DÓRES DÉLIA MARKS A BANALIDADE DO MAL E A VIOLÊNCIA NA CONTEMPORÂNEIDADE EM HANNAH ARENDT Canoas, 2011 1 DÓRES DÉLIA MARKS A BANALIDADE DO MAL E A VIOLÊNCIA NA CONTEMPORÂNEIDADE EM HANNAH ARENDT Trabalho de conclusão apresentado para a banca examinadora do curso de Filosofia do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia. Orientação: Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen Canoas, 2011 2 DÓRES DÉLIA MARKS A BANALIDADE DO MAL E A VIOLÊNCIA NA CONTEMPORÂNEIDADE EM HANNAH ARENDT Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle – Unilasalle. Aprovado pela banca examinadora em 08 de julho de 2011. BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________ Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen Unilasalle ________________________________________________ Prof. Me. Gilmar Zampieri Unilasalle ________________________________________________ Prof. Me. Itacir Antônio Gasparin Unilasalle 3 AGRADECIMENTOS Agradeço a minha família pelo apoio recebido ao longo deste estudo. Ao Professor Luís Evandro Hinrichsen pela dedicação, incentivo e paciência, decisivos para os resultados alcançados. Aos professores do Curso de Filosofia – Unilasalle, pela amizade e cujo amor à Filosofia demonstrado na transmissão de seus conhecimentos incentivaram-me a buscar uma nova formação. Por fim, a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho, meu reconhecimento e gratidão. 4 RESUMO Esta monografia tem como objeto de estudo o entendimento de como a substituição de elementos da tradição filosófica e ética do Ocidente pelas ideologias que justificaram o terror e a violência no século XX gerou um quadro de superficialidade e de mudanças na configuração do humano resultando na isenção pessoal e coletiva de responsabilidade. O referencial teórico que embasa o estudo está fundamentado nos pressupostos de Hannah Arendt, no que se refere à situação política do século XX, a banalidade do mal e a compreensão crescente da violência. Através de um levantamento bibliográfico, os conceitos pertinentes ao objeto de estudo foram aprofundados permitindo elucidar as questões propostas. Paradoxalmente ao desenvolvimento tecnológico e as conquistas da razão técnicoburocrática-instrumental, o homem distancia-se gradativamente do homem. A pluralidade humana cede espaço à individualidade. A alteridade valorizada pela tradição, e nos tempo de hoje, o egoísmo e a falta de responsabilidade com o outro. O bem justificado pelos gregos como essencial a estrutura humana e o mal banalizado pelo homem contemporâneo, através da violência na sociedade. Concluise que os achados deste estudo podem contribuir para o entendimento de uma nova configuração humana individual e coletivamente no âmbito da isenção de responsabilidade. Palavras-chave: Tradição filosófica-ética. Responsabilidade. Banalidade do Mal. Violência. Configuração do humano. 5 ABSTRACT This monography has as object the study the understanding of how the substitution of elements of philosophic tradition and ethics of the Occident by ideologies that justify terror and violence in 20th century resulted in a superficiality scenary and in changes of configurations of humans, resulting in personal exemption and in coletive responsability. The theoric reference that fundaments this study is based on Hannah Arendt theory, relative to political situation on 20th century, evil banality and violence growth comprehension. Through a bibliographic study, concepts related to the object of this study were deeply learned, allowing to elucidate proposed questions. As a paradox of technological development and the growth of the reasons technicburocratic-instrumental, man is getting away from man in a gradadual way. Human plurality is getting replaced by individuality. The otherness valorization for tradition, and nowadays, selfishness and lack of responsability about the others. Good justified by greeks as essencial to human structure and the evil banalized by contemporany man through violence in society. As a conclusion, it is possible to say that this study can contribute for the understanding of a new colective and also the individual human configuration in an exemption of responsability. Key-words: philosophical-ethical tradition. Human configuration. Responsability. Evil banality. Violence. 6 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7 2 SANTO AGOSTINHO E OS DESVIOS DA VONTADE ......................................... 10 2.1 Um problema: os desvios da vontade e a descoberta da subjetividade ...... 10 2.1.1Aristóteles e a proairesis, essa precursora da vontade ..................................... 11 2.2 Vida e obra de Agostinho de Hipona ............................................................... 13 2.2.1 Os Desvios da Vontade .................................................................................... 14 2.2.1.1 A função da Vontade na vida do espírito ....................................................... 17 2.3 Kant e a Vontade ............................................................................................... 20 3 A INSERÇÃO NA COMUNIDADE POLÍTICA E O ABANDONO DA TRADIÇÃO 24 3.1 Vida de Hannah Arendt e o Amor mundi ......................................................... 24 3.2 A Política e seus significados .......................................................................... 26 3.2.1 Karl Jaspers ..................................................................................................... 27 3.2.2 O que é Política? .............................................................................................. 28 3.2.2.1 Os preconceitos na política ........................................................................... 29 3.2.3 Os gregos e a política....................................................................................... 32 3.2.4 Liberdade e política .......................................................................................... 33 3.3 O abandono da tradição ................................................................................... 34 3.3.1 Marx e o método do pensamento-processo ..................................................... 35 4 DO MAL RADICAL À BANALIDADE DO MAL ..................................................... 40 4.1 Origem da expressão banalidade do mal ........................................................ 40 4.1.1 Eichmann e o mal ............................................................................................. 42 4.1.2 O pensar........................................................................................................... 43 4.1.3 Vazio de pensamento ....................................................................................... 44 4.2 A Banalidade do mal enquanto fenômeno humano ....................................... 46 4.3 Compreender o totalitarismo ........................................................................... 47 4.3.1 Novidade totalitária ........................................................................................... 50 4.3.1.1 Os elementos do totalitarismo ....................................................................... 52 4.3.2 Ideologia e terror .............................................................................................. 53 4.4 Da banalidade do mal à banalização da violência .......................................... 56 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 60 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 64 7 1 INTRODUÇÃO No mundo globalizado de nossos dias há uma ênfase à novidade. As novas tecnologias avançam de forma veloz e o homem deve adaptar-se a elas. Os meios midiáticos introduzem novos modos de viver, novos conceitos para o bem e para o mal. Esse bem e mal depende de quem olha, nos tempos atuais, com os valores, crenças e costumes minimizados pela queda da tradição; o homem busca na tecnologia, o esquecimento de suas frustrações; quer satisfações imediatas e as têm, mas não bastam. O homem contemporâneo é um ser individualista e a pluralidade acrescenta medo ao seu viver. Quando pensamos em sociedade, pensamos no plural, em compartilhar. Somos plurais, pois interagimos formando um sistema, uma rede de relacionamentos, em uma comunidade organizada. Na pluralidade somos fortes, pensava Hannah Arendt, concretizamos nossa vontade, ao contrário, na individualidade, somos seres banais, sujeitos a um mundo tecnológico que nos limita e nos desautoriza. A falta de liberdade está presente quando a ideologia da novidade exige a submissão do homem. Hannah Arendt, a filósofa que dá conteúdo a este estudo, que não se considerava como tal, muito perseverou na busca pelo conhecimento da subjetividade do homem. Não entendia como o homem dito ser racional, podia ser de tal irracionalidade a ponto de não refletir sobre seus atos mais infames. Quem é o homem? Este ser que desenvolveu a razão e na escala biológica está à frente dos demais seres que compõem o ecossistema deste mundo tão belo e tão pouco valorizado. A razão o distinguiu dos demais animais, mas em muitos momentos na história ele deixou de usá-la. E a razão nunca foi tão deixada ao largo como no advento da Segunda Guerra Mundial com os regimes totalitários, onde através da mão de um líder nazista, massacres foram cometidos em nome de conceitos ideológicos. No julgamento de um nazista em Jerusalém, Hannah Arendt se vê diante de um indivíduo que havia praticado atos hediondos a outros seres humanos, mas que não conseguia perceber a gravidade dos mesmos, simplesmente cumpria ordens, as intenções eram claras, e a falta de reflexão era evidente. O mal estava ali diante dela, na figura de um indivíduo vazio, que banaliza seus atos cruéis. A essa 8 novidade chamou de banalidade do mal. A indignação tomou conta de Hannah Arendt que foi em busca da compreensão de tanta maldade. A compreensão para as dúvidas que a atormentavam, buscou na tradição dos gregos. Sócrates, a seu ver o maior dos filósofos, Platão e Aristóteles com a proairesis, a escolha entre duas possibilidades ou a preferência entre uma ação e outra. Essas ideias foram precursoras da vontade que Santo Agostinho procurou entender. O filósofo Immanuel Kant foi solicitado pelo seu entendimento quanto ao mal radical e outros tantos filósofos contribuíram com suas ideias. Considerando as observações prévias, convém inquirir: O que é banalidade do Mal? Quais são as relações entre desvios da vontade, o mal radical de Kant, a situação política do século XX e a banalidade do Mal? A banalidade do mal permite compreender os fenômenos da violência? Procuraremos, conforme nosso objeto de estudo, responder às seguintes questões: entender como a substituição de elementos da tradição filosófica e ética do Ocidente pelas ideologias que justificaram o terror e a violência no século XX, geraram um quadro de superficialidade e de mudanças na configuração do humano resultando na isenção pessoal e coletiva de responsabilidade. Queremos tanto quanto seja possível investigar o mal, compreendido a partir do conceito de banalidade do mal, investigando suas origens, considerando as fontes arendtiana, retornando aos gregos, a Agostinho, a Kant e Marx, refletindo sobre as graves questões políticas e éticas que afligiram o século XX e ainda nos alcançam. Acreditamos que esse problema possa caracterizar a violência que vivemos em nossos dias. A partir das leituras dos textos de Hannah Arendt, focalizaremos a questão do mal, tema relevante na obra da autora, e de grande valor para o entendimento das origens do mal na sociedade atual, assim como, as mudanças na subjetividade do homem. A minha motivação pelo trabalho de Hannah Arendt é grande pela atualidade dos temas referidos em sua obra, pela dignidade dessa mulher ao enfrentar situações limites. Pelo diálogo que faz com o leitor denota o gosto pelo escrever e por ser mulher e filósofa. Seus estudos são aprofundados, empregando recursos da tradição para argumentar e sustentar ideias. É uma filósofa política, preocupada com o futuro do homem e tem na denúncia dos regimes totalitários, um forte apelo para que não sejam esquecidos os atos hediondos ocorridos no passado recente. 9 Preocupada com as novas estruturas da sociedade contemporânea e do homem que ai está. As obras da autora como essa monografia serão de grande valor para a minha tese de Mestrado em Educação cujo tema é voltado para a violência. As obras mais consultadas de Hannah Arendt para este trabalho foram A Promessa da Política, Entre o Passado e o Futuro, Origens do Totalitarismo, A Vida do Espírito, Crises da República e Compreender. Houve outras fontes da autora e sobre a autora através dos comentadores. No primeiro capítulo, explicitamos Santo Agostinho e os Desvios da Vontade, estudaremos Aristóteles e a proiaresis a precursora da vontade e sua influência no pensamento medieval; Vida e obra de Agostinho de Hipona; a função da vontade na vida do espírito; Kant e a vontade e o mal radical. No segundo capítulo, examinaremos a inserção na comunidade política e o abandono da tradição; a política e seus significados; estudaremos Jaspers; os preconceitos na política; os gregos e a política; a liberdade e a política; o abandono da tradição; veremos Marx e o método do pensamento-processo. No terceiro capítulo, percorreremos do mal radical à banalidade do mal; origens da expressão banalidade do mal; Eichmann e o mal; o pensar; vazio de pensamento; totalitarismo; compreender o totalitarismo; a novidade totalitária; descrição da banalidade do mal; elementos do totalitarismo; ideologia e terror; da banalidade do mal à banalização da violência. A intenção deste estudo investigativo é de buscar argumentos na literatura pertinente que nos possibilite as condições necessárias para as importantes respostas que pretendemos obter. Também queremos ressaltar a importância sóciopolítica deste estudo na sociedade em decorrência do aumento constante da violência, uma vez que a compreensão das causas do mal faz diferença nos tempos atuais. 10 2 SANTO AGOSTINHO E OS DESVIOS DA VONTADE Em nosso estudo sobre a banalidade do mal e suas consequências, precisamos, num primeiro momento, investigar as raízes das contradições da subjetividade humana ou refletir sobre o enigma da liberdade que comporta muito de arbitrário. Nessa direção, após examinarmos o conceito de proairesis de Aristóteles, caminharemos com Santo Agostinho discorrendo sobre os desvios da vontade e sua tentativa de solução. 2.1 Um problema: os desvios da vontade e a descoberta da subjetividade Em A Vida do Espírito, Hannah Arendt, dedica o segundo volume à faculdade da Vontade e, consequentemente, ao problema da liberdade. Seus estudos sobre o querer ou a Vontade abrangem vários filósofos. Na Antiguidade grega essa faculdade era ignorada por Platão e Aristóteles. A maior dificuldade encontrada em todos os questionamentos referentes à vontade seria relativo ao fato, de que não há qualquer outra capacidade do espírito cuja própria existência tenha sido questionada e refutada de forma tão consistente e por uma 1 sucessão de filósofos tão eminentes quanto esta . A desconfiança dos filósofos quanto à faculdade da Vontade foi a conexão com a Liberdade. Sobre o conflito básico entre as experiências do ego pensante e as do ego volitivo, Hannah Arendt afirma “que embora o espírito que pensa e o quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito”2, não devemos confiar na avaliação do ego pensante, devido a sua permanência imparcial e objetiva diante de outras atividades do espírito. A noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas também como um dado da consciência: A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos – algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as 1 ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio Abranches; César Augusto R. Almeida; Helena Martins. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume- Dumará/ UFRJ, 1993. p. 189. 2 Ibidem, p. 190. 11 necessidades do processo ou a simples força de querer algo está à mão podem 3 sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão . Aristóteles não precisava ter consciência da existência da Vontade, os gregos não tinham sequer uma palavra que designasse a fonte principal da ação. A palavra proairesis definida como a escolha entre duas possibilidades criada por Aristóteles seria a fundamentação para a filosofia tomar uma posição diante da Vontade. 