INFORMATIVO ESA/MS – FEVEREIRO. ANALISE DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DO PACIENTE (BIOÉTICA/BIODIREITO) Bruno Marini, Presidente da Comissão de Biodireito (OAB/MS), e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP). 1 – Beneficência Médica e Autonomia do Paciente: Princípios Conflitantes? Conforme demonstrado em nosso primeiro artigo, a Autonomia consiste basicamente em o paciente decidir, livre da gerência externa, se utilizará ou não um determinado tratamento. A Beneficência, por sua vez, traduz na necessidade de o médico utilizar a medicina para o bem de seu paciente. Logo surge a seguinte questão: e se o paciente recusar um determinado procedimento que, segundo a opinião do profissional, seja a melhor para a sua saúde? Essa é uma questão intrigante para alguns médicos, pois os mesmos realizam o chamado “juramento de Hipócrates”, o qual diz: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento”. De fato, ao analisarmos o juramento hipocrático de per si, parece que este disponibiliza ao médico o direito de utilizar-se dos meios que ele acha ser o mais benéfico, independente da concepção do paciente. No entanto, esta visão tradicional hipocrática sobre a “Beneficência” (da época da Idade Média), deve agora ser encarada num contexto histórico e social diferente. Neste sentido, vivemos numa era em que cada vez mais os direitos do paciente e do cidadão (e aqui se inclui à autonomia) vêm ganhando mais destaque na Bioética, no Biodireito e na ciência jurídica como um todo. Ao contrário do que ocorria na Idade Média, o médico não é mais encarado como uma autoridade (de caráter quase que mítica) inquestionável e autoritária. Aliás, tal posição era constrangedora não só para o paciente que ficava a mercê de critérios e preferências alheias, mas até mesmo para o médico, pois toda a responsabilidade recaia sobre seus ombros! Assim, com base nessa abordagem, iremos propor uma solução para este aparente conflito de princípios que atenda as aspirações do paciente, sem se tornar constrangedora aos profissionais da medicina. 2 – Resolução do “aparente conflito”. De fato, conforme analisado acima, agora o médico pode compartilhar com seu paciente (se este o desejar) a responsabilidade e a análise do melhor tratamento não só do ponto de vista clínico, mas levando em consideração o “homem inteiro” (seus aspectos, emocionais, culturais, religiosos). Os professores Muñoz e Almeida delineiam com clareza e lógica a relação que há entre Beneficência e Autonomia: “Respeitar a autonomia das pessoas competentes pressupõe beneficência: quando as pessoas são competentes para escolher, ainda que a escolha não seja a que faríamos, respeitar suas escolhas é um ato beneficente. Isto permite que seus desejos sejam respeitados em circunstâncias que os afetem diretamente”.1 (Destaque nosso). O professor Affonso Renato Meira, também raciocina: “Dentro de sociedades autocratas, com o domínio de uma camada sobre outras, o médico, com seu etnocentrismo profissional e com seu desejo de fazer o bem, determinava o que devia e o que não devia ser feito quando se tratava de saúde... Com as tendências renovadoras da segunda metade do século 20 mostrando o caminho da democracia às sociedades autocratas e, realmente, com o aparecimento do pensamento bioético, o entendimento do papel do médico e dos demais profissionais de saúde se viu modificado... É necessário saber o que é bom, qual o bem que o paciente considera para si.”.2 (Destaque nosso). Assim sendo, longe de haver um conflito, na realidade o Princípio da Beneficência reforça o respeito à “Autonomia”, pois respeitar a escolha do paciente é um ato beneficente. 