Studio Domenicano,1998
9
Cf. J.-P. TORREL, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra.São Paulo, Loyola,
1999, 275-279
10
Cf. G. CHALMETA, La Giustizia politica in Tommaso d’Aquino. Un’interpretazione di bene
comune politico.Roma,Armando Editore, 2000, 50
11
Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Escritos Políticos (coleção “Clássicos do Pensamento Político”).
Trad. Francisco Benjamin de Souza Neto.Petrópolis,Vozes, 1997, 123-172
4
concordam na tese de que a obra genuína de S. Tomás de Aquino se limita unicamente aos
Livros I e II até o capítulo IV, tendo sido prosseguida posteriormente por Ptolomeu de
Lucca ou por outros até todo o Livro IV. A obra em questão - Do Reino ou Do governo dos
príncipes ao Rei de Chipre - não constitui um verdadeiro e próprio compêndio da filosofia
política de S. Tomás de Aquino seja porque somente uma pequena parte é de sua autoria,
seja porque tem como objetivo a educação de um rei. Em conseqüência, o ponto de partida
do autor não tem em vista uma exposição objetiva de seu próprio pensamento acerca de
problemas sociais, mas é condicionada pela natureza didática de seu escrito. Seja como for,
o De regno permanece, porém, um instrumento essencial para conhecer a concepção
política do Doutor Angélico.
C) Dentro da obra que constitui seguramente o texto principal e mais maduro de S.
Tomás de Aquino existe a Summa Theologiae. Se prescindimos das “quaestiones” 90-97 da
Ia-IIae, dedicadas à Lei, 58-61 da IIa-IIae que falam em geral do Direito e da Justiça, esta
summa oferece somente uma série de reflexões políticas, talvez numerosas e interessantes,
mas o mais das vezes acidentais12. Não obstante esta limitação, é indispensável situar
corretamente o tratado da Lei no contexto geral da Suma de Teologia para que o leitor
possa descortinar a originalidade do pensamento de S. Tomás de Aquino em relação ao
pensamento político moderno. A idéia que norteia a abordagem de S. Tomás de Aquino é a
ordem sobrenatural – a Revelação – que não destrói nem anula a natureza humana nem
tampouco a razão; tudo deve ser estudado em função da superioridade da fé em Deus, e esta
centralidade se reveste de um duplo aspecto: trata-se primeiramente de uma relação de
causalidade: Deus é a condição e o fundamento ontológico das coisas; todos os seres tiram
dele sua existência em uma espécie de movimento descendente (de processio, de exitus).
Esta relação íntima de dependência para com Deus, como fonte do ser, é permanente e
constitui o sentido formal da idéia de criação. Esta nada mais é do que uma emanação
(emanatio), uma saída (exitus) do primeiro princípio, uma produção (productio) absoluta do
12
Cf. tradução do tratado da Lei (questões 90-97 da Summa Theologiae Ia-IIae), S. TOMÁS DE
AQUINO, Escritos Políticos, 35-122; C. MORRIS (org.), Os Grandes Filósofos do Direito.São
Paulo, Martins Fontes, 2002, 50-72
5
ser ou de uma coisa no ser segundo toda a sua substância13. Em segundo lugar, trata-se de
uma relação de finalidade: em um movimento ascendente (reditus), o universo é como que
sustentado por uma finalidade que o percorre em todas as suas dimensões e o impele a
voltar a Deus. Nesta concepção, as obras de Deus não são inertes; é na manifestação de seu
dinamismo que elas realizam esta anábasis (subida) e, em razão deste fato, glorificam seu
Autor.
2. A LEI NATURAL COMO PRINCÍPIO ÉTICO-JURÍDICO SUPRAPOSITIVO
Dentre da tipologia das concepções jusnaturalistas de cunho predominantemente
essencialista ou substancialista14, a reflexão de S. Tomás de Aquino assume uma feição
claramente teológica15, especialmente em seu conceito de lei e suas espécies16. Segundo S.
Tomás de Aquino, lex é uma “rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam
communitatis habet promulgata” (“ordenação da razão para o bem comum, promulgada por
aquele que tem cuidado da comunidade”)17. Uma vez estabelecida a racionalidade da lei, o
autor deixa entrever na questão 91, artigo 1, da Summa Theologiae, Ia-IIae, o pressuposto
13
Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae Ia-IIae, q. 45, a. 1, resp.; a. 5, resp.; cf. também
G. BARZAGHI, La nozione di creazione in S. Tommaso d’Aquino, Divus Thomas 95/3 (1992) 6281
14
Dentro desta visão, encontramos as concepções cosmológica, teológica e antropológica. No
primeiro caso, associa-se ao Direito Natural a idéia de natureza como ordem cósmica, que contém
em si a sua própria lei, fonte da ordem em que se processam os movimentos os corpos ou em que se
articulam os seus elementos constitutivos essenciais. No terceiro caso, a visão antropológica do
jusnaturalismo encontra-se de modo significativo no pensamento pós-renascentista, racionalista e
iluminista, particularmente em H. Grócio (1583-1645), com sua obra De iure belli ac pacis (1625),
Thomas Hobbes (1588-1679), com o Leviatã, B. Spinoza (1632-1677), com seu Tractatus
theologico-politicus, S. Pufendorf (1632-1694), com sua obra De iure naturae et gentium (1672), J.
Locke (1632-1704), com o Segundo Tratado sobre o Governo Civil.
15
Como bem observou Fulvio DI BLASI, a reflexão de S. Tomás de Aquino sobre a Lei Natural
tornar-se-ia ininteligível se removéssemos dela seja a figura de Deus, seja a compreensão metafísica
da natureza. Cf. Dio e la legge naturale. Una rilettura di Tommaso d’Aquino.Pisa,Edizioni
ETS,1999 (tr. ingl. God and the Natural Law. A Rereading of Thomas Aquinas.Chicago, St.
