Nota prévia sobre direitos de autor: O presente documento é uma versão PDF disponibilizada no endereço http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/ do documento publicado segundo a referência abaixo indicada. Este documento pode ser acedido, descarregado e impresso, desde que para uso não comercial e mantendo a referência da sua origem. NUNES, Ana Margarida Belém - "A (re)utilização da prefixação em Mia Couto", RUA-L (Revista de Letras da Universidade de Aveiro), nº 19-20, 2002-2003, pp. 85-98. 1 A (re)utilização da Prefixação em Mia Couto Ana Margarida Belém Nunes Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro 1. Introdução Este trabalho resulta de um estudo mais aprofundado da semântica e morfologia da linguagem Mia Coutiana. Engloba a análise da (re)criação e “brincriação” vocabular, operadas pelo escritor Moçambicano, fazendo um levantamento e descrição dos diversos processos de formação de palavras: Composição e Derivação e, referindo de forma mais específica e detalhada, por não ser recorrente no Português, mas assumir grande vitalidade nas obras de Mia Couto, o processo de Amálgama. No trabalho agora apresentado analisamos a inovação lexical dentro da própria Língua Portuguesa, realizada por Mia Couto, sem que sejam postas em causa quaisquer regras ou normas do processo de formação de palavras. Este estudo centrou-se, por uma questão de delimitação do corpus, na análise dos prefixos das obras que foram publicadas entre 1997 e 2001 (Mar me Quer; Vinte e Zinco; O Último Voo do Flamingo e Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos). Constatou-se que Mia Couto demonstra ser um profundo conhecedor da Língua Portuguesa e, vivendo em Moçambique, aproveita-se dessa cultura tradicionalmente oral, sendo-lhe fiel, mesmo no seu processo de escrita. Pretende-se fazer um estudo sobre a novidade e surpresa que Mia nos lega nas suas obras, na forma como submete a Língua Portuguesa à sua criatividade particular. Seja ela designada como criação, recriação ou mesmo “brincriação”, como prefere chamar-lhe Fernanda Cavacas1 o certo é que cativa, chama a atenção do leitor e vem demonstrar versatilidades e funcionalidades da Língua que, muitas vezes, desconhecemos. Mia Couto emprega palavras “diferentes” com grande facilidade e originalidade e embora ela não nos sejam totalmente estranhas, não as aplicamos da mesma forma nem com a mesma construção. O estranhamento que as palavras possam criar de início, não impede a exacta interpretação do texto, pelo contrário, nota-se desde logo uma condensação de sentidos. Os aspectos que analisamos neste trabalho dizem respeito a um estudo morfo-sintáctico da língua. Como enquadramento teórico, preferencial, de pesquisa utiliza-se o modelo de morfologia tal como tem sido aplicado ao português por Graça Rio Torto e Margarita Correia2. Cavacas, Fernanda, Mia Couto: Brincriação Vocabular, editora Mar além, Setembro de 1999. Cf. Rio-Torto, Graça, Formação de palavras em português. Aspectos da construção de avaliativos, tese de Douturamento, Coimbra, 1993; Rio-Torto, Graça, Morfologia Dervacional. Teoria e Aplicação ao Português, Porto Editora: Porto, 1998; e Correia, Margarita, “Conversão em Português, com particular incidência na construção de 1 2 2 2. Processo de Formação de palavras: A Prefixação Como formação de palavras entende-se o conjunto de processos morfo-sintácticos que permitem a criação de palavras novas com base em morfemas lexicais que lhes pré-existem, permitindo assim uma maior versatilidade da Língua. Os afixos não têm por si só um significado, não formam uma palavra. Assim são associáveis a uma base, podendo ocorrer apenas prefixação, ou sufixação, ou ambas em simultâneo (parassíntese). Ao iniciar uma análise mais pormenorizada das inovações e transformações vocabulares levadas a cabo por Mia Couto de Mar me quer a Na Berma de Nenhuma Estrada, foi-nos possível detectar a existência de palavras