3 – Casos práticos: Testemunhas de Jeová, portadores de câncer e Eutanásia. Alguns talvez questionem se no caso das Testemunhas de Jeová (que recusam transfusões de sangue), dos portadores de câncer (que recusam quimioterapia) e dos doentes em fase terminal (Eutanásia), a Autonomia deve ser respeitada. No que diz respeito a Eutanásia, este assunto será abordado no próximo artigo. Iremos aqui abordar as duas primeiras questões. No caso das Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue, a jurisprudência brasileira ainda prende-se a visão tradicional de que estaríamos diante do conflito do “direito a vida” versus “liberdade religiosa”, e que o primeiro deve prevalecer. Essa visão, no geral, não é mais aplicada no Direito da América do Norte e da Europa Central. No entanto, tal visão dos tribunais brasileiros é compreensível, tendo em vista que o pensamento democratizador da Bioética e do Biodireito ainda não faz parte da realidade de 1 2 D.R. Muñoz e M. Almeida. Noções de Responsabilidade em Bioética, apud,, Segre & Cohen. Bioética, p.95. Affonso Renato Meira. O direito de dizer não. “O Estado de São Paulo”, 11 de outubro de 1994, p. XX. nossos julgadores, ao contrário do que ocorre nos EUA, Canadá e Europa Central (sobretudo Alemanha, Inglaterra e Itália). É interessante que o Drº Volnei Garrafa (presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e pós-doutorado em Bioética pela Universidade de Roma), raciocina: “Casos, como o de uma Testemunha de Jeová que não deseja que lhe seja administrado sangue sob qualquer hipótese, devem ser considerados a partir do princípio bioético da autonomia do paciente sobre seu corpo e sua integridade moral, e não a partir da fórmula de que a ‘preservação da vida é bem jurídico maior do que a liberdade da própria pessoa’. É aí, exatamente, onde reside a modernidade e o espírito democrático da bioética – livre de paternalismos que se confundem com a beneficência... Para a bioética, o que é ‘bem’ para uma comunidade moral não necessariamente significa ‘bem’ para outra, já que suas moralidades podem ser diversas”.3 Essa posição pode parecer estranha ao leitor que não tem muito contato com a Bioética. No entanto, alguns doutrinadores do Direito já têm entendido que no caso das Testemunhas de Jeová não é necessário ocorrer o sacrifício de nenhum bem jurídico. Isso se deve ao desenvolvimento de tratamentos alternativos a transfusão de sangue. Neste sentido, a literatura médica tem dados interessantes, os quais passamos a demonstrar de forma breve: No dia 16 de maio de 1962, o Dr. Denton Cooley realizou a primeira cirurgia de coração aberto, sem sangue, em uma Testemunha de Jeová. No ano de 1977 o Dr. Cooley publicou um relatório de 542 cirurgias cardiovasculares em Testemunhas de Jeová sem realizar transfusão de sangue, no qual ele declarou que os riscos eram baixos e aceitáveis.4 Quais os tipos de pacientes que a equipe do Dr. Cooley já operou? Bem, desde 1 (um) dia de vida até 89 anos de idade! O Dr. Craig Kitchens publicou um estudo envolvendo cirurgias em 1.404 Testemunhas de Jeová (sem o uso de transfusões de sangue), relatando: “Os conceitos religiosos do paciente não foram violados pela transfusão, e o tratamento de menores não foi ofuscado por mandados judiciais ou por algo semelhante... Além do número baixo de mortes registradas nestes... relatórios, não houve aumento de derrames, infartos do miocárdio, insuficiência renal aguda, infecções pós operatórias, demora de cicatrização das feridas [cirúrgicas], ou de outras moléstias em pacientes Testemunhas de Jeová, em comparação com outros pacientes... O mais importante é que 20% dos 1.404 pacientes [281], evitaram, sem o saber, algumas complicações por evitarem a transfusão”.5 No “20º Congresso Nacional de Cirurgia Cardíaca” (realizado em 1993), o Dr. Sérgio Almeida de Oliveira (com base na realização de 91 procedimentos cirúrgicos 3 Volnei Garrafa, Bioética e ética profissional: esclarecendo a questão, p. 28. Vídeo: Estratégias Alternativas à Transfusão: Simples, Seguras e Eficazes, 2002. 