Augustin’s Press,2003)
16
Cf. A. BRAZ TEIXEIRA, Sentido e valor do Direito. Introdução à Filosofia Jurídica.Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda,1990, 126-147
17
S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae Ia-IIae, q. 90, a. 1, resp.
6
teológico fundamental de sua concepção de lei: toda lei deriva da lei eterna, na medida em
que participa da reta razão.
No cume de sua síntese sobre as leis S. Tomás de Aquino coloca, portanto, a noção
de lei eterna, mostrando assim sua fidelidade a uma herança do pensamento antigo (o
estoicismo e sobretudo Cícero), transmitida por S. Agostinho 18. Este procedimento fez com
que ele conferisse ao conceito de lei uma característica assaz analógica, onde entram tanto a
Providência divina como a legislação civil mais contingente. Admitindo que Deus é o fim
do destino do homem, trazendo-lhe a bem-aventurança perfeita, e que toda lei é norma
reguladora deste destino, tal lei tem sua fonte última em Deus mesmo. Nele deve-se,
portanto, reencontrar, segundo um modo divino, esta dialética que, através de diversas
mediações, ilumina o caminho do homem e o sustento de sua peregrinação terrestre. Deus é
assim a lei suprema, que se identifica com sua Sabedoria e seu governo providencial de
todo o universo. Esta lei é tão eterna quanto a própria razão divina.
Se as demais leis são participação da lei eterna, enquanto dela recebem sua força
coercitiva, emerge a concepção de Lei Natural como princípio ético-jurídico suprapositivo,
isto é, S. Tomás de Aquino definiu a lei natural como participatio legis aeternae in
rationali creatura (“a participação da lei eterna pela criatura racional” e como impressio
divini luminis in nobis (“impressão da luz divina em nós”), ou ainda como a luz da
inteligência naturalmente infundida em nós por Deus, pela qual conhecemos o que deve ser
feito e o que deve ser evitado19. Segundo esta definição, trata-se da mesma lei eterna,
manifestada e imposta à criatura racional enquanto tem por objeto a regulação da atividade
humana que deve pautar-se pela luz natural da razão, consistindo, portanto, em juízos
práticos universais acerca do bem (necessário) a fazer e o do mal (intrínseco) a evitar.
3. A LEI NATURAL
Em conformidade com o ensinamento da antropologia cristã - já esboçada na
Questão 91, artigo 2, da Prima Secundae da Summa Theologiae -, que vê no homem a
imagem de Deus, S. Tomás de Aquino reitera aqui que o homem se conforma a esta
18
É célebre o tópico em sua obra contra o maniqueu Fausto: “Lei eterna é a razão divina ou a
vontade de Deus enquanto ordena guardar a ordem natural e proíbe perturbá-la” (“ratio vel voluntas
divina ordinem naturalem conservari iubens, perturbari vetans”) (Contra Faustum 22,27).
7
responsabilidade de imagem de Deus assumindo, por sua razão e sua liberdade, a regulação
de seus atos. Nele, sua razão é como uma participação da luz divina permitindo-lhe guiar-se
a si mesmo, discernindo o bem e o mal. Neste sentido, não é mais simplesmente a
participação impressa nele do querer divino, mas é a participação da luz do pensamento
divino. Mas o que deve ser entendido por bonum provém da natureza do homem, dos
esforços que a ele são inerentes; por isso, pertence aos bens que o Direito Natural protege: a
conservação do homem, o casamento, a criação e educação dos filhos, mas conforme a
natureza intelectual do homem, também, o conhecimento do Verdadeiro – a visão de Deus
– e a manutenção da vida na comunidade. Neste sentido, cada lei deve estar orientada para
o bem comum, para o bonum commune20.
As páginas que se seguem constituem, portanto, uma tradução anotada da Q. 94, da
Prima Secundae da Summa Theologiae, consagrada à Lei Natural.
A LEI NATURAL21
(S. T., Ia-IIae, q. 94, a. 1)22
“Uma realidade pode ser chamada hábito (habitus) de dois modos23:
19
S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae Ia-IIae, q. 91, a. 2, resp.
20
Cf. H. COING, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito.Porto Alegre, Sergio Antonio
Fabris Editor,2002, 46-48
21
Após uma introdução sobre o tratado das Leis no contexto do pensamento político de S. Tomás
de Aquino, segue a tradução de excertos da questão 94 da Summa Theologiae, Ia-IIae. Todos os
títulos em itálico são de minha autoria. Para uma aprofundamento da concepção de Lei Natural, cf.
R. BAGNULO, Il concetto di diritto naturale in San Tommaso d’Aquino. Milano, A. Giuffrè,1983;
A. VENDEMIATI, La legge naturale nella Summa Theologiae di san Tommaso d’Aquino.
Roma,Pontificia Università Lateranense,1995; Ch. M. HONDE, Natural law in St. Thomas
Aquinas’ works. Metaphysical and ethical dimensions. Romae, Pontificia Universitas Urbaniana,
2001
22
Lê-se a abreviatura da obra tomasiana da seguinte maneira: S.T. = Suma de Teologia, Ia-IIae =
Primeira parte da segunda parte, q. 94 = Questão 94, a.1 = Artigo 1. Na solução do artigo 1, S.
Tomás de Aquino desenvolve a vox da autoridade, isto é, S. Agostinho, que afirma: “um hábito é
algo de que se utiliza quando é necessário” (Sobre o Bem conjugal, cap. 21,Patrologia Latina [=
PL] 40,390). Acerca da estrutura e do conteúdo da Suma de Teologia, cf. J.-P. TORREL, La
‘Summa’ di San Tommaso.Milano, Jaca Book,2003
23
A noção de habitus é, antes de tudo, metafísica e está associada à de natureza e de liberdade.
Desenvolvida especialmente na Ia-IIae, q. 49-54 da “Suma de Teologia”, Tomás de Aquino a define
como uma disposição estável para agir de modo cômodo, afortunadamente e, no entanto, com
liberdade, para o bem ou para o mal, ou seja, em conformidade ou não com os fins de uma natureza.
