Projeto Terapêutico Singular: articulação entre teoria e prática.

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Articulações entre teoria e prática na construção do Projeto Terapêutico Singular: um
relato de experiência no CERSAM-AD
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Articulações entre teoria e prática na construção do Projeto Terapêutico Singular: um
relato de experiência no CERSAM-AD
Jefferson Silveira Silva
Aluno do curso de Psicologia da Unidade São Gabriel, Faculdade de Psicologia da PUC Minas
Email: [email protected]
Priscila Suelen Moreira Gonçalves
Aluna do curso de Psicologia da Unidade São Gabriel, Faculdade de Psicologia da PUC Minas
E-mail: [email protected]
Isabela Saraiva de Queiroz
Professora do curso de Psicologia da Unidade São Gabriel, Faculdade de Psicologia da PUC Minas
E-mail: [email protected]
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Resumo
Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma experiência de estágio em um Centro de
Referência em Saúde Mental – Álcool e Drogas (CERSAM-AD). Através da análise de
bibliografia específica da área e de pesquisa de campo qualitativa, realizada por meio de
entrevistas semi-estruturadas com profissionais do serviço, foram discutidas questões acerca
da elaboração, execução e acompanhamento do projeto terapêutico singular dos usuários.
Foram ressaltados os pontos principais de um projeto terapêutico singular, a participação do
usuário na elaboração do seu projeto, as potencialidades desse recurso de acompanhamento e
intervenção e os desafios encontrados na sua implementação. Ao final, concluiu-se que o
projeto terapêutico singular é um recurso terapêutico inovador e eficaz, ainda que a sua
implementação apresente alguns desafios, entre eles, o manejo das singularidades de cada
usuário e a articulação de um trabalho interdisciplinar entre os profissionais do serviço.
Palavras-chave: Saúde Mental; Projeto Terapêutico Singular; CERSAM-AD.
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1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo geral articular conhecimentos teóricos e práticos
sobre o projeto terapêutico singular. De modo específico, busca analisar a participação do
usuário e da família na elaboração do projeto terapêutico singular, as potencialidades desse
recurso de acompanhamento e intervenção, os avanços identificados ao longo do tratamento e
os desafios presentes em sua implementação. O debate em torno do projeto terapêutico
singular tem sido central nas práticas de atenção ao usuário de álcool e outras drogas, o que
justifica a importância de serem desenvolvidas pesquisas sobre a utilização desse recurso
terapêutico por acadêmicos que desenvolvem estágio no campo da saúde mental.
Foi utilizada a abordagem qualitativa como método de pesquisa. A expressão pesquisa
qualitativa assume diferentes significados no campo das ciências sociais. De acordo com
Maanem (1979), citado por Neves (1996), ela compreende um conjunto de diferentes técnicas
interpretativas que visam descrever e decodificar os componentes de um sistema complexo de
significados, tendo por objetivo traduzir e expressar os sentidos dos fenômenos do mundo
social, reduzindo a distância entre teoria e dados. De acordo com Flick (2009), a pesquisa
qualitativa aponta a primazia da compreensão como princípio do conhecimento. Seu foco está
sempre centrado na compreensão dos significados que o indivíduo atribui às suas ações e o
pesquisador procura entender estes significados segundo as perspectivas dos indivíduos que
estão sendo estudados.
Para cumprirmos o objetivo de articular conhecimentos teóricos e práticos sobre o
projeto terapêutico singular, foi realizada uma análise de bibliografias específicas do campo
da saúde mental e uma pesquisa de campo, na qual foram entrevistadas duas técnicas do
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CERSAM AD (Centro de Referência em Saúde Mental – Álcool e Drogas)1, com o objetivo
de identificar suas concepções sobre este recurso terapêutico e sua experiência prática com o
mesmo.
