PARA ALÉM DA FILANTROPIA: O deslocamento simbólico

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 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 PARA ALÉM DA FILANTROPIA: O deslocamento simbólico da
responsabilidade social para a esfera mercadológica nos discursos midiáticos1
Camila Bezerra Furtado Barros2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – PUC-SP
Resumo
O presente artigo visa relatar minha atual pesquisa de Doutorado, ainda em fase inicial, em que temos como
tema o deslocamento simbólico para o campo mercadológico da responsabilidade social nos constructos
discursivos da publicação Guia Exame, ancorada à revista Exame e reverberada em publicidades nacionais.
Esta revista, neste guia especializado em sustentabilidade, aponta empresas-modelo que atuam, segundo a
publicação, como socialmente responsáveis, buscando a construção de um sentido de responsabilidade social
e a assimilação deste conceito pelas empresas. Propomos uma breve análise de suas comunicações
midiáticas, reverberadas em publicidades de uma destas empresas apontadas por Exame como “modelo”.
Esta análise será relacionada com a conjuntura sociopolítico-econômica em que tal construção discursiva
aparece como sintoma (ZIZEK, 1996). Para compreendermos como se dá esse processo de totalização do
discurso hegemônico, tomamos como base a teoria do discurso de Laclau (2002).
Palavras-chave: Responsabilidade social; Discurso; Mídia; Revista de negócios; Exame; Guia
Exame.
1. Responsabilidade social empresaria midiatizada
Ações sociais associadas a empresas precedem a menção ao termo Responsabilidade Social.
Em meados do século XIX, Robert Owen (1773-1858), sociólogo e empresário, conhecido por seus
ideais socialistas, implantou em sua empresa mudanças que beneficiariam seus empregados, como:
salários maiores, redução da jornada de trabalho e benefícios (escolas e creches para os filhos de
seus empregados). Essa ação resultou em um grande aumento dos lucros. Entretanto, sua proposta
foi interpretada como uma ideia de cunho comunista, o que resultou na expulsão de Owen do
território americano. (CAMARGO, 2009)
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo, Poder e Discursos Organizacionais,
do 2º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – PUC-SP na linha Análises das Mídias –
[email protected]
PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Segundo Garcia (2004), o termo responsabilidade social foi relacionado à esfera empresarial
pela primeira vez na Inglaterra, em um manifesto que envolveu 120 empresas. Este documento
dissertava sobre o equilíbrio entre interesses públicos e dos acionistas das empresas. Nos Estados
Unidos, em 1906, Charles Eliot apresentou um estudo sobre o tema, já com essa nomenclatura.
Porém, também pela associação a ideais socialistas, o sentido de Responsabilidade Social
Empresarial não ganhou apoio social.
No início do industrial século XX, as ideias liberais de Adam Smith estavam em um
oportuno momento de discussão. Baseado nos princípios da propriedade privada, o liberalismo
propunha que a interferência do Estado era nociva ao desenvolvimento da economia. “A riqueza das
nações (1776) decretará definitivamente a superioridade da indústria sobre a agricultura, do lucro e
da mais-valia sobre a renda, da moeda sobre a troca, do egoísmo sobre a caridade.” (MASI, apud,
GARCIA, 2004, p. 14). Assim, a responsabilidade social da empresa se limita a geração de
empregos e ao pagamento de impostos, não sendo papel da empresa práticas de ações sociais, estas
são tarefas do Estado. As ações filantrópicas da benevolência do empregador foram trocadas pelos
princípios liberais, ficando fora do papel social da empresa.
