Treino de força após o AVC - Revista de Medicina Desportiva

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Tema 3
Rev. Medicina Desportiva informa, 2012, 3 (3), pp. 19–21
O acidente vascular cerebral
e a força muscular:
estudo de revisão
Dra. Carla Afonso
Especialista em Medicina Física e Reabilitação, Pós-graduada em Medicina Desportiva. Centro de
Medicina e Reabilitação – Alcoitão, Lisboa.
Resumo Abstract
A diminuição da força muscular é uma das consequências nos indivíduos que sofreram
AVC com sequelas motoras. Muitos estudos referem que o fortalecimento muscular é
uma das ferramentas no processo de reabilitação no indivíduo com AVC, embora exista
controvérsia por puder existir efeitos secundários, como o agravamento da espasticidade.
Foi feita uma análise baseada na revisão bibliográfica encontrada na MEDLINE entre 2006
e 2011. A análise revela que o treino de força muscular, associado a exercícios funcionais
proporciona efeito positivo, evidenciado pela aplicação de diferentes testes motores. Não
foi encontrada evidência sobre o agravamento da espasticidade após o treino de força
muscular.
The decrease of the muscle strength is one of the consequences in the subjects suffering a stroke
with motor sequels. Several studies refer that muscle training is one of the tools in the rehab
process of the subject with stroke, although some controversy exists about the secondary effects,
such as the worsening of the spasticity. It was done an analysis based on the review of the literature
found on the MEDLINE between 2006 and 2011. The analysis reveals that strength training associated to other functional exercises creates a positive effect demonstrated on several muscle testing.
No evidence about the worsening of spasticity after the strength training.
Palavras-chave Keywords
Acidente vascular cerebral, fortalecimento muscular
Stroke, strength training
Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC)
pode ocorrer devido ao défice de
aporte sanguíneo (isquémia) ou
por hemorragia no tecido cerebral,
conduzindo a danos cerebrais e a
défices neurológicos. Das manifestações clínicas resultantes do AVC
encontram-se as sequelas sensitivas,
cognitivas e motoras, que podem
condicionar alterações na capacidade funcional, independência e
qualidade de vida destes indivíduos,
sendo os mesmos fatores responsáveis e determinantes na integração
social1.
É cada vez maior a prevalência do AVC devido ao aumento da
população idosa e da elevada taxa
de sobrevivência destes indivíduos,
tornando-se necessário a adoção
de formas alternativas de tratamento, com o intuito de reduzir as
disfunções, os custos sociais e os
do próprio doente e da sua família.
Considerando todos os fatores apontados, adiciona-se a estes o facto
de após a fase aguda os doentes
apresentarem défices limitantes e
de nem sempre existirem programas de reabilitação que incluam e
abordem doentes crónicos de forma
adequada. Deve ser também tido em
conta que o indivíduo com mais de
65 anos apresenta redução da força
muscular, fator que influencia diretamente na independência e funcionalidade dos indivíduos2.
O principal défice funcional no
AVC foi considerado, por muitos
autores, a espasticidade, quando
esta está presente no quadro clínico,
não existindo relação deste défice
e a diminuição da força muscular,
também apresentada no quadro
motor destes indivíduos. Nos trabalhos mais antigos que abordavam
este tema, o treino de força muscular era considerado um promotor
de exacerbação de padrões anormais
do movimento e de agravamento
Revista de Medicina Desportiva informa Maio 2012 · 19
da espasticidade3,4. Os estudos mais
recentes vieram contrapor um pouco
esta ideia, evidenciando uma relação
positiva entre o ganho de força muscular e a melhoria do desempenho
funcional5,6,7,8.
A força muscular é definida como
a capacidade de o músculo produzir tensão suficiente para provocar
movimento ou manter a postura,
sendo o resultado de propriedades
músculo-esqueléticas e de ativação
neuronal (número e tipo de unidades
motoras recrutadas e a frequência de
ativação)4. Em indivíduos com lesão
cerebral foi identificado, em diferentes estudos, défice de força e de
resistência muscular decorrente de
várias alterações fisiológicas, nomeadamente caraterísticas neurofisiológicas relacionadas com o comportamento de ativação neuronal,
traduzidas por diferenças significativas entre o recrutamento de unidades motoras no membro afetado
comparativamente ao membro não
afetado, indicando a incapacidade do
sistema nervoso central em modular
a frequência de ativação da UM9,10,
tendo como consequência a atrofia
seletiva das fibras musculares do
tipo I e II como efeitos da fraqueza
muscular prolongada. Quando
comparado com indivíduos sem
lesão cerebral, os défices maiores
encontraram-se do lado afetado. No
entanto, existe uma certa resistência em se utilizarem programas de
treino que envolvam fortalecimento
muscular, devido ao receio de puder
aumentar o padrão espástico, caraterístico desta patologia11.