As duas profissionais entrevistadas possuem formação acadêmica em Psicologia e
serão identificadas neste trabalho como Técnica 1 e Técnica 2, para a preservação da sua
identidade. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um roteiro de entrevista semiestruturada, que possibilita maior flexibilidade na exploração e aprofundamento das questões
levantadas pelo pesquisador, sem perder o seu objetivo principal. Para Manzini (1990/1991),
esse tipo de entrevista pode fazer emergir informações de forma mais livre e as respostas não
estão condicionadas a uma padronização de alternativas, o que se mostrou adequado para o
alcance dos objetivos desta pesquisa. Por fim, cabe ressaltar que as duas profissionais
entrevistadas foram as técnicas de referências dos acadêmicos ao longo da realização do
estágio no CERSAM-AD, tendo sido as responsáveis pelo acompanhamento do
desenvolvimento das suas atividades no campo.
2. Breve contextualização do campo de estudo
Os CERSAMs (Centros de Referência em Saúde Mental) são equipamentos
regionalizados que funcionam de portas abertas para pacientes em crise e em ameaça de
ruptura dos laços sociais. Estes dispositivos funcionam dentro da perspectiva da política de
saúde mental do município de Belo Horizonte e atuam dentro da lógica antimanicomial, com
cuidados intensivos construídos caso a caso, envolvendo o usuário, a família, os profissionais
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Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (2006), nas portarias do Ministério da Saúde esses
serviços recebem o nome de CAPS ou Centros de Atenção Psicossocial. Contudo, em diferentes locais do país,
os CAPS recebem nomes diferentes. Em vários municípios mineiros, por exemplo, em Belo Horizonte, são
chamados de CERSAMs ou Centros de Referência em Saúde Mental. Portanto, a terminologia CERSAM será
utilizada como sinônimo de CAPS nesse artigo.
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e os equipamentos sociais da rede de atenção psicossocial numa proposta de tratamento
singular. (SILVA, 2005).
Como principal representante do modelo substitutivo ao tratamento oferecido nos
antigos manicômios e hospitais psiquiátricos, o CERSAM se caracteriza como um serviço
comunitário e aberto ao Sistema Único de Saúde (SUS), sendo referência para o tratamento de
pessoas em sofrimento psíquico. Sua finalidade principal é a construção da autonomia e
reinserção social dos usuários por meio do trabalho, lazer, exercício dos direitos e deveres
civis e fortalecimentos dos laços familiares e comunitários. (CARVALHO, 2012).
Do mesmo modo, o CERSAM-AD (Centro de Referência em Saúde Mental – Álcool e
Drogas) tem por objetivo proporcionar um lugar de cuidado, acolhimento, auxílio,
responsabilização e convivência a pessoas que usam drogas, com vistas à promoção da sua
autonomia enquanto sujeitos. Sua intenção não é reprimir o uso, nem punir os usuários por
suas práticas, mas construir com cada um deles outras possibilidades de lidar com o uso de
álcool e outras drogas. Nesse sentido, segundo a definição da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte (2007), no CERSAM-AD o tratamento busca a estabilização do quadro clínico, a
reconstrução da vida pessoal, o suporte necessário aos familiares, o convívio e a reinserção
social. Oferece os atendimentos próprios a cada caso, com a presença constante de equipe
multiprofissional, oficinas e atividades de cultura e lazer.
O espaço permite uma articulação entre profissionais de diversos saberes (médicos,
psicólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares administrativos, porteiros,
terapeutas ocupacionais e assistentes sociais).
De acordo com Silva (2005), o atendimento prestado no CERSAM possui um eixo
clínico e outro social. O primeiro propõe novas formas de tratamento, buscando uma
sustentação nos momentos de crise em substituição às internações psiquiátricas. Nesta nova
lógica a família e a comunidade são importantes tanto no acolhimento, quanto na eliminação
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de preconceitos que caracterizam a loucura como algo perigoso. O segundo eixo busca o
exercício da cidadania e a garantia do convívio social.
