Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa A MEMÓRIA DISCURSIVA ATUALIZADA NAS CAPAS DO PERIÓDICO BRASILEIRO REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA Marina Célia MENDONÇA1 RESUMO: Esta pesquisa se insere em projeto que objetiva analisar, em perspectiva discursiva, as relações entre o discurso purista sobre língua e o discurso científico. O objeto de análise que se propõe são capas da Revista Língua Portuguesa, publicada pela Editora Segmento (SP - Brasil). Resultados de que esta pesquisa parte mostram que, na revista, materializam-se contraditoriamente o discurso purista (presente na tradição gramatical praticada no país) e o discurso científico produzido pela Linguística. Ao mesmo tempo em que, no periódico, encontram-se, em diversos gêneros, discursos que indicam contribuições que a Linguística tem feito ao estudo da língua portuguesa, encontram-se também discursos que criticam, em tom normativo e purista, usos linguísticos praticados no Brasil. As capas desse veículo também manifestam esse entrecruzamento de vozes. Além disso, um aspecto que chama atenção nesses enunciados é o discurso que adianta ao leitor que a revista apresenta técnicas (lições de estilo de grandes escritores, por exemplo), truques (entre eles, para redigir determinados gêneros), macetes (para usar a língua de forma adequada em determinadas situações), dialogando com o discurso de autoajuda e o pedagógico. As análises consideram, principalmente, o conceito de compreensão responsiva proposto por Bakhtin para refletir sobre a ressignificação, produzida pela revista, dos discursos presentes em diferentes esferas de comunicação: pedagógica, científica e da mídia. Considerando que o diálogo se produz não somente com a memória do passado, mas também com o porvir, a análise visa enfocar os movimentos de sentidos que se dão na atualização do discurso dado (purismo linguístico, discurso científico, de autoajuda e pedagógico) e na antecipação da compreensão responsiva do outro/destinatário. PALAVRAS-CHAVE: análise do discurso; memória discursiva; purismo linguístico; mídia. Introdução Este texto apresenta parte de pesquisa desenvolvida sobre o purismo linguístico no Brasil numa perspectiva discursiva. Integra discussões e estudos feitos em dois grupos de pesquisa: GADI (Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso) e GTEDI 1 - Universidade de Franca, Programa de Mestrado em Linguística, Departamento de Letras. Avenida Dr. Armando Salles Oliveira, 201. Parque Universitário. CEP. 14.404-600 – Franca – SP – Brasil. - Uni-FACEF Centro Universitário de Franca, Departamento de Letras. [email protected] 129 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa (Grupo de Texto e Discurso: Representação, Sentido e Comunicação), presentes no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq-Brasil. Resultados da pesquisa realizada nos últimos anos por esta pesquisadora mostram o diálogo existente entre o purismo linguístico presente na mídia impressa, televisiva e on line, a tradição gramatical brasileira do século XX e o purismo nacionalista romântico praticado por nossos escritores do século XIX. Nesses casos, foi analisada a polêmica em torno do uso de anglicismos no Brasil, acentuada pelo Projeto de Lei n. 1676/99, a qual atualiza tanto polêmicas sobre o uso de galicismos em gramáticas históricas brasileiras, quanto a postura do escritor brasileiro do período do Romantismo frente à relação da língua nacional com outras línguas na construção da nação brasileira (MENDONÇA, 2006a, 2006b, 2007a, 2008a). Também foram analisadas polêmicas sobre o ensino da norma culta, sobre o “internetês” e sobre o “gerundismo”, cujos sujeitos ora atualizam o discurso purista da tradição gramatical, ora dialogam parafrasticamente com o discurso científico produzido pela ciência da linguagem (em especial a sociolinguística), ora produzem deste discurso simulacros (MENDONÇA, 2006a, 2007b, 2008d). A Carta ao Leitor da Revista Língua Portuguesa, entrevistas publicadas nesta revista e capas de outros periódicos brasileiros de grande circulação nacional, como Veja e Você S/A, também foram objeto de análise desta pesquisadora, com enfoque no purismo linguístico que nelas se manifesta. (MENDONÇA, 2008b, 2008c, 2006a) Este trabalho considera as pesquisas anteriormente citadas e apresenta análise de capas da Revista Língua Portuguesa - Editora Segmento (SP - Brasil). O objetivo da presente reflexão é apontar indícios de diálogo que esse periódico mantém não somente com a gramática tradicional e a linguística, mas também com o discurso da autoajuda e 130 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa o pedagógico. Assim, na esfera de atividade de informação, a mídia, entrecruzam-se discursos que têm seu nascedouro em outras esferas (pedagógica, científica) – refletir sobre os sentidos que se produzem nesse acontecimento é o que se propõe neste artigo. O suporte teórico das análises aqui feitas constitui-se de estudos do Círculo de Bakhtin, que consideram o diálogo como elemento constitutivo do discurso – não há como significar/existir fora da grande temporalidade, em que os fios de discursos se entrelaçam em teia a ser sempre novamente tecida, um tecido em que se movimentam os sujeitos e os sentidos. A contribuição que se pretende fazer, com esta pesquisa, é mostrar a produtividade do conceito de “esfera de atividade” para os estudos dialógicos do discurso e apontar as especificidades do tratamento dado por Bakhtin à memória discursiva, conceito nem sempre concebido de forma consensual na área. Memória discursiva em escritos do Círculo de Bakhtin A concepção dialógica da linguagem está