8
RACIONALIDADE DA LEI NATURAL
1.
De um modo próprio e essencial, e em tal sentido a lei natural não é um
hábito. Pois, como já dissemos (q.90, art. 1, ad 2), a lei natural é um produto da razão,
como também a proposição é fruto do raciocínio. Ora, a ação de um agente não é o mesmo
que o feito por ela; assim, é pelo hábito da gramática que se forma uma oração congruente.
Donde, sendo pelo hábito que agimos, nenhuma lei pode ser hábito, própria e
essencialmente falando24.
COMPONENTE DINÂMICA
2.
De um modo diverso, o hábito indica aquilo que possuímos mediante um
hábito; assim chamamos ‘fé’ a verdade que conhecemos com a fé. Ora, os preceitos da lei
natural são ora objeto de uma consideração atual da razão, ora existem nela apenas no
estado “habitual”, mas não consciente. É nesta acepção que a lei natural pode ser
qualificada de hábito, da mesma maneira que os princípios indemonstráveis25 das ciências
especulativas, que não se identificam com o hábito dos primeiros princípios, mas
constituem seu objeto, seu conteúdo26.
A LEI NATURAL CONTÉM VÁRIOS PRECEITOS
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 2)
Deve ser dito que, como já se disse acima (q. 91, a. 3), os preceitos da lei natural
estão para a razão prática do mesmo modo que os princípios primeiros da demonstração
Um habitus se gera e se desenvolve através dos atos e de sua repetição. Todavia, diferentemente do
costume, não é por um automatismo adquirido mas pelo aperfeiçoamento de uma inclinação natural
diante da qual o sujeito permanece livre. Uma tal definição de habitus se aplica, antes de tudo, às
potências espirituais.
24
A origem remota desta doutrina está em Aristóteles que define o hábito (héxis) como uma
disposição de certo tipo “pela qual a coisa é disposta bem ou mal, seja por si, seja em relação a
outras” (Metafísica V, 20, 1022 b 10s). O homem possui virtudes e vícios como hábitos ou
disposições de certo tipo. A repetição de atos do mesmo tipo (atos justos, corajosos..., ou contrários
a estes), enquanto tal, produz o estar habituado a eles (habitudo), ao passo que o resultado dessa
repetição é hábito, que é alguma coisa que permanece em nós como uma espécie de posse estável e
que, por isso, facilita atos ulteriores do mesmo gênero.
25
São assim denominados, não porque faltem as razões para demonstrá-los, mas porque têm um
grau de evidência superior e antecedente ao raciocínio: por exemplo: o todo é maior que a parte.
26
Os franciscanos Alexandre de Hales (1180-1245) e especialmente S. Boaventura (1221-1274)
julgavam certamente que a lei natural é um habitus, não no sentido de uma qualidade adquirida e
aperfeiçoando uma faculdade, mas no sentido de uma luz intelectual fazendo-nos discernir o bem e
o mal (doutrina da iluminação divina), negligenciando assim o aspecto “preceptivo” da Lei. Tomás
de Aquino registra aqui seu cuidado de realismo, conservando, n o que tange à lei, sua função de
ligar a consciência.
9
estão para a razão especulativa27, pois uns e outros são axiomas evidentes em si mesmos.
Ora, um axioma pode ser dito evidente em si mesmo de dois modos: de um modo, em si; de
outro modo, quanto a nós. Toda proposição é dita conhecida em si mesma se o atributo
pertence à definição do sujeito; ocorre, porém, para aquele que ignora a definição do
sujeito, tal proposição não será evidente por si mesma. Assim esta proposição: ‘o homem é
racional’, é evidente por si mesma segundo a natureza mesma do homem, pois quem diz
homem, diz racional; todavia, para aquele que ignora o que é o homem, esta proposição não
é evidente por si mesma. Disto segue-se, como o diz Boécio (Sobre as Semanas, PL 64,
1311), que existem certas frases ou proposições que são conhecidas em si mesmas por
todos os homens, como aquelas proposições cujos termos são conhecidos por todos, como
‘qualquer todo é maior que sua parte’ e ‘os que são iguais a um terceiro, são iguais entre si’.
Há, porém, outras proposições conhecidas por si mesmas apenas pelos sábios que
apreendem a significação dos seus termos. Assim, para aquele que intelige que um anjo não
é corpo, parece evidente por si mesmo que um tal ser não está circunscrito em um lugar, o
que não é manifesto aos rudes, que não o captam.
Há uma ordem entre as verdades que estão ao alcance da apreensão de todos. Com
efeito, o que é apreendido em primeiro lugar é o ente, cuja intelecção está inclusa em tudo
que alguém apreende. Eis por que o primeiro axioma indemonstrável é que ‘não se pode ao
mesmo tempo afirmar e negar’, o que está fundado na noção do ente e do não ente; e é
sobre este princípio que todas as outras verdades estão fundadas, como se diz no Livro IV
da Metafísica (3,1005 b 29).
Mas da mesma maneira que o ente é , em primeiro lugar, objeto de conhecimento
propriamente dito, assim também o bem é a primeira noção apreendida pela razão prática
que é ordenada à ação. Com efeito, todo agente age em vista de um fim e este é dotado da
razão de bem. Dessa forma, o primeiro princípio da razão prática é aquele que se funda na
razão de bem, e que é o seguinte: ‘O bem é aquilo que todos apetecem’28. É, portanto, o
primeiro princípio da lei: ‘o bem deve ser praticado e procurado (bonum est faciendum et
prosequendum), o mal deve ser evitado (et malum vitandum)’. É sobre este axioma que se
fundam todos os outros preceitos da lei natural, de sorte que tudo o que deve ser praticado
ou evitado deriva dos preceitos da lei natural; e a razão prática os considera naturalmente
como bens humanos.