que se repetiam, tanto ao longo de uma mesma obra, como entre obras distintas, com diferentes anos de edição. Isto faz-nos supor que o autor cria um dicionário próprio e pessoal, uma vez que se percebe o uso de palavras cognatas (partindo de uma brincriação Mia Coutiana). Como referimos, analisamos aqui apenas a Derivação por Prefixação, processo activo e fecundo na formação de palavras, embora possamos encontrar todos os outros incluindo vários fenómenos fonéticos de adição e elisão. É certo que com um simples prefixo se consegue modificar a ideia expressa pelo elemento primitivo, permitindo que lhe seja acrescentado um sentido de negação, privação, inversão ou mesmo de reforço. Das partículas (prefixos) umas “podem existir sós, outras apenas se empregam na composição: estão no primeiro caso as seguintes: a-, contra-, de, em-, entre-, sobre- e sob-; pertencem à segunda classe: ante-, des-, ex-, pre-, inter-, post-.”3 2.1. Análise do corpus São abundantes, nos textos de Mia Couto que nos serviram de análise, as inovações lexicais constituídas por prefixação, quer adicionando um prefixo a uma palavra da língua, quer operando a troca do prefixo usual por um outro, ainda que com o mesmo significado. Encontrámos, nas obras aqui estudadas, 8 exemplos de prefixos diferentes, sendo que uns apresentam maior incidência e produtividade que outros, conforme se pode verificar no gráfico da figura 1, (na página seguinte). Percebemos que o prefixo des-, que indica separação ou acção contrária à indicada pela palavra que serve de raíz, é o que apresenta maior utilização, num total de 72 palavras. Segue-se-lhe o prefixo im-/in-, que pode indicar movimento para dentro, privação ou negação, com 26 exemplos. No pólo oposto, dado que a sua presença é muito ténue, encontram-se os prefixos entre-, (prefixo de origem latina que indica uma posição intermediária) com apenas 1 substantivo; trans- (que indica posição, movimento para além de) e o prefixo ir- (indiciando, também ele, a ideia de privação ou substantivos deadjectivais”, Encontro Comemorativo dos 25 anos do Centro de Linguística da Universidade do Porto, II volume, Porto: CLUP, 2002, pp. 19-29. 3 Nunes, José Joaquim, Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa, Fonética e Morfologia, Livraria Clássica Editora, 8ª edição, 1975, p.388-398. 3 negação). Com três ocorrências cada um. Neste patamar consideramos os 4 casos do prefixo ante(sentido de anterioridade). Num nível intermédio, encontram-se o re- (com a ideia de repetição) com 10 exemplos e es- com 5 (movimento para fora). 80 70 Ocorrências 60 50 40 30 20 10 0 ante- des- entre- es- im- / in- ir- re- trans- Figura 1. – Total de ocorrências (em número) dos 8 prefixos analisados. Dada toda esta variedade e até discrepância na utilização dos prefixos, num total de 124 vocábulos prefixados, torna-se também pertinente saber quais as classes gramaticais de palavras produzidas que encontram maior recursividade. Na realidade, os verbos são os que se encontram mais “brincriados”, atingindo os 45.2%, seguindo-se os substantivos com 29% e, com 25.8% os adjectivos. Demonstramos estes dados no gráfico da figura 2: 50 Frequência relativa 40 30 20 10 0 verbos substantivos adjectivos Figura 2 - Percentagem de ocorrências de verbos, substantivos e adjectivos no processo de formação de palavras por prefixação. 4 Antepondo apenas uma partícula a uma palavra de base consegue-se transmitir uma outra ideia, prevalecendo aqui o processo de economia linguística. O autor acrescenta um prefixo a uma palavra, evitando construções frásicas mais complexas, o vocábulo basta-se a si mesmo. É o que acontece com o uso de prefixos de negação. 1) Insonolência. In- + sonolência. Repare-se na forma como facilmente o autor consegue especificar uma noite não dormida, uma noite em que não ouve sonolência. De acordo com o contexto permitimo-nos afirmar que este substantivo é formado por prefixação e não por amálgama, como seria possível de acontecer (havendo insónia apesar da sonolência). Parece-nos também, por outro lado, que a palavra pretende precisamente assumir-se como sinónimo de insónia. 