O campo do estudo aqui realizado foi o CERSAM-AD, sendo este um equipamento
novo, em funcionamento há um pouco mais de um ano à época da realização do estágio e
coleta de dados. O CERSAM-AD funciona das 07h às 19h, todos os dias da semana, inclusive
domingos e feriados. A equipe multiprofissional era constituída por técnicos de diversas
formações na área da saúde, advindos de outros serviços de saúde, sendo servidores públicos
recém-nomeados e empregados contratados. Cabe destacar, portanto, que esta era, à época,
uma equipe ainda em processo de construção, tanto no que tange à organização dos processos
de trabalho quanto à solidificação de uma identidade profissional enquanto equipe de saúde
mental.
3. Sobre o Projeto Terapêutico Singular
Historicamente, a terapêutica utilizada com o paciente psiquiátrico não considerava o
sujeito ativo no seu tratamento, não envolvia a sua família e também não valorizava a sua
história, cultura e vida cotidiana, estando as práticas de atenção voltadas exclusivamente para
a sua doença. (PINTO et.al, 2011). Através do movimento antimanicomial e com o processo
de desospitalização surgiram novos serviços de saúde mental, como os CERSAMs, estruturas
intermediárias entre a internação integral e a vida comunitária (PINTO et.al, 2011), e cujo
modelo de atenção psicossocial tem como uma de suas características principais a valorização
do saber e das opiniões dos usuários e familiares na construção de cada projeto terapêutico.
O Ministério da Saúde (2007) define o projeto terapêutico singular como um conjunto
de propostas de condutas terapêuticas articuladas para um sujeito individual ou coletivo,
resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial se
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necessário. O projeto terapêutico singular busca a singularidade como elemento central de
articulação, desse modo, e a partir das entrevistas realizadas, percebemos que o projeto
terapêutico singular é um sempre construído para sujeitos específicos, a partir de suas
demandas e realidades.
O projeto terapêutico nos indica a direção que se pretende dar ao tratamento. Essa
direção deve levar em conta a pergunta: o que é possível e o que é desejável obter ao
longo do tratamento desse paciente? Um primeiro princípio nos guia aqui: caminhar
sempre no sentido de propiciar ao paciente a retomada da voz e do poder de decisão
sobre as questões que lhe concernem, levando em conta a dimensão subjetiva em
que se manifestam suas queixas e seus sintomas. (MINAS GERAIS,2006, p.146).
O projeto terapêutico singular leva em consideração a relação de dependência do
sujeito com a droga, as conseqüências ocasionadas pelo uso abusivo e o desejo pelo
tratamento. Nesse sentido, é preciso trabalhar com o usuário suas amarguras e dificuldades e
as relações estabelecidas. Não se deve querer construir outro sujeito, mas ajudá-lo a
transformar-se a partir de si mesmo, explorando as possibilidades que possui, levando-o a
enfrentar as dificuldades pessoais e sociais que dificultam seu crescimento. (MINAS
GERAIS, 2006).
O projeto terapêutico singular é conduzido em quatro momentos:
O diagnóstico: contém uma avaliação orgânica, psicológica e social que possibilita
uma compreensão a respeito da vulnerabilidade do usuário. Busca perceber a
realidade social do usuário, suas percepções, desejos e interesses, além de tentar
entender ‘o que o sujeito faz de tudo que fizeram dele’.
Definição de metas: após o diagnóstico são traçadas propostas a curto, médio e
longo prazo, que serão negociadas com o sujeito através do profissional de
referência.
Divisão de responsabilidades: responsabilização do sujeito pelo seu tratamento e
definição clara de tarefas de cada um.
Reavaliação: adequações e mudanças a partir das evoluções reorganizando os
rumos do projeto terapêutico. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007, p.41).