As discussões a respeito do papel social da empresa resultaram em um terreno fértil para
novos campos de estudo. No ano de 1953, o economista Howard Bowen, no livro Social
Responsibilities of the businessman, cunhou oficialmente o termo e abriu espaço acadêmico para
que, na década de 1970, esse se tornasse um campo científico. (GARCIA, 2004, p.22)
Antes ligada a ideais socialistas e atitudes filantrópicas por parte do empregador, a
responsabilidade social passou a ser na sociedade pós-industrial pensada como uma importante
estratégia mercadológica, aproximando a empresa da sociedade e, evidentemente, de seu
consumidor, como coloca Tenório (2007):
A abordagem da atuação social empresarial surgiu no século XX, com o filantropismo. Em
seguida, com esgotamento do modelo industrial e o desenvolvimento da sociedade pósindustrial, o conceito evoluiu, passando a incorporar os anseios dos agentes sociais no plano
de negócios das corporações. Assim, além do filantropismo, desenvolveram-se conceitos
como voluntariado empresarial, cidadania corporativa, responsabilidade social corporativa e,
por último, desenvolvimento sustentável. (TENÓRIO, 2007, pp. 13-14)
2 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 No final do século XX, as ideias neoliberais conduziram o debate acerca da
Responsabilidade Social Empresarial, levando esta conceituação à esfera mercadológica,
entendendo que, para a manutenção do próprio capital, presentificado na empresa, prescindiria o
envolvimento no campo do social. Como argumenta Borges: Responsabilidade social “tem como
ideia central de que as empresas devem responder às demandas sociais para sobreviver, adaptando o
comportamento corporativo às necessidades sociais.” (BORGES, 2001, p. 44)
Parece-nos que a necessidade de manutenção da ordem do capital está em momento de
tamanha fragilidade dadas as disparidades entre as condições de vida das classes sociais, que as
empresas precisam criar estratégias de marketing associadas à construção de uma imagem que
explicite a consciência da desigualdade social e a defesa da diminuição desta, mesmo que nenhuma
de suas ações provoque mudanças significativas.
Relacionando este termo com a condição histórica à qual o capitalismo está submetido, não
podemos deixar de mencionar o caráter oportuno para a evidência de tal estratégia mercadológica.
Alguns autores apontam para esta perspectiva: Santa Cruz (2005) nos fala que é preciso
compreender a Responsabilidade Social Empresarial como fenômeno correlato ao discurso
econômico do capitalismo tardio, que, segundo a autora, estamos diante do que Habermas (1987)
nomeia de colonização do mundo da vida pela cultura de mercado, o que transformou a própria vida
também em mercadoria.
As páginas dos jornais, o noticiário político, até mesmo os artigos que tratam do social, estão
imersos na estrutura discursiva do que Guattari (1986) chamou de a cultura capitalística.
Render-se ao domínio da economia significou também aceitar a hegemonia do sistema
capitalista, que hoje se acredita como a única alternativa possível. Da mesma forma como a
pós-modernidade se acredita uma ruptura, o capitalismo se propaga como o único modelo
econômico aceitável para a sociedade contemporânea. (SANTA CRUZ, 2005, p. 02)
Nas últimas décadas do declarado capitalismo tardio, o termo Responsabilidade Social foi
amplamente propagado nos discursos midiáticos. Como palavra de ordem (DELEUZE e
GUATTARI, 1995), a responsabilidade na manutenção de um “mundo habitável”, deslocou-se do
disciplinador Estado moderno, para a esfera individual. A angústia diante do porvir (BAUMAN,
1998) tornou-se obsessiva para o homem contemporâneo, que, com medo de tornar seu habitat
ecológico-social hostil, passou a se questionar quanto ao seu comportamento insustentável. Diante
3 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 desta inquietude, os discursos da sustentabilidade e da responsabilidade social ganharam os media,
não tardando para que o mercado percebesse uma nova possibilidade de negócios, ou a manutenção
destes.
Em uma fluida sociedade (BAUMAN, 2001), em que não temos mais a segurança das
metanarrativas, os discursos também foram fragmentados e apenas um discurso perpassa todos estes
fragmentos numa tentativa de explicação do real: o discurso econômico. O capitalismo incorporou
todos os campos da vida social, tudo passou a ser reordenado sob a lógica do capital, mesmo o
anterior discurso maior do Estado (BAUMAN, 1998). Diante da minimização do Estado perante o
capital, neoliberalismo, as empresas passaram a dar conta da problemática social. Todo este cenário
favoreceu a emergência de ações de Responsabilidade Social vinculadas às empresas, que, por sua
vez, visibilizam essas ações em aparelhos midiáticos e em suas publicidades, constituindo, assim,
um argumento passional que trabalha na formação de uma imagem positiva de marca.