2.1.1Aristóteles e a proairesis, essa precursora da vontade Aristóteles exerceu influência sobre o pensamento medieval ao inventar a palavra proairesis, para caracterizar a escolha entre duas possibilidades, ou ainda, a preferência entre uma ação e outra. Acreditava Arendt, que essa noção de proairesis seria precursora da Vontade. As bases para uma tomada de posição da filosofia em relação à Vontade, lançada por Aristóteles, perdurou por vários séculos, pois dizia o filósofo que todas as coisas podem ser ou não ser, que tendo acontecido poderiam não ter acontecido, ou seja, são por acidente ou contingência em contraposição àquilo que necessariamente é, como é, que é e não pode não ser. Aristóteles chamou a isto, de hypokeimenon4, é tudo aquilo que é acrescentado por acaso, mais precisamente, a tudo o que não pertença à própria essência5. Os atos voluntários são ditos contingentes, pois dependem de uma vontade livre. A contradição se dá quando a vontade não é livre, a não ser que se entenda a faculdade da volição como um órgão executivo, como algo auxiliar para as proposições do desejo ou da razão. No espaço das atividades humanas, o que o homem produz está composto de matéria e forma, já pré-existindo no espírito (nous) do artesão, isto é, nada foi feito do nada. No entendimento de Aristóteles, o produto do homem, pré-existia potencialmente, antes de ser moldado pelas mãos humanas. Esse pensamento, que tudo o que faz parte do real está precedido de uma potencialidade, como uma de 3 ARENDT, loc. cit. Hypokeimenon é a tradução latina de substrato ou substância. Cf. ARENDT, 1993, p. 197. 5 A tradução da expressão aristotélica essência indica “isto que a coisa é”. Aquilo que constitui um ser como sendo tal ser e não outro. A essência é determinada pela forma. In: REZENDE, Antônio. Curso de filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de graduação. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. p. 85. 4 12 suas causas, nega o futuro como um tempo verdadeiro, e o futuro nada mais é do que consequência do passado. A diferença entre as coisas naturais e aquelas feitas pelas mãos dos homens reside na distinção entre as que possuem potencialidade necessária para a transformação e aquelas que podem ou não ser transformadas. Aristóteles cria uma nova palavra, no lugar da idéia de algum ser espiritual que tenha que preceder a ação, proairesis, a escolha entre duas possibilidades, isto é, a preferência que me faz escolher uma ação ao invés de outra. Os gregos sabiam a diferença entre atos intencionais e não intencionais, entre voluntário e involuntário, mas para Aristóteles só os atos voluntários6 estão sujeitos à acusação ou exaltação. Em datas anteriores ao surgimento do Cristianismo não foi encontrada nenhuma noção de uma faculdade do espírito que corresponda à idéia de Liberdade. A filosofia cristã relutou por muitos séculos em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito autônoma. Teoricamente o problema foi a vontade livre, a experiência da liberdade ‘dentro de nós’ sempre foi negada ou minimizada, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas. Especulações que reforçaram a suspeita quanto à tênue ligação entre as teorias da vontade livre e o problema do mal7. Os problemas relativos ao mal muito atormentaram Santo Agostinho, e suas tentativas de resolvê-lo nunca tiveram muito sucesso devido aos seus ineficientes argumentos. Ou negava que o mal é verdadeiramente real, ou o descartava definindo-o como ilusão de ótica, o problema estaria na limitação da inteligência no homem. Agostinho de Hipona, ao perguntar sobre a vontade, indaga: ‘Se devo necessariamente querer, por que, então, preciso falar da vontade?’ A vontade tem uma liberdade muito maior que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, não pode escapar ao princípio de não contradição8. Faremos uma breve narrativa sobre a vida e obra de Agostinho, desde o nascimento em Tagaste, a adolescência e seus desmandos; o homem de grande inteligência e contradições; às questões práticas que causaram dúvidas até a 6 Atos voluntários significa somente que o ato não foi casual, mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física, e a distinção engloba apenas danos por ignorância ou infortúnio. In: ARENDT, 1993, p. 198. 7 Ibidem, p. 211. 8 ARENDT, op. cit., p. 190. 13 erudição, muitas foram suas obras literárias. Na obra O Livre-Arbítrio sua preocupação foi com as causas do mal. Tornou-se Bispo de Hipona. 2.2 Vida e obra de Agostinho de Hipona Aurelius Augustinus nasceu em Tagaste, província romana da Numídia, na África romanizada, na região do Mediterrâneo, hoje Souk-Ahras, na Argélia em 13 de novembro de 354. Agostinho tinha como pai Patrício, homem de caráter duro e difícil, que tinha momentos de brutalidade e violência. Considerado pagão converteu-se ao Cristianismo pouco antes de falecer, em 371. Sua mãe Mônica era cristã, de origem humilde e piedosa, foi inspiradora e importante personagem em várias obras entre elas Confissões. Teve um papel marcante na vida de Agostinho, dando-lhe uma firme formação cristã. Mesmo buscando caminhos não producentes Aurelius jamais esqueceu Cristo. Em Tagaste recebeu os primeiros ensinamentos de gramática, aritmética, latim e um pouco de grego. Aos 11 anos foi encaminhado para Madaura, cidade maior que Tagaste, para estudar literatura e gramática. Aos 16 anos, terminados os estudos em Madaura, voltou à casa dos pais, em Tagaste, para um período de férias, que perdurou por um ano. A intenção dos pais era a de enviálo a Cartago, onde faria os estudos superiores. Nesse ano em que estava em casa, Agostinho daria continuidade a várias práticas de desmandos junto com outros amigos. Entre esses desmandos o mais famoso seria o furto das peras, que demonstrou com que futilidade ou banalidade poderia ocorrer o mal. Aurélio Agostinho, Bispo de Hipona, preocupa-se e reflete sobre essa falta de motivos, que leva o homem a praticar o mal, e escreve a obra O Livre-Arbítrio, onde examina as causas do mal. Ao definir o mal e como ele se manifesta em nós, faz a seguinte pergunta: ‘Que força é essa que faz com que eu faça, não o bem que eu quero, mas o mal que não quero?’ Santo Agostinho foi homem de inteligência notável, contraditório, em tudo foi radical, vivendo profundamente os erros e os acertos. Entregou-se de corpo e alma, tanto às questões práticas, como às minuciosas necessidades da erudição. Não houve tema ou problema de sua época que não abordasse sob nova forma, 14 obrigando a todo aquele que quisesse discuti-lo depois dele, a levar em consideração o seu comentário9. Entre suas principais obras Confissões é um louvor à graça e à sabedoria de Deus. Essa obra é o primeiro tratado de Psicologia moderna, a partir do momento em que o autor fala de suas inquietudes, de suas angústias e conflitos interiores, não fala somente de si mesmo, mas do homem e da humanidade. A leitura de suas obras faz com que o leitor identifique-se com os sentimentos do autor, num olhar para dentro de si mesmo. O que faz da obra uma leitura sempre atual10. Outras obras importantes entre tantas, foram A Cidade de Deus onde é encontrada uma síntese do seu pensamento filosófico, teológico e político. A Trindade foi criada para dar resposta a uma série de heresias que negavam ou distorciam seu mistério, conforme o pregava a ortodoxia católica. Santo Agostinho em De libero arbítrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade), dá início aos questionamentos sobre a vontade livre e o mal com a seguinte pergunta: Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do mal? Esta pergunta primeira foi levantada em toda sua complexidade por São Paulo na Epístola aos romanos e generalizada para qual é a causa do mal? Essa generalização estende-se tanto ao dano físico causado pela natureza destrutiva quanto pela maldade induzida pelo homem. O homem tem como deliberar entre duas vontades, essas faculdades do querer e poder realizar estão ligadas. À vontade livre é permitido deliberar conforme o bem ou o mal. O mal consiste na aversão ao Bem imutável convertendo-se aos bens transitórios de modo voluntário, esta aversão ao bem veremos nos desvios da vontade, a seguir. 2.2.1 Os Desvios da Vontade É significativo o fato de Hannah Arendt invocar a autoridade de Santo Agostinho para sustentar sua teoria, pois, também em Agostinho, o homem é livre 9 PECORARO, Rossano (org.). Os filósofos: clássicos da filosofia, v. I: de Sócrates a Rousseau. Petrópolis, RJ : Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008, p. 105-6, 107. 10 PECORARO, 2008, p. 108-9. 15 porque é o começo11. Arendt, como o Bispo de Hipona, considera que a Vontade é a fonte da ação. Todo o homem que nasce traz ao mundo um novo começo, e este poder de começar faz parte da condição humana. Na obra A Vida do Espírito, Arendt cita o pensamento de Kant sobre a Vontade como impulso para a ação, isto é, como um “poder para começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos”12. Aurélio, nas suas investigações sobre a causa do mal, considera que sem causa o mal não poderia existir e, Deus, sendo bom, não poderia ser a causa do mal. Nas Confissões e nas duas seções finais de O Livre-Arbítrio, define conclusões filosóficas e enuncia as consequências do estranho fenômeno (o de que é possível querer e, na ausência de qualquer empecilho externo, ser, ainda assim, incapaz de realizar)13. Ao delinear sobre duas vontades, uma nova e outra antiga, uma carnal e outra espiritual e as caracterizar como vontades conflitantes dentro de si, e o quanto essa discórdia dilacerou sua alma, Agostinho têm os primeiros esclarecimentos quanto à diferença entre o querer e poder. Essas faculdades do querer e poder realizar estão intimamente vinculadas. A vontade deve estar presente para o poder ser efetuado, e o poder faz uso da vontade. Ao agirmos, a vontade deve estar presente, mesmo quando a contragosto, sob coação, quando não agimos pode ser a falta de vontade ou a falta de poder. Em todo ato da vontade há um ‘eu-quero’ (velle) e um ‘não-quero’ (nolle) envolvidos. Ao explicar a predominância da Vontade, Agostinho considera que nada está tanto em nosso poder como a própria vontade. Nem a lei não comandaria se não houvesse vontade, o que importa é que a lei não se dirige ao espírito, mas à Vontade, porque o espírito não se move até que queira ser movido. Esse seria o motivo pelo qual a Vontade – nem a razão nem os apetites ou desejos – está em nossas mãos; é livre. Essa prova de liberdade da Vontade funda-se exclusivamente em uma força interior de afirmação ou negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real – a faculdade necessária para se executar os comandos da 14 vontade . 11 SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 41. 12 ARENDT, 1993, p. 191. 13 Ibidem, p. 250. 14 ARENDT, op. cit., p. 251. 16 Aurelius em O Livre-Arbítrio declara que Deus existe e que todos os bens procedem dele. A vontade nos é dada por Deus, assim como a justiça e delas devemos nos servir de acordo com a reta razão, sem a qual não há virtude alguma. Das virtudes o bom uso, nunca pode ser um abuso. Dos outros bens, isto é, dos médios e dos inferiores, pode-se fazer bom ou mau uso. À vontade livre é permitido deliberar segundo o bem ou o mal. Por meio da vontade livre, segundo Agostinho, o homem pode, servindo-se dela, realizar o bem ou o mal. Quando a vontade que é um bem médio adere ao Bem imutável, que pertence a todos em comum, o homem possui uma vida feliz. A vida feliz é o que o espírito sente quando pertence ao Bem imutável, que é o principal bem. O homem que possui este bem comunga de todas as virtudes, das quais não é possível fazer o mal. O mal consiste da aversão da vontade ao Bem imutável convertendo-se aos bens transitórios, que não é forçada, mas voluntária. Os bens transitórios são os bens mutáveis, o homem ao buscá-los, comete o pecado acredita Agostinho. Esse movimento de aversão ou ato da vontade que tem como consequência o pecado, não procede de Deus. Esse defeito, o pecado, é um ato voluntário que está sob o poder do homem. O pecado acontece a partir do querer. É verdade que o homem que cai por si mesmo, não pode igualmente se reerguer por si mesmo, tão espontaneamente15. Santo Agostinho não discorre sobre como se resolve o conflito do querer, mas em dado momento, o homem tem uma escolha que satisfaz seu objetivo. A cura da vontade, entretanto, encaminha-nos para outro tema. A cisão dentro da Vontade é um conflito, e independe do conteúdo daquilo que se quer. Uma vontade ruim não é menos dividida do que uma boa, e vice-versa. A vontade ao comandar o corpo, não passa de um órgão executivo do espírito. E voltada para si mesma, desperta a contra vontade, porque o intercâmbio se dá completamente no espírito, e uma competição só é possível entre iguais. A natureza da vontade ordena e exige obediência, como o resistir a si mesma. Em Confissões permanece um enigma, ou seja, a explicação de como a vontade, dividida contra si mesma torna-se plena. Para o bispo de Hipona, nas flutuações da alma, a vontade final e unificadora que por fim decide a conduta de um homem é o Amor. 15 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução,organização, introdução e notas de Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995 p. 134-143. 17 O Amor é o peso da alma, aquilo que leva o movimento da alma ao repouso16. Essa identificação da Vontade com o amor é estranha para Arendt. Santo Agostinho, ao fragmentar a Vontade em boa e má, têm necessidade de redimi-la e, para tanto, encontra solução em uma abordagem nova, onde passa a investigar a Vontade na inter-relação com as faculdades em sua função dentro do espírito como um todo. É o que veremos na função da Vontade na vida do espírito. 2.2.1.1 A função da Vontade na vida do espírito O principal questionamento de Agostinho é: ‘que há alguém em mim que é mais eu do que eu mesmo’. Essa reflexão ou insight sobre a vontade do eu, comparada ao mistério da trindade cristã, isto é, Pai, Filho e Espírito Santo, como três substâncias relacionadas formando uma Unidade. Essa unidade se dá por uma relação mútua, conquanto, não há perda de existência de cada uma delas em sua substância. A amizade, por exemplo, forma uma relação mutuamente predicada, onde duas pessoas são amigas e, também são substâncias independentes. Enquanto são amigos formam uma unidade, a partir do momento em que a amizade se desfaz novamente são duas substâncias independentes. Portanto, uma pessoa ou algo é uma Unidade na relação que mantém somente consigo e, ainda assim, ser tão intimamente ligado ao outro, que dois pode ser um ou Unidade. Dois ligados sem perder sua independência substancial e sua identidade. Para Santo Agostinho, o mistério da Trindade deve ser encontrado na natureza humana ou na estrutura do espírito, já que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança, e a distinção entre o homem e as outras criaturas se dá através do espírito17. Ser, Conhecer e Querer, imagens no homem da Trindade divina, formam unidade da diferença, pois segundo o filho da África Latina eu Sou Conhecendo e Querendo; e tenho Conhecimento de que Sou e de que Quero; e Quero Ser e Conhecer. Repare quem puder, nesses três, quão inseparável é uma vida, um espírito, uma essência; enfim, como é 18 difícil a distinção, que, ainda assim, existe . 16 ARENDT, 1993, p. 256. ARENDT, 1993, p. 258-259. 18 Ibidem, p. 259. 