O projeto terapêutico singular conta com cinco elementos e recursos em seu
desenvolvimento (MINAS GERAIS, 2006), sendo eles: o atendimento individual, que
oferece oportunidade de voz para o sujeito, auxilia na elaboração de seu conflitos e norteia a
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condução do acompanhamento. A freqüência desse atendimento é orientada conforme cada
caso e seu momento; a definição da freqüência ao serviço, que se baseia a partir da
gravidade e intensidade de uso de cada usuário e as necessidades de cuidado que ele necessita,
levando em consideração sua realidade de vida e os vínculos estabelecidos. Esta definição é
realizada entre o usuário, seu técnico de referência e a família, variando conforme a evolução
do caso; a busca de outros recursos necessários ao tratamento, com vistas a incentivar e
viabilizar formas de acesso a outros profissionais e serviços a fim de contribuir para o
tratamento do usuário; o trabalho de “secretariado”, já que alguns usuários, principalmente
os mais debilitados, necessitam de auxílio em diversos aspectos de sua vida – como a
marcação de uma ida ao dentista, contato com seu chefe no trabalho, instrução na
administração de seu dinheiro, dentre outros. O trabalho de secretariado é realizado enquanto
os usuários não podem fazer isso por si mesmos; e a alta e/ou encaminhamento para outros
serviços, considerando que é preciso perceber o momento em que os recursos
disponibilizados pelo serviço de saúde mental já foram esgotados ou não são mais adequados
para aquele paciente. Nesse caso utiliza-se o encaminhamento ou a alta.
4. O exercício do Projeto Terapêutico Singular no cotidiano do CERSAM-AD
A realização das entrevistas com as técnicas do CERSAM-AD nos possibilitou
entender que o projeto terapêutico singular se dá a partir da necessidade de saúde de cada
usuário, mediante esforços entre os trabalhadores, usuários e familiares, no intuito de
promover uma construção coletiva. Para melhor compreensão desse processo apresentaremos
a seguir a análise de alguns elementos identificados a partir das concepções teóricas sobre o
projeto terapêutico singular em articulação com as práticas de saúde no campo.
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Em relação à definição do que é o projeto terapêutico singular, as duas técnicas
entrevistadas apresentaram concepções bastante similares. Segundo elas, o projeto terapêutico
singular é um projeto construído junto com o sujeito e para o sujeito, elaborado a partir de sua
história de vida, suas relações sociais e familiares e o interesse e adesão pelo tratamento.
Desta forma, fica evidente que o sujeito é autor do seu processo terapêutico.
“É a construção de um projeto terapêutico junto com o paciente, levando em
consideração o desejo e demanda do sujeito.” (Técnica 2)
De acordo com a definição das técnicas, pensando na centralidade do sujeito como
autor principal do seu processo terapêutico, é importante levar em conta a dimensão subjetiva
em que se manifestam as queixas e sintomas do sujeito, conforme discutido pela Secretaria
Estadual de Saúde de Minas Gerais (2006). O Ministério da Saúde (2007) também corrobora
essas afirmações, ressaltando que o projeto terapêutico singular é uma abordagem de
possibilidades:
Nas situações em que só se enxergava certezas, podem-se ver possibilidades. Nas
situações em que se enxergava apenas igualdades, podem-se encontrar, a partir dos
esforços do projeto terapêutico singular, grandes diferenças. Nas situações em que se
imaginava haver pouco o que fazer, pode-se encontrar muito trabalho. As
possibilidades descortinadas por esse tipo de abordagem têm que ser trabalhadas
cuidadosamente pela equipe para evitar atropelamentos. (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2007).
Conforme já mencionado, tanto o Ministério da Saúde (2007), quanto a Secretaria
Estadual de Saúde de Minas Gerais (2006) apresentam elementos orientadores para a
construção do projeto terapêutico singular. Nas entrevistas as técnicas também abordaram o
modo como se dá a elaboração do percurso do usuário no serviço.
