PALESTRA 20 RAIB 69 a DIAGNÓSTICO DAS CAUSAS INFECCIOSAS DE ABORTO EM BOVINOS Nadia Aline Bobbi Antoniassi, Adriana da Silva Santos, Eduardo Conceição de Oliveira, Caroline Argenta Pescador, David Driemeier Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Patologia Clínica Veterinária, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO Aborto refere-se à expulsão de um feto vivo ou morto do útero entre 42 dias até aproximadamente 280 dias de gestação, quando este é incapaz de exercer uma vida independente em um ambiente extra-uterino (HUBBERT et al., 1971). Relatos de abortos são freqüentes no Rio Grande do Sul e contribuem para os baixos índices de prenhez e nascimentos verificados na região (FERNANDES, 1998). Somente 30% a 40% dos fetos bovinos abortados apresentam diagnóstico etiológico definitivo em virtude das múltiplas causas envolvidas (KIRKBRIDE, 1990). Além disso, a expulsão do feto pode ocorrer algum tempo depois da morte fetal, resultando em autólise, dificultando a identificação e isolamento do agente etiológico (FERNANDES, 1998). Estudos baseados em diagnósticos etiológicos realizados em fetos bovinos abortados revelam que a maioria dos casos, com causa determinada é ocasionada por agentes infecciosos (ANDERSON et al., 1990; KIRKBRIDE, 1992). A obtenção do sucesso no diagnóstico de aborto depende de alguns fatores. O envio de fetos abortados, juntamente com a placenta, a realização de necropsia, incluindo coleta adequada de materiais e a execução de exames histopatológicos, microbiológicos, imunoistoquímicos, sorológicos e micológicos compõem o conjunto de métodos necessários para a obtenção do diagnóstico de causas de aborto (FERNANDES, 1998). PROCEDIMENTOS DE NECROPSIA Exame do feto e placenta Baseia-se inicialmente em um exame externo cuidadoso com o objetivo de averiguar possíveis alterações macroscópicas que possam auxiliar no diagnóstico. Áreas circulares multifocais branco-acizentadas na pele do feto bovino abortado principalmente na região da cabeça e dorso e espessamento dos cotilédones placentários podem ser um indicativo de aborto por fungos do gênero Aspergillus. Antes de iniciar os procedimentos de necropsia os fetos devem ser medidos da nuca até a inserção da cauda (BARR et al., 1990), pois existem determinados agentes infecciosos que retardam o crescimento fetal. Veja tabela abaixo (Tabela 1). Qualquer alteração macroscópica indicativa de anomalia fetal como fenda palatina, artrogripose, cisto renal, porencefalia, hidrocefalia deve ser registrada. Tabela 1 - Estimação da idade gestacional de fetos bovinos. Idade gestacional (meses) Medida (cm) 3 4 5 6 7 8 9 13-21 21-31 32-43 44-57 59-67 68-85 + 86 A placenta também é considerada um material importante para o diagnóstico, pois inflamações específicas podem manifestar-se somente nela. Por ser um órgão grande apenas algumas partes podem estar afetadas, e estas, geralmente ficam retidas no útero. A placenta retida é a melhor parte para ser analisada, sendo ideal para a coleta, pois geralmente é a porção menos contaminada por agentes ambientais. Nos cotilédones é importante observar a coloração, a forma e a consistência, sendo necessário um corte sagital para a verificação de material caruncular retido. Nas áreas intercotiledonárias, a ocorrência de espessamento, edema, hemorragia, opacidade, necrose e ou autólise deve ser investigada (FERNANDES, 1998). EXAMES LABORATORIAIS Considerando que o aborto muitas vezes possa ser um problema multifatorial, sugere-se um procedimento sistemático de coleta de material, independente da suspeita inicial ou do diagnóstico presuntivo. É importante salientar que na grande maioria dos Biológico, São Paulo, v.69, n.2, p.69-72, jul./dez., 2007 70 20 a RAIB casos alterações macroscópicas não são observadas e autólise fetal se faz presente dificultando ainda mais o diagnóstico. Na tabela abaixo, segue os órgãos a serem coletados durante a necropsia e os respectivos exames a serem realizados (Tabela 2). CAUSAS INFECCIOSAS DE ABORTOS EM BOVINOS Aborto por protozoário Neospora caninum Em 1991, Neospora caninum, um protozoário pertencente ao filo Apicomplexa foi identificado em grande parte do mundo como um importante agente causador de aborto (DUBEY & LINDSAY, 1996). A transmissão vertical (transplacentária) é a principal forma de disseminação de N. Caninum em rebanhos bovinos leiteiros, mantendo a infecção por várias gerações. As maiores prevalências de soropositivos para Neospora são encontradas em bovinos de leite. No Brasil, foi detectada prevalência de 14,09% entre bovinos leiteiros da Bahia (GONDIM et al., 