2) Inutensílio: in- + utensílio. Esta palavra é usada três vezes, em obras distintas. Descreve-se de forma breve e clara que alguém, ou algum objecto, se tornou inútil, sem uso necessário. Pode parecer, mais uma vez, que estamos perante um processo de formação de palavras por amálgama. No entanto, não é isso que acontece. A possível confusão vem da forma que o vocábulo adquire ao ser prefixado por in- + utensílio. 3) Desressuscitado: des- + ressuscitado. Ressuscitar indica voltar à vida, pelo que de forma eufemística, desressuscitar é precisamente o oposto, morrer. 4) Desconsigo: des- + consigo. O autor utiliza simplesmente um verbo para expressar o não conseguir fazer alguma coisa. Além dos prefixos de negação, também os que indicam repetição (prefixo re-) são, do mesmo modo, produtivos e visam uma economia de palavras. Chega-se mesmo, em diferentes obras, a encontrar um verbo “brincriado” conjugado em diferentes modos: redesenhando e redesenhara. Apresentamos ainda outros exemplos, compreensíveis: 1) Rerodou, em vez de rodou outra vez; 2) Repincelava, no lugar de pincelava novamente; 3) Retorturado, mostrando que houve uma segunda tortura. Os vocábulos prefixados com a partícula trans- assumem um outro significado, pela maneira como estão enquadrados e contextualizados. Apesar de serem apenas três, merecem referência e análise pela forma diferente como são usados e valor que adquirem: 1) transfronteiriças; 2) transmexido; 3) transfeita. No primeiro exemplo, nada parece vir alterar o sentido que comummente damos à partícula referida. Assim, transfronteiriças, serão zonas que ficam para além da fronteira, portanto, noutro território. Verificamos que, quando devidamente contextualizado, é esse o significado pretendido. 5 No segundo caso, a palavra formada pelo prefixo trans- e o verbo mexer (trans- + mexido transmexido) e sempre de acordo com a frase em que estão inseridas as palavras, contém uma ideia hiperbólica. De facto, há um exagero pretendido por parte do personagem que fala, para encontrar uma justificação. “ Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher.” Transmexido, poderia ser uma analogia a transfusão, no entanto, pelo enredo da história, percebemos que houve uma mistura de sangues, mas sem transfusão, entre mãe e filha. Trans- assume uma função idêntica à de re-, pretende reforçar, quase que fazer imaginar um parto que foi tão doloroso que custou a morte da mãe. O terceiro e último caso apontado, oferece-nos uma leitura mais clara. De acordo com a frase em que é utilizada (confrontar corpus em anexo) transfeita lembra, por analogia, o adjectivo transformada, sendo que o significado é esse mesmo, a alteração e mudança. Podemos dizer que temos aqui não uma troca de prefixo ou de sufixo, mas de palavras. Utilizando o mesmo processo de formação, mas apenas alterando o verbo, se consegue trazer para o léxico um sinónimo de um vocábulo que é recorrente: trans- + formar transfomar; trans + fazer transfazer. Num processo de enriquecimento do léxico, numa busca de maior criação vocabular, esta forma de trocar elementos sejam eles afixos ou palavras com significado próprio (são exemplos paradigmáticos as Amálgamas), torna-se bastante produtiva, evitando as repetições e facilitando o eufemismo e a metáfora. Para demonstrar, exemplificando, que este processo de trocas de elementos é produtivo e recorrente, podemos referir, vários casos4: 1) A criação do verbo inacreditar que é utilizado duas vezes no pretérito perfeito: inacreditei e inacreditou em lugares distintos de uma mesma obra, cite-se O Último Voo do Flamingo. Neste caso, o escritor substituiu o habitual prefixo des-5, usado com o verbo acreditar, daí que tenhamos no Português o verbo desacreditar. Ambos implicam a negação do acreditar, embora exista uma ligeira diferença no sentido. O verbo desacreditar poderá significar que se deixa de confiar em alguém. 