Mas como o bem tem a razão de fim e o mal, razão de seu contrário, daí segue-se
que o espírito humano apreende como bens e, por conseguinte, como dignas de serem
buscadas todas as coisas às quais o homem se sente naturalmente inclinado, e considera
27
Os princípios de que fala S. Tomás de Aquino são as verdades que, na demonstração, são a razão
da atribuição do predicado ao sujeito. Não se trata de saber o que elas são, uma vez que não se
define uma enunciação, mas somente se elas são, ou mais exatamente se elas são verdadeiras.
28
Segundo S. Tomás de Aquino, o agir moralmente relevante nasce da decisão da vontade e da
razão prática. Ora, o bem moral, o fim último do agir humano, é por definição o objeto da vontade e
da razão prática que determina a vontade a fim de que possa dirigir-se ao seu objeto: o bem ou fim
último. É próprio do homem agir não somente em direção a um fim (como também os animais
irracionais) mas também dispor-se ao fim “por vontade livre” mediante a razão prática. Segundo H.
C. LIMA VAZ, “Bem e Fim ou perfeição e ordem são, pois, as categorias metafísicas que subjazem
à Ética tomásica como ética filosófica” (Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica
1.São Paulo, Loyola,1999, 216).
10
como más para evitar as coisas opostas às precedentes. É segundo a ordem mesma das
inclinações naturais que se toma a ordem dos preceitos da lei natural. Com efeito, o homem
se sente, em primeiro lugar, atraído a procurar o bem correspondente à sua natureza que
tem em comum com todas as substâncias, qual seja, toda substância apetece a conservação
de seu ser, segundo sua natureza própria. Segundo esta inclinação, o que assegura a
conservação humana e tudo que impede o que lhe é contrário, derivam da lei natural.
Em segundo lugar, existe no homem uma inclinação a procurar certos bens mais
especiais, segundo a natureza que tem em comum com os outros animais. Assim pertence à
lei natural o que ‘a natureza ensina a todos os animais’(Digesto, L.I,tit. 1,leg. 1, KR I, 29a),
por exemplo, a união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e similares.
Em terceiro lugar, encontra-se no homem uma inclinação para o bem segundo a
natureza da razão que lhe é própria; assim há uma inclinação natural para conhecer a
verdade sobre Deus e viver em sociedade. Neste sentido, pertence à lei natural tudo o que
deriva desta inclinação próprio: por exemplo,que o homem evite a ignorância, não ofenda
ao seu próximo com o qual deve viver, e todas as outras prescrições que visem este
objetivo29.
RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 2, ad 2)
No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que todas as inclinações de
quaisquer partes da natureza humana, como as do concupiscível e do irascível, enquanto
reguladas pela razão, pertencem à lei natural e se reduzem a um primeiro princípio, como
se disse. E assim, há, em si mesmos, muitos preceitos da lei natural, que contudo têm uma
raiz comum30.
29
S. Tomás de Aquino determina o funcionamento da lei natural através do paralelismo entre a
ordem das verdades teóricas e a das ações concretas. Em ambos os casos, existem como ponto de
partida princípios evidentes (princípio tomado aqui no sentido de ponto de partida fundando um
raciocínio), axiomas evidentes e indemonstráveis, pois estão ligados à percepção do ser, objeto da
inteligência, no caso das verdades teóricas; preceitos primeiros, evidentes para a razão prática, pois
estão estreitamente ligados à percepção do ser que descobre a riqueza de seu conteúdo em seu
sinônimo que é o bem desejável. Deste modo, o papel que desempenha o princípio de identidade na
ordem do conhecimento teórico é também aquele que desempenha o preceito primeiro na ordem
moral (fazer o bem, evitar o mal). Todavia, do mesmo modo que o conhecimento teórico não se
limita aos primeiros princípios, assim o agir moral não se limita em proclamar o preceito primeiro
do bem e do mal. É preciso chegar ao âmbito exigido pela vida quotidiana. Como realizar esta
“encarnação” do preceito primeiro? Qual conteúdo concreto deve-se dar a tal preceito? À luz de seu
realismo, S. Tomás de Aquino retorna à idéia de natureza, isto é, àquilo que constitui um ser em sua
realidade profunda e em seu dinamismo. Esta natureza se expressa em suas inclinações originais
que a revelam e são tantos outros pontos de aplicação do preceito primeiro.
30
A cada uma dessas tendências estruturais do ser humano corresponde a um ou a vários preceitos
ditos primeiros (pois primeiro na categoria que corresponde a um das tendências fundamentais), que
expressam de modo concreto o universal derivado do princípio fundamental da lei natural (fazer o
bem, evitar o mal); cada uma dessas tendências visa um bem essencial para o homem. Em suma, a
lei natural não é uma construção artificial de preceitos hierarquizados a priori, que ela conceberia
em um esforço de reflexão conceitual, mas sim a luz racional e irrecusável, determinando ao
homem uma obrigação de assumir suas tendências naturais, que a ele se impõe com uma evidência
11
OS ATOS VIRTUOSOS ESTÃO SUJEITOS À LEI NATURAL
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 3)31
Deve ser dito que, duplamente, podemos considerar os atos virtuosos: enquanto
virtuosos e enquanto são tais atos determinados em sua própria espécie. Se consideramos os
atos virtuosos enquanto virtuosos, todos pertencem à lei da natureza. Porque, como já
provamos, à lei da natureza pertence tudo aquilo a que o homem naturalmente se inclina.
Ora, cada um é inclinado naturalmente para a atividade que convém à sua forma, como o
fogo é inclinado a aquecer. Donde, visto que a alma racional é a forma própria do homem,
existe em qualquer homem uma inclinação natural para agir segundo a razão, e isto é
precisamente o agir segundo a virtude. Donde, segundo isto, todos os atos virtuosos
pertencem à lei natural; pois, a cada um a razão naturalmente lhe indica que viva
virtuosamente. Se, porém, levarmos em conta os atos virtuosos, em si mesmos, isto é,
considerando-os nas suas espécies próprias, então nem todos pertencem à lei da natureza.