Em tempos de capitalismo cognitivo (PRADO e CAZELOTO, 2006), em que o valor
simbólico se sobrepõe ao valor funcional, as empresas perceberam que compartilhar das angústias e
necessidades do consumidor pode aproximá-las de seu público, passionalizando o processo de
compra. Com efeito, as empresas passaram a “assumir” responsabilidades que haviam sido
deslocadas para os indivíduos. Assim, não é preciso que o sujeito saia de casa para fazer uma “boa
ação” ou que vá a um parque e plante uma árvore. Magicamente, ao comprar uma Coca-Cola
(Coletivo Coca-cola 2011) ou um detergente Ipê (Campanha de reflorestamento Ipê 2007) sua
responsabilidade será transferida, pois empresas anunciam estar agindo para tornar o mundo
melhor. Esses argumentos passionais são apresentados como interessantes ao objetivo final, a
venda, tanto que o discurso da responsabilidade social empresarial, ou, como define Kotler (1992),
o Marketing Social, ganhou amplo espaço acadêmico e midiático.
4 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Figura 1: Campanha Ipê, 2010
Figura 2: Campanha Coletivo Coca-Cola, 2011
5 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Em nossa atual pesquisa, pretendemos enfocar os discursos do Guia Exame, publicação da
revista Exame, especializada em negócios e economia, propondo uma análise crítica acerca dos
textos verbi-visuais expostos nestes periódicos de grande circulação nacional, sem esquecer que
esses discursos aparecem como sintoma (ZIZEK, 1996) de uma conjuntura própria do capitalismo
cognitivo, um contexto socioeconômico fértil a esse tipo de fenômeno de deslocamento simbólico.
Trata-se de perceber esse deslocamento como fruto de comunicações-sintoma que, ao prometer a
ilusão, encobrem a realidade já comprometida pela lógica espetacular (DEBORD, 1998) da
sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1995).
Figura 3: Carta ao Leitor, Guia Exame, 2003, p. 08
6 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Zizek nos fala que “o ‘sintoma’, estritamente falando, é um elemento particular que subverte
seu próprio fundamento universal, uma espécie que subverte seu gênero” (ZIZEK, 1996, p. 52).
Assim, o sintoma pode ser entendido como ponto totalizador de um discurso universalista que
promete a plenitude; no embate simbólico do campo discursivo, algumas construções de sentido são
utilizadas para tamponar um sentido global hegemônico, fechando os sentidos da cadeia discursiva,
funcionando como um ponto nodal, expressão proposta por Laclau e Mouffe (2002). Percebemos
este fenômeno quando observamos criticamente nosso objeto.
Discursos são fundados na complexidade das práticas sociais, nas quais os sentidos estão em
constante embate para universalizar suas vontades particulares. Como colocam Laclau e Mouffe:
“Discursos são estruturas descentradas onde os sentidos são constantemente negociados e
construídos.” (LACLAU e MOUFFE, 2002, p.113) As práticas políticas, portanto, fundam-se nessa
disputa para fixar provisoriamente sentidos sempre incompletos. Estas práticas, além de
constituírem o espaço social, gerem as relações nele estabelecidas. Os discursos, portanto, tornam
possíveis articulações múltiplas, novos antagonismos e novos sentidos fixados. Com efeito, as
disputas discursivas promovem a transformação ou reprodução das práticas sociais vigentes.
Efeitos, por exemplo, de ‘fechamento’, pelos quais formas de significação são excluídas
silenciosamente e certos significantes são ‘fixados’ em uma posição de comando. Esses
efeitos são traços discursivos, não puramente formais da linguagem: o que é interpretado
como ‘fechamento’, por exemplo, dependerá do contexto concreto da elocução e é variável
de uma situação comunicativa para outra. (Eagleton, 1997, p. 172)
Para Laclau (2002), o discurso existe na relação de deslocamento, em que os significados
flutuantes passam a ser compreendidos de uma forma metafórica, não compreendendo mais o seu
sentido original, literal. O deslocamento de sentido homogeneíza o discurso, tornando-o
aparentemente coerente. Totalizando um discurso, o sentido flutuante torna-se ponto nodal,
fechando, mesmo que temporariamente, essa cadeia discursiva. Entretanto, essa coerência é
efêmera, pois o antagonismo próprio do espaço de embate discursivo contesta essa formação e de
novo embate, novos pontos de sutura surgem para uma nova totalização.