5 Associação Torre de Vigia das Testemunhas de Jeová. Compêndio: Cuidados com a família e Tratamento Médico para as Testemunhas de Jeová – Aspectos Éticos/Legais, p. 22. 4 cardiovasculares em Testemunhas de Jeová que variavam dos 6 meses de idade aos 74 anos), declarou que muitos pacientes Testemunhas de Jeová podem ser submetidos à cirurgia cardíaca sem uso de sangue ou derivados, com boa margem de segurança.6 Em casos de emergência, como nos acidentes de trânsito nos quais se perde muito plasma (parte líquida do sangue), utilizam-se os Expansores do volume do Plasma, tais como os Cristalóides (incluindo a solução salina, lactato de Ringer e a solução salina hipertônica), os quais são fluidos intravenosos compostos de água, com vários sais e açucares, que têm a função de manter o volume circulatório do sangue no corpo. Do mesmo modo, os Colóides são fluidos compostos de água, misturada com partículas bem diminutas de proteínas, os quais mantêm os níveis de proteína sangüínea estabilizando o equilíbrio dos fluidos e o volume circulatório do sangue no corpo. Entre estes incluem o pentastarch, hetastarch (hidroxietila de amido) e o dextran. No município de Campo Grande, MS, muitos profissionais já utilizam essas técnicas e tratamentos em Testemunhas de Jeová, evitando transfusões de sangue. No que diz respeito a quimioterapia, muitos também achariam um absurdo aceitar a idéia de alguém rejeitar tal tratamento. No entanto, nem sempre é fácil submeter-se ao mesmo. Interessante o depoimento de uma pessoa que passou por este sofrimento: "Durante a quimioterapia, que durou três meses, eu só tinha vontade de dormir, e vomitava muito. Fiquei fraca e desidratada, e cheguei a pesar 34 quilos. Sentia-me muito insegura, porque via as pessoas morrendo à minha volta e tinha medo de também não conseguir me curar".7 Neste caso, a paciente suportou bravamente os três meses. Mas, e o que dizer de uma pessoa que está num estágio em que a quimioterapia apenas iria estender o seu tempo de vida? Seria razoável forçá-la a submeter-se ao tratamento? Alguns talvez se apeguem a uma interpretação literal do “direito a vida” do caput do art. 5º da Constituição Federal. No entanto, nunca pode ser esquecido que o referido direito deve ser interpretado a luz da “Dignidade da Pessoa Humana” (art.1º, III, C.F.). Assim sendo, “direito á vida” não significa apenas manter a pessoa viva, mas envolve o direito a “uma vida digna”. Interessante que o Dr. Melvin A. Casberg, num jornal da comunidade médica americana, já dizia em 1967: “O médico perceptivo tem de estar cônscio destas facetas separadas, mas inter-relacionadas, do corpo, da mente e do espírito, e avaliar que a cura do corpo em face de uma mente ou dum espírito esfacelado não é senão uma vitória parcial, ou, até mesmo, completa derrota”.8 (Destaque nosso). Note que não estamos defendendo a possibilidade de o médico simplesmente decidir que é o momento de interromper o tratamento do paciente e assim fazê-lo. Apenas abordamos o caso do paciente que prefere viver um tempo “menor” sem o tratamento, ao 6 Idem, p. 21 Site “A Jornada” - http://www.ajornada.hpg.ig.com.br/colunistas/formiga/lcdf-0003.htm. 8 Associação Torre de Vigia das Testemunhas de Jeová . As Testemunhas de Jeová e a questão do sangue, p. 39. 7 invés de prolongar o tempo de vida (ou buscar uma possível cura) com os efeitos dolorosos do mesmo. Assim sendo, prestigia-se a decisão do próprio paciente. Mas e o que dizer então da Eutanásia? Será que poderíamos aplicar o mesmo raciocínio a todas as suas espécies? Qual é a posição dos juristas, tribunais e estudiosos da Bioética/Biodireito sobre o tema? Estas perguntas serão consideradas no nosso próximo artigo.