Com efeito, há muitas coisas que se fazem segundo a virtude, às quais, porém, a natureza
não inclina, primeiro lugar. É mediante uma investigação da razão que os homens as
descobrem, e as reconhecem como úteis para o bem viver32.
RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 3, ad 2)
No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se o seguinte: chama-se
natureza humana a que é própria ao homem; e assim, todos os pecados, sendo contrários à
razão, são também contra a natureza, como está patente em Damasceno no Sobre a fé
anterior a todo raciocínio, através de regras segundo sua verdadeira finalidade, mantendo-as a
serviço do destino da pessoa humana.
31
No Sed contra, S. Tomás de Aquino segue a autoridade de J. DAMASCENO, que diz: (em Sobre
a fé ortodoxa III, 14, Patrologia Grega [= PG 94, 1045): “As virtudes são naturais”.
32
Trata-se aqui dos conselhos evangélicos: esses visam bens que não são impostos pela lei natural,
tais como a pobreza, a virgindade, a obediência. A tradição teológica moderna os concebeu sob uma
perspectiva voluntarista, opondo preceitos e conselhos; os primeiros são obrigatórios; os outros,
não, como uma espécie de excesso facultativo recomendado àqueles que desejam tornar-se mais
perfeitos. Tomás de Aquino situa, porém, a questão sob um ponto de vista particular: sabendo que
Cristo chamou todos os homens para a perfeição (Mt 5,48; 22,37ss) por amor de Deus e do
próximo, não se deve, inicialmente, colocar um limite a este amor, uma vez que a vocação do
homem é a perfeição do amor de caridade. Ora, para atingir este fim universal (lei nova de Cristo),
existem meios que são ontologicamente associados a tal fim, sendo, portanto, rigorosamente
necessários. São os preceitos primeiros, evocados no artigo precedente. Todavia, além desses meios
indispensáveis, há outros que podem melhor garantir o mesmo fim, a perfeição, eliminando
numerosos obstáculos mediante uma renúncia mais total ao uso dos bens criados (riquezas,
sexualidade, independência social). Esses meios constituem os conselhos evangélicos e fazem parte
de uma zona de indeterminação na ordem dos meios em visto do fim; correspondem a vocações
particulares e pessoais pelas quais podem revelar-se como indispensáveis para atingir a perfeição
através da consagração mais plena do que tais conselhos significam.
12
ortodoxa,II, 4,30, PL 94,876). Mas também é natureza humana aquela que é comum ao
homem e aos animais; e assim, consideram-se certos pecados especiais como contrários à
natureza. Por exemplo, a oposição à união dos dois sexos, que é natural a todos os animais,
há a união dos machos, que se diz especialmente vício contra a natureza.
A LEI NATURAL É A MESMA PARA TODOS OS HOMENS
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 4)33
CONHECIMENTOS IGUAIS
Deve ser dito que, como já dissemos, à lei natural pertence aquilo a que o homem
naturalmente se inclina; e nisso se inclui a sua inclinação própria a agir segundo a razão.
Ora, é próprio à razão proceder do universal para o particular, como é patente em
Aristóteles (Física I,1, 184a16)34. Mas o modo de proceder da razão especulativa difere do
modo da razão prática: uma vez que de fato a razão especulativa se move principalmente no
âmbito do necessário, onde é impossível que as coisas estejam diversamente, aí a verdade
se manifesta sem nenhuma erro, tanto nas conclusões particulares, como nos princípios
universais. Ao contrário, a razão prática se move no campo do contingente, onde entram as
obras humanas. Donde, embora no geral também haja uma certa necessidade, quanto mais
descermos ao particular, tanto mais exceções encontraremos.
Assim, pois, na ordem especulativa a verdade é a mesma para todos, tanto nos
princípios como nas conclusões; embora a verdade não seja conhecida de todos, nas
conclusões, mas só nos princípios, chamados ‘axiomas universais’35. Ao contrário, na
ordem das ações, não há a mesma verdade ou retidão prática em todos, quanto ao particular,
mas só, quanto aos princípios gerais. E ainda, todos os que tem a mesma retidão, em
particular, não a conhecem igualmente.
Donde é evidente que, quanto aos princípios gerais da razão especulativa ou prática,
a verdade da razão especulativa ou prática, a verdade ou a retidão é igual para todos e é de
todos igualmente conhecida.
DIVERSOS GRAUS DE COHECIMENTO
33
A solução desenvolve a vox da autoridade identificada aqui com ISIDORO DE SEVILHA, que
afirma em sua obra Etimologias: “O direito natural é comum a todas as nações” (Etimologias, Livro
V, cap. 4; ed. Bilíngüe de J. OROZ RETA & M.-A. MARCOS CASQUERO, San Isidoro de
Sevilla, Etimologías.2vol. (I = Livros I-X; II = Livros XI-XX).Madrid, BAC,1994, 508-565 [o Livro
V: Acerca das leis e dos tempos]).
34
“Ora, o caminho natural, é proceder das coisas mais cognoscíveis para nós e mais claras para nós
àquelas que são mais claras em si e mais cognoscíveis (...) partir das coisas menos claras em si, mas
claras para nós, para ir em direção às coisas mais claras e mais cognoscíveis” (ARISTÓTELES,
Física I,1, 184a16). Tal é o procedimento da dedução silogística: o ato pelo qual o pensamento
infere verdades particulares a partir de verdades universais.
35
BOÉCIO, Considerações sobre as semanas, PL 64, 1311
13
A verdade, porém, das conclusões particulares da razão especulativa é a mesma
para todos, mas não é de todos igualmente conhecida. Por exemplo, para todo o mundo é
verdade que um triângulo tem os três ângulos iguais a dos retos, embora nem todos o
saibam. Mas quanto às conclusões próprias da razão prática, nem é a mesma para todos a
verdade ou retidão, nem para aqueles para os quais é a mesma, é igualmente conhecida.