2) O mesmo processo pode ser verificado no adjectivo inavergonhadas, que significa o mesmo que desavergonhadas. 3) Descompleto, em que ocorre precisamente o mesmo processo de substituição de um prefixo por outro, mas desta vez de forma inversa, ou seja, o vocábulo por nós utilizado, completo, que normalmente fazemos preceder do prefixo in- (incompleto) é, sem que se alterem as regras dos processos de formação de palavras, precedida pelo prefixo des-. 4 Salientamos que esta alteração de elementos não ocorre apenas na formação de palavras por prefixação, mas também é possível verificá-la na sufixação. 5 Des- é um prefixo sem existência própria na Língua, não é aplicado de forma isolada. (...) o prefixo grego –an, que indica “privação”, assume a forma a- antes de consoante: apatia; in-, o seu correspondente latino (...). Cunha, Celso, Cintra, Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1991, pp.86. 6 Saliente-se o facto de que as transformações referidas ocorrem em exemplos em que ambos os prefixos implicam um sentido de negação na Língua Portuguesa. A troca de des- por in- ou viceversa, altera no mesmo sentido o radical ao qual são aplicados, ou seja, dizer, conforme faz o escritor, inautorizados, ou desautorizados, será semanticamente o mesmo, ou criam-se pequenas nuances de sentido, inautorizados (a quem não foi dada a autorização), desautorizados (a quem foi retirada a autoridade). A criação de novos vocábulos pela troca dos prefixos em palavras a que normalmente aplicamos outros não ocorre apenas com os que indicam negação. A palavra torna-se assim, aos olhos do leitor, mais estranha logo mais surpreendente. 1) Desbandeirara, é um verbo que empregamos com o prefixo em- = embandeira (por exemplo na expressão embandeirar em arco, indicando contentamento). A palavra deriva de bandeirar e, neste caso, é empregue com um sentido metafórico: “Era um português que se desbandeirara por rumos e fumos.”, portanto implica aventurar-se por caminhos desconhecidos. No entanto, refere-se no Dicionário de Língua Portuguesa que bandeirar pode também ser uma “expedição armada que antigamente ía explorar os sertões do Brasil”. Pode-se aqui encontar uma analogia com esta ideia, de partir para exploração, partir para o desconhecido, como já haviamos explicado. 2) Despalavrada, pela sua formação des- + palavrada, entendemos que indicará estar sem palavras, não ter palavras. Parece-nos que esta afirmação é corroborada quando analisamos a palavra em contexto de ocorrência “ Responde sempre assim, despalavrada, subterfugidia.” Neste caso, a troca de prefixos implicou uma concumitante alteração de significado, uma vez que o adjectivo apalavrada por nós usado, indica ficar com um negócio, uma combinação praticamente certa. 3) Sem que haja qualquer mudança em termos de significação, mas apenas uma troca de partículas encontramos o substantivo reconchego empregue como um sinónimo claro de aconchego, mas implicando uma maior força na expressão e ideia de afago e refúgio (dado que o prefixo reindica repetição, por isso reforço): “Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho.” 4) Descaminha, a palavra assume um significado que só é devidamente entendido quando em contexto. Embora lembrando o verbo derivado por prefixação encaminhar, o sentido em nada se lhe assemelha, aliás podemos considerá-los antónimos. Descaminha indicará andar sem sentido, logo o oposto do vocábulo por nós empregue. Este antagonismo entre as duas palavras que têm a mesma base de formação, o verbo caminhar, percebe-se pelo valor que tem cada um dos prefixos: des-, indicando acção contrária à palavra que lhe serve de raíz, e em- que indicia posição interior. 