Universidade Federal de Uberlândia Faculdade de Medicina Disciplina de Emergências Médicas Insuficiência renal aguda Insuficiência renal aguda em pacientes críticos Definições Classicamente a insuficiência renal aguda (IRA) é definida como “uma diminuição abrupta e sustentada da função renal” Diferentes autores têm escolhido diferentes métodos de avaliação da função renal e diferentes graus de anormalidade como limiar para o diagnóstico. Existem atualmente mais de 30 definições na literatura Apesar dos rins possuírem numerosas funções (excreção de líquidos e solutos, balanço ácido-básico, endócrinas), na prática clínica é aceito que as funções que são rotineiramente mensuradas e são exclusivas dos rins são a produção de urina e a excreção de escórias nitrogenadas Nestas diretrizes definiremos IRA como uma diminuição abrupta e sustentada na filtração glomerular, débito urinário ou ambos por abrupta entende-se a instalação entre 1 e 7 dias e por sustentada aquela que permanece por mais de 24 horas a filtração glomerular é avaliada pela creatinina sérica por conveniência clínica, sendo mais importantes as variações a partir da condição basal do que o valor absoluto Uma mesma dosagem de creatinina não corresponde ao mesmo ritmo de filtração glomerular em todos os pacientes, já que existem diferenças significativas se considerados idade, sexo e etnia. É a variação da creatinina basal que determina ao diagnóstico de IRA Se a creatinina basal não é conhecida pode ser estimada pela fórmula simplificada MDRD (modification of diet in renal diseases) Tabela 1 O débito urinário é mais sensível que os marcadores bioquímicos nas variações da função renal. Entretanto é muito menos específico a não ser que esteja diminuído ou ausente Os pacientes com insuficiência renal aguda devem ser classificados em 3 níveis – risco, lesão e insuficiência – de acordo com a creatinina sérica ou débito urinário, o que for mais grave (Tabelas 2 e 3). A variação aguda na creatinina basal deve ser de, no mínimo, 0.5mg% Insuficiência renal aguda-em-crônico Em pacientes com lesão renal pré-existente utilizam-se critérios diferentes. Uma elevação aguda de pelo menos 0.5 mg% na creatinina sérica basal chegando a valor igual ou superior a 4.0 mg% identifica a maioria dos pacientes crônicos com lesão aguda superimposta Recuperação Recuperação completa Creatinina após resolução em valores não superiores a 1.5 vezes a creatinina basal Recuperação parcial Creatinina após resolução em valores superiores a 1.5 vezes a creatinina basal, mas sem necessidade de diálise crônica IRA persistente Perda completa da função renal por mais de 4 semanas Doença renal terminal Necessidade de diálise por mais de 3 meses Etiologia A etiologia da IRA é dividida em pré-renal, intra-renal ou renal e pós-renal Azotemia pré-renal descreve qualquer situação que leve a diminuição da perfusão renal incluindo depleção de volume intravascular, hipotensão relativa, débito cardíaco comprometido e síndrome hepatorrenal A doenças intra-renais afetam as estruturas do néfron como glomérulos, túbulos, pequenos vasos ou interstício A condição mais comum é a necrose tubular aguda (NTA) induzida por isquemia ou toxinas. A NTA ocorre quando a redução do fluxo sanguíneo renal é grave ou prolongada o suficiente para causar morte celular Azotemia pré-renal e NTA ocorrem como um continuum de um mesmo processo. Estas duas condições respondem por 75% dos casos de IRA Doença pós-renal significa obstrução do fluxo urinário em qualquer ponto entre a pelve renal e a uretra. Responde por 5% dos casos Freqüentemente múltiplas etiologias contribuem para a instalação da IRA As principais causas são listadas na Tabela Diagnóstico História e exame clínico Índices urinários Relação uréia/creatinina A relação uréia:creatinina > 40:1 sugere hipoperfusão renal. Paciente com cirrose ou outros estados de carência protéica podem apresentar hipoperfusão com relação normal Sódio urinário Osmolalidade urinária A densidade urinária, na ausência de substâncias de alto peso, pode refletir a osmolalidade urinária Osmolalidade superior a 400 mOsm/kg freqüentemente está associada a azotemia pré-renal Densidade de 1010 indica uma osmolalidade urinária de 300 mOsm/kg (isostenúria). Ocorre em condições normais mas também na NTA, refletindo a perda da capacidade renal de concentrar e diluir a urina Fração de excreção de sódio (FENa) = [(UNa x PCr) / (PNa x UCr)] x 100 É a porcentagem do sódio filtrado que é excretado na urina. Na presença de oligúria uma FENa < 1% sugere hipoperfusão, enquanto valores superiores a 