Assim, todos têm como reto e verdadeiro que devem agir segundo a razão. E deste
princípio resulta a conclusão particular, que se devem restituir os depósitos. O que, por
certo, é verdade na maior parte dos casos; mas, num caso particular, pode ser danoso e, por
conseguinte, irracional, restituí-los; por exemplo, se alguém o quisesse para lutar contra a
pátria. E quanto mais particular for o caso tanto mais exceções haverá; por exemplo, se
dissermos que os depósitos se devem restituir com tal garantia ou de tal modo. Pois, quanto
mais condições particulares se impuserem, de tantos modos mais poderá haver exceção à
retidão no restituir ou em não o fazer.
A IMPERFEIÇÃO HUMANA
Portanto, devemos concluir, que a lei da natureza, nos seus primeiros princípios
gerais, é a mesma para todos, quanto à retidão e quanto ao conhecimento. Mas,
relativamente a certos casos particulares, que são quase conclusões dos princípios gerais,
ela é, no mais das vezes, a mesma para todos, quanto à retidão e quanto ao conhecimento.
Mas às vezes tal pode não se dar. Quanto à retidão, por causa de certos impedimentos
particulares, do mesmo modo que, por causa deles, em alguns casos, falha a natureza,
sujeita à geração e à corrupção. E também quanto ao conhecimento, porque uns têm a razão
depravada pela paixão, pelos maus costumes, ou por maus hábitos da natureza. Assim,
entre os germanos, outrora, não era reputado por mal o latrocínio, embora seja
expressamente contra a lei da natureza, como o refere Júlio César (Sobre a guerra da
Gália, VI, cap.33)36.
MUDANÇAS DA LEI NATURAL
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 5)
INTEGRAÇÃO NORMATIVA
A variação da lei natural pode ser compreendida em dois sentidos:
1. Em um primeiro sentido, por meio de algo que se lhe acrescenta. E assim, nada lhe
impede o mudar-se; pois muitos acréscimos lhe foram feitos, úteis à vida humana, tanto
pela lei divina como pelas leis humanas.
IMUTABILIDADE DOS PRIMEIROS PRINCÍPIOS
2. Em um segundo sentido, por subtração, isto é, cessando de pertencer à lei natural o que
antes lhe pertencera.
36
É específico da lei humana responder às situações que derivam da instabilidade do agir humano;
a lei humana caracteriza-se por trazer determinações convencionais e contingentes da lei natural
dentro de um grupo humano particular, onde inexiste evidência universal.
14
A) Donde, quanto aos seus princípios primeiros, a lei natural é absolutamente imutável;
VARIAÇÃO NAS CONCLUSÕES
B) Quanto porém aos preceitos secundários, dos quais dissemos serem quase certas
conclusões próprias, próximas aos primeiros princípios, não é imutável, embora seja
sempre reto, na maior parte dos casos, o que ela preceitua.
VARIAÇÃO EM CASOS ESPECIAIS
C) Pode contudo mudar-se, num caso particular e poucas vezes, por certas causas especiais,
que impedem a observância dos seus preceitos, como já se disse (no artigo precedente)37.
RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO
(S.T., Ia-IIae, q. 94, a. 5, ad 3)
No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se o seguinte: uma coisa é dita
de direito natural de dois modos: de um modo, porque a natureza a isto inclina, como, por
exemplo: ‘não se deve fazer injúria a outrem’. De outro modo, porque a natureza não
sugere o contrário: assim poderíamos dizer que é de direito natural que o homem esteja nu,
porque a natureza não o dotou de veste; é uma invenção da arte. Neste sentido diz-se ser de
direito natural que ‘a posse comum de todos os bens e a igual liberdade de todos”; de fato, a
divisão da propriedade e a servidão não são um produto da natureza, mas da razão do
homem para utilidade da vida humana. Disto vê-se que a lei natural não foi mudada a não
ser por uma adição.
LEI NATURAL E PSICOLOGIA HUMANA
(S.T.Ia-IIae, q. 94, a. 6)38
Deve ser dito que, como já dissemos, à lei natural pertencem, antes de tudo, certos
preceitos generalíssimos, conhecidos de todos; e depois, certos preceitos secundários, mais
particulares, e que são como que quase conclusões próximas dos princípios.
37
Uma vez estabelecida a universalidade da lei natural na espécie humana, trata-se agora de sua
universalidade no tempo e na história. A lei natural é mutável? Segundo S. Tomás de Aquino, a lei
natural pode mudar por adições, e isto por causa de vários fatores. As tendências profundas do ser
humano revelam-se fundamentalmente variáveis; elas são orientações, inclinações que precisam ser
reguladas pois trazem a marca das ambigüidades. O conhecimento dessas tendências pode ser
aperfeiçoado, e a razão humana pode apreciar melhor certos aspectos dessas tendências por muito
tempo subestimadas. Assim, por exemplo, é o caso da promoção moderna da finalidade
personalizante da sexualidade conjugal, que foi por muitos anos eclipsada pela finalidade
procriadora; esta era preconizada em vista da necessidade social de lutar contra os perigos que
ameaçavam a sobrevivência dos grupos humanos (moralidade infantil, epidemias, miséria...).
38
S. Tomás de Aquino segue no Sed contra a auctoritas de S. Agostinho, que diz: “A tua lei foi
escrita no coração dos homens, e nenhuma iniqüidade pode apagá-la” (Confissões, II,4,9,27s).
15
IMPOSSIBILIDADE DE CANCELAR
Ora, quanto aos princípios gerai,s a lei natural de nenhum modo pode, em geral,
apagar-se do coração dos homens; mas o pode, relativamente a uma ação particular, se a
razão ficar impedida de aplicar a essa ação o princípio geral, por causa da concupiscência
ou de qualquer outra paixão, como já dissemos (q.92, art. 1).