17 18 Para Santo Agostinho, interessa que o Eu espiritual contenha três coisas totalmente diferentes, inseparáveis e distintas. Na obra Sobre a Trindade a tríade do espírito de maior importância são as faculdades da Memória, Intelecto e Vontade, que se referem mutuamente, não três espíritos e sim um só, são iguais em peso, no entanto, sua Unidade é devida à Vontade. É a Vontade que estabelece à Memória o que reter e o que esquecer, orienta ao Intelecto o que escolher para o entendimento. Devido à passividade e o modo de contemplação da Memória e do Intelecto, é a faculdade da Vontade que os faz trabalhar, reunindo-os e forçando-os a tornarem-se uma unidade, o pensamento. A força unificadora da vontade manifesta-se também na percepção sensorial, que dá significado à sensação. Sobre a atenção do espírito, podemos ver sem perceber e, ouvir sem escutar, como acontece amiúde quando estamos distraídos. A “atenção do espírito é necessária para transformar a sensação em percepção”; a Vontade que “fixa o sentido na coisa vista, estabelecendo um nexo entre os dois, é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto 19 visível; é espírito, e não corpo . A Vontade faz uso da atenção para unir os órgãos dos sentidos ao mundo exterior de uma forma significativa, isto é, para as lembranças, o entendimento, para ser afirmado ou negado. O poder do espírito não é devido ao Intelecto, nem à Memória, mas, à Vontade que une a interioridade do espírito ao mundo real. A Vontade pode ser entendida como a fonte de ação ao orientar a atenção dos sentidos, impondo à memória as imagens impressas e dirigindo ao intelecto o que foi sentido para a devida compreensão. Assim o fazendo a Vontade prepara o terreno no qual a ação se pode dar. Tal é a ocupação da mesma, que não há como entrar em controvérsia com sua própria contravontade. A redenção da vontade não é espiritual e nem da intervenção divina, viria do ato que interrompe o velle e o nolle. E o preço da redenção é a liberdade. Segundo Duns Scotus: Ainda sou completamente livre e pago por essa liberdade pelo fato curioso de que a Vontade sempre quer e não-quer ao mesmo tempo: a atividade do espírito, no caso da vontade, não exclui o seu oposto. [...] a Vontade é redimida, cessando de querer e começando a agir, e a interrupção não pode se originar de um ato de querer-não-querer, pois isso já seria uma nova 20 volição . A solução do conflito interno da Vontade, para Santo Agostinho, surge por uma transformação na própria Vontade, por sua transformação em Amor. A 19 20 ARENDT, 1993, p. 260. Ibidem, p. 261. 19 importância da transformação não está só na força de coesão do Amor, mas também no fato de que o Amor, ao contrário da vontade e do desejo, não se extingue quando alcança seu objetivo, mas possibilita ao espírito permanecer imóvel para poder desfrutá-lo. A vontade não é capaz de realizar o desfrutar imóvel e, sendo assim, como uma faculdade do espírito não se bastando, e devido a sua necessidade e do seu querer, remete-se para suas próprias ações. A vontade jamais está satisfeita, pois ela não sabe escolher, a satisfação significa que a vontade está em repouso. A resignação seria o apaziguador da inquietação da vontade. Somente a força do amor é capaz de fazer com que o espírito envolva em si mesmo às coisas sobre as quais refletiu amorosamente. O espírito ao pensar em si mesmo, reflete e retorna a si. As pegadas ditas por Agostinho, no caso do amor, o espírito as transformam em coisas inteligíveis, alguém que chega a elas, não se detém, criando desse modo um pensamento transitório de uma coisa não transitória. O Amor ao contrário produz a duração: A Vontade em Santo Agostinho, que não é concebida como uma faculdade isolada, mas em sua função dentro do espírito como um todo, em que todas as faculdades individuais – memória, intelecto e vontade – “referem-se mutuamente”, encontra redenção ao transformar-se em Amor. [...] O Amor de Santo Agostinho exerce sua influência pelo “peso” – “a vontade assemelha-se a um peso”-, junta-se à alma, interrompendo assim suas 21 flutuações . Os homens não são justos por saber o que é justo, mas por amar a justiça. O amor é a gravidade da alma, ou a gravidade dos corpos é o seu amor. Nessa transformação da concepção mais antiga de Santo Agostinho o que se salva é o poder que a Vontade tem de afirmar ou negar algo ou de alguém do que amar este algo ou alguém, isto é, do que dizer: quero que tu sejas – Amo: Volo ut sis22. A vontade tem o olhar da alma, diz Hinrichsen: A vontade, dessa maneira, dirige o olhar da alma aos objetos que lhe agradam e, através da percepção, entendimento, recordação, imaginação, deseja unir-se a eles na renovada procura de repouso e gozo. A vontade, portanto, faculdade da mente integrada ao intelecto e à memória, enquanto faculdade ativa impulsiona as outras faculdades nas suas atividades específicas, buscando descansar complacentemente nos objetos 23 desejados . 21 ARENDT, p. 262-263. Ibidem, p. 263. 23 HINRICHSEN, Luís Evandro. A estética de Santo Agostinho: o belo e a formação do humano/ Luís Evandro Hinrichsen. – Porto Alegre: ESTEF, 2009 p. 144-145. 22 20 A liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição do homem, tendo como órgão espiritual a Vontade. A Vontade tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento. A razão é a instância suprema no homem, mas é finita e o homem deve reconhecer essa limitação. Kant, ao sujeitar à razão o máximo atributo humano, suscitou muitas críticas, sendo a tese mais difícil de aceitação a do mal radical. Essa tese corrobora que o homem é egoísta, como um galho que se curva sobre si mesmo retornando ao seu ponto de origem. O homem é curvo por natureza, mas pode ser recuperado através da sociabilidade. O mal não é apenas ausência do bem, não tem somente um caráter negativo, mas deve ser pensado como resistência ao bem que tem certa positividade. E o que dá essa positividade é a vontade que está ligada à liberdade da pessoa24. Veremos como a filosofia de Kant a partir da moral, enquanto faculdade legisladora trata da autonomia da vontade do homem. 2.3 Kant e a Vontade A filosofia prática de Kant baseia a moral a partir da razão pura, enquanto faculdade legisladora, isto é, que dá a si mesma sua lei, ao homem é oferecida uma lei universal, que tem um imperativo categórico. Kant ao fundar a moral nesses termos, ressalta a autonomia da vontade25. Sobre a vontade determinada pela lei e a liberdade segundo Kant, o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como único princípio de todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda a matéria da lei e na determinação do livre arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que uma máxima 26 deve ser capaz . Para Immanuel Kant a vontade livre e a vontade submetida à lei moral são a mesma coisa. A vontade é necessária e o arbítrio é livre, obedece quem quer, é nessa possibilidade de escolha humana, que adentra o problema do mal radical. 24 SOUKI, 2006, p.18. SOUKI, p.19. 26 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad., de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987 p. XV-XI. 25 21 A lei moral delibera o que não fazer, sem relevar a natureza humana, isto é, o que é pertinente às emoções, do temperamento e das tradições culturais dos grupos. O homem em sua finitude não segue necessariamente essa lei, ele têm a prerrogativa de deliberar sobre sua vontade, caso o homem não tenha autonomia de determinar-se, aceitando o que vem do exterior eliminando sua vontade para a ação, ele está sendo heterônomo. A moral também é heterônoma quando, prescreve preceitos a realizar, baseados na idéia de prêmio ou castigo. O móvel da ação também é sensível. Já a autonomia mostra que o homem tem em si mesmo a possibilidade de ser dono de si e de ser livre de toda 27 dependência diferente de sua razão . Segundo o pensamento kantiano, a vontade humana age de acordo com a sua lei, e o homem realiza sua essência quando obedece à lei moral. O homem é um ser razoável e sensível, enquanto indivíduo razoável é dotado de um poder de escolha quanto a sua conduta. Já como ser sensível possui a faculdade de escolher uma máxima em conformidade ou não com o princípio moral. O ser humano é livre para agir, sendo assim, a condição do mesmo tem uma essência ambígua e trágica. O homem em sua essência ambígua e trágica, tem no contexto da liberdade inscrito o conflito entre o bem e o mal moral. O bem moral é construído mediante uma livre determinação da razão. E o mal moral teria início no ato de abandonar a liberdade, fluindo no nível da satisfação imediata. O homem tem por natureza uma propensão para o mal resultante da sua própria ação. Esse desvio das máximas da lei moral somente acontece pela determinação do livre arbítrio. O mal é uma realidade universal que é inerente ao gênero humano, é inata segundo Kant. São três os níveis que o mal pode comportar: a fragilidade do indivíduo diante da tentação exercida pelas inclinações sobre a vontade humana. O segundo nível a impureza do coração, ou a predisposição em misturar móveis imorais aos morais, consistiria na contaminação da vontade, e por fim, a maldade, corrupção, ou ainda perversidade do coração humano, como terceiro grau de propensão do arbítrio para máximas que fazem passar outros móveis que não os morais como fundamento da ação. O homem é visto como mau devido às inversões do seu modo de pensar, as ações são pervertidas em sua raiz. A possibilidade do mal está apenas na forma de relação dos móveis, é na inversão correta da relação dos dois móveis de 27 SOUKI, op.cit., p.22. 22 determinação da vontade que reside o mal radical28. Sobre a intenção e a liberdade de decidir, Kant considera: Para afirmar que o homem é realmente mau é necessário conhecer não somente seus atos, ou mesmo as máximas, mas a decisão inteligível que os adota.[...] O mal moral não está, pois, no ato, mas no agente, mais precisamente na sua intenção. Toda intenção é, para Kant, qualificável do ponto de vista moral. A intenção, isto é, o primeiro fundamento subjetivo da admissão das máximas, só pode ser única e se relacionar, de maneira 29 geral, à imagem interior da liberdade . O mal radical é universal, prescinde da natureza do homem, porém tem limites. Segundo Kant, o mal não é absoluto, portanto, não pode destruir a lei moral nem a disposição para o bem. Porque o bem é essencial à liberdade, a presença de um contraprincípio, que tenta destruir essa afinidade, também põe fim à liberdade. Neste capítulo recorremos a Santo Agostinho que delibera sobre os desvios da vontade. Arendt concorda com Agostinho considerando a Vontade como fonte de toda a ação. Em todo ato da vontade há um velle e um nolle envolvido, essa cisão é um conflito dentro da Vontade. À vontade livre é permitido escolher segundo o bem ou o mal. O livre-arbítrio seria a causa do mal e o homem teria a capacidade de deliberar entre o querer e o não querer. Santo Agostinho coloca responsabilidade no querer do homem, que é executada dependendo do uso dos órgãos do sentido. A solução do conflito interno da Vontade, segundo Santo Agostinho, surgiria por uma transformação na própria Vontade, por sua transformação em Amor, o que daria integridade ao homem. A Vontade é o órgão espiritual do homem e tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento. A razão no homem é finita, tem suas limitações e o homem deve reconhecê-las. Diferentemente de Agostinho os gregos ignoravam a faculdade da Vontade, essa falta de crédito, se devia a relação com a liberdade. Aristóteles criou a palavra proairesis, com o intuito de caracterizar a escolha entre duas possibilidades, ou a preferência entre uma ação e outra. Para Hannah Arendt essa noção de proairesis seria precursora da Vontade. Os gregos sabiam diferenciar entre atos intencionais e não-intencionais, entre atos voluntários e involuntários, mas para Aristóteles somente os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou exaltação. Já para Kant a vontade livre deve ser submetida à lei moral, ao homem é oferecida uma lei universal, que tem um imperativo categórico. Afirma o pensamento kantiano 28 29 SOUKI, 2006, p. 23-24-25. Ibidem p. 26. 23 que o homem é um ser razoável e sensível, e como tal, possui a faculdade de escolher uma máxima, em conformidade ou não com o princípio moral. O conflito entre o bem e o mal moral seria inscrito em um contexto de liberdade. Para Kant o mal é inerente aos seres humanos. O homem é visto como mau devido as inversões do seu modo de pensar, as ações seriam pervertidas em sua raiz. O mal radical é universal, está presente na humanidade, contudo tem limites, não sendo absoluto, não pode destruir a lei moral nem a disposição para o bem. O homem superará o estado do mal, na pluralidade e não apenas pelo esforço de uma pessoa. Para combater e superar o mal devemos procurá-lo dentro de nós mesmos. Para dar continuidade a compreensão do problema do mal, passamos a questioná-lo dentro da dimensão política, no campo que o identifica com sua ‘banalidade’. E nesse enfoque político do problema do mal, que apareceu no período dos regimes totalitários que transcende os limites do que Kant definiu como mal radical. Segundo Hannah Arendt esse novo modo de agir humano, essa nova forma de violência vai além dos limites da própria solidariedade do pecado humano, de um mal absoluto porque não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis30. O fenômeno totalitário revelou novas modalidades de deformações da natureza humana com o uso da organização burocrática de massas, fundamentada no terror e nas ideologias, fomentou novas formas de governo e dominação, onde não havia limites para a perversidade. 30 SOUKI, 2006, p. 33. 24 3 A INSERÇÃO NA COMUNIDADE POLÍTICA E O ABANDONO DA TRADIÇÃO Na continuidade desta investigação sobre a banalidade do mal, iremos discorrer sobre o pensamento político de Arendt cujo traço característico é o amor mundi ou amor pelo mundo. Nessa perspectiva teórica que privilegia o cuidado pelo mundo percebido enquanto conjunto de artefatos e instituições políticas duráveis e estáveis, transparece a compreensão dos problemas políticos da atualidade e o caráter instável de um mundo governado pela lógica do trabalho e do consumo. As dúvidas sobre o entendimento dos significados na política buscou entre os filósofos clássicos. Os preconceitos na política são os nossos discursos, veremos ainda, a liberdade e a política e o abandono da tradição que iniciou com o abandono da autoridade. 3.1 Vida de Hannah Arendt e o Amor mundi Hannah Arendt nasceu em 14 de outubro de 1906, em Hannover, Alemanha. Cresceu em meio à classe média judaica mesclada profundamente à cultura alemã. Na família Arendt, o judaísmo nunca fora uma questão importante, Hannah tomaria consciência do antissemitismo através dos comentários de seus colegas e professores. Aos 18 anos decidiu cursar Filosofia, e nessa época conheceu Heidegger, na Universidade de Marburgo. Em 1922 leu a Crítica da Razão Pura de Kant, bem como incontáveis filósofos gregos e latinos no original, além de poesia alemã e clássica. As obras de Kierkegaard e a leitura da Filosofia das visões do mundo, de Karl Jaspers a encantou. Jaspers, conclui a orientação da tese sobre O conceito de amor em Santo Agostinho defendida e publicada em 1929. Vivendo em um período de grandes conflitos na Europa, entre duas grandes guerras mundiais, e com a ascensão dos regimes totalitários, Hannah Arendt abandona a filosofia e envolve-se em um grupo sionista que tinha como líder um antigo conhecido de sua família Kurt Blumenfeld. Devido a esse engajamento foi presa e fugiu sem documentos, viajando para Paris em 1933. Exilada primeiramente na França conheceu e tornou-se amiga de Walter Benjamin e outros refugiados 25 alemães, judeus e comunistas, entre eles Heinrich Blücher seu companheiro até o ano de 1970, quando veio a falecer31. Na França organizou a emigração para a Palestina de crianças judias, foi presa novamente em 1940, foge e embarca para os Estados Unidos da América em 1941. Entre os anos de 1933 a 1951, Arendt viveu como refugiada e apátrida, condição que marcaria sua reflexão política. Estar expulsa da comunidade política, sem nacionalidade e direitos era o mesmo que ser relegada à condição de um ente supérfluo, descartável. Foi esse sentimento de desvalorização de sua identidade, que associou ao período da Segunda Guerra Mundial, onde os nazistas, inicialmente tiveram o cuidado de desnacionalizar suas vítimas, imputando-lhes a perda de qualquer direito ou proteção política eficaz. Arendt percebeu que as questões políticas relevantes do presente não poderiam ser elucidadas por meio de conceitos tradicionais como a esquerda ou direita e, desde então, manteve uma atitude crítica referente à tradição do pensamento filosófico-político ocidental32. Contrariamente à maioria dos pensadores políticos, seu principal interesse não era solucionar problemas, suas incessantes tentativas de compreender não eram instrumentais, não mais que a própria vida. Essa atividade de compreender permitiu-lhe certa harmonização com o mundo em que vivia33. O traço característico do pensamento de Hannah é o amor mundi ou amor pelo mundo. Através dessa perspectiva teórica deu início à compreensão dos desregramentos políticos de nosso tempo, o desvario totalitário e o fenômeno da moderna despolitização liberal-tecnocrática. O amor mundi constitui o lema do pensamento político arendtiano, contrário à atitude intelectual definida como alienação do homem em relação ao mundo, origem do moderno subjetivismo filosófico e das tendências psicologistas do pensamento social contemporâneo. A partir dessa perspectiva que privilegiava o cuidado pelo mundo entendido enquanto conjunto de artefatos e instituições políticas duráveis e estáveis, Arendt, desvendou um grande problema político da atualidade, o caráter instável e rude de um mundo regido pela lógica do trabalho e do consumo. Para ela, 31 PECORARO, Rossano (org.). Os filósofos: clássicos da filosofia: v. III: de Ortega Y Gasset a Vattimo. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009 p. 147-8. 32 Ibidem, p. 148. 33 ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios) 1930-54. Trad., Denise Bottman; organização, introdução e notas Jerome Kohn. São Paulo: Cia das Letras:BeloHorizonte: Editora UFMG, 2008a p.8. 26 um dos principais aspectos da política diz respeito à preservação da estabilidade do mundo, e não ao cuidado dos interesses privados34. Em decorrência do seu pensamento político, Arendt tem necessidade de buscar uma solução de continuidade entre poder constituinte e poder constituído, entre as instâncias do político e do jurídico, entre a democracia radical e a democracia representativa. Em síntese, que a ação política seja criativa e que tenha limites normativos propriamente políticos que controlem a ação violenta e as arbitrariedades sem, contudo, perder a originalidade intrínseca de toda a ação política genuinamente democrática. Sobre a ação e a pluralidade, a ação seria a resposta à condição humana da pluralidade, devido ao fato que não existe um homem, mas sim homens que habitam o planeta terra, segundo Arendt: A pluralidade é a condição de toda a vida política, pois não há política no isolamento atomizado de meros indivíduos ou em meio à homogeneidade indistinta das massas. A ação está diretamente relacionada à condição humana da natalidade, pois o nascimento humano constitui um novo início; para os humanos, nascer não significa simplesmente aparecer no mundo, mas constitui por si só a possibilidade de dar início a algo novo no mundo 35 enquanto agentes políticos . O nascimento humano está relacionado a um novo início, não só simplesmente aparecer no mundo, mas de acrescentar algo novo, enquanto agente político. Arendt tem a necessidade de vincular o político existente entre ação e liberdade. Política e liberdade coincidem, no entanto, só se articulam quando existe mundo público. A ação, mesmo que tenha vontade e razão, a eles não se reduz. A Política é um produto da ação, e o agir é um movimento. O significado da política é a liberdade. 3.2 A Política e seus significados Hannah Arendt procurou nos pensadores clássicos o conhecimento para as suas dúvidas mais constantes, foi à antiga Atenas do século IV, estudou o pensamento dos gregos, Sócrates, Platão e outros. O pensamento de Sócrates representa a humanidade de todos os outros. A lei da não-contradição, descoberta 34 35 PECORARO, 2009, p. 161. Ibidem, p.161. 27 que lhe é atribuída, diz respeito, à ação que não é comandada de fora de si, mas são os pensamentos que governam as ações, seria a má consciência. Essa descoberta fundamental de Sócrates proporciona subsídios para Aristóteles criar a lógica e a ética. Arendt insiste firmemente nessa igualdade de pensamento e ação em Sócrates, que tem como lema o viver de acordo consigo mesmo, a prática de uma ação má a outra pessoa, equivaleria a uma auto-violação. O ensinamento de Sócrates era que somente aquele que sabe viver consigo está apto a estar ao lado do outro e mais: O eu-mesmo é a única pessoa de quem não posso me afastar, que não posso deixar, a quem estou irrevogavelmente unido. Consequentemente, é muito melhor estar em desacordo com o mundo inteiro do que, sendo um, 36 estar em desacordo comigo mesmo . Immanuel Kant a influenciou desde a juventude, quando leu sua obra mais importante a Crítica da Razão Pura. Reconhecia-o como fonte de boa parte de sua própria compreensão da pluralidade humana. Nessas trajetórias do pensamento, inúmeros filósofos fizeram parte do seu desenvolvimento humano e intelectual. A tese sobre o conceito de amor em Agostinho foi orientada primeiramente por Heidegger e, este a encaminhou para Karl Jaspers, que terminou de orientá-la, a defesa da tese e a publicação ocorreu em 1929. Foi através dos estudos e da amizade com Jaspers, que Arendt compreendeu a importância da comunicação entre os homens, tanto como fonte de iluminação do mundo como para a sustentação das relações humanas37. O pensamento político de Jaspers respaldou as obras de Arendt entre elas A Condição Humana, Sobre a Revolução e Entre o Passado e o Futuro. 3.2.1 Karl Jaspers Em uma dedicatória a Karl Jaspers escrita em Nova York no ano de 1947, Arendt relembra do que aprendeu com o amigo e agradece aos caminhos norteados de grande integridade, que não lhe permitiram vender sua alma: 36 ARENDT, Hannah. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn; trad., Pedro Jorgensen Jr. 3.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010 p. 63. 37 PECORARO, 2009, p. 147-148. 28 O que aprendi com você, e que me ajudou nos anos seguintes a encontrar meu caminho na realidade sem lhe vender minha alma, como antes as pessoas vendiam a alma ao demônio, é que a única coisa importante não é a filosofia, e sim a verdade, que a pessoa tem de viver e pensar em campo aberto, e não dentro de sua pequena concha, por mais confortável que seja, e que a necessidade, sob qualquer forma, é apenas um fogo-fátuo que tenta nos seduzir para desempenhar um papel, em vez de tentarmos ser seres 38 humanos . O pensamento político de Karl Jaspers desmente a ideia de que o poder político é o poder da violência. Segundo ele a política é uma tensão entre dois pólos: a violência possível e a liberdade de coexistir. Os grandes acontecimentos históricos revelaram que pode haver ação e poder sem recorrer à força. A política não deve ser vista apenas como edificadora da sociedade em clima de liberdade, e entender a violência como destruidora da política. As sociedades humanas jamais triunfam dos instintos da violência, consequentemente, são sempre injustas devendo aprimorarse constantemente. A liberdade política, mantendo uma perfeita ligação com a inata dignidade do homem, autoriza a esperança39. 3.2.2 O que é Política? Hannah Arendt procurou compreender a relação que os assuntos humanos, estabeleciam com a liberdade. Esse entendimento obteve através da reflexão, estava mais interessada em dar sentido à esfera política para si mesma do que transmiti-la aos demais. Os grandes pensadores a que se voltara insistentemente em busca de inspiração, de Platão e Aristóteles a Nietzsche e Heidegger, nunca haviam percebido que a promessa da liberdade humana, sincera ou ardilosamente apresentada como o fim último da política, é realizada pelos seres humanos plurais quando e somente quando eles agem 40 politicamente . A fundamentação da política está na pluralidade humana. O homem é criação divina, mas os homens ao interagirem, tornam-se produto da natureza humana. Política é a coexistência e associação de homens diferenciados, que se organizam politicamente de acordo com certos atributos comuns. O homem 38 ARENDT, 2008ª. p. 241. JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Trad., Leônidas Hegenberg, Octanny Silveira da Mota.São Paulo. Editora Cultrix, 1966 p. 66-67- 74. 40 ARENDT, 2010, p. 22. 39 29 só existe - ou só se realiza – na política na forma de direitos iguais que os absolutamente diferentes garantem uns aos outros. Essa garantia voluntária e essa outorga do direito à igualdade jurídica reconhecem a pluralidade dos 41 homens . Existem duas razões que dificultam a Filosofia de encontrar e concretizar um lugar para a política: a primeira seria que a política pertence à essência do homem, o homem na verdade é apolítico. Acredita Arendt, que a política nasce entre os homens, absolutamente fora do homem. A segunda razão é o conceito monoteísta de Deus, onde os homens seriam apenas a repetição mais ou menos bem sucedida. O homem criado à imagem de Deus estaria na base do estado de natureza de Hobbes como uma guerra de todos contra todos. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, seria um revoltado por sua falta de significação, e devido a essa criação o ódio adentraria nas relações de um contra todos os outros42. Segundo Arendt a criação divina da pluralidade dos homens se materializa na diferença absoluta de todos os homens entre si, que é a maior do que a diferença relativa entre povos, nações e raças. Aqui, no entanto, não há lugar para a política. Desde o começo, a política organiza os absolutamente diferentes, tendo em vista a sua relativa igualdade e em 43 contraposição a suas relativas diferenças . O desconhecimento de como nos conduzir politicamente, faz com que tenhamos um discurso comprometido pelo preconceito. Os preconceitos na política não são juízos, refletem o nosso modo de pensar em uma sociedade em constante mudança. 3.2.2.1 Os preconceitos na política Os preconceitos na política, segundo Arendt, são os discursos de todos nós que advém do nosso próprio pensamento, dados que se referem à realidade do nosso dia a dia, e refletem a situação presente em seus aspectos políticos, que não podemos negar através de argumentos. Esses preconceitos não são juízos, mas indicações de situações com as quais nos deparamos e não sabemos como nos conduzir politicamente. O risco é a política vir a desaparecer do mundo. 41 Ibidem, p.145-146. ARENDT, 2010, p.146. 43 Ibidem p.147. 42 30 A esperança e o medo são sentimentos que denotam o nosso preconceito contra a política. O medo da autodestruição da humanidade através dos meios da política e dos meios de poderio de que hoje dispõe. A esperança, atrelada ao medo, de que os seres humanos restabeleçam a razão e livrem o mundo não dos próprios homens, mas da política. A humanidade na tentativa de livrar-se da política poderia criar um governo mundial que transformaria o Estado em uma máquina administrativa, os conflitos políticos poderiam ser resolvidos de maneira burocrática e os exércitos substituídos por forças policiais. Tal esperança é pura utopia, acredita Arendt, enquanto, a política for definida como uma relação entre dominadores e dominados. Essa idéia não suprimiria a política, mas a levaria a um autoritarismo sem precedentes, abrindo um abismo entre os governantes e os governados, de tal modo que se tornaria impossível qualquer forma de rebelião ou qualquer controle dos governados sobre os governantes. Já o governo burocrático não é menos autoritário porque ‘ninguém’ o exerce. Na verdade, é ainda mais assustador, porque não se pode dirigir a palavra a esse ‘ninguém’ e muito menos reivindicar os próprios direitos. A esperança, não é utópica, quando a política tem como significado o domínio global, onde as pessoas são vistas como seres atuantes que conferem aos assuntos humanos uma continuidade que de outro modo não teriam. Na história, encontramos inúmeras situações, jamais em escala global, em que a participação ativa de grupos de indivíduos cerceada na forma de tiranias atualmente obsoletas que permitem a vontade de um único homem, ou do totalitarismo moderno, onde grupos de pessoas são escravizados a serviço de ditas forças históricas e processos superiores e impessoais44. Tal forma de dominação tem em sua natureza um sentido verdadeiramente apolítico, cuja dinâmica gerada evidencia que tudo e todos que anteriormente eram vistos como grandes podem e devem ser esquecidos. Essa forma de dominação pode ser observada nas democracias de massa através de uma impotência similar que se dispersa espontaneamente. Semelhantemente, há outro processo autoalimentado de consumo e esquecimento que cria raízes, limitando-se tais fenômenos às esferas da economia e da política. 44 ARENDT, 2010, p. 148-149. 31 O preconceito maior contra a política seria a fuga na impotência, isto é, o desejo incapacitante de agir. Política deriva do grego pólis, e tem como significado a liberdade. A política é justificada e definida, na tradição, como um meio para atingir fins mais elevados, ainda que esses fins oscilem substancialmente ao longo dos séculos. A política é absolutamente necessária à vida humana, não apenas da sociedade, bem como da pessoa. O homem é dependente de outros para sua existência, traz consigo exigências de provimentos que interferem na vida de todos e sem as quais a vida em comum não subsistiria. A finalidade última da política é de defender a vida em seu sentido amplo, possibilitando ao homem buscar seus próprios fins, em todos os campos da vida, sem a interferência da mesma. Arendt contesta a significação da política, devido ao fato de relacioná-la a acontecimentos desastrosos ocorridos no século XX, e às possíveis ameaças que ainda possam advir. São dois os fatores que a preocupam. O primeiro fator diz respeito à experiência com regimes totalitários, onde a vida humana em sua totalidade é considerada tão politizada, que não há nenhuma liberdade. A dúvida nesse momento é se existe compatibilidade entre a política e a liberdade, ou se a liberdade não começa no momento em que termina a política. Portanto, a liberdade não pode existir enquanto a política não encontrar o seu limite e o seu fim. O segundo fato aludido seria o desenvolvimento dos modernos meios de destruição que foram construídos devido ao monopólio dos Estados e só podem ser empregados com o aval das relações da política45. A política ameaça o que a justifica, qual seja, a possibilidade básica da vida para toda a humanidade. E afirma Arendt, caso a falta de significação da política é pensada como um mal necessário, a política com significado transforma-se em sem significado: A falta de significado em que se encontra a política evidencia-se no fato de que todas as questões políticas tomadas individualmente terminam em 46 impasse hoje em dia. . Em todos os períodos históricos que os seres humanos reuniram-se de modo coletivo estava presente a política. 45 ARENDT, 2010, p. 162. Ibidem p. 164. 46 32 3.2.3 Os gregos e a política A política sempre existiu em todos os períodos históricos onde havia grupos humanos partilhando de modo comum. Aristóteles costumava definir o homem como animal político. Para ele, a palavra politikon era um adjetivo que designava a organização da polis, não uma definição de qualquer aglomerado humano; certamente não tinha consigo a idéia de que todos os homens são políticos, ou que sempre existe uma polis, onde convivam pessoas. A definição de homem pensada por ele excluía os escravos e os bárbaros dos impérios asiáticos, sem ter duvidado da humanidade dos mesmos, apesar dos seus sistemas autoritários de governo. Aristóteles queria dizer que é exclusivo do homem poder viver numa polis, e que a organização da mesma é a forma mais elevada de vida em comum, algo especificamente humano e, portanto, equidistante dos deuses, que podem existir em e de si mesmos em total liberdade e independência, e dos animais, cuja vida em comum, se é que existe algo assim, e uma questão 47 de necessidade . A política, no sentido aristotélico, não exprimia um pensamento pessoal, mas um ponto de vista comum a todos os gregos do seu período de tempo. A liberdade é o que diferenciava a vida em comum na polis de todos os outros modos de vida. Entretanto, a esfera política não era entendida como um meio, uma possibilidade de liberdade humana. Ser livre é viver na polis. Em certo sentido, poderia ser a mesma coisa. No entanto, para viver na polis o homem já deveria ser livre, isto é, não estar submetido como escravo à dominação do outro, ou como trabalhador, às necessidades da vida. Na Grécia, ao contrário das formas de exploração capitalista, o trabalho dos escravos visava libertar completamente seus senhores do trabalho para que esses pudessem desfrutar a liberdade do espaço político. A política, no contexto das categorias, meios e fins, é para Aristóteles e para os gregos de seu tempo, um fim e não um meio. Esse fim, tem como significado na política, os homens dentro da sua liberdade interagir, “sem coação, força nem dominação, como iguais entre iguais, [...] conduzindo todos os seus assuntos por meio do diálogo e da persuasão”48. 47 48 ARENDT, 2010, p. 170. Ibidem, p. 172. 