1999). No Rio Grande do Sul, as vacas com histórico de aborto apresentaram soropositividade de 23% para Neospora caninum, enquanto que a prevalência foi de 8,3% nas vacas sem histórico de aborto. Além disso, o protozoário foi detectado em 81,8% dos fetos examinados por imunoistoquímica (CORBELLINI et al., 2002). Isto sugere que o Neospora é uma importante causa de abortos em bovinos leiteiros no Brasil. O diagnóstico em bovinos deve ser feito através do exame do feto e placenta. Para exames histopatológicos preconiza-se a coleta de amostras de cérebro, coração, fígado, músculo esquelético e pulmão do feto, além de fluídos corporais para testes sorológicos. A presença de células inflamatórias mononucleares, principal- mente no encéfalo, coração e músculo esquelético são lesões altamente sugestivas de Neospora caninum. É importante salientar que muitos fetos bovinos chegam para a necropsia em estado avançado de autólise apresentando uma consistência líquida do cérebro dificultado a obtenção deste para a análise histológica. Sendo assim, a observação de células inflamatórias mononucleares associadas à presença de focos de necrose de coagulação no pulmão muitas vezes auxiliam no diagnóstico de neosporose (PESCADOR et al., 2007 in press). Aborto micótico As infecções micóticas apresentam distribuição mundial e podem causar placentite necrosante e aborto em diversas espécies de animais (AINSWORTH & AUSTWICK , 1973). A infecção uterina em bovinos por fungos foi observada pela primeira vez em 1920 e atualmente perdas econômicas significativas podem ser decorrentes destas infecções, pois prevalência de aborto micótico de até 24,9% já foi relatada (AINSWORTH & AUSTWICK , 1973). Mais de 22 espécies de fungos já foram relatadas como causadores de aborto, porém, Aspergillus fumigatus é a principal espécie encontrada em casos de aborto micótico bovino, sendo o tecido placentário normalmente o mais afetado (AINSWORTH & AUSTWICK , 1973). A epidemiologia do aborto micótico ainda não esta totalmente esclarecida, mas geralmente a infecção ocorre através do trato vaginal, respiratório e ou alimentar. Macroscopicamente os fetos podem apresentar lesões branco-acizentadas circulares localizadas principalmente sob a pele da região da cabeça e nuca. Os cotilédones placentários encontram-se espessados. Lesões nodulares de coloração esbranquiçada e consistência firme também podem ser observadas no fígado e pulmão. O diagnóstico depende da avaliação macroscópica, exame Tabela 2 - Amostras necessárias para o diagnóstico de aborto bovino. Amostra Exames realizados Tecido refrigerado Pulmão, fígado e conteúdo do abomaso Amostra de rim ou pulmão Soro fetal (cavidade torácica) Tecido fixado em formol Cérebro, fígado, rim, pulmão, coração, músculo esquelético, baço, timo, abomaso e placenta. Amostra de timo, pulmão ou pele (orelha) Amostra de fígado Amostra de cérebro Cultivo aeróbio e cultivo anaeróbio de conteúdo do abomaso para Brucella sp. IFD para Leptospira sp. Sorologia para Leptospira sp.; Neospora caninum; BVDV. Histopatologia Imunoistoquímica BVDV Imunoistoquímica IBR Imunoistoquímica Neospora caninum. IFD: imunofluorescência direta; BVDV: Vírus da Diarréia Viral Bovina; IBR: Rinotraqueíte Infecciosa Bovina. Biológico, São Paulo, v.69, n.2, p.69-72, jul./dez., 2007 20 a RAIB histopatológico e do cultivo, principalmente a partir da placenta e conteúdo do abomaso (AINSWORTH & AUSTWICK , 1973). No Brasil, casos de broncopneumonia e hepatite fibrinonecrótica em abortos bovinos associado à infecção por Aspergillus sp. foram descritos (CORBELLINI et al., 2003). Aborto viral Vírus da Diarréia Viral Bovina (BVDV) O vírus da Diarréia Viral Bovina (BVDV) possui distribuição mundial. No Brasil a infecção e as enfermidades associadas ao BVDV são descritas desde os anos 60. Embora identificado originalmente de casos de doença gastroentérica, e relacionado com esse tipo de patologia, o BVDV é um vírus freqüentemente associado com fenômenos reprodutivos (BAKER, 1995). Em muitos rebanhos onde a infecção é endêmica, falhas reprodutivas representam os sinais mais evidentes. A infecção antes ou após a cobertura ou inseminação artificial pode resultar em perdas reprodutivas, como infertilidade temporária, retorno ao cio, mortalidade embrionária e fetal, aborto, mumificação, malformações fetais, nascimento de bezerros fracos e inviáveis (BAKER, 1995). A infecção fetal entre 40 a 120 dias de gestação com cepa não citopática freqüentemente resulta na produção de bezerros imunotolerantes, persistentemente infectados (PI) com o vírus. O bezerro PI geralmente é