“Ele chega aqui no equipamento e aí é feito o acolhimento, depois ele passa por um
médico clínico ou psiquiatra e é definido o modo de acompanhamento, seja ele
permanência-dia ou ambulatório. A partir daí continua o acompanhamento e
tratamento do sujeito, geralmente no decorrer do acompanhamento eu faço
alterações na permanência-dia, diminuindo ou aumentando, também são feitos
alguns encaminhamentos para a rede e aí a gente vai acompanhando a evolução do
tratamento e do usuário até se chegar à alta.” (Técnica 1)
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O percurso do usuário apresentado pela Técnica 1 corresponde aos cinco elementos do
projeto terapêutico singular apresentados pela Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais
(2006): o atendimento individual; a definição da frequência ao serviço; a busca de outros
recursos necessários ao tratamento; o trabalho de secretariado; e a alta e/ou encaminhamento
para outros serviços.
Em relação à participação do usuário na construção do seu projeto terapêutico
singular, o Ministério da Saúde (2007) apresenta que o caminho é do usuário e somente dele,
“é ele que dirá se e quando quer ir, negociando ou rejeitando as ofertas da equipe de saúde.”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007, p.45).
Da mesma forma, as técnicas também consideram que o usuário tem participação ativa
na elaboração do seu projeto terapêutico singular:
“Tudo que o usuário traz ele que constrói, nós o ajudamos a problematizar suas
questões.” (Técnica 2)
“Eu sempre ressalto a responsabilidade do usuário na construção do projeto porque
tem usuário que chega aqui achando que a gente que vai resolver e determinar o que
é melhor para ele. Eu sempre deixo claro que ele é a parte principal nesse processo e
que eu vou estar junto com ele, ajudando e orientando.” (Técnica 1)
Vê-se assim que o projeto terapêutico singular é um processo relacional em que aos
poucos vão se efetivando, a partir da relação entre usuário e técnico de referência, metas,
intervenções, avanços, retrocessos e alterações. O Ministério da Saúde (2007) apresenta um
desafio nessa construção:
O mais difícil é desfazer um viés imediatista que a cultura hospitalar imprimiu em
profissionais e usuários. Geralmente não se faz uma abordagem integral em um
encontro único, mesmo que seja uma consulta longa. Muitas informações essenciais
surgem no decorrer do seguimento e a partir do(s) vínculo(s) com o usuário. A
história, em geral, vai se construindo aos poucos, embora, obviamente, não se possa
falar de regras fixas para um processo que é relacional e complexo. (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2007, p.43).
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A participação e inserção da família do usuário no projeto terapêutico singular também
é importante, uma vez que, através do acolhimento e escuta dos familiares, pode-se colher
informações necessárias para qualificar intervenções e esclarecer questões ainda nebulosas
para a equipe. Além disso, a família poderá ser acolhida em suas dificuldades durante o
processo, além de obter informações sobre o tratamento do usuário. Uma das profissionais
entrevistadas concorda com essa afirmação:
“Eu já atendi casos em que a presença da família foi fundamental para o
esclarecimento de algumas questões e coleta de informações sobre a história de vida
que auxiliaram nas intervenções com os usuários. É legal que o atendimento e
envolvimento da família algumas vezes sensibiliza e responsabiliza os membros da
família no auxílio e tratamento do usuário.” (Técnica 1)
As técnicas de referência entrevistadas também apresentam algumas dificuldades e
empecilhos na tentativa de inserção da família no projeto terapêutico singular do usuário:
“Quando o usuário vem com alguém da família aí fica mais fácil, mas nosso público
em sua maioria é morador de rua, então a maioria vem sozinho, geralmente
encaminhado por outros serviços. Muitas vezes esse público que mora na rua perdeu
os laços familiares ou então estão impedidos de estabelecerem contato com a família.