33 A política grega está centrada na liberdade. Essa liberdade pode ser entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e um espaço positivo onde só pode ser criado por homens entre homens. Sem os pares não há liberdade. A questão principal que envolve esse modelo de liberdade política é a construção desse espaço. O homem que sai da polis ou é banido perde suas referências e o único espaço que pode ser livre é a companhia dos seus pares. 3.2.4 Liberdade e política O que alimentava o pensamento e a ação da cultura européia até os tempos recentes era a idéia da inseparabilidade entre política e liberdade, e o pior dos regimes políticos é a tirania, na verdade um regime antipolítico. Com o surgimento dos regimes totalitários e das ideologias correspondentes ninguém, segundo Arendt, conseguiu desfazer o fio entre política e liberdade, nem o marxismo que anunciava o reino da liberdade e uma ditadura do proletariado como instrumento de revolução. A inovação do totalitarismo é a noção de que a liberdade humana deve ser sacrificada ao desenvolvimento histórico, processo que só pode ser obstaculizado quando 49 os seres humanos agem e interagem em liberdade” . Esse modo de ver é comum a todos os movimentos políticos, particularmente ideológicos, os quais consideram como questão teórica fundamental da liberdade, não estar na ação e na interação do seres humanos, nem no ambiente que os constitui, mas num processo que é desenvolvido por trás daqueles que agem e realiza seu trabalho em segredo, além do espaço visível dos temas públicos. O modelo de conceito de liberdade, assimilado pelas pessoas que no mundo moderno associam a dicotomia liberdade e necessidade à dicotomia liberdade e ação arbitrária encontram nesse modelo uma velada justificativa. A substituição do conceito de política em todas as suas formas pelo conceito de história tem um sentido bastante liberal, que é o fluir da história. Os regimes totalitários descobriram os meios políticos de integrar os seres humanos de maneira que eles estejam tão inteiramente envolvidos na 49 ARENDT, 2010, p. 175. 34 “liberdade” da história, em seu “livre fluxo”, que já não podem obstruí-la, 50 mas, ao contrário, convertem-se em impulso para a sua aceleração . O terror coercitivo utilizado pelos regimes totalitários para integrar e envolver os seres humanos na liberdade da história foi aplicado de fora e o pensamento ideológico coercitivo aplicado de dentro. Essa forma de pensamento associada à corrente da história torna-se inerente à mesma. Esse desenvolvimento totalitário acredita Arendt, é o passo decisivo para a extinção da liberdade, o que não significa que o conceito em teoria já não tenha desaparecido em todo o local onde o pensamento moderno substituiu o conceito de política pelo de história: O ascenso do totalitarismo, sua pretensão de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da política e seu consequente descaso pelos direitos civis, entre os quais, acima de tudo, os direitos à intimidade e à isenção da política, fazem-no duvidar não apenas da coincidência da política com a liberdade como de sua própria compatibilidade. Inclinamonos a crer que a liberdade começa onde a política termina, por termos visto a liberdade desaparecer sempre que as chamadas considerações políticas 51 prevalecerem sobre todo o restante . Durante o pensamento moderno, Marx e Nietzsche rejeitam a autoridade, um marco dos conceitos tradicionais. Esse rompimento da tradição ocorre em decorrência da transvaloração dos valores de Nietzsche que transmuta a hierarquia de valores platônica, e analogamente, Marx adota a dialética hegeliana, fazendo com que o processo histórico inicie com a matéria, em lugar do espírito. 3.3 O abandono da tradição O fim da tradição começa com a crise de autoridade. Nietzsche chamou o que resultou dessa crise, de pensamento perspectivo, ou o pensamento sujeito a mudança de acordo com a vontade, dentro do contexto da tradição. Tudo o que anteriormente era considerado como verdadeiro assume nesse momento o aspecto de uma perspectiva, contrapondo a possibilidade de existirem várias perspectivas igualmente legítimas e igualmente concebidas. 50 Ibidem, p. 176. ARENDT, 2007, p. 195. 51 35 3.3.1 Marx e o método do pensamento-processo Marx introduziu o pensamento perspectivo em todos os campos do saber humanístico. Extraordinárias foram suas influências, o que havia de novo na visão marxista foi a forma como considerava a cultura, a política, a sociedade e a economia em um único contexto funcional, podendo ser arbitrariamente conduzido de uma perspectiva a outra. Ao adotar a dialética hegeliana e transformá-la em método, retirou os conteúdos que a mantinham firme à realidade substancial, e Marx tornou possível “o gênero de pensamento-processo característico das ideologias do século XIX, culminando na lógica devastadora dos regimes totalitários”52. A metodologia formal adotada de Hegel é o processo tríplice em que a tese leva, por meio da antítese, à síntese, que se transforma na primeira etapa da tríade seguinte, formando uma nova tese e recomeçando as mesmas etapas num processo sem fim. É um pensamento onde a realidade é reduzida a estágios de somente um e imenso processo de desenvolvimento, algo desconhecido para Hegel, conduzindo o pensamento para a ideologia, que também era desconhecido por Marx: Esse passo da dialética como método para a dialética como ideologia se completa quando a primeira proposição do processo dialético se torna uma premissa lógica da qual tudo mais pode ser deduzido com uma 53 consequencialidade totalmente independente de qualquer experiência . Marx formaliza a dialética hegeliana do absoluto na história como um desenvolvimento, um processo auto-impulsionado, que retira da tradição a substância de sua autoridade mesmo persistindo em seu marco. Dentro dessa formalização, falta somente um estágio para que o conceito marxista de desenvolvimento se transforme em pensamento-processo ideológico, ou a dedução coercitiva totalitária, baseada em uma premissa. Foi aqui, pensa Arendt, que o fio da tradição começa a ser realmente rompido: no momento em que a lógica desencadeada pelo pensamento tomou conta das massas. A essência da relação e do distanciamento de Marx pelo pensamento de Hegel está presente em uma frase: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo 52 ARENDT, 2010, p. 123. ARENDT, 2010, p. 123. 53 36 de diversas formas; a questão é transformá-lo”54. Marx embora ainda estivesse ligado a filosofia hegeliana, rejeita a idéia de que a ação em e por si mesma, e na ausência da astúcia da Providência, é incapaz de revelar e produzir a verdade. Marx rompe com todas as avaliações tradicionais no marco da filosofia política, segundo as quais o pensamento é hierarquicamente superior à ação, e a política existe apenas para tornar possível a salvaguardar a vida contemplativa dos 55 filósofos ou a contemplação de Deus pelos cristãos apartados do mundo . Na sociedade sem classes de Marx, com o desaparecimento do poder e da dominação, liberdade é uma palavra que tem um sentido completamente novo. Segundo Hannah Arendt, a permanência de Marx à tradição é a razão de um grande erro, bem como supor que a administração era não-governo. O governo-de-ninguém ou burocracia, que é uma forma de governo onde ninguém assume responsabilidade, mas não significa que as condições de dominação não existam. O regime burocrático de ninguém domina eficazmente, visto pelo lado dos governados, e tem uma importante característica semelhante com o tirano. A burocracia: é uma forma de governo da qual o componente pessoal do ato de governar desapareceu e também é verdade que tal governo pode governar no 56 interesse de nenhuma classe . O poder tirânico e o regime burocrático de ninguém são definidos como poderes arbitrários. O primeiro não presta contas e não assume responsabilidade diante de quem a exigir. Já no segundo, sendo um regime burocrático, muitos poderiam pedir as prestações de contas, mas não há ninguém para fazê-lo, porque “ninguém” não pode responsabilizar-se. Os resultados das decisões do regime burocrático são eventuais de procedimentos universais, não possuem malícia nem arbitrariedade porque não têm vontade por trás de si, e nem interesse. Quem é governado está sujeito a perigos maiores que as arbitrariedades tirânicas. Não devemos comparar burocracia com a dominação totalitária. Na tradição do pensamento político, o conceito de igualdade universal significa apenas que nenhum homem é livre57. Marx substituiu a ‘astúcia da razão’ de Hegel pelo interesse de classe. Ao postular o interesse como motor da ação política é significativa a suposição de que o 54 Ibidem, p. 124. Ibidem, p.125-126. 56 Ibidem, p. 127. 57 ARENDT, 2010, p. 127-128. 55 37 interesse da classe laboriosa se identifica com o interesse da humanidade. Vincular o interesse ou algo material à humanidade essencial do homem é a nova proposição do marxismo, e ainda mais marcante, é ligar o interesse ao próprio trabalho como atividade maior do homem. Essa teoria do interesse tem a convicção de legitimar como única satisfação o que reside no labor. Marx foi o primeiro a definir o homem como um animal laborans, como criatura laboriosa. Em seus escritos o homem tem essa nova definição, sua humanidade essencial não estaria na racionalidade (animal rationale), nem na capacidade de produzir artefatos (homo faber), assim como, sua criação ter sido à imagem de Deus (creatura Dei), mas naquilo que a tradição rejeitara de maneira unânime como sendo não própria à existência plena e livre, o labor58. O trabalho é atividade realizada pelo homem, do qual se ocupa, para provimento das suas necessidades vitais. A despeito de sua enorme produtividade, ele não deixa nada durável e permanente atrás de si, pois seus produtos são consumidos tão logo são produzidos. Daí o caráter destruidor da atividade do trabalho-labor, que 59 consome e destrói seus produtos a fim de poder continuar a repetir-se . Esse novo auto-entendimento do homem como animal laborans propiciou um acontecimento sociológico marcante da história recente: a partir da concessão de direitos civis iguais à classe laboriosa, definiu-se toda a atividade humana como labor e interpretá-la como produtividade. Assim, Marx ao favorecer o labor conferiulhe uma produtividade que realmente não possui. Segundo Arendt, no momento em que a política é reduzida à administração das necessidades humanas em nome de um falso bem comum, isto é, o incremento da vida e da felicidade do animal laborans, multiplicam-se as instâncias da violência tanto por meio da exclusão política quanto por meio da exclusão social operada pelas leis de mercado. [...] às horas vagas do animal laborans jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são 60 seus apetites . Hannah Arendt tem como tese que a partir do século XIX cada vez mais a política foi determinada por interesses sócio-econômicos privados e pelo saber técnico e burocrático que transformou o político em um tecnocrata. Esse processo histórico resultou em uma sucessão de perdas políticas: a perda do espaço da liberdade para os fenômenos da necessidade; a perda da ação livre e espontânea 58 Ibidem, p. 128-129. PECORARO, 2009 p. 163. 60 PECORARO, 2009, p. 153-154. 59 38 para o comportamento repetitivo e previsível dos cidadãos; a transformação da política em gestão burocratizada e despolitizada das carências e necessidades sociais da população; a perda do espaço público e comunitário para os lobbies e grupos de pressão secretos; a substituição da troca persuasiva de opiniões pela violência cega e muda; a submissão da pluralidade de ideias políticas pelo pensamento único; o enfraquecimento da capacidade de consentir e dissentir em vista da obrigação de obedecer; e ainda, o ofuscamento da novidade e da criatividade pelo eterno retorno do mesmo61. O homem é produto das constantes transformações na sociedade: pensou em ir ao encontro da felicidade e para concretizá-la, acumulou riquezas; consumiu exageradamente; naturalmente foi em busca dessas ilusões e quando elas não mais o interessaram, em um momento de lucidez, entendeu que o mundo em que atuava era carente de valores e ideais políticos que pudessem ampará-lo. Esse homem solitário que compõe a massa humana, carente de voz, desprovido de poder, onde a liberdade que acredita possuir está restringida ao voto, este animal laborans sempre poderá ser tentado a recorrer a soluções políticas radicais. O traço característico do pensamento político de Hannah Arendt é o amor mundi ou amor pelo mundo. Na ótica do amor mundi, nesse cuidado pelo mundo entendido enquanto conjunto de artefatos e instituições políticas duráveis e estáveis, Arendt, descobriu um grande problema político da atualidade, o caráter instável e rude de um mundo regido pela lógica do trabalho e do consumo. Um dos principais aspectos da política é a preservação da estabilidade do mundo, e não o cuidado com os interesses privados. Arendt vincula o político existente entre ação e liberdade. Política e liberdade coincidem, mas a articulação só acontece quando existe mundo público. A fundamentação da política está na pluralidade humana. Duas são as razões que dificultam a Filosofia de firmar um lugar para a política: a primeira, diz respeito, à essência do homem, o homem é apolítico. A segunda razão é o conceito monoteísta de Deus, onde os homens seriam apenas a reprodução mais ou menos bem sucedida. O homem criado à imagem da solidão de Deus seria um revoltado por sua 61 Ibidem, p. 153. 39 falta de significação, e devido a essa criação o ódio adentraria nas relações de um contra todos os outros. O fim da tradição começou com a crise da autoridade. Nietzsche chamou o que resultou desta crise de pensamento perspectivo, ou o pensamento que está sujeito a mudança de acordo com a vontade. Ao adotar a dialética hegeliana, e transformá-la em método retirou os conteúdos que a mantinham firme à realidade substancial e Marx tornou possível o gênero do pensamento-processo característico das ideologias do século XIX, culminado na lógica dos regimes totalitários. O totalitarismo é uma forma de dominação sem precedentes, uma nova modalidade do mal onde a violência se dá através da destruição da pessoa jurídica do homem. O homem deixa de ser um fim em si mesmo tornando-se um meio. Ao fazer a cobertura do julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém Arendt observou que o agente não refletia sobre os atos cruéis que cometera. À essa falta de reflexão crítica chamou de vazio de pensamento, a banalização das atrocidades praticadas eram claras, o agente cumpria ordens, era somente um trabalho. Sobre o regime totalitário e a banalização da violência veremos no capítulo seguinte. 40 4 DO MAL RADICAL À BANALIDADE DO MAL Para Kant o mal radical é universal, prescinde da natureza humana, porém tem limites. Para afirmar que o homem é realmente mau é necessário conhecer não somente seus atos, ou mesmo as máximas, mas a decisão inteligível que os adota. O mal moral não está no ato, mas no agente, mais precisamente na sua intenção. Segundo Hannah Arendt o mal radical que surgiu no totalitarismo, transcende os limites da definição kantiana, pois trata de uma nova espécie de agir humano. Essa forma de violência vai além dos limites da própria solidariedade do pecado humano. O mal, diz a filósofa, tem a ver com o fenômeno da superfluidade dos homens enquanto homens, o mal radical aparece no momento em que o homem deixa de ser considerado como um fim em si mesmo. O conceito de banalidade do mal iluminado pelo mal radical kantiano, possibilita a Hannah Arendt realizar uma releitura política de Kant, pois o mal radical é a própria desestruturação do político62. Neste capítulo veremos, ainda, origem da expressão banalidade do mal; Eichmann e o mal; vazio de pensamento; compreender o totalitarismo; novidade totalitária; da banalidade do mal a banalização da violência. 4.1 Origem da expressão banalidade do mal Durante a década de 40, nos Estados Unidos, Hannah Arendt redige sua maior obra e a publica em 1951, o livro Origens do totalitarismo. A preocupação da filósofa era de compreender o que para ela era visto como incompreensível: as análises do anti-semitismo e do imperialismo resultaram na investigação do totalitarismo como sendo uma forma de dominação sem precedentes na história ocidental. O fenômeno totalitário para Arendt revela uma nova modalidade do mal como sinônimo de práticas monstruosas, onde a violência primeira é vista através da destruição da pessoa jurídica do homem, um ser supérfluo, isto é, “[...] quando o 62 SOUKI, 2006, p.33-100. 