soro negativo, pode ser clinicamente normal, e excreta o vírus continuamente em grande quantidade em secreções (BAKER, 1995). Por isso, é considerado ponto-chave na epidemiologia da infecção. A identificação e descarte dos animais PI constituem etapas essenciais para o controle e/ou erradicação do BVDV dos rebanhos. Rinotraqueíte Infecciosa Bovina (IBR) Herpesvírus bovino tipo 1 (BHV-1), agente responsável por causar a Rinotraqueíte Infecciosa Bovina (IBR), foi identificado pela primeira vez nos EUA em 1957. Abortos por BHV-1 geralmente ocorrem em gestações com mais de 6 meses. Fetos com mais de 56 dias de gestação podem apresentar pontos esbranquiçados de 1mm de diâmetro no pulmão e no fígado que microscopicamente correspondem a focos de necrose. Na histologia, necrose de coagulação multifocal pode ser observada no fígado e ocasionalmente nos linfonodos, pulmão, rim e placenta. Não existem lesões patognomônicas indicativas de aborto por IBR, entretanto, a presença destas lesões são altamente sugestivas. O diagnóstico pode ser realizado mediante a utilização do teste de imunoistoquímica (KIRKBRIDE, 1992). Aborto bacteriano Brucella sp. A infecção por Brucella sp. possui distribuição mundial, apresentando em alguns países baixa incidência. Em fêmeas o aborto geralmente ocorre a partir do sexto mês de gestação, sendo o feto e a placenta o melhor material a ser remetido para o diagnóstico. Lesões macroscópicas na placenta são caracterizadas por necrose de cotilédones e edema na área intercotiledonária. O feto na maioria das vezes não apresenta alterações macroscópicas, mas quando presentes são caracterizadas por pequenos nódulos de coloração esbranquiçada presentes principalmente nos lóbulos pulmonares. Microscopicamente estes nódulos caracterizam-se por bronquite e broncopneumonia supurativa. Outras lesões que também podem ser observadas no feto bovino abortado incluem arterite necrosante, especialmente nos vasos do pulmão, áreas focais de necrose e formação de granulomas nos linfonodos, fígado, baço e rim. O diagnóstico é baseado nas alterações macroscópicas, microscópicas e cultivo puro do agente na microbiologia. Leptospira sp. A leptospirose é uma zoonose de caráter mundial e é uma importante causa de aborto bacteriano em bovinos em todo mundo. Leptospirose em bovinos é causada mais freqüentemente por Leptospira interrogans, serovar pomona e serovar harjo. A maioria dos abortos ocorre a partir do sexto mês de gestação e lesões macroscópicas geralmente não são visualizadas. Microscopicamente necrose tubular e nefrite intersticial podem ser observadas em alguns fetos. Porém, para montar um diagnóstico de infecção por leptospira faz-se necessário o uso de técnicas imunológicas como a imunofluorescência direta em imprints de rim, pulmão, fígado e ou placenta e realização de testes sorológicos a partir da coleta do líquido da cavidade torácica do feto. Bactérias oportunistas Diversas espécies de bactérias como Pasteurella spp., Salmonella spp., Streptococcus spp., Staphylococcus spp., Corynebacterium pseudotuberculosis , Yersinia pseudotuberculosis, Ureaplasma diversum, E .coli, podem causar septicemia e aborto em bovinos. Estes agentes geralmente causam aborto esporádico dentro de uma propriedade, sendo a via hematógena a principal rota de infecção. O feto geralmente não apresenta alterações macroscópicas significativas. Entretanto pontos esbranquiçados variando 0,5 a 1,0 mm de diâmetro na pele de um feto bovino abortado já foi observado quando infectado por Staphylococcus aureus (CORBELLINI etal., 2006). O diagnóstico de aborto bacteriano é baseado na observação histológica de pneumonia supurativa com presença da bactéria associada ao crescimento puro ou abundante do agente no exame microbiológico. Biológico, São Paulo, v.69, n.2, p.69-72, jul./dez., 2007 71 72 20 a RAIB REFERÊNCIAS AINSWORTH G.C. & A USTWICK P.K.C. 1973. Mycotic abortion, p 74-80. In: Fungal Diseases of Animals. 2nd ed. Slough: Commonwealth Agriculture Bureaux, Farnham Royal, 1973. ANDERSON , M.L.; BLANCHARD, P.C.; BARR, B.C.; HOFFMAN , R.L. A survey of causes of bovine abortion occuring in the San Joaquin Valley, California. Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, v.2, p.283-287, 1990. BAKER, J.C. The clinical manifestations of bovine viral diarrhea infection. Veterinary Clinics of North America, v.11, n.3, p.425-445, 1995. BARR, C.B.; ANDERSON , M.L.; BLANCHARD, P.C.; DAFT , B.M.; KINDE, H.; CONRAD, P.A. Bovine fetal encefhalitis and myocarditis associated with protozoal infections. 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