O sentido de Responsabilidade Social nos textos midiáticos – tanto nos dos editoriais de
Exame quanto nas publicidades das empresas que adotam esta estratégia – é tratado de forma
flutuante, por vezes comprometido com o campo social, por vezes com questões simulacrais
7 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 puramente mercadológicas. Ou seja, usar figuras de desigualdade, mesmo quando elas aparecem
higienizadas e representadas por celebridades – como no caso da campanha da Louis Vuitton, em
que os problemas sociais africanos são representados resumidamente na figura do artista-ativista
Bono Vox, que por um acaso tem visibilidade por ser cantor da banda U2 – como apelo
mercadológico é uma forma de superar, pelo menos simbolicamente, as contradições próprias do
capital, trabalhando a imagem euforizada da empresa e, por fim, incitando o consumo.
Figura 4: Campanha Louis Vuitton
Voltando as bases de nosso corpus, percebemos que os dispositivos midiáticos propõem em
suas convocações que o leitor dessas revistas, com público-alvo executivos, promovam suas
empresas através de ações de Marketing Social, demonstrando que as preocupações cotidianas dos
indivíduos podem ser tomadas como argumentos para venda, mesmo quando esses argumentos são
na realidade contraditórios à lógica da sociedade de controle (DELEUZE, 1992). Trazendo o
exemplo anterior, uma empresa de alto luxo como a Louis Vuitton se mostrar preocupada com os
problemas sociais africanos é um contrassenso. Sob um olhar crítico, podemos questionar o que faz
um artigo ser de luxo, e respondemos: alta qualidade, pois produtos de alto valor financeiro não
podem ser produzidos com materiais de segunda linha; valor imaterial, ou seja, o valor simbólico
agregado à imagem da marca; e poucas unidades de seus produtos, para que poucos consumidores
8 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 tenham acesso a esta mercadoria. Portanto, o luxo reside na desigualdade, o que demonstra a
contradição desta empresa ao se vender como preocupada com causas sociais. De fato, essa
preocupação se dá em nível imagético, em uma sociedade marcada pela estética da mercadoria
(HAUG, 1996), e se “resolve” no tampão dos discursos pró-consumo.
Em tempos de superprodução semiótica (DURÃO, 2008), o relativo controle simbólico das
representações que circundam as imagens das marcas, não importando seu segmento de atividade,
são de extrema importância para a consumação do ato de venda. Como enunciadores-sabedores, as
revistas de negócios alertam a seus leitores que, para as empresas contemporâneas, o valor imaterial
difundido na comunicação se sobrepõe ao produto. Assim, elaborar estratégias de Marketing social
é, antes de tudo, promover a vivência de valores de consumo (SEMPRINI, 2006), como evidencia o
texto de Exame: “Passamos do terreno das boas intenções – e é com elas que tudo começa – para o
da estratégia.” (GUIA EXAME, p. 08, 2009)
2. De Exame à publicidade
A revista Exame foi selecionada como base para o objeto de estudo, pois, segundo o
Instituto Verificador de Circulação (IVC/ julho.2010), esta é a publicação líder do segmento
negócios. Com 221.885 exemplares vendidos quinzenalmente, a revista Exame se autodefine como:
“A maior e mais influente revista de negócios e economia do país” (site da revista). O periódico tem
como missão “levar à comunidade de negócios informação e análises aprofundadas sobre temas
como estratégia, marketing, gestão, consumo, finanças, recursos humanos e tecnologia” (idem),
abordando os assuntos que, segundo Exame, são indispensáveis às decisões de negócios.
Como público principal, Exame define seu enunciatário como “empresários, executivos,
autoridades e profissionais de destaque que decidem os rumos da economia no Brasil” (idem).
Segundo o instituto de pesquisa Ipsos-Marplan, a revista é lida por cerca de 91% dos presidentes
das 500 maiores empresas nacionais, o que demonstra a importância do periódico neste segmento.