Os défices de força muscular são
responsáveis por alterações funcionais importantes, tais como a deambulação, a realização das atividades
de vida diária, podendo comprometer a sua independência. Quando se
faz a comparação com indivíduos
normais da mesma faixa etária, os
doentes com quadro de hemiplegia/
parésia apresentam limitações da
performance funcional e, quando
submetidos a programas de treino
específico, respondem bem aos
programas que utilizam o fortalecimento muscular e o treino aeróbio12.
Idealmente deveriam existir programas de reabilitação que potenciassem, não só a funcionalidade do
individuo, bem como a atividade e
a participação do mesmo no meio
20 · Maio 2012 www.revdesportiva.pt
onde se encontra inserido13.
O presente estudo tem como principal objetivo a revisão bibliográfica
sobre o efeito do treino de força muscular na funcionalidade e na espasticidade em indivíduos que sofreram
AVC com sequelas motoras.
Material e Métodos
Foi realizada uma pesquisa na
base de dados da biblioteca virtual
MEDLINE no período entre 2006 e
2011, utilizando como palavras-chave: “stroke”, “muscle strength”.
Foram utilizados resumos e artigos
completos, bem como a análise
adicional de referências na literatura
específica do tema. Como critério de
inclusão foram selecionados os artigos que abordavam o treino de força
muscular em indivíduos com quadro
sequelar de AVC.
Resultados
Ver tabela
Discussão
Embora documentada em várias
fontes bibliográficas a contraindicação do treino de força em doentes
com espasticidade, alguns autores
investigaram os efeitos do treino
de força muscular sobre a espasticidade e a funcionalidade. Esses
mesmos autores evidenciaram que
este tipo de treino traria melhoras
da força dos músculos treinados,
sem implicar o aumento de espasticidade e sugerindo a relação positiva
entre o ganho de força muscular e a
função motora.
O défice na independência funcional encontra-se diretamente ligado a
um conjunto de fatores que dificultam o controlo motor, nomeadamente: fraqueza muscular, incoordenação dos músculos sinergistas,
rigidez, entre outros. A fraqueza
muscular apresenta-se, assim, como
fator importante em relação aos
défices da performance funcional
na marcha e na independência em
doentes com AVC.
O estudo de Sullivan et al de 2006
verificou a melhoria na força dos
membros inferiores e da velocidade
da marcha após o treino de marcha em tapete rolante com suporte
parcial do peso corporal alternado
com cicloergómetro dos membros
inferiores. Os autores relacionaram
a recuperação funcional da marcha
com o aumento da amplitude do
grande glúteo e da ativação do glúteo
médio, pela melhoria da unidade
de ativação motora associada ao
aumento de força dos músculos
chave na marcha. No estudo de
Sullivan et al de 2007 também foi
utilizado o treino de marcha com
suporte parcial do peso corporal e foi
associado treino cruzado em tapete
rolante, cicloergómetro de membros
inferiores e membros superiores, e
de exercícios resistidos dos membros inferiores, verificando-se que
os melhores resultados foram nos
grupos que utilizaram a associação
treino de marcha e cicloergómetro
dos membros superiores, tendo sido
sugerido que a associação treino de
marcha e cicloergómetro dos membros inferiores gerou sobrecarga, sem
adição benéfica à marcha.
O estudo de Combs et al (2007) também utilizou o treino de marcha com
suporte parcial do peso corporal e fortalecimento muscular dos membros
inferiores com atividades isocinéticas
e isotónicas, tendo como resultado
a melhoria de todas as variáveis
mensuradas mas, contudo, o estudo
foi limitado a apenas um sujeito e os
autores sugeriram novos estudos com
amostra de maiores dimensões para
definição de protocolos.
Ns estudos de Cramp et al e Yang
et al, a maior ênfase foi dada ao
fortalecimento muscular e todos
obtiveram melhoria funcional. Nos
estudos de Chang et al e Patten et al
a intervenção foi a nível dos membros superiores, tendo Chang et al
Estudo
Instrumento de
avaliação
Tapete rolante com suporte
parcial do peso corporal e
cicloergometro isocinético
4 x semana
6 semanas
Análise de marcha
Eletromiografia antes e após
intervenção
Teste 10 metros de marcha
Melhoria da velocidade de marcha no
teste 10 minutos de marcha; aumento
da ativação dos grande e médio glúteos;
aumento da extensão da anca e joelho
nas fases de apoio e oscilante
48
Treino dos membros
inferiores com resistência
associada ao treino de
tarefa
4 semanas
Força do membro inferior
Velocidade da cadência da
marcha
Comprimento do passo
Teste dos 6 minutos de marcha
Teste dos 10 metros de marcha
Teste time up and go
Aumento da força muscular do lado
parético e contralateral, significante
melhoria de todos os testes
1
Treino de resistência de
alta intensidade associado
a práticas de tarefas
funcionais
3 horas /dia,
6 dias/semana
7 semanas
Escala de impacto do AVC
Ganho de força isométrica e dinâmica
em 5 ações com o M. Sup., aumento da
ativação eletromiográfica e melhoria
clínica e funcional do M. Sup afetado.