41 homem deixa de ser um fim em si mesmo, quando ele deixa de ter primazia sobre tudo mais e torna-se um meio, um instrumento”63. Hannah Arendt retorna ao pensamento kantiano quanto ao mal radical, a Sócrates, eleito por ela como modelo de pensador, ao pensar sobre o homem e o problema do mal. Ao realizar a cobertura do processo de julgamento do nazista Eichmann, realizado em Jerusalém, em 1961, para a revista The New Yorker, percebe o agente como um indivíduo vazio de pensamento. Esse vazio é falta, ausência, é negatividade para refletir acerca do mal. O homem moderno tem obstruída sua faculdade do pensar ao aceitar o que lhe é imposto por outros homens, sem a necessária reflexão crítica, levando-o a atos cruéis denominados pela filósofa de crimes funcionais e ‘massacres administrativos’ realizados por Eichmann durante o holocausto. Sobre o homem moderno diz Arendt uma capacidade, sem precedentes, de ser como carneiro, facilmente pastoreado por pastores cruéis, ou de se tornar burocrata com “vazio de 64 pensamento”, como Eichmann . Essa falta de dignidade é consequência da vida moderna massificada e desenraizada, onde o valor da vida humana é relativo, tem seu significado perdido, deixando de ser necessário e essencial, passando a ser banal. O homem degenerado em sua humanidade, o que se dirá da ação do mesmo. Hannah Arendt, preocupada com as arbitrariedades praticadas pelo homem, busca entender essa conduta. Já havia escrito Origens do totalitarismo e entende que há conexões importantes entre o totalitarismo e o modo de pensar e agir do nazista julgado em Jerusalém. A expressão banalidade do mal foi mencionada pela primeira vez por Hannah Arendt, em um relato ao assistir o julgamento em Jerusalém do nazista Eichmann. Essa expressão não tinha a intenção de sustentar nenhuma tese de pensamento sobre o fenômeno do mal. No início da introdução da obra A Vida do Espírito, a autora procura definições do mal reconhecidas na tradição: o mal como algo demoníaco; o pecado do orgulho, ou movidos pela fraqueza, ou ainda, pelo ódio que é próprio da maldade e sente pela pura bondade, assim como, pela cobiça ou a inveja, a raiz de todo o mal. 63 64 Ibidem, p. 129. SOUKI, 2006, p. 131. 42 4.1.1 Eichmann e o mal Para Hannah Arendt o homem ideal para os regimes totalitários é esse homem desolado, moderno, cuja condição vem sendo preparada desde a Revolução Industrial; nesse modelo de homem de massa, o indivíduo foi destituído como sujeito político. A despolitização o transformou em um anônimo, sem capacidade política, sem consciência moral, sem vontade, sem julgamento. Sendo assim, é capaz de sofrer e de fazer banalmente o mal. O mal é consequência do não-exercício da liberdade. Em 4 de outubro de 1960, Hannah Arendt anunciou a seu amigo Jaspers sua intenção de viajar até Jerusalém para acompanhar o processo de Adolf Eichmann. A primeira carta enviada à Jaspers chega em 13 de abril de 1961 com as primeiras impressões de Arendt sobre o acusado. Relata nossa filósofa: “Eichmann nada tem de águia; antes um fantasma, ainda por cima constipado [...], na sua redoma de vidro”65. Eichmann parecia um homem bastante comum, seus atos considerados monstruosos e demoníacos, para ele não tinham o mesmo significado. Durante o julgamento em Jerusalém, agia conforme funcionara sob o regime nazista, de acordo com os procedimentos rotineiros; quando interpelado fora desse contexto mostrava-se indefeso, protegia-se da realidade através de frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizadas. Eichmann demonstrou nunca ter exigido de si a atenção necessária para a compreensão de seus atos. As dificuldades de entendimento entre o bem e o mal sempre afligiram a sociedade, a cultura e aos filósofos. “O mal sempre constituiu um desafio à filosofia, chegando, muitas vezes, a ser considerado um enigma; por isso, tem correspondido a um convite a não ser pensado”66. Arendt reflete sobre o mal e procura na história o entendimento para essa novidade ou essa ausência do desejo de parar e pensar. Na obra A Vida do Espírito (1993), indaga, se a maldade não é uma condição necessária para fazer o mal? O problema do bem e do mal e a distinção entre o 65 DÉNAMY, Sylvie Courtine. Hannah Arendt. Trad., Ludovina Figueiredo. Isntituto Piaget. Lisboa. 1994, p. 102. 66 SOUKI, 2006, p. 9. 43 certo e o errado estão relacionados à faculdade do pensar? Considera a Filósofa que o pensamento não tem a capacidade de produzir o bem como resultado, pois a virtude não é aprendida, somente os hábitos e costumes, e que esses facilmente podem ser desaprendidos perante novos modos e padrões de comportamento. A procura na tradição de explicações para definir o mal presente em Eichmann, não teve o sucesso esperado. Não havia nele firmes convicções ideológicas ou motivações especificamente más; a característica percebida em seu comportamento anterior como durante o julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu, era algo de difícil entendimento; não era estupidez e sim irreflexão. O que impressionou Arendt durante o julgamento foi: a desproporção entre o crime e a mediocridade do personagem, a sua incapacidade de pensar, de emitir uma opinião sobre os seus atos, a sua Dummheit, como a definira Kant: a interrupção do julgamento, a incapacidade de relacionar um caso particular com uma regra universal 67 adequada . 4.1.2 O pensar Essa incapacidade de pensar sobre o mal inflama a prática do mesmo; quando deixamos de pensar no mal, ou quando não reconhecemos o mal que praticamos, como no caso de Eichmann, quando denota não querer pensar nas atrocidades praticadas. O surpreendente é sua falta de reflexão e a ausência de responsabilidade, pois: o mal extremo de que fala Arendt é mais radical do que o mal radical kantiano, na medida em que não tem raízes na interioridade do indivíduo, que se revela incapaz de colocar a questão do sentido dos seus atos e que 68 rompeu com todas as ligações ao mundo exterior . Hannah Arendt acredita que o ponto de partida para pensar é o senso comum, que é um ‘sentido interno’ que funciona como a ‘raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores’69. O sexto sentido seria a reunião das diversas sensações heterogêneas em um mesmo objeto, que vem dos outros órgãos do sentido. É isso que torna possível o compartilhamento de um mundo comum, esse sexto sentido é 67 DÉNAMY, Sylvie Courtine. Hannah Arendt. Trad., Ludovina Figueirede. Instituto Piaget. Lisboa. 1994, p.108. 68 Ibidem, p. 108. 69 Essas duas definições foram cunhadas de SãoTomás segundo Arendt. In: SOUKI, 2006, p. 111. 44 necessário à coesão com os outros cinco. Pensar significa abandonar, momentaneamente, o espaço do senso comum e pôr-se diante do que aparece, isto é, praticar espontaneamente o epoché70. É através do senso comum que podemos confiar nas sensações que nos chegam de fora, pois ele é o acesso à realidade. Esse senso do real depende inteiramente da aparência. No entanto, o universo da aparência é o nosso mundo comum, ou então, a realidade, o espaço político. A realidade não se distingue da aparência, pois a realidade do mundo é garantida aos homens pela presença do outro; e o que aparece a todos é o que chamamos de ser. O pensar faz com que o espírito tenha distanciamento do mundo: é um poder paradoxal, pois o homem é do mundo e não pode sair dele ou transcendê-lo. Para Hannah Arendt, a retirada (deliberada e sempre 71 espontânea) do mundo e a solidão caracterizam a atividade do pensar . Quando Hannah Arendt diz: ‘Não há pensamentos perigosos; o próprio pensamento é perigoso’, e este perigo está presente no momento em que desejamos encontrar resultados que dispensariam o nosso pensar. O risco, o perigoso, pelo ponto de vista do senso comum, é o que era significativo durante a atividade pensante, dissolver-se no momento de aplicá-lo à vida cotidiana. O pensar faz com que tenhamos que tomar novas decisões, cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade. O pensar tem como significado sempre um novo começo, um apropriar-se do homem, de sua essência e do seu início. Se pensar é o início, então, o produto do pensamento é sempre uma novidade. 4.1.3 Vazio de pensamento Arendt nunca reelaborou o conceito de ‘banalidade do mal’ somente concluiu sobre a falta de profundidade e a ausência de enraizamento das razões e das intenções do agente. No livro Eichmann em Jerusalém, em uma passagem do julgamento, o réu tentou esclarecer sobre o ponto: ‘inocente no sentido da 70 Epoché consiste em suspender o juízo sobre o mundo natural.In:JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário básico de filosofia/ Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 88. 71 SOUKI, 2006, p. 112. 45 acusação’; a acusação considerava que ele não só agira conscientemente, o que não negava, como agira por motivos baixos, tendo consciência dos seus atos criminosos: Quanto aos motivos baixos, ele tinha certeza absoluta de que, no fundo de seu coração, não era aquilo que chamava de innerer Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e 72 crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado . Sócrates dizia que não vale a pena viver uma vida sem reflexão, e ainda, o pensar acompanha o viver. Sócrates acreditava na falta e dava o nome a ela de Eros, um tipo de amor que deseja o que não possui e, ainda, que uma vida sem pensamentos seria uma vida sem sentido. O pensar é inerente a vida do homem, conferindo-lhe sentido, concluímos então que a possibilidade do “vazio de pensamento” seria, logo de início, uma ação humana moralmente degenerada, pois desrespeitaria a 73 própria necessidade humana . O pensar, essa experiência tão comum em nossas vidas, e no agente essa ausência de pensamento, o ponto de conexão é a banalidade do mal. O homem de massa sob o qual o totalitarismo se apóia, é um indivíduo isolado, que tem falta de relações sociais normais. O totalitarismo procura tornar essa massa de indivíduos cada vez mais isolados, anônimos, sem interesses pessoais, sem poder, e homens sem interesses comuns não têm poder. Aqui há necessidade do senso comum, que dá o sentido real, condicionando o indivíduo a se relacionar com a realidade do mundo em que vive, a dominá-la, julgá-la, a se adaptar e a modificar o seu ambiente, enfim ser ele. A dominação totalitária destrói esse sentido da realidade, essa faculdade que se apóia no outro. Já a propaganda totalitária explora o desejo de fugir da realidade que as massas têm, pois sendo elas desenraizadas, desorientadas, o mundo em torno delas não faz sentido, parecendo incompreensível. Sem as orientações do senso comum e doutrinadas pela propaganda totalitária, as massas terão dificuldades para refletir e formalizar novas concepções de vida. Arendt sobre a falta do pensamento reflexivo em Eichmann: A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos, nem de estupidez, no 72 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad., José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. Das Letras. 1999. p. 36-37. 73 SOUKI, 2006, p. 121. 46 sentido de inabilidade para compreender – nem mesmo no sentido de “insanidade moral”, pois ela era igualmente notória nos casos ou assuntos 74 de consciência . A desvalorização do senso comum, estimulada pela propaganda totalitária e possibilitada pela falta de socialização do homem de massa, torna realidade o vazio de pensamento. Essa banalização do senso comum faz com que o homem não tenha identificação com os demais homens, retirando dele a responsabilidade com os demais indivíduos. 4.2 A Banalidade do mal enquanto fenômeno humano A banalidade do mal enquanto fenômeno humano transcende o julgamento de Eichmann. O fenômeno da banalidade do mal em um contexto vivido pelo homem moderno deve ser analisado em torno de três pólos essenciais: a necessidade, a irrealidade e a ausência de pensamento. No caso de Eichmann a necessidade seria a existência de um sistema que intima cada indivíduo a aderir, através de uma função ou a um posto, de tal maneira que implicaria na perda de identidade pessoal e de reivindicar a responsabilidade de seus atos. Arendt não concorda com a visão puramente técnica da prepotência nazista. Considera, que eles se limitaram a obedecer às ordens e fiados em sua fria eficácia, apareciam de maneira inquietante, como os instrumentos ‘inocentes’ dos 75 acontecimentos impessoais e desumanos . O mal extremo ocorreria nessa adesão à necessidade da norma ‘Tu matarás’, na total submissão a uma heteronomia extrema. Quanto à irrealidade percebida através dos clichês, as frases prontas, os códigos de expressão padronizados serviam para proteger os indivíduos da realidade. Para os sistemas totalitários é interessante que os indivíduos demonstrem essa necessidade de se submeterem aos princípios superiores e tentem modelar à imagem destes. O que caracterizaria esses indivíduos é a fuga da realidade através da ideologia dominante. 74 75 ARENDT, 1993, p.6 SOUKI, 2006, p. 101. 47 O abandono da necessidade, assim como, o afastamento da realidade amparam-se e preparam o caminho para o mal banal que será praticado pelos indivíduos comuns. A ausência de pensamento desses indivíduos vem auxiliar a sujeição dos mesmos, incapacitando-os a menor resistência ao mundo construído pela ideologia. Esse estado de não pensar ensina os indivíduos a seguir as regras de conduta de uma sociedade ou de uma época, sem o exame rigoroso de seus conteúdos. A ausência do pensar pode ser compreendida como decorrência psicológica ou ideológica da condição política. Compreender é infindável e, portanto, não pode gerar resultados definitivos. A compreensão começa com o nascimento e termina com a morte. A partir do surgimento dos governos totalitários, esse “é o acontecimento central de nosso mundo, compreender o totalitarismo não é desculpar nada, mas nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis”76. 4.3 Compreender o totalitarismo Hannah Arendt lança a obra Origens do totalitarismo na década de 50. Obra complexa que avaliza a grande intelectualidade da autora, que em sua ânsia de compreender o incompreensível, tenta conciliar o próprio processo de seu viver e o sofrimento interminável pelo querer saber, “mas ainda não compreendendo contra o quê estamos lutando, por outro lado não sabemos nem compreendemos muito bem em favor do quê estamos lutando”77. Esse processo de compreensão requer que tenhamos um conhecimento preliminar, e essa auto-compreensão determinará o totalitarismo como tirania, e a luta contra esse regime, é uma luta pela liberdade. Diz Arendt a atividade de compreender é necessária; mesmo que nunca possa inspirar diretamente a luta ou oferecer outras metas, é a única que lhe pode conferir significado e gestar uma nova desenvoltura para o espírito e o coração 78 humano, que talvez venha a surgir livremente após a vitória . A compreensão sucede e precede o conhecimento. E a compreensão preliminar é a base de todo o conhecimento, é a verdadeira compreensão, que o 76 ARENDT, 2008a, p. 331. Ibidem, p. 333. 78 ARENDT, op. cit., p. 333. 77 48 transcende conferindo significado ao conhecimento. A evolução da história e a análise política, nunca poderão avalizar a existência de uma natureza ou essência do governo totalitário, simplesmente alegando uma natureza de governo monárquico, republicano, tirânico ou despótico. A real compreensão sempre retorna aos juízos e pressupostos que precederam e dirigiram a investigação científica. As ciências apenas elucidam, mas não provam nem refutam a compreensão preliminar acrítica de onde iniciou. Após o final da Segunda Guerra Mundial e nos primeiros anos do pós-guerra, o mal político era chamado de imperialismo, e designava uma política externa agressiva. O totalitarismo é usado para nomear o terror, o desejo de poder, a vontade de dominação e uma estrutura estatal monolítica. Hannah Arendt mediante o regime totalitário reflete e pergunta: Se estamos diante de algo que eliminou nossas categorias de pensamento e critérios de julgamento, a tarefa de compreender não terá se tornado impossível?79. O paradoxo dessa situação é sentir a necessidade de ir além da compreensão preliminar e da abordagem científica. Há uma incapacidade de entendimento quanto ao significado; Arendt apela para a definição Kantiana de estupidez que a considera muito adequada. A crescente falta de significado vem acompanhada pela perda do senso comum, assemelhada a uma estupidez crescente. A civilização atual, não se conhece nenhuma anterior, que pessoas moldem seus hábitos de consumo segundo a máxima do ‘auto-elogio é a mais alta recomendação’ ou que levassem ‘a sério uma terapia cuja eficácia depende de apenas altos honorários pagos ao terapeuta – a menos, é claro, que exista alguma sociedade primitiva em que o próprio gesto de estender dinheiro é dotado de poder mágico’80. O que aconteceu com as regrinhas de interesse próprio ocorreu em proporção muito maior em todas as esferas da vida comum que, por serem comuns, precisam ser intermediadas pelos costumes. Os fenômenos totalitários não podem mais ser compreendidos em termos de senso comum, pois desafiam todas as regras do juízo normal, inclusive o utilitário, o que denota a decadência de nosso saber comum, herdado do passado. Vivemos em um mundo de pernas para o ar e mesmo seguindo as regras do senso comum de outrora continuamos perdidos. Assim 79 80 ARENDT, 2008 p. 336. Ibidem, p. 336-337. 