POSSIBILIDADE DE CANCELAMENTO
Quanto porém aos outros preceitos secundários, a lei natural pode ser apagada do
coração humano. Quer por más persuasões, do mesmo modo por que, também na ordem
especulativa, dão-se erros relativos às conclusões necessárias. Quer ainda pelos maus
costumes e hábitos corruptos, como se deu com certos, que não reputavam por pecados os
latrocínios ou os vícios contra a natureza, como também o Apóstolo diz em Romanos
1,24ss”.
4. A ESSÊNCIA DA LEI
LA LEI FAZ REFERÊNCIA À RAZÃO
(S.T., Ia-IIae, q.90, a.1)
FUNÇÃO ORDENADORA DA RAZÃO
SOLUÇÃO. - A lei é certa regra e medida39 dos atos, segundo a qual é alguém
inclinado a agir ou é afastado de certa ação40; fala-se com efeito de lei a partir de “o que
deve ser ligado”41, pois obrigaria a agir. Ora, a regra e medida dos atos humanos é a razão,
39
Indica que se trata de uma consideração objetiva da lei: induzir ou dissuadir uma pessoa
é uma ação extrínseca a esta. Portanto, a lei cabe ao legislador, quem quer que ele seja.
40
Para entender esta definição de lei, é importante distinguir entre atos do homem e atos
humanos. Nem sempre agimos como homem; a nossa atividade nem sempre traz a marca
de nossa diferença específica. Atos do homem: os gestos instintivos, não-reflexivos, os tic,
os reflexos, as práticas realizadas sob o influxo de uma coação psíquica, de uma sugestão
hipnótica, de um raptus de demência. Atos humanos: são os atos que o homem coloca
enquanto dotado de razão. São atos emanados da vontade livre do homem.
41
Tomás de Aquino se referirá a duas etimologias de “lei” (lex). A primeira aparece aqui
no artigo 1: lex viria de ligāre (atar, ligar, amarrar, prender) e sugeriria, em primeiro
lugar, a idéia de obrigação. A segunda se encontra no final do artigo 4, ad 3m: lex viria de
legĕre (ler; o primeiro sentido do verbo é reunir, juntar, colher; daí o sentido de juntar as
letras, ação de ler) e indicaria que, para ser suficientemente promulgada e assegurada em
sua permanência, uma lei deve normalmente ser escrita. Segundo a opinião atual, lex viria
da raiz indo-européia lagh que evoca a idéia de colocar, estabelecer.
16
primeiro princípio42 dos atos humanos, como o manifesta o que anteriormente se disse (cf.
q. 86, a. 1, ad 3)43, pois cabe à razão ordenar para o fim44, o qual, segundo o Filósofo, é o
primeiro princípio do agir (Física, II, 9, 200, a. 22; Ética, VII,8, 1151 a.16)45. Com efeito,
em cada gênero, o que é princípio, é medida e regra do referido gênero, como ocorre com a
unidade46 quanto ao gênero do número e o movimento primeiro quanto ao gênero dos
movimentos. Donde seguir-se que a lei é algo pertinente à razão.
TODA LEI É ORDENADA AO BEM COMUM47
(S.T., Ia-IIae, q. 90, a.2)
O FIM É PRINCÍPIO DA AÇÃO
SOLUÇÃO. - Primeira demonstração. Deve-se dizer que, como foi dito (no artigo
precedente), a lei pertence ao que é princípio dos atos humanos, por ser regra e medida.
Mas, como a razão é princípio dos atos humanos, há algo inerente à própria razão que é
42
O termo “principium” significa “aquilo de que uma coisa procede de algum modo”, e
este princípio pode situar-se seja no plano do conhecimento, seja no plano da realidade
concreta. E então o princípio pode ser intrínseco, designando o que constitui o ser em
questão em sua estrutura íntima. Esses princípios intrínsecos dos atos humanos são as
faculdades (potentiae) do homem (I, q. 77 e seguintes) e seus habitus correspondentes
(virtudes e vícios). A questão trata dos princípios extrínsecos externos dos atos humanos,
isto é, daqueles que, sem se confundirem com o indivíduo que age, pois sendo-lhes
exteriores, participam em sua ação de algum modo.
43
Tomás de Aquino explica que uma beleza de que é dotada a alma humana (nitore) é o
fato de que nessa “refulge a luz da razão natural”.
44
Segundo Tomás de Aquino, a atividade especificamente humana tem como característica
uma intenção volitiva que sempre tende para um fim: omne agens agit propter aliquem
finem (todo agente age por causa de algum fim). O motivo da vontade, aquilo que a coloca
em movimento, o seu stimulus, é o bem ou o valor de que o objeto se apresenta revestido.
Reconhecemos a distinção clássica – ao menos a partir de Platão e Aristóteles – de três
gêneros de bem: o prazeroso, o honesto e o útil.
45
Em matéria filosófica, a auctoritas é Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo e crítico de
Platão. Elaborou um sistema tão vasto que abarcou todos os domínios do saber: filosofia,
anatomia, história e política. Para uma visão geral do pensamento de Aristóteles, ver G.
REALE, História da Filosofia Antiga 2: Platão e Aristóteles.São Paulo,1994
46
Exemplo científico e estático: os números são avaliados segundo a quantidade de
unidade que contêm e expressam: neste sentido a unidade é o princípio regulador na ordem
(gênero) numérica.
47
Como deixará entrever a doutrina tomista, o bem comum deverá ser distributivo, ou seja,
beneficiando todos, indivíduos e grupos parciais. Não poderá ser coletivo, beneficiando
somente a média geral ou mesmo a maioria da comunidade.
17
princípio em relação a todo restante. Donde ser necessário que a lei pertença a isto a título
principal e máximo. Ora, o primeiro princípio no que concerne ao operar, o qual compete à
razão prática, é o fim último. Por sua vez, o fim último da vida humana é a felicidade ou
beatitude, como acima se estabeleceu (q. 2, a. 1).