Tem casos que a família já desistiu do usuário e aí não querem se implicar nem se
envolver com o tratamento dele. De certa forma, às vezes, já cansaram de tentar e não
querem mais.” (Técnica 1)
“Quando a família vem efetivamente o usuário não se reconhece, ele muitas vezes
aceita a demanda da família”. (Técnica 2)
Segundo as técnicas entrevistadas o projeto terapêutico singular cria possibilidades e
para que o usuário possa resignificar algumas questões e conflitos e buscar restabelecer novas
posturas sociais e comportamentais, para além da sua relação com as drogas. A Técnica 1
observa avanços ao longo do acompanhamento do projeto terapêutico singular de alguns
usuários e afirma que:
“Tem muitos usuários que ao longo do acompanhamento conseguem elaborar
questões que para eles são difíceis e dolorosas e conseguem reduzir significavelmente
o uso de drogas. Acredito que muitas vezes os ganhos adquiridos através de
elaborações subjetivas provocam maior domínio do usuário sobre a droga. O projeto
terapêutico singular abarca muita coisa. Não é uma coisa isolada, é um projeto
mesmo, que tem a ver com o atendimento clínico, a permanência, a implicação, a
possibilidade de saída desse lugar, a possibilidade de novas perspectivas de trabalho,
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de cursos e de estudos. O projeto terapêutico singular pra mim é orientador, é a base,
não é algo fechado, é por isso que é singular, porque tem a ver com a demanda de
cada um e com o que cada um vai dar conta.” (Técnica 1)
Tratando-se da alta ou encaminhamento do paciente, “toda alta é eminentemente uma
medida clínica a ser negociada e aceita pelo paciente como parte de um projeto que irá ajudálo a viver melhor” (MINAS GERAIS, 2006, p. 148.). As entrevistadas também apontaram
nessa direção, ao afirmarem:
“Eu dou alta quando o serviço já deu o que já tinha que dar para o sujeito naquele
momento. Ele já desenvolveu, já diminuiu muito o uso, já está buscando outras
coisas. Eu dou alta, mas não deixo solto, encaminho para o centro de saúde, mesmo
que seja para um atendimento mensal. Eu sempre dou alta dizendo assim: se precisar
volta. Eu avalio a evolução do paciente e as condições atuais de uso da droga,
quando eu acho que ele realmente está em boas condições eu dou a alta, mas se não,
eu proponho o atendimento ambulatorial. Às vezes eu dou alta desse serviço mas
encaminho para outro que tem mais a ver com aquele sujeito, por exemplo, uma vez
eu dei alta para uma usuária e a encaminhei para o centro de convivência porque ela
não conseguia ficar sem fazer nada, ela tinha algo com o fazer, isso a acalmava,
então eu achei melhor encaminha-la pra lá devido a maior disponibilidade de
atividades manuais. Esse serviço tem que ser passageiro, temos que nos preocupar
com a reinserção social do usuário e com o estabelecimento de outros laços.”
(Técnica 1)
“Na maioria das vezes não tem alta, tem abandono por parte do usuário, onde há
infrequência e falta de implicação. Mas o critério para a alta seria o desejo desse
sujeito, é ele quem vai dizer se dá conta.” (Técnica 2)
Uma questão avaliada como desafio para a equipe multidisciplinar do CERSAM AD e
para a efetivação do projeto terapêutico singular em si foi de fato considerar o singular no
projeto terapêutico. Visualizar a singularidade do usuário em meio a todas as generalizações
presentes na atenção à saúde mental:
“Às vezes a gente esbarra em alguns entendimentos, interpretações e compreensões
de algo mais geral. De certa forma isso é um grande desafio para o serviço, a gente
ter compreensão daquilo que é regra do serviço e daquilo que a gente vai trabalhar
com aquele sujeito. Tem que entender que o processo de evolução e melhora não é
igual para todo mundo, cada um tem seu modo e seu tempo de resignificar as coisas.