Quantitativamente, o público de Exame é composto em sua maioria por homens (60%) de 31 a 49
anos (61%), de classe B (53%).
9 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Periódico fundado pela editora Abril no ano de 1967, a revista Exame tem hoje publicações
esporádicas de temáticas específicas, como a publicação bimestral Exame PME, voltada para
pequenas empresas; Exame CEO (Chiefs Executives Officers), para os dirigentes das empresas;
Exame Melhores e Maiores, em que a revista classifica as mil maiores empresas do país; Guia 150
melhores empresas para você trabalhar, em que aponta as empresas com melhores gestões de
empregados; e o Guia Exame, que tomamos como objeto de análise, em que são apresentadas
práticas empresariais de sustentabilidade e as empresas que melhor as usam em seus negócios.
Criada no ano 2000, a então intitulada Guia de Boa Cidadania Corporativa nasce sob uma
nova temática que estava entrando no cotidiano das empresas: a responsabilidade social. Segundo a
revista, naquela virada do século, o conceito de responsabilidade social ainda era embrionário nas
empresas, mas, atenta a uma nova tendência de mercado mundial, a revista Exame partiu na frente e
lançou a primeira publicação nacional que trata, segundo ela, com profundidade a temática da
responsabilidade social e ambiental das empresas. Como é mencionado no editorial comemorativo
de 10 anos do, agora chamado, Guia Exame:
No já longínquo ano 2000, esse era um conceito ainda incipiente no Brasil. Mas, para nós,
ficava cada vez mais claro que o mundo estava em meio de uma mudança sem precedentes
em que as empresas – quaisquer que fossem – teriam de mudar e ganhariam um papel muito
mais amplo que jamais haviam tido. Atingir o lucro continuaria – e continuará – a ser o
núcleo de sua essência. Sem ele não há negócio, não há emprego, produto, inovação,
motivação, progresso econômico e social. O lucro, desde que obtido de forma lícita e ética,
jamais será uma vergonha. A questão, portanto, nunca foi uma contestação à sua busca. O
que a sociedade e os empresários começavam a se perguntar naquela época é se a
competência de ganhar dinheiro seria suficiente para a sobrevivência de uma empresa. (Guia
Exame, 2009, p.08)
No ano de 2010, a empresa fabricante de celulose Fibria (fruto da união da Aracruz
Celulose e da Votorantim Celulose) investiu em projetos de geração de renda nas comunidades
vizinhas às fábricas e plantações, com o intuito de melhorar o relacionamento com essas
comunidades e gerar empregos absorvidos pela própria empresa. Como vemos na descrição:
Uma das áreas de plantio da Fibria, fabricante de celulose que surgiu da fusão entre Aracruz
e a VCP, é vizinha de um quilombo Helvécia, distrito de Nova Viçosa, no sul da Bahia. O
quilombo abriga 4000 descendentes de negros trazidos da África para trabalhar como
escravos. O lugar é pobre, e o acesso à educação e ao saneamento básico, precário. Em
setembro deste ano, a Fibria iniciou a construção de uma unidade de produção de mudas
Helvécia. Com a inauguração prevista para o final de 2011, o viveiro consumirá um
10 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 investimento de 30 milhões de reais e deve gerar mais de 250 empregos para garantir a
produção de 30 milhões de mudas de eucalipto por ano. (Guia Exame, 2010, p. 146)
Com o mote “De bem com a vizinhança”, Fibria foi selecionada em 2010 como uma das
Empresas-modelo do Guia Exame. Segundo a revista, a empresa “investe em projetos de geração
de renda para melhorar o relacionamento com as comunidades dos 252 municípios onde possui
fábricas e plantações” (GUIA EXAME, 2010, p.146). Citando as palavras do presidente da Fibria,
Carlos Aguiar, o objetivo desta ação é que a população local venha a “participar definitivamente da
cadeia produtiva do eucalipto, contribuindo para a formação de novas florestas” (idem).