Segunda demonstração. De resto, dado qualquer parte ordenar-se para o todo como
o imperfeito ao perfeito e ser cada homem parte de uma comunidade perfeita, é necessário
que a lei vise a ordenação para a felicidade comum como o que lhe é próprio. Eis por que
também o Filósofo, na supracitada definição daquilo a que se referem as leis, faz menção
da felicidade e da comunidade política. Com efeito, diz ele na Ética (v. cap. 1, 1129 b. 17)
que: “chamamos de disposições justas, legais, as que produzem a felicidade e as partes
desta, para a comunidade política”. Pois, a comunidade perfeita é a cidade, consoante se diz
na Política (I, cap. 1, 1252, 95)48.
Ora, em qualquer gênero aquilo que sobretudo é denominado é o princípio dos
demais e estes são denominados de acordo com a ordenação a ele. Assim, sendo o fogo
sobretudo quente, é causa do calor nos corpos mistos, que são ditos quentes na razão direta
de sua participação do fogo49. Logo, como a lei máxime é denominada de acordo com a
ordem ao bem comum, é preciso que qualquer outro preceito concernente a uma obra
particular não possua a razão de lei, a não ser por sua ordenação para o bem comum.
Portanto, a toda a lei é ordenada50 para o bem comum51.
SOMENTE A SOCIEDADE PODE EMANAR AS LEIS
(S.T., Ia-IIae, q.90, a. 3)
A LEI É PARA A COMUNIDADE
48
Face às comunidades imperfeitas (a família, a vila), a cidade – diferente da polis grega –
constitui para Tomás de Aquino uma comunidade perfeita, uma vez que pode atender
integralmente as necessidades humanas. Todavia, levando em conta a realidade agitada de
sua época, ele julga o reino – que agrupa várias cidades – como comunidade perfeita
paradigmática, pois é a mais adequada em questões defensivas.
49
Como é fácil deduzir do contexto, aqui o Autor considera o fogo como um elemento
simples, cujo efeito próprio é o de emanar calor. Falamos de “fonte”, e de “aproximar-se da
fonte” e, portanto, participar mais intensamente do efeito ou ação da fonte.
50
Não é supérfluo observar que com esta frase não se enuncia um juízo histórico, mas um
“dever ser”, dependente da própria natureza da lei tal como vem delineada.
51
Como Tomás de Aquino afirmará posteriormente na questão 96, o bem comum é
complexo: constat ex multis – compõe-se de muitos elementos. Existem três elementos
fundamentais: a) respeito às pessoas e a seus direitos fundamentais e inalienáveis; b)
suficiente cópia de bens materiais e culturais que dêem suporte ao bem-estar e ao
desenvolvimento social; c) paz – ordem justa, segura, duradoura, bem como harmonia
social.
18
SOLUÇÃO. - A lei, própria, primária e principalmente, diz respeito, à ordem para o
bem comum. Ora, ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de quem
governa em lugar dele. E, portanto, legislar pertence a todo o povo ou a uma pessoa
pública, que o rege. Pois, sempre, ordenar para um fim pertence a quem esse fim é
próprio52.
NECESSIDADE DA PROMULGAÇÃO
(S.T., Ia-IIae, q.90, a. 4)
É PRECISO CONHECER AS LEIS
SOLUÇÃO. - Como já dissemos (art.1), a lei é imposta aos que lhe estão sujeitos,
como regra e medida. Ora, a regra e a medida impõe-se aplicando-se aos regulados e
medidos. Por onde, para a lei ter força de obrigar – o que lhe é próprio – é necessário seja
aplicada aos homens, que por ela devem ser regulados. Ora, essa aplicação se faz chegar a
lei ao conhecimento deles, pela promulgação. Logo, a promulgação é necessária para a lei
vir a ter força53.
RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO
(S.T., Ia-IIae, q. 90, a. 4, ad 3)
52
A destinação comunitária (o bem comum) da lei exige que esteja sob o responsável deste
bem comum, o detentor do poder. O texto faz alusão a uma doutrina tipicamente tomista,
objeto de controvérsia na época atual em razão de sua consonância política: o poder, a
quem cabe a promoção do bem comum reside fundamentalmente na própria comunidade
(multitudo), que chamaríamos hoje “povo”, ou naquele que deste tem a responsabilidade.
53
Sendo uma norma que diz respeito a seres racionais, é indiscutível o fato de que a lei
deve ser colocada de algum modo ao conhecimento daqueles aos quais ela é direcionada. O
termo “promulgar” assumiu o significado técnico relativo ao levar ao conhecimento do
público, justamente as decisões de interesse público, e a lei, a primeira entre todas. Os
canonistas e os próprios comentadores de Tomás de Aquino despenderam muitas palavras
para distinguir se a promulgação seja da essência da lei, ou seja, somente uma condição
necessária para que essa obrigue. O sentido de solenidade deste ato permaneceu. A
Constituição Italiana, por exemplo, diz que “a função legislativa é exercitada coletivamente
pelas duas Câmaras” (art. 70), mas “as leis são promulgadas pelo Presidente da República”
(art. 73). Permanece claro que não tem sentido uma lei que não seja levada ao
conhecimento do público. E pode ser de algum interesse colocar os dois últimos artigos no
ambiente histórico de Tomás de Aquino, no qual, na falta de grandes Estados, e com o
verificar-se de pequenas comunidades políticas e de muitos poderes delegados, adquiria um
maior significado, seja a emanação da suprema autoridade, seja a promulgação oficial da
lei.
19
No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se o seguinte: a promulgação
presente se aplica ao futuro pela persistência da escritura, que, de certo modo, está sempre
promulgando a lei. E por isso Isidoro diz: “a lei é assim chamada em razão da leitura,
porque é escrita” (Etimologias II, cap. 10, PL 82,130).
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