no centro das reflexões do Círculo de Bakhtin, cujo intelectual de maior destaque foi Mikhail Bakhtin. A linguagem, para o círculo, é concebida como um fluxo em que as palavras dos outros são constitutivas das do “eu”, em um processo de constituição não necessariamente detectável no “fio do discurso” e não necessariamente previsto no contexto imediato da interação verbal: “Não há palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado)”. (BAKHTIN, 2000, p. 413) Diálogo, nessa acepção, não prescinde de movimento. Na atualização da memória discursiva, o sujeito lida com o que é estável no sentido (para o autor, as 131 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa palavras têm uma significação historicamente estável) e com o que o contexto de produção – o acontecimento do discurso, que Bakhtin/Volochínov (1988) chama de tema – contribui para a renovação do sentido. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1988, p. 136) Esse discurso que renasce num novo contexto é uma resposta ao enunciado que o precede. A resposta, nos escritos do Círculo, é acompanhada do movimento que constitui o renascimento do sentido. Enunciar, nessa perspectiva dialógica, é responder à enunciação do outro com contrapalavras que o interpretam a partir de um horizonte apreciativo específico, de valores e ideologias que constituem a consciência do eu. Acrescente-se que, além de realizar um trabalho sobre enunciações anteriores (a memória discursiva disponível ao sujeito), a enunciação também é uma atividade em que se dá a palavra ao outro: é direcionada a ele, ou seja, não somente constitui-se a partir dele, mas também lhe concede a palavra. É nesse aspecto, especificamente, que os estudos bakhtinianos contribuem com a reflexão sobre a importância da memória discursiva na constituição do discurso, na medida em que a memória não é entendida somente como o já-dito, mas também se alimenta da memória do futuro, da resposta por vir, em sua antecipação, no movimento do discurso entre o já-dito e a contrapalavra possível do outro (BAKHTIN, 2000). Nessa perspectiva, o discurso é parte indissolúvel da interação social. 132 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa Considerando-se que a interação se compreende nesse contexto como uma relação entre sujeitos sociais, no enunciado se dialoga não somente com o discurso imediato ou com interlocutores diretos, mas também com “vozes sociais” que são refratadas/antecedidas na atualização do discurso. Bakhtin distingue, no que diz respeito a essas antecipações, dois tipos de destinatários: o segundo e o terceiro – este, um superdestinatário. O destinatário “segundo” é aquele, mais ou menos próximo, “de quem o autor espera e presume uma compreensão responsiva” (BAKHTIN, 2000, p. 356). Já o “terceiro” se trata de uma instância não-imediata: (...) afora esse destinatário (o segundo), o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pressupõe um superdestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado. (O destinatário de emergência). Em diferentes épocas, graças a uma concepção variada do mundo, este superdestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc). (...) Todo diálogo se desenrola como se fosse presenciado por um terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participantes do diálogo (os parceiros) (BAKHTIN, 2000, p. 356) O enunciado, nessa perspectiva teórica, é constituído no diálogo com o já-dito e o porvir; só nesse diálogo é que ele atinge sua completude provisória. Na análise de discurso francesa que tem como figura central Pêcheux, também a memória, mas aqui relacionada essencialmente ao conceito de interdiscurso, é concebida como constitutiva do discurso. Nessa perspectiva, como em Bakhtin, ela não somente é espaço de regularizações, mas de desestabilizações produzidas pelo “choque do acontecimento”, que introduz um “jogo de força na memória”: 133 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa - - um jogo de força que visa manter uma regularização préexistente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como uma “boa forma”, estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo; mas também, ao contrário, o jogo de força de uma “desregulação” que vem perturbar a rede dos “implícitos”. (PÊCHEUX, 1999, p. 53) Authier-Revuz (1990), autora que contribuiu para o desenvolvimento da análise do discurso francesa, cunha o conceito de heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso apoiando-se nos estudos dialógicos de Bakhtin. A autora, a partir das reflexões do Círculo, assume que todo discurso é constitutivamente heterogêneo porque “(...) toda palavra, por se produzir em “meio” ao já-dito de outros discursos, é habitada por um discurso outro” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 193). Tem-se um discurso sempre produzido a partir de outro, e que permanece com ele em si: a sua singularidade específica é a relação com a alteridade. Mas é preciso atentar para a leitura que a autora faz do dialogismo bakhtiniano. Destaquem-se alguns trechos em que se revela essa leitura: Para propor o que chamo de heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso, apoiar-me-ei, de um lado, nos trabalhos que tomam o discurso como produto de interdiscursos ou, em outras palavras, a problemática do dialogismo bakhtiniano (...) O “dialogismo” do círculo de Bahktin, como se sabe, não tem como preocupação central o diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras dos outros”. (...) O que Bakhtin designa por saturação da linguagem constitui uma teoria da produção do sentido e do discurso: coloca os outros discursos não como ambiente que permite extrair halos