7 Convém ainda referir que encontramos no léxico português o verbo desencaminhar6, mas este implica a noção de levar para outro caminho. Na formação deste verbo partiu-se da forma já prefixada encaminhar, e acrescentou-se-lhe um outro prefixo que lhe veio alterar o sentido. Em outros casos a partícula a- em início de palavra parece ser confundida com um prefixo e é, também, substituída. É o que acontece no caso específico de reconchego. Esta criação vem reforçar a ideia do substantivo que lhe serve de raíz aconchego. No entanto, o a- inicial de aconchego não é um afixo, pois não existe no léxico do português a palavra conchego. Logo, formando reconchego, a ideia será a mesma da que é transmitida pela palavra de base, embora o sentido, que lhe está intrinsecamente ligado, nos pareça reforçado, será como dizer “reaconchego”. São variados os resultados que nos oferecem as palavras derivadas por prefixação. Por um lado, como já vimos, a troca de prefixos, quando do mesmo valor (des- por in- e vice-versa), não oferece mudança de sentido. O mesmo já não acontece quando se mudam os prefixos que, por si sós, têm sentidos diferentes (des- e em-, por exemplo) o que vai transformar a informação veiculada pelo vocábulo. Muitas das vezes, a colocação de um prefixo de negação ou separação e afastamento, em palavras que já estão prefixadas, vem contrariar o sentido atribuído pela primeira partícula. São disso exemplo os seguintes casos: 1) Enfeitice + des- Desenfeitice. Neste caso, partindo da raíz que é o substantivo feitiço, formamos o verbo enfeitiçar. Por sua vez, Mia (re)forma o verbo e inova com desenfeitiçar (tirar um feitiço). 2) Podemos ainda referir o caso de desencarteira que nos parece uma analogia a desembolsar, sendo empregue exactamente com o mesmo sentido. No entanto, se fizermos uma interpretação analisando cada um dos constituintes, poderemos dizer que na “brincriação” de Mia Couto trata-se de tirar dinheiro da carteira (“O português desencarteira umas tantas quantias.”) e no verbo por nós utilizado a acção dirá respeito a tirar do bolso. Também por analogia, em termos de significação, encontramos irrazoável, criando uma nova forma para expressar a irracionalidade das acções, por exemplo. O vocábulo que serve de radical razão, é utilizado, normalmente, de acordo com a sua evolução erudita, do latim ratio-, daí racionalidade, partindo daqui é prefixado. No exemplo de irrazoável a derivação parte da forma popular. Com o novo vocábulo pode-se substituir toda a expressão “não ser razoável”. Na frase em que é empregue encontra-se até um certo jogo de ideias ou trocadilho, quase um oxímoro, irrazoável quererá significar “uma razão sem razão”: “... inventando uma irrazoável razão”. Explicando este processo de formação citamos José Joaquim Nunes in Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa, Livraria Clássica Editora, Porto, 1975, que diz o seguinte: “Também por vezes acontece, a exemplo do latim, adicionar-se a um vocábulo já composto outro prefixo que lhe altera o sentido, afastando-o ainda da primeira significação, ou não lhe imprime modificação alguma, servindo, quando muito, para reforçar a ideia do radical.”, pp.393. 6 8 Nesta análise de palavras derivadas por prefixação verificamos que a produção de verbos é a mais recorrente. Encontramos um total de 58 verbos, distribuidos do seguinte modo: ante- com apenas 2; des- com o número mais elevado 27; es- com um total de 5 verbos; O prefixo de negação im-/in- apresenta 10 exemplos; ir-, por sua vez, encontra-se na formação de apenas 2 verbos; retem 8 ocorrências, por último, o prefixo trans- com apenas 2 verbos. Encontramos quase metade do número de substantivos, sendo que, não apresentam qualquer formação de substantivos os prefixos es-, ir- e trans-. Assim, um total de 36 substantivos estão divididos em: 2 com o prefixo ante-; 22 para des-; apenas 1 substantivo é prefixado pela partícula entre-; 10 com im- ou in- no seu início e 1 com re-. Os adjectivos são 33 e agrupam-se por quase todos os prefixos analisados, à excepção de ante- e entre-. Com 21 adjectivos encontramos o prefixo des-; com 1 exemplo apenas as partículas es-, ir-, re- e trans-. Por fim, com 8 casos o prefixo im-/in-. Não se registaram ocorrências de advérbios formados por prefixação. Podem-se verificar estes dados no gráfico da figura 3, seguidamente apresentado. 