1% sugerem doença renal intrínseca. Perde o valor se diuréticos ou expansão volêmica significativa forem realizados antes da coleta Ultrassonografia Deve ser utilizada precocemente para observar obstrução, tamanho dos rins e ecogenicidade. Biópsia renal Avaliação da IRA se houver síndrome nefrítica ou nefrótica ou insuficência renal de início recente sem causa definida. Página 2 de 7 Exame de urina Muitos autores advogam a realização do exame de urina em todos os casos. No entanto, na prática, este exame raramente promova mudança no diagnóstico ou tratamento da IRA O principal papel do exame de urina é identificar evidência de glomerulonefrite (cilindros hemáticos) ou nefrite intersticial (eosinofilúria > 1%). Estes achados quando presentes indicam tratamentos específicos. Na necrose tubular aguda o exame de urina é inespecífico. O clássico achado de cilindros não é sensível nem específico Marcadores de lesão KIM-1 A Kidney Injury Molecule 1 pode ser detectada na urina de paciente com NTA e pode vir a servir como um biomarcador útil para lesão tubular proximal, possivelmente possibilitando o diagnóstico precoce e discriminar entre as diversas formas de IRA Cyr61 Proteína Ligada a Heparina Rica em Cisteína é rapidamente induzida nos túbulos proximais após isquemia renal podendo servir como um marcador urinário precoce de lesão renal Prevenção Otimizar a volemia Evitar ou corrigir de imediato quadro de hipotensão Identificar pacientes de risco (idosos, IRC, diabéticos) eviatndo drogas nefrotóxicas. Utilizar medidas profiláticas para nefropatia por radiocontraste Diuréticos Manitol pode ser útil em prevenir a ira em radbomiólise e pós-transplante Alguns estudos mostraram que pacientes tratados com diuréticos de alça têm maior risco de morte e de não recuperação da função renal. Um estudo multicêntrico maior não confirmou estes achados. Prognóstico O quadro é tanto mais grave quanto maior o número de comorbidades A Tabela 4 indica os principais fatores prognósticos Tratamento Diálise Indicações Absolutas Hipervolemia associada a dificuldade ventilatória ou edema cerebral Hiperpotassemia com alterações eletrocardiográficas ou acima de 6.5 mEq/L, não sendo possível ou desejável a remoção do potássio por outros meios Acidose metabólica com pH < 7.20 Azotemia severa, na presença ou não de hipercatabolismo Encefalopatia urêmica Serosite urêmica, especialmente pericardite Diátese hemorrágica secundária a uremia Página 3 de 7 Falência renal associada a intoxicação por droga removível Disnatremia severa sem possibilidade de manejo conservador Relativas Oligúria (<200ml/12 horas) ou anúria (<50ml/12horas ) após adequada reposição volêmica Congestão pulmonar por insuficiência cardíaca refratária ao tratamento medicamentoso Remoção de mediadores inflamatórios na SIRS Otimização da homeostasia de paciente com indicação de intervenção Hipertermia > 39.9º C Não existem evidências que fundamentem todas estas indicações da terapia de substituição na IRA, mas com base em consenso e experiência clínica recomenda-se iniciar um método dialítico nas indicações absolutas e de forma individualizada nas relativas Nenhum método dialítico no paciente crítico é superior aos demais em relação a diminuição da mortalidade ou redução do tempo de recuperação da função renal Estudos que correlacionam a adequação da diálise a morbimortalidade indicam que a terapia de substituição renal deve ser iniciada antes que ocorram complicações associadas à falência renal Os métodos dialíticos contínuos provavelmente provêm uma maior estabilidade hemodinâmica nos pacientes com IRA em UTI, sendo preferencialmente indicados para remoção de volume em pacientes congestos e hemodinamicamente instáveis Em relação à IRA associada a sepse não existem dados sobre o efeito da hemodiálise intermitente e os estudos comparando métodos contínuos são insuficientes para recomendação de uma técnica específica Não existem dados que permitam indicar método específico para correção de acidose metabólica Os dados disponíveis são também insuficientes para indicar um método específico nos pacientes com ou sob risco de edema cerebral A escolha do método dialítico deve ser individualizada, tendo como base o julgamento clínico criterioso, os recursos humanos e materais e a experiência da equipe Métodos contínuos são preferenciais em: Pacientes hipercatabólicos Controle de volume no paciente congesto e hemodinamicamente instável Métodos intermitentes são preferenciais em: Diálise sem anticoagulação em pacientes com alto risco de sangramento Não indicação ou suspensão da diálise