De modo geral é um grande desafio para o serviço com todos os profissionais que o
compõem, considerar o singular dentro do projeto terapêutico. Aqui não dá pra gente
enquadrar o sujeito, cada um tem seu tempo e reage de formas diferentes às
intervenções e propostas e isso precisa ser considerado.” (Técnica 1)
A partir dessa perspectiva Pinto (2011) ressalta que:
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Tendo em vista a pluralidade de sujeitos envolvidos, tal situação requer formas de
atuação que lhes sejam adequadas. Encontrar possibilidades singulares a cada
pessoa, nas diferentes situações de suas vidas, pede a todo instante o olhar e a escuta
que reconheçam as subjetividades. Dessa forma, a proximidade com a pessoa que
sofre a experiência de transtorno mental coloca em confronto as diversas
possibilidades interpretativas, interroga competências, pede sensibilidade do
profissional. Pede, também, o entendimento de que o sofrer psíquico não pode ser
visto como algo a ser eliminado ou combatido, mas como um caminho capaz de
levar à redescoberta do real, da compreensão da experiência emocional de quem a
vivencia. (PINTO, 2011, p.499.)
O Ministério da Saúde (2007) também frisa que o projeto terapêutico singular busca a
singularidade (a diferença) como elemento central de articulação. Desse modo, deve-se
procurar conhecer as singularidades do sujeito, pois elas ajudam a entender a sua dinâmica e
características próprias, o que é de crucial importância terapêutica.
Vê-se assim que os projetos terapêuticos singulares são dinâmicos, variando com as
nuances dos aspectos biopsicossociais de cada usuário. São elaborados com base nas
necessidades pessoais de cada um, levando em consideração seus modos de compreender a
vida, suas subjetividades e singularidades, configurando-se numa interação democrática e
horizontal entre os atores envolvidos no processo de cuidar. (PINTO, 2011).
Outro desafio está relacionado à interação e integração da equipe multiprofissional que
compõe o CERSAM AD. Galván (2007) nos apresenta que cada profissional possui seu
domínio de conhecimento sistematizado de acordo com critérios específicos, metodologia
própria e limites estabelecidos, marcando fronteiras entre os campos de saber. Por outro lado,
cada profissional também apresenta limitações em dar conta da compreensão e intervenção
em fenômenos globais e complexos, uma vez que se referem ao funcionamento do ser
humano como um todo. Nesta perspectiva faz-se necessário abarcar o todo, através da junção
das partes, dos diferentes olhares sobre um mesmo fenômeno.
Cada equipe possui seu modo de operar, que pode ser definido de uma determinada
maneira em um determinado momento. Podemos pensar que uma maior integração pressupõe
algum tipo de amadurecimento em termos grupais, o que poderia nos levar a considerar uma
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linha evolutiva, tendo como paradigma a questão da interação da equipe. Por meio dessa
informação Galván (2007) afirma que na multidisciplinaridade cada profissional emprega sua
metodologia, baseado em suas hipóteses e teorias, sendo que o objeto em questão é visto sob
múltiplos pontos de vista, numa justaposição de conhecimentos; ou seja, o mesmo tema é
abordado sob ângulos variados, não existindo a perspectiva de síntese.
Avançando nessa discussão, Batista (2006) afirma que a noção de interdisciplinaridade
traz uma contribuição importante para a produção científica contemporânea, na medida em
que contempla as intersubjetividades e o respeito às diferenças existentes diante de múltiplos
olhares e compreensões acerca de um determinado objeto. Gomes e Deslandes (1994)
acrescentam que a interdisciplinaridade não anula a disciplinaridade; antes de qualquer coisa,
implica em uma consciência dos limites e das potencialidades de cada campo do saber na
busca de um fazer coletivo. Acrescentam ainda que a interdisciplinaridade conduz a uma
reflexão profunda a respeito do conceito de ciência e possibilita o resgate da unidade de seu
objeto de estudo.