30 verbos substantivos Ocorrências 25 adjectivos 20 15 10 5 0 ante- des- entre- es- im- / in- ir- re- trans- Figura 3 – Ocorrências (em número) de verbos, substantivos e adjectivos por prefixo. 3. Conclusão Com este estudo verifica-se que a inovação lexical produzida por Mia Couto, nas suas obras, não vem alterar as normas e regras de funcionamento da Língua. Por outro lado, recria, faz nascer palavras e significados que vêm provar que a Língua Portuguesa está em constante alteração e evolução, uma vez que, ao serem criados novos vocábulos, demonstra-se que a Língua possui uma diversidade inúmera de combinações não exploradas e que, a algumas delas, não estamos ainda sensíveis A Língua é um sistema infinito, daí que possa apresentar todas as oportunidades de reinvenção, recrição e combinação, facilitando o alargamento do léxico. 9 Verificamos que neste processo de formação de palavras podem existir várias formas de criação: a) Palavras que usualmente não prefixamos: Mia Couto utiliza um prefixo como em Refaleceu ou Desressuscitado. b)Prefixar uma palavra que já é prefixada: por exemplo, formamos, a partir do substantivo comum feitiço o verbo enfeitiçar, Mia constrói o seu contrário e surge o verbo desenfeitiçar. c) A elisão de um prefixo onde, habitualmente empregamos dois: descaminhar no lugar de desencaminhar. d) A troca de prefixos, permanecendo a palavra com o mesmo sentido, como em inavergonhada, em que o prefixo in- substitui o des- de desavergonhada. Conclui-se ainda que, com este processo, é possível evitar construções negativas quando, na verdade, em apenas uma palavra, a negação está implícita na frase. Neste estudo falamos de inovação, criação de palavras uma vez que todo o trabalho na Língua se realiza com base em palavras que já existem, há um sistema linguístico que é conhecido e respeitado pelo Autor/Escritor nas suas “brincriações”: o Sistema Linguístico Português. Não falamos de neologismos uma vez que as palavras não são criadas para preencher vazios lexicais mas antes para conferir ao texto maior expressividade, emprestando à leitura um carácter lúdico. Salientamos que realizámos apenas uma análise das demarcações que se notam, em cada um dos vocábulos que constituem o corpus de estudo, face ao sistema linguístico do Português sem fazer o contraste com o Português de Moçambique. 10 Anexos M. - Mar me Quer; VZ - Vinte e Zinco; U.V.F. - O Último Voo do Flamingo; N.B.N.E. - Na Berma de Nenhuma Estrada. “Ou antecumpria seu próprio luto?” VZ.p.123 “... mas tão cedo? - perguntou O antenascido.” VZ.p.35 “Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos...” N.B.N.E. p.16 “E Mulando riu-se, cabeça tombada para trás, repetindo com antesabidas “intenções. “Fiquei, linha desabençoada pingando triste nas águas cinzentas.” “Sempre distante, desacontecida.” "... mensageiro me dizer que o meu antigo amor se tinha desacontecido, ...” “Igual e igualmente, o desacontecimento do 25 de Abril, ...” N.B.N.E. p.90 M.p.43 N.B.N.E. p.48 N.B.N.E. p.112 VZ.p.105 “O que era preciso era avisar meu pai desse desacontecimento.” U.V.F.p.51 “- Mas depois veio esse desacontecimento!