é adequada nas seguintes situações: em pacientes com prejuízo neurológico profundo, irreversível, que não apresentem sinais de pensamento, sensação, comportamento adequado e reconhecimento de si mesmo e do ambiente em pacientes que previamente indicaram recusa informada (verbal ou escrita) de dialisar, ou quando seus representantes legais a recusam quando o paciente tem doença terminal não renal ou cuja condição impeça o processo técnico de diálise Se a diálise é urgente e o representante legal do paciente a deseja ela deve ser realizada A hemodiálise diária extendida é uma opção alternativa que integra o método contínuo e intermitente, mas exige alto grau de treinamento A diálise peritoneal pode ser indicada em pacientes sem hipercatabolismo ou se for o único método disponível Página 4 de 7 Tabela 1 Creatinina basal estimada - fórmula simplificada MDRD (modification of diet in renal diseases) Homens Idade (anos) Mulheres Negros Brancos Negras Brancas 20-24 1.5 1.3 1.2 1.0 25-29 1.5 1.2 1.1 1.0 30-39 1.4 1.2 1.1 0.9 40-54 1.3 1.1 1.0 0.9 55-65 1.3 1.1 1.0 0.8 > 65 1.2 1.0 0.9 0.8 Tabela 2 Creatinina basal (mg%) 0.5 1.0 1.5 2.0 2.5 3.0 Risco 0.75 1.5 2.25 3.0 3.75 -x- Lesão 1.0 2.0 3.0 -x- -x- -x- Insuficiência 1.5 3.0 4.0 4.0 4.0 4.0 Tabela 3 Débito urinário Risco <0.5 ml/kg/hora por 6 horas Lesão <0.5 ml/kg/hora por 12 horas Insuficiência <0.3 ml/kg/hora por 24 horas ou anúria por 12 horas Tabela 4 1 Lesão renal prévia Nenhuma 2 IRC estágio 2 3 IRC estágio 3 ou mais 4 IRC estágio 3 com fator de risco Insulto Natureza Conhecida Conhecida Desconhecida Desconhecida Tempo Até 24 horas 24 a 48 horas > 48 horas Desconhecido Aumento de 0.5 a 1 Aumento de 1 a 2 Aumento > 2 mg% Aumento > 3 mg% mg% mg% < 0.5 ml/kg/h por 3 < 0.5 ml/kg/hora por <0.3 ml/kg/h por 24 Anúria horas 12 a 23 horas horas ou anúria por Resposta renal ao insulto Creatinina sérica Volume urinário 12 horas Lesões extra-renais (SOFA) Nenhuma Um órgão Dois órgãos > 2 órgãos Página 5 de 7 Tabela 5 - Estágios da doença renal crônica Estágio Descrição 1 Lesão renal com RFG normal ou aumentado Filtração glomerular (ml/min/1.73 m2) ≥ 90 2 Lesão renal com RFG levemente reduzido 60-89 3 Diminuição moderada do RFG 30-59 4 Diminuição grave do RFG 15-29 5 Insuficiência renal <15 ou diálise Doença renal crônica é definida como lesão renal ou RFG <60 ml/min/1.73m2 por mais de 3 meses Lesão renal é definida como anormalidades patológicas ou marcadores de lesão incluindo exames de sangue, urina ou de imagem Fatores de risco Diabetes mellitus com microalbuminúria, hipovolemia, mieloma múltiplo, IC e cirrose descompensada Tabela 6 - Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) escore 0 1 2 3 4 > 400 400 3001 2001 1001 > 150 150 100 50 20 < 1.2 1.2 – 1.9 2.0 – 5.9 6.0 – 11.9 > 12.0 PAM2 70 PAM < 70 Dopamina 5 ou Dobutamina (qq. Dose) Dopamina > 5 ou adrenalina 0.1 ou noradrenalina 0.1 Dopamina > 15 ou adrenalina > 0.1 ou noradrenalina > 0.1 15 13 – 14 10 – 12 6–9 <6 < 1.2 1.2 – 1.9 2.0 – 3.4 3.5 – 4.9 < 0.5 > 5.0 < 0.2 1 Respiratório PaO2/FiO2 Hematológico Plaquetas(x 1000/mm3) Hepático Bilirrubina sérica, mg/dL Cardiovascular Hipotensão Neurológico Escala de coma de Glasgow Renal Creatinina sérica, mg/dL débito urinário (L/dia) Os agentes adrenérgicos (dopamina, dobutamina, adrenalina e noradrenalina) devem ser administrados em perfusão contínua EV, de duração superior a uma hora. As doses indicadas estão em micrograma/kg/minuto. 1 : com suporte ventilatório 2 : PAM: pressão arterial media, mmHg Página 6 de 7 Pré-renal Hipovolemia perdas urinárias, cutâneas, gastrintestinais hemorragias perdas para 3º espaço baixo débito cardíaco Hipotensão sepse induzida por medicamentos/anestesia hipotensão relativa (abaixo níveis autoregulatórios) síndrome hepatorrenal Farmacológica AINE IECA Grandes vasos trombose, embolia, dissecção Renal Túbulos Necrose tubular aguda Isquêmica (hipovolemia, hipotensão, sepse) Tóxica Contraste intravenoso aminoglicosídeos anfotericina B mioglobina hemoglobina outros Obstrução ácido úrico, oxalato de cálcio, aciclovir, indinavir Interstício Nefrite intersticial aguda Pielonefrite bilateral Infiltrativas (linfoma, sarcoidose) Ácido aristolócico (fitoterápico chinês) Pequenos vasos Hipertensão maligna Púrpura trombocitopênica trombótica CIVD Síndrome hemolítico-urêmica Glomérulos Glomerulonefrite aguda ou rapidamente progressiva Vasculites Pós-renal Ureteral Tumores, cálculos, coágulos, fibrose retroperitoneal Bexiga Tumores, cálculos, neurogênico, aumento de próstata Uretral Estenose, tumores, obstrução de catéteres Página 7 de 7