49 sendo, a estupidez no sentido kantiano se tornou a doença de todos, tão comum quanto era o senso comum. No totalitarismo o que se apresenta é mais do que a perda da capacidade de ação política, típico da tirania, e ainda, maior do que a perda do senso comum, a perda é da própria busca de significação e da própria necessidade de compreensão. Nesse contexto, é notória a substituição do senso comum pela limitada logicidade, característica do pensamento totalitário. A distinção política entre lógica e senso comum é que este pressupõe um mundo comum a todos os homens, onde possam viver juntos, porque possuem um senso que controla e ajusta todos os dados sensoriais particulares a todos os outros, enquanto, a lógica e todo o procedimento do raciocínio lógico podem alegar uma confiabilidade totalmente independente do mundo e da existência de outros indivíduos81. Sempre que o senso político vem a nós faltar em nossa necessidade de compreensão, é provável aceitarmos a logicidade como substituta, mas essa capacidade humana que funciona sob condições de total separação do mundo e da experiência, e que está dentro de nós, não tem nenhum vínculo com algo dado, tem uma incapacidade de compreensão e, entregue a si mesma, é totalmente estéril. Para Hannah Arendt a substituição do senso comum pelo raciocínio lógico, diz respeito, a um círculo comum entre os homens desfeito, a confiança que restou foi quanto as tautologias sem significado do axioma evidente, que é essa capacidade que ao tornar-se produtiva desenvolve suas próprias linhas de pensamento, cuja principal característica política é estar ao lado de um poder persuasivo compulsório, portanto: Igualar o pensamento e a compreensão com essas operações lógicas significa nivelar a capacidade de pensamento, que por milênios foi considerada a mais alta capacidade humana, a seu mínimo denominador comum, em que as diferenças na existência concreta já não têm nenhuma importância, nem mesmo a diferença qualitativa entre a essência de Deus e 82 os homens . O que há de assustador para os que buscam o significado e a compreensão, no surgimento do totalitarismo não é o fato de ser algo novo, mas o fato de evidenciar a destruição de nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento. 81 82 ARENDT, 2008, p. 341. Ibidem, p. 341. 50 Sem a compreensão, esse tipo de imaginação, nunca seríamos capazes de marcar nossas referências no mundo. É a única bússola interna de que dispomos. Nós somos contemporâneos na exata medida do alcance de nossa compreensão. Se quisermos superar o estranhamento e, possuir uma moradia neste mundo, mesmo ao preço de adotar como lar este nosso século, tentaremos participar do interminável diálogo com a essência do totalitarismo83. 4.3.1 Novidade totalitária O século XX presenciou o encobrimento da experiência democrática radical, em que cidadãos envolveram-se em atos e palavras em concerto, devido à função da burocratização e do crescente aumento da violência por parte do Estado, juntamente com o fenômeno totalitário, quanto à privatização do espaço público, isto é, pela transformação estrutural do espaço social das trocas econômicas de uma sociedade constituída por pessoas reduzidas à função de trabalhadores consumidores. Este fenômeno trouxe uma perda crescente de autonomia do político em relação ao econômico84. Inovação está associada à criação, que é originária da ação. Tanto para Platão, como para Aristóteles, na Filosofia tudo inicia no thaumádzein85 ou espanto. O que distingue a maioria dos homens dos filósofos não é o nada saber do pathos do espanto, mas o contrário, o não querer experimentá-lo. Essa recusa se expressa na doxadzein, na formação de opiniões a respeito de questões que a maioria não pode ter opinião, porque os padrões do senso comum aceitos, nessas questões não se aplicam. Já o filósofo permanece sempre pronto para experimentar o pathos do espanto, evitando o dogmatismo. A palavra grega árkhein engloba o começar, o conduzir, o governar, isto é, as qualidades pertinentes ao homem livre, a capacidade de começar algo novo coincide com o ser livre. Ação e liberdade estão juntas. O agir corresponde à faculdade 83 ARENDT, op. cit., p. 346. PECORARO, 2009, p. 148. 85 Thaumadzein, segundo Platão, é um pathos, algo que se sofre e, como tal, é muito diverso da doxadzein, da formação de opinião sobre alguma coisa. In: SOUKI, 2006, p. 39. 84 51 humana de começar, empreender, portanto, agir e novidade estão em uma relação estreita. Em Agostinho, o homem também é livre porque é o começo. O homem reafirma esse começo no nascimento, sendo o novo em um mundo já existente, que continuará após a sua morte. “Para Agostinho, Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade”86. Na abrangência da idéia de liberdade, a criação se encontra na própria história. Todo o agir é uma inovação que registra mudança na história, é uma criação continuada do mundo que sofre suas consequências. Para que ocorra uma ação verdadeira depende do querer humano. Ser livre e agir é uma coisa só. Os processos históricos são iniciados e constantemente são interrompidos pela mão do homem. O sentido da história é a atualização do conceito de liberdade. A criação da história coloca o homem diante de situações desconcertantes, devido à compreensão de novos acontecimentos. O mundo público é constituído pela ação política que alimenta a novidade. A criatividade da ação política é firmada pelo exercício contínuo da liberdade pública, que desenvolve as instituições. O pensamento plural é o campo da política, é o pensar no lugar e na posição do outro. A essência de toda ação, e da ação política, é de estruturar um novo começo. No entanto, a compreensão e a política estão juntas na medida em que compreender é criar significados. Para Arendt compreender o totalitarismo não é perdoar, mas uma reconciliação com o mundo. Tudo o que sabemos da tradição não basta para compreender os problemas políticos de nossa época. Sobre o vazio aberto pela crise da autoridade que é pertinente aos regimes totalitários: O totalitarismo é a novidade (a terrível novidade) política do mundo contemporâneo. Ele nos ameaça na vida prática e constitui um desafio ao 87 pensamento desarmado para compreendê-lo . Na obra Origens do totalitarismo Arendt analisa os elementos que deram forma aos governos totalitários e, entre tantos, descobriu semelhanças estruturais entre ambos os regimes. 86 87 Ibidem, p. 41. REZENDE, 2008, p. 263. 52 4.3.1.1 Os elementos do totalitarismo Os elementos ou origem do totalitarismo não são causas no sentido de causalidade histórica, eles se cristalizam em certas formas determinadas. O anti-semitismo, o imperialismo e o totalitarismo têm em comum a quebra com toda a tradição. O tema central que liga esses fenômenos é a história da desestruturação das sociedades nacionais em agregados de homens supérfluos. A onipotência, que é a concentração do poder nas mãos de um único, exclui a pluralidade. Assim como no monoteísmo é apenas a onipotência de Deus que faz com que ele seja Uno, também a onipotência de um homem tornaria os demais supérfluos. Segundo Hannah Arendt a superfluidade é aquilo em que consiste o efeito do mal radical, a eliminação de toda a imprevisibilidade, de toda a espontaneidade da ação dos outros indivíduos, quando um único detém o 88 monopólio do poder O anti-semitismo na visão de Arendt é compreendido como um problema político, relacionado a uma conjuntura histórica. Os judeus eram hostilizados devido à constante identificação com o poder estatal. O anti-semitismo político se duplica em anti-semitismo social, onde as causas são inversas, pois apareceu justamente quando os judeus, na passagem do Estado para a sociedade, adquirem a igualdade de condições com os outros grupos sociais. O judeu para não ser visto na condição de pária, diz Arendt, para ser aceito o judeu tem que se distinguir, compondo um personagem único, excêntrico ao máximo possível, e é ao preço de mil extravagâncias surpreendentes 89 que ele escapa à exclusão que atinge o grupo . O imperialismo é interpretado como a inversão dos valores que tem na economia a prioridade sobre a política. O imperialismo promove a extensão geográfica apenas em nome de uma crescente economia que engloba o modelo que acumula capital. Ele marca a emancipação política da burguesia cujos interesses privados são disfarçados em princípios políticos, desde que os investimentos têm necessidade de uma proteção do governo. 88 DÉNAMY, Sylvie Courtine. Hannah Arendt. Trad. Ludovina Figueiredo. Instituto Piaget. Lisboa. 1994. p. 129. 89 SOUKI, 2006, p. 50. 53 Os traços que caracterizam o imperialismo são as teorias racistas. As instituições burocráticas são delineadas pelo culto da distância e o gosto pelo secreto, afirma Arendt: Ela dá a seus agentes o sentimento de embriaguez de servir às forças superiores e aos vastos desígnios nos quais eles não são eles mesmos, mas apenas instrumentos tão dóceis quanto irresponsáveis. Esta “polícia infantil” que acreditava no fardo de “homem branco” realizará a idéia de 90 “massacres administrativos” . Duas teses tornaram-se polêmicas, na análise de Arendt, sobre os governos totalitários: a primeira, a de que o nazismo e o stalinismo seriam constituídos de variantes de um mesmo fenômeno e que o totalitarismo era uma forma de dominação sem precedentes históricos. A primeira tese sobre a comparação entre os dois regimes, o nazismo e o stalinismo, gerou muitas discussões ideológicas já pré-existentes. Com relação à segunda tese, Hannah Arendt considerava que o totalitarismo não poderia ser comparado a outras formas de dominação conhecidas e catalogadas pela filosofia política, como tiranias, despotismos ou ditaduras. Arendt entendeu que na pretensão de subordinar a liberdade humana e a exclusão da vida privada, social e política aos seus imperativos ideológicos, os governos totalitários não deixavam de seguir suas ações pelas leis que promulgavam, isto é, não pretendiam governar para além dos limites da lei91. Sobre as leis positivas os regimes totalitários fundavam suas leis positivas em supostas leis necessárias e absolutas, relativas ao movimento progressivo da história por 92 meio da supressão das classes sociais decadentes, no caso do stalinismo . 4.3.2 Ideologia e terror Os pilares de sustentação dos regimes totalitários são o terror e a ideologia, que se complementam. Enquanto a ilegalidade é a essência do governo tirânico, o terror é a essência do domínio totalitário. A destruição das redes de comunicação que socializam o homem ao meio sociopolítico é utilizada para promover a mobilização das massas, este é o primeiro traço da dominação totalitária. Os interesses comuns, tanto econômico, social ou político que poderiam interligar os 90 Ibidem, p. 51. PECORARO, 2009, p. 150. 92 PECORARO, loc. cit. 91 54 homens, tornando-os pertencentes a uma comunidade, não acontece, o que há é o extremo individualismo que é o princípio da massa, não como formação social, mas como sociabilidade amorfa93. A ideologia justifica e denota a necessidade e inevitabilidade do emprego da violência terrorista e de aniquilação. É também por meio do terror que são criadas e reproduzidas as condições sociais e políticas que em concordância com a ideologia totalitária, transformam os possíveis inimigos do regime em indivíduos perigosos que necessitam ser eliminados. O terror aniquila raças, classes e traidores a fim de que a história prossiga o seu curso. Diz Arendt sobre a propaganda e o terror a doutrinação, inevitavelmente aliada ao terror, cresce na razão direta da força dos movimentos ou do isolamento dos governantes totalitários que os protege da interferência externa. A propaganda é, de fato, parte integrante da “guerra psicológica”; mas o terror é mais. Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico, regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população, já 94 completamente subjugada . A propaganda é o instrumento mais importante do totalitarismo, seu objetivo não é a persuasão, mas a organização. Sua eficácia está evidenciada nas massas modernas, ao não acreditarem em nada visível, nem na realidade da sua própria existência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação que pode ser seduzida por qualquer coisa. O que convence as massas, não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema. Devido às articulações entre o terror e a ideologia, as principais instituições do governo totalitário são fábricas da morte, os campos de extermínio, onde seres humanos são reduzidos à condição de vida nua e supérflua. Segundo Arendt, ao analisar a dinâmica do funcionamento dos campos da morte, compreendeu “que a natureza do homem só é humana na medida em que dá ao homem a possibilidade de se tornar algo eminentemente não-natural, isto é, um homem”95. Depois da morte da pessoa moral e da aniquilação da pessoa jurídica, a destruição da individualidade é quase sempre bem sucedida. É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. [...] Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus 93 SOUKI, 2006, p. 54. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Hannah Arendt; tradução Roberto Raposo. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. p. 393. 95 PECORARO, 2009, p. 151. 94 55 próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de reação ao 96 ambiente e aos fatos . Os objetivos dos campos de concentração eram o esmorecimento da individualidade dos prisioneiros, com o intuito de transformá-los em massa dócil, de onde não pudesse surgir nenhuma resistência e espalhar o terror entre o restante da população, usando os próprios prisioneiros como reféns, tanto, como exemplos de intimidação do que poderia acontecer caso resolvessem resistir. Os campos tornaram-se um laboratório experimental para estudar os meios mais efetivos de concretizar o terror. As ideologias totalitárias visam não à mudança do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, o que almejam é a transformação da própria natureza humana. Arendt acredita que o totalitarismo é no fundo, o mundo invertido enquanto proclama a destruição de toda a ação, enquanto é inauguração. Monopolização do poder, isolamento de um indivíduo totalmente abarcado e privado de ação, amnésia, clandestinidade, destruição de toda faculdade de julgamento, delírio lógico, vontade de transformar a natureza humana: eis as características da inversão dos valores efetuados pelo universo totalitário onde tudo é possível e nada é 97 verdadeiro . Os horrores cometidos pelos nazistas na Segunda Guerra, disseminada através da ideologia do terror e avalizada por um regime totalitário, como nunca houve na história humana, é apresentada neste capítulo intitulado banalidade do mal. Essa denominação foi dada por Hannah Arendt quando presenciou o julgamento do nazista Eichmann e buscou compreender o porque de tanta maldade nos atos desse agente bem como nos demais. A violência dos atos gerados contra multidões de pessoas discriminadas pela ideologia de uma turba de insanos é factual. Os atos violentos impetrados pelo regime totalitário, pensados e compreendidos por Arendt, de fato, ao mesmo em que, num primeiro momento, parecem incompreensíveis, resultaram nas maiores e abjetas violências já presenciadas na história humana. Paradoxalmente, não obstante o progresso tecnológico de nosso tempo, as ‘conquistas da razão técnico-burocráticainstrumental’, temos dificuldade em entender o que aconteceu, a gênese de tudo isso e suas consequências. Nosso percurso com Arendt permite perguntar se as inúmeras violências encontradas nesse início do século XXI não se encontram vinculadas, também, com outras formas menos visíveis de totalitarismo, sustentadas 96 97 ARENDT, 1989, p. 506. SOUKI, 2006, p. 65-66. 