- Qual desacontecimento, padre?” U.V.F.p.200 “Era uma visão de desacrer, nem de humana forma se semelhava.” U.V.F.p.107 “Quem sabe o cais me desanublasse?” M.p.43 “... olhando o concho alternando-se com o mar, visão e desaparência.” M.p.27 “Que vergonha, uma branca proceder daqula maneira, desapossuída de juízo.” VZ.p.18 “De um cego se espera o desaspecto, cabelos baldios, desmazelo.” VZ.p.128 “... gloriosas forças armadas, ali representadas por botas e desatacadores.” U.V.F.p.173 “Mas eu, desatrevido, nem mexia nem bulia.” M.p.43 “Era um português que se desbandeirara por rumos e fumos.” VZ.p.44 “- Senhor Deus, eu venho aqui me desbaptizar.” “Desbichanara-se defronte da janela, rumo aos céus.” “Vou perdendo a noção de mim, vou desbrilhando.” “ Se ergue e descaminha, evoluindo de nada para nenhures.” “O homem descanalizou? Mas ele lagrimoso, se dirige a ela ...” “Media-lhe as alturas, descomparando-a.” VZ.p.79 N.B.N.E. p.145. N.B.N.E. p.111 VZ.p.115 N.B.N.E. p.83 “- Ah, esse. É verdade, sim. Eu insulto-O quando ele se descomporta.” U.V.F.p.30 N.B.N.E. p.173 U.V.F.p.128 “Minha mãe chorava enquanto dormia na solidão do leito desconjugal.” U.V.F.p.48 “- Até que lhe desapareceram os pés, por descompleto.” 11 “Quanto mais esforço, mais desconseguia.” U.V.F.p.106 “Temporina ainda tentou evitar-lhe o gesto, mas desconseguiu.” U.V.F.p.63 “Mas eu desconsigo, nem tempo tenho para as prioridades.” “Para os outros, aquilo era um desgaste de tempo, desconversação.” “Luarmina se entranhou na sua pequena mania, como se descosturasse ...” “E era como se ela se tivesse antepassado, descriatura.” U.V.F.p.78 N.B.N.E. p.170 M.p.16 N.B.N.E. p.25 “... torce-lhe o cotovelo como uma desdobradiça.” VZ.p.86 “O português desencarteira umas tantas quantias.” N.B.N.E. p.58 “- Por favor, desenfeitice Teporina!” “Mas o facto é que Jerónimo se desengendrou.” “Ele parecia tonto, desequilibrista.” “E desfalavam.” “... o inspector Lourenço, abandonado como um desfarrapo no meio da lama.” “O italiano estava um desfarrapo. Cabelos baldios, em desmazelo.” U.V.F.p.203 N.B.N.E. p.101 N.B.N.E. p.181 U.V.F.p.18 VZ.p.117 U.V.F.p.42 “Era uma moça muito cheia de corpo, mas bem chanfrada da cabeça, diria mesmo transtorneada. No início nem dei conta de sua desviação. Henriquinha M.p.50 parecia toda compostinha, sem desfeição seja em corpo seja em espírito.” “Até eu fiquei assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito.” “A confissão lhe desfolegou as entranhas, cansando-o até ao limite.” M.p.12 “Contra esses desgovernantes se tinha experimentado o inatentável:” VZ.p.115 N.B.N.E. p.171 U.V.F.p.220 “Temporina conduziu-nos ao longo de uma viela desiluminada.” U.V.F.p.64 “- A vida, meu filho, é uma desilusionista.” U.V.F.p.49 “Ela se desgotejou, eu me gostejei.” “Os dedos de Nurima desinventavam dias, em desconto de saudades.” “Ainda por cima era todo deformável, tão gelatinhoso ...” “No mesmo tempo, tive que atender também o desjuízo de minha mãe.” N.B.N.E. p.85 U.V.F.p.220 M.p.30 “- Duvidam? Sou puta legítima. Não uma desmeretriz, dessas.” U.V.F.p.31 “…e virando-se para mim acrescentou com desmodos.” U.V.F.p.108 “Aquilo é um desnegócio para ela.” U.V.F.p.158 “O coração dele se enregelou, ave desninhada.” VZ.p.40 “A respiração desofega, os olhos estão suspensos no infinito do tecto.” VZ.p.20 “... pelos muros das vizinhanças como se estudasse modos de os desolhar.” M.p.42 “Desolhuda, lhe segurou pelas mangas do casaco e puxou-o ...” VZ.p.94 12 “O português não se refaz do susto, desolhudo perante a transmudança.” VZ.p.110 “... agora que categoria lhe competia? Inspector, a título desonorífico?” VZ.p.105 “Responde sempre assim, despalavrada, subterfugidia.” “Os olhos de Irene se inflamam. Aos poucos seu rosto se lhe despertence.” N.B.N.E. p.48 VZ.p.30 “Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente.” “…despoeirados no meio das Áfricas, que é como quem diz, no meio de nada?” N.B.N.E. p.22 U.V.F.p.32 “Ela despondera, sacode a cabeça, encolhe os ombros.” N.B.N.E. p.87 “E refaleceu. Desressuscitado.” N.B.N.E. p.79 “De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento...” N.B.N.E. p.13 “.. máquinas fotográficas de encontro às barrigas, não fosse o diabo destecê-las.” “... esses pequenos desvalores com histórias que retirava de sua fantasia.” “Na desvastidão, mesmo a areia cheirava, fosse do calor ferver as pedras.” “O cego reza para