Não houve aumento de espasticidade
10
Treino de força progressiva
do membro Inferior de
baixa intensidade
2 x semana
24 sessões
Força concêntrica e isométrica
dos extensores do joelho
Teste dos 10 metros de marcha
Aumento da força concêntrica e
excêntrica dos extensores do joelho e
aumento da velocidade da marcha
80
4 grupos
Em pares: 1 com 2; 3 com 2;
1 com 4; 3 com 4
1-tapete rolante com
suporte parcial do peso
corporal
2 – cicloergometro de
membros superiores
3 – cicloergometro de
membros inferiores com
resistência
4 – exercício resistido
progressivo dos membros
inferiores
4xsemanas
6 semanas
(alternância de dias)
Velocidade de marcha
Velocidade de marcha rápida
Teste dos 6 minutos de marcha
Todos os grupos melhoraram
velocidade de marcha, embora o melhor
resultado tenha sido 1 com 2. Os grupos
que realizaram 1 aumentaram de
endurance.
20
Treino isocinétio para
membro superior com
auxílio de robótica
combinada com
reabilitação convencional
da função
40 minutos/sessão
(10 min reabilitação
convencional e 30
min de reabilitação
motora de membro
superior)
3 x semana
8 semanas
Escala Fugl-Meyer para o
membro superior
Função motora do membro
superior
Teste do membro superior de
Frenchay
Escala de Ashworth modificada
Medidas de força no membro
parético
Análise cinemática de marcha
Melhoria de resultados em todos os
testes antes e após intervenção
1
Protocolo de treino
combinado com
tapete rolante com
suporte parcial do peso
corporal e exercícios de
fortalecimento muscular
dos membros inferiores
3 x semana
6 semanas
Escala de Fugl-Meyer
Escala de Berg
Teste 6 minutos de marcha
Teste dos 10 metros de marcha
Significativa melhoria da ativação
motora, velocidade de marcha,
equilíbrio e endurance
Revisão sistemática
Treino de resistência é eficaz no
aumento de força de doentes que
tenham sofrido AVC, sem grande
evidência de melhoria funcional
Revisão sistemática –
metanálise
As intervenções de resistência
aumentam a força e podem melhorar a
atividade funcional, sem aumentarem a
espasticidade
Revisão sistemática –
metanálise
Demonstrou evidência que o treino
de força pode melhorar a função, sem
aumentar o tónus ou dor. Importante
a realização de estudos futuros para
investigar a intensidade, frequência,
especificidade do treino de resistência de
forma a melhorar a performance das AVD.
Tipo de treino
1
Harris 2010
Ada 2006
Bohannon
2007
Combs 2007
Chang 2007
Sullivan 2007
Cramp
2006
Patten 2006
Yang 2006
Sullivan 2006
Tempo de
intervenção
N
Resultados
Revista de Medicina Desportiva informa Maio 2012 · 21
utilizado intervenção robótica para o
fortalecimento e Patten et al utilizado o treino de tarefas funcionais.
Em ambos se observou melhoria na
força muscular e funcionalidade, não
se observando aumento de espasticidade, nem compromisso músculo-esquelético com o treino realizado.
Os estudos de Bohannon (2007),
Ada (2006) e Harris et al (2010)
foram estudos de revisão sistemática. Analisaram estudos que utilizaram o treino resistido e concluíram
que este treino aumenta a força
muscular dos doentes, embora não
tenha existido concordância de que
o ganho de força muscular pudesse
gerar efeito sobre aspetos funcionais.
Bohannon et al verificaram ganho
funcional nas AVD quando se utilizaram os movimentos semelhantes
ao treino, mas Ada et al refererem
que houve melhoria das atividades,
mas com baixo efeito de transição,
atribuído ao facto de que o treino
muscular se verificou, na maioria
dos estudos, em apenas um ou dois
grupos musculares e sem grande
impacto na melhoria da funcionalidade. Harris observou que existe
evidência que o treino de força pode
melhorar a função, sem aumentar
o tónus ou dor, sendo importante a
realização de estudos futuros para
investigar a intensidade, a frequência e a especificidade do treino de
resistência de forma a melhorar a
performance das AVD.
Conclusão
O treino de fortalecimento muscular
deve ser incluído no programa de
reabilitação dos doentes com AVC,
sem existir o risco de aumentar a
espasticidade e com grande probabilidade de obter melhoria significativa das funções motoras, nomeadamente na marcha e nas tarefas
funcionais dos membros superiores,
sobretudo quando o treino é realizado em associação com o treino de
membros superiores. Não existe consenso em relação ao tipo de treino a
ser utilizado, pelo que seria importante realizar no futuro estudos
que permitissem a criação de um
protocolo guideline para o tratamento
funcional destes doentes.
22 · Maio 2012 www.revdesportiva.pt
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