A midiatização dessa ação foi propagada em uma campanha publicitária veiculada em
setembro de 2010, data próxima ao lançamento do Guia Exame (novembro de 2010), utilizando
mídias como jornais, rádios e outdoors dos municípios em que a empresa opera e também em
revistas de circulação nacional.3
Para comemorar 1 ano da fusão entre as empresas Aracruz e Votorantim, Fibria lançou no
mercado a campanha “Fibria 1 ano: pensar no futuro é nosso maior presente”, em que vinculou o
sentido de compromisso social à marca da empresa. Esta construção se deu através de estratégias
discursivas ligadas ao texto verbal e visual. A criança retratada na publicidade é Mayara Aparecida
de Oliveira, 12 anos, ela venceu um concurso de desenho realizado na comunidade de Santa Branca.
Mayara, que representa as crianças das comunidades, é a figura principal do anuncio, ao centro e
evidenciada pela cor amarela, ela figuratiza o sentido de futuro. Mayara lê, alheia à cena retratada, e
aparece concentrada em um livro, o que a ancora no ambiente escolar. Entretanto, ela está em um
parque bastante arborizado, representando o ambiente sustentável propagado pela empresa. Outro
aspecto que nos apresenta como importante para a compreensão do efeito de sentido criado na cena
é que este livro está circundado por parênteses, que aqui presentificam a própria empresa, Fibria.
Em outras comunicações, esses caracteres já foram usados para tal representação.
3
Fonte: www.fibria.com.br
11 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 Figura 5: Anúncio “Fibria 1 ano: pensar no futuro é nosso maior presente”, setembro de 2010.
No plano verbal, podemos perceber que o texto principal “Pensar no futuro é nosso maior
presente” relaciona-se com a figura da criança e com o sentido de crescimento. O texto secundário,
em um corpo de fonte menor, destacamos o trecho final: “Com um compromisso sempre presente:
valorizar a vida das pessoas, valorizar a sua vida. E, assim, ajudar a construir um futuro melhor e
crescer admirados pelo nosso valor.” A empresa constrói-se não como uma empresa que corta
árvores para produzir celulose, algo negativo no imaginário social. Euforizada por suas ações de
cunho social, Fibria demonstra-se sensível à vida das pessoas e a um futuro melhor.
3. Considerações finais
Antes remetida aos limites do privado, a empresa no século XX, de maneira geral, não
demonstrava grandes preocupações quanto ao bem-estar social. As diferenças econômicas se
agravam a cada dia, aumentando o grupo de pessoas que, mesmo fazendo parte da Sociedade de
Consumo (BAUDRILLARD, 1995), estão em um estado de exceção (AGAMBEN, 2004),
excluídas do acesso de bens e serviços que promovem a qualidade de vida. Por outro lado, um
12 PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012 grupo cada vez menor, relativamente, vive um frenesi consumista alimentando a lógica da
superprodução que degrada o meio ambiente.
A relação de consumo neste chamado capitalismo cognitivo mudou. Efeitos de sentido
criados e associados aos produtos se tornaram objetos de valor, superando a funcionalidade e a
usabilidade. Ou seja, consumimos valores imateriais, imagéticos (DEBORD, 1998). Nesta
argumentação, Fontenelle (2009) coloca que, “mesmo sabendo que existimos para além da imagem,
estamos enredados em um modelo social no qual só nos inserimos como sujeito mediante a
imagem” (idem, p. 06).
Foi nesse contexto que as empresas reformularam o conceito de filantropia, transformando-a
em responsabilidade social. Segundo Abreu (2003, p.04 apud CUNHA, 2005, p.01), historicamente
a filantropia constitui uma modalidade “de controle sobre pobres e necessitados e de reprodução da
sujeição das massas trabalhadoras às estratégias de dominação da classe dominante”.
Nessa perspectiva, a responsabilidade social, assim como a filantropia, podem funcionar
como pequenos atos de destensionamento social. Nem sempre as ações realizadas são, de fato, atos
que provocam mudanças na estrutura social. Nesse contexto, surge, então, o conceito de
Responsabilidade Social Empresarial, ou Coorporativa, em que, através de ações sociais tornadas
públicas pela publicidade, as empresas atuam como “agentes de mudança”, demonstrando-se
preocupadas com o campo social, o que, aqui pontuamos, parece-nos paradoxal, pois, percebendo a
empresa como real agente pró-capital, em que a desigualdade é fundante, esta preocupação parecenos questionável.
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