que tudo aquilo não seja mais que desvisão.” “Eu lhe perguntava isso só para fazer conta que não notara que ela já desvivia.” U.V.F.p.28 N.B.N.E. p.170 VZ.p.60 VZ.p.136 U.V.F.p.51 “... o pano que se desenrola em infinitas desvoltas.” N.B.N.E. p.50 “... tear de entrexistências a que chamamos ternura.” U.V.F.p.114 “Só quando eu danço me liberto do tempo - esvoam as memórias,...” M.p.14 “... ela se desfez em cinza, poeirinha esvoando na brisa.” M.p.15 “... os céus com as mais luzentes nuvens que jamais por ali esvoaram.” N.B.N.E. p.28 “Esvoava pelos ares. Sulplício, perguntou quase inaudível, parecia que a voz também se lhe invertebrara.” U.V.F.p.222 “Que o viajante desaparece é em areia imovediça.” N.B.N.E. p.176 U.V.F.p.181 “Esses mortos dormiram no relento, impurificaram a noite.” “Não seria coisa por de mais inacontecível?” VZ.p.39 “Para meu espanto, anunciou que meu pai chegara à vila. Primeiro inacreditei.” U.V.F.p.43 “Chamámos o italiano que se inacreditou: o país inteiro desaparecera?” U.V.F.p.219 “O gato é testemunha daquele inartefacto,...” N.B.N.E. p.47 “Contra esses desgovernantes se tinha experimentado o inatentável:” U.V.F.p.220 “Importava, sim, o que o lugar ia fazer aos inautorizados visitantes.” U.V.F.p.65 “E se ele escorregar com alguma dessas inavergonhadas?” N.B.N.E. p.87 “Durante a viagem de barco ela se inconsolava...” N.B.N.E. p.22 “No escuro, indistinguiu o próprio nariz.” N.B.N.E. p.58 13 “…no mato, lá bem nas profundezas onde só circulam bichos indomesticados.” “Eu já havia assistido, certa vez, àquele espetáculo. E era de inesquecer.” “Mas assim, inesquelético e sem moldura interior, ...” U.V.F.p.127 N.B.N.E. p.52 U.V.F.p.216 “Primeiro, foi a memória que tombou em abismo, inexistindo.” M.p.68 “... arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir.” M.p.12 “Se ele ficara inexplodível era porque beneficiara de uma bondosa protecção.” “Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses.” U.V.F.p.180 N.B.N.E. p.29 “Ainda por cima um injusticeiro, autêntico junta-brasas.” VZ.p.74 “O garagista ficava ali, faceando a rua, farejando as inocorrências.” VZ.p.49 “Naquela noite, o português se revirou em insonolência.” “Ainda hoje me custa lembrar quanto eu me insujeitava a tais vexames.” N.B.N.E. p.56 “Confirmando esse atestado de inutensílio, ela esfregava os joelhos ...” M.p.52 N.B.N.E. p.139 M.p.12 “A arma esquecida, ao lado, tornada em inutensílio.” VZ.p.110 “Olha-a vazio, como se contempla um inutensílio.” VZ.p.129 “A viúva se decidira suicidar, insuportando o peso da saudade.” …que essa Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades...” “... ela ajudava a aplacar o tempo, inventando uma irrazoável razão.” “Ficou, assim, irreactivo, durante um tempo.” “... A bengala se irrealiza em presságio, assunto de sobrenaturezas.” U.V.F.p.29 N.B.N.E. p.156 VZ.p.90 VZ.p.87 “Monosilencioso, em cerimónia e protocolo.” N.B.N.E. p.95 “Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego.” N.B.N.E. p.30 “Os dedos voltam a tactear a pele, redesenhando as tatuagens...” VZ.p.83 “Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara.” “ Tentou recomeçar, mas redesistiu.” “Até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras ...” “A mais mínima nódoa e já ele repincelava.” “Ele rodou e rerodou nos lençóis, gemendo alto, esfregando-se na almofada.” “Se eu fosse homem de inteiro juízo estaria ainda hoje retorturado, ...” “Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras.” “... vida dedicada a uma causa tropeçava no nada, transfeita uma catarata.” “Nada de hemorragias transfronteiriças.” “Esse sangue transmexido foi a causa, dizem...” N.B.N.E. p.40 U.V.F.p.166 N.B.N.E. p.65 VZ.p.36 U.V.F.p.60 M.p.54 N.B.N.E. p.40 VZ.p.105 U.V.F.p.200 N.B.N.E. p.30 14 Bibliografia Cavacas, Fernanda, Mia Couto: Brincriação Vocabular, Mar além e Instituto Camões, Lisboa, Setembro de 1999. 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