As técnicas entrevistadas confirmaram tal desafio apresentando que:
“Um grande desafio para mim, é a equipe estar na mesma sintonia, principalmente
porque temos pouco tempo para partilhar o que estamos pensando sobre aquele caso.
Aqui cada usuário tem uma referência técnica, mas de certa forma as intervenções
são feitas também por outros profissionais, de forma interdisciplinar, essa é a
proposta do serviço, mas às vezes você está atendendo um caso em uma certa linha
de intervenção e outros profissionais em outra. Isso de modo geral não é problema,
se torna problema quando as diferenças não somam, mas ao contrário, atravessam.
Mas isso é uma questão de aprendizado em equipe.” (Técnica 1)
“A multidisciplinariedade, os diferentes campos de saber, que é valorizar o outro
profissional, muitas vezes há a desvalorização de um saber não cientifico, é preciso
empoderar muitos técnicos no serviço, por exemplo, os enfermeiros.” (Técnica 2)
Aqui, os desafios observados relacionam-se ao amadurecimento da interação da
equipe da multidisciplinaridade para a interdisciplinaridade, ou seja, diferentes olhares
profissionais buscando criar uma sintonia de trabalho que vise o benefício singular de cada
usuário, convergindo os diferentes saberes para uma compreensão coletiva de cada caso,
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auxiliando mutuamente na elaboração das intervenções e acompanhamento da evolução do
usuário em questão. Isso se faz necessário, pois a proposta do serviço é de uma atuação
interdisciplinar. Desse modo, apesar de cada usuário ter um técnico de referência, as
intervenções são feitas de forma coletiva pelos vários profissionais através da realização de
assembléias, oficinas, rodas de conversa, entre outros.
5. Considerações Finais
A partir das entrevistas e das referências teóricas estudadas foi possível perceber que o
projeto terapêutico singular valoriza e prioriza o usuário do CERSAM-AD e busca implicá-lo
na vivência do serviço. O aporte teórico nos permitiu uma aproximação da realidade do
campo de estudo, sendo possível perceber que os projetos terapêuticos refletem as concepções
sobre a produção do cuidado formatadas nas bases dos serviços de saúde. Além disso, vimos
que o cuidado no CERSAM-AD está atrelado ao dispositivo do acolhimento, que cria vínculo
e responsabilidade com o usuário, garantindo uma atenção continuada através de uma escuta
qualificada por parte da equipe e buscando uma solução para o caso em estudo, sem
desmerecer e desqualificar o desejo e o discurso de cada sujeito.
Nas entrevistas ficou claro que os sujeitos e suas demandas são valorizados no serviço
em questão, buscando-se a implicação dos mesmos no tratamento e sua responsabilização
pelas escolhas feitas. Além disso, tem-se como valor fundamental a inserção social do
usuário, com vistas à ampliação dos seus recursos e qualidade de vida no tempo que cada um
demandar.
Enfim, através desse artigo foi possível refletir sobre uma proposta de cuidar que
envolve a integralidade do sujeito, o seu ambiente e suas relações, através do uso dos
equipamentos comunitários existentes e da potencialização da conscientização e
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responsabilização dos usuários. Desse modo, aposta-se na revisão do modelo formal médico x
paciente, possibilitando um olhar mais ampliado sobre a clínica, comprometida agora com o
sujeito e sua singularidade, o que faz desse dispositivo, a clínica ampliada, um importante
instrumento para proporcionar mudanças nas práticas de saúde e nas ofertas dos serviços.
A implementação de fato do projeto terapêutico singular como um recurso na atenção
ao usuário de álcool e outras drogas ainda tem muito a caminhar, sendo necessário o
aperfeiçoamento dos mecanismos de participação dos usuários, além de uma formação
continuada dos profissionais da área da saúde, com vistas à desconstrução da hegemonia do
saber médico, possibilitando o intercâmbio do saber científico com o saber do usuário, a fim
de se traçar metas para um caminho singular a ser percorrido em cada caso.
6. Referências
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18
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