56 por mecanismos de controle técnico-burocráticos extremamente sofisticados e quase invisíveis, justificados por crescente superficialidade das massas, pelo abandono, assim nos parece, da razão reflexiva e pela transferência de responsabilidade. Por isso, a seguir, falaremos sobre a violência. 4.4 Da banalidade do mal à banalização da violência Que a violência em muitos momentos advenha da raiva é corriqueiro, e a raiva pode realmente ser irracional ou patológica, mas vale também para outro sentimento humano. A raiva aparece apenas quando nos damos conta de que algumas coisas poderiam ser mudadas, mas não o são. Reagimos com raiva, quando nosso senso de justiça é ofendido, e recorrer à violência em face de condições ultrajantes é sempre tentador. Agir com rapidez deliberada é contrário à natureza da raiva e da violência, mas não nos torna irracionais. “A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la”98. Na obra Crises da República a questão da violência é levantada no campo da política. Muitos pensadores, segundo Arendt, não distinguem violência e poder adequadamente; uma das mais evidentes diferenças é que o poder necessita sempre de quantidade, enquanto a violência baseia-se em implementos. Para Arendt: “A forma extrema de poder é Todos contra Um e a forma extrema de violência é Um contra Todos”99. Um reflexo da atual situação das ciências políticas é a não diferenciação de palavras como poder, fortaleza, força, autoridade e violência, todas se referem a fenômenos distintos. Todas essas palavras não são mais do que meios pelos quais o homem domina o homem; são considerados sinônimos, porque têm a mesma função. Poder corresponde à capacidade humana de agir em concerto, nunca é propriedade de um único indivíduo, mas pertence a um grupo e só existe enquanto o 98 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 99. 99 ARENDT, Hannah.Crises na República.trad. José Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 2008b. p. 121. 57 grupo permanece coeso. Quando uma pessoa está no poder, ela está autorizada por um número tal de pessoas a atuar em nome delas. A palavra fortaleza designa uma entidade individual; é uma propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence a seu caráter. A fortaleza do mais forte indivíduo sempre pode ser arruinada por um grupo, que muitas vezes é formado com a única finalidade de desestruturar a fortaleza pela simples razão de invejar sua independência. A força deve ser usada para as forças da natureza, e não como sinônimo da violência como meio de coação; quanto à autoridade, é o termo mais maltratado, pode ser aplicado em pessoas, como no caso da relação pai e filho, professor e aluno. Sua garantia é o reconhecimento incondicional daqueles que devem obedecer, sem a necessidade de coação ou persuasão, portanto: “o pior inimigo da autoridade é o desrespeito, e o modo mais seguro de miná-lo é a risada”100. A obediência é exigência da autoridade ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, à autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A autoridade por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade 101 e opera mediante um processo de argumentação . A violência é por natureza instrumental, como é um meio, necessita de orientação e justificação pelos fins que persegue. E o que precisa ser justificado por alguma outra coisa não pode ser essência de coisa alguma. A violência pode ser justificada, mas nunca será legítima. Já o poder não necessita de justificação, pois é inerente à própria existência de comunidades políticas, portanto, precisa de legitimidade. O poder e legitimidade segundo Arendt: O poder brota onde quer que as pessoas se unam e atuem de comum acordo, mas obtém sua legitimidade mais do ato inicial de unir-se do que de outras ações que se possam seguir. A legitimidade quando desafiada fundamenta-se a si própria num apelo ao passado, enquanto a justificação 102 se relaciona com um fim que existe no futuro . Poder e violência são fenômenos distintos, mas quase sempre aparecem juntos. No entanto, o poder é o fator predominante. A usual identificação de violência e poder provém de considerarmos o governo como o domínio do homem sobre o homem por meio da violência. Os que combatem a violência como um mero poder descobrirão que se defrontam com artefatos humanos e não com homens, e a eficácia destrutiva e a desumanidade deles aumentam proporcionalmente 100 Ibidem, p.124. ARENDT, 2007, p. 129. 102 ARENDT, 2008, p. 129. 101 à 58 distância que separa os oponentes. Para Arendt da violência não nasce o poder e, ainda: A violência sempre pode destruir o poder; do cano de um fuzil nasce a ordem mais eficiente, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. 103 O que nunca pode nascer daí é o poder . Na política poder e violência são opostos, onde um deles domina totalmente, o outro está ausente. Jamais houve governo fundamentado exclusivamente nos meios da violência, mesmo o domínio totalitário, cujo principal instrumento de dominação é a tortura, necessita de uma base de poder, a polícia secreta e sua rede de informantes. Na dominação mais despótica que se conhece, o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre foram em maior número, os senhores não se apoiavam em meios superiores de coerção, mas em uma organização superior do poder, isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens sozinhos, sem o apoio de iguais, nunca tiveram poder suficiente para usar da violência com sucesso. A estrutura do poder precede e supera todas as metas, de tal forma que o poder, longe de ser o meio para um fim, é de fato a própria condição que capacita um grupo de pessoas a pensar e agir em termos das categorias de meios e fins. Substituir o poder pela violência pode trazer a vitória, mas o preço é muito alto, pois o pagamento se dará tanto pelo vencido como pelo vencedor, em termos de seu próprio poder. Arendt afirma: Em nenhum outro lugar fica mais evidente o fator autodestrutivo da vitória da violência sobre o poder do que no uso do terror para manter a dominação, sobre cujos estranhos sucessos e falhas eventuais sabemos 104 talvez mais do que qualquer geração anterior . A diferença decisiva entre a dominação totalitária, baseada no terror, e as tiranias e as ditaduras, firmadas pela violência, é que a primeira investe não apenas contra seus inimigos, mas também contra seus amigos e apoiadores, temendo todo o poder, mesmo o poder de seus amigos. O clímax do terror é alcançado quando o Estado policial devora suas próprias crias, quando aquele que executava torna-se a vítima de hoje. Esse é o momento em que o poder desaparece por completo105. A prática da violência, como toda a ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento. Quanto maior a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência. Em uma burocracia desenvolvida 103 Ibidem, p. 130. ARENDT, 2009, p. 72. 105 ARENDT, 2009, p. 73. 104 59 não há ninguém a quem se possa apresentar queixas, e a quem exercer as pressões do poder. Essa forma de governo priva o homem do agir: A burocracia é a forma de governo na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política, do poder de agir; pois o domínio de Ninguém não é um não-domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania 106 sem tirano . A violência e o poder são manifestações do processo vital, pertencem ao espaço político dos negócios humanos, cuja qualidade essencialmente humana é avalizada pela faculdade do homem para agir, a habilidade para começar algo novo. O agir humano, segundo Arendt, foi a habilidade humana que mais sofreu com o progresso da época moderna, devido às exigências do crescimento e o implacável poder dos administradores com seus subordinados. 106 Ibidem, p. 101. 60 5 CONCLUSÃO O caminho percorrido foi longo, mas agradável, ao lado de Hannah Arendt e de tantos outros pensadores ilustres de vários períodos no desenvolvimento da história do homem, todos contribuindo para o entendimento sobre as origens do mal e suas possíveis interferências na sociedade contemporânea. Para tanto, cumpre indicar nossas descobertas. Hannah Arendt preocupada com o mal estuda as obras dos filósofos gregos, estes refutavam firmemente a existência da vontade em vista da liberdade. Sobre a confiança no ego pensante devido a sua imparcialidade e objetividade diante de outras atividades do espírito devemos desconfiar. A Vontade livre de Aristóteles é postulada na ética. A proiaresis que é a escolha entre duas possibilidades ou a preferência entre uma ação e outra seria a precursora da Vontade. A contingência são atos voluntários, livres, portanto com possibilidade para o mal. É visível que os gregos tinham preocupação com o bem e o mal, são escolhas possíveis e que a vontade, quando da sua refutação, seria em decorrência do receio de como agir diante da liberdade. Aristóteles abre caminho para Santo Agostinho com a escolha entre duas vontades. Santo Agostinho com o livre-arbítrio e as causas do mal e Arendt concordando com a idéia da vontade como fonte de toda a ação. O livre-arbítrio diz que é possível o querer na ausência de qualquer empecilho externo. Sempre há duas vontades intimamente ligadas, o eu quero e não quero, ao agirmos a vontade deve estar presente, mesmo a contragosto, quando não agimos pode ser falta de vontade. A predominância da vontade, nada teria tanto poder quanto ela. A vontade é livre podemos deliberar entre o bem e o mal. O mal tem aversão ao Bem imutável e converte-se a um bem transitório. Sobre as duas vontades conflitantes, o querer e o poder, Agostinho não o resolve. Somente através do amor se dá a unificação, a decisão sobre a conduta do homem é através do amor. O poder do espírito não é devido ao intelecto, é a vontade que une a integridade do espírito ao mundo real. A vontade orienta os sentidos e é entendida como ponto de ação. As contribuições de Agostinho são de grande importância, visto que sua preocupação em entender a Vontade com liberdade para deliberar sobre o querer, o que nos leva a pensar sobre a responsabilidade negada do agente Eichmann. Agostinho se dá conta da 61 superficialidade humana, da habilidade com que o homem decide de que modo deve agir. Kant e a tese do mal radical em que o homem é visto como egoísta. A vontade livre de Kant é aquela submetida à lei moral, a escolha do homem depende da sua vontade. O homem tem realizada sua essência quando obedece à lei moral. Como ser sensível, é livre para escolher e agir. O conflito entre o bem e o mal moral em um contexto de liberdade construído em uma livre determinação da razão. O mal inicia no ato de abandonar a liberdade. São três os níveis que o mal pode se comportar: na fragilidade do indivíduo, na impureza do coração contaminado pela vontade e na maldade, na corrupção, ou ainda, na perversidade do coração. As contribuições são imensas para o esclarecimento do objeto que estamos investigado. Kant desvenda a subjetividade humana, ao demonstrar seu conhecimento sobre as fraquezas, isto é, o quanto o homem é suscetível à vontade e necessita ser contido, precisando de uma lei para controlá-lo. A liberdade de escolha depende da lei, perde quem não segue a reta razão. Na inserção na comunidade política vemos a importância da ação como resposta humana, e a pluralidade como condição a toda vida política. Da necessidade da pluralidade para agir em concerto. O nascimento humano como início, como possibilidade de algo novo no mundo, enquanto agente político. A descoberta de Sócrates a má-consciência, que é a lei da não contradição onde a ação que não é comandada de fora de si, mas são os pensamentos que governam a ação. A sociedade humana jamais triunfa dos instintos da violência. A liberdade e o corpo político baseiam-se na experiência de igualdade ou da distinçã. nos dois casos viver e agir juntos aparece como única possibilidade. O medo está ligado à falta de poder que incapacita o agir, trazendo a impotência ou o desejo incapacitante de agir. Neste capítulo novamente as contribuições foram muito boas. A valorização da pluralidade humana, no agir, fortalece o poder. O nascimento como um recomeço, isto é, um novo agente político. Sócrates é a racionalidade, de fora de si, ninguém comanda os pensamentos, novamente reforçando a liberdade. Sobre o medo estar ligado às ideologias totalitárias, que ao incutir o terror desautoriza o indivíduo. O abandono da tradição e a mudança na subjetividade humana, influenciando os modos de ver na sociedade contemporânea. A crise de autoridade como falta de poder e a modificação dos costumes, isto é, no ser ético. 62 Do Mal Radical à Banalidade do Mal o último capítulo deste estudo, entramos em contato com as dificuldades do homem de refletir sobre os seus atos. A violência com seus mecanismos de coerção, velada na sociedade e explícita durante o regime totalitário. Quanto ao problema do mal radical Kantiano a referência para pensá-lo é a dignidade humana. Kant ao afirmar que o mal é próprio da natureza humana, acredita que é necessário conhecer não somente os atos humanos, ou as máximas, mas a decisão inteligível que os adota. Em Kant o mal moral não está no ato, mas no agente, isto é, na intenção. Já nos regimes totalitários o mal radical, transcende a definição kantiana, pois é um novo agir humano. Hannah Arendt pensa que o núcleo do significado do mal radical está relacionado ao fenômeno da superfluidade do homem enquanto homem ou quando o homem deixa de ser um fim em si mesmo, quando ele deixa de ter a primazia sobre tudo mais, tornando-se um meio, um instrumento. O homem contemporâneo tem obstruída a faculdade de pensar, refletir sobre os seus atos, assim como, a falta de dignidade que Hannah Arendt relaciona ao nazista Eichmann, podemos estender a sociedade em geral como conseqüência da vida moderna massificada e desenraizada, onde a vida humana é desvalorizada perdendo significado, tornando-se banal. A expressão banalidade do mal está relacionada ao agir arbitrário, a falta de profundidade e a ausência de enraizamento das razões e intenções do agente, assim como, a falta de responsabilidade. Existe um vazio aberto de responsabilidade na sociedade, evidenciada pelo extremo individualismo, pelo enfraquecimento do senso comum que desarticula a pluralidade entre os homens. Na atualidade em decorrências das várias crises pertinentes ao momento humano, há uma desestruturação da tradição e a valorização do novo. Devido a essas faltas, o homem se descobre sozinho, busca os demais homens e não os encontra, o mundo tecnológico induz a solidão. A burocratização da vida atrai a violência, e essa prática desestrutura o mundo, para um ambiente mais violento. A violência é um agir em decorrência das faltas tão evidentes nos dias de hoje. Esse estudo viabilizou o entendimento do objeto deste estudo a partir das considerações da filósofa Hannah Arendt buscando as origens do mal a partir dos pensadores gregos, retornando a Agostinho, a Kant e Marx e outros. O estudo de Arendt sobre os regimes totalitários e a banalização do mal, objetivado nas ações destes indivíduos, podemos considerar, que foram importantes para concluir que às 63 mudanças assistidas na sociedade atual e na nova configuração do homem tem a ver com o passado recente. A crescente violência do homem contra o seu semelhante denota o seu individualismo, o outro visto como um meio, um instrumento, a coisificação do humano. A pergunta que faço para uma abordagem futura é: Se o homem com a quebra da tradição, e seguindo reiteradamente as novidades do seu tempo, conseguirá manter a pluralidade necessária a sobrevivência do humano? Considero de grande importância o estudo em questão e tê-lo feito juntamente com uma filósofa como Hannah Arendt, merecedora do meu respeito. 64 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. ARENDT, Hannah. A promessa da política. 3. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios) 19301954. São Paulo: Cia das Letras:Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ARENDT, Hannah. Crises na República. São Paulo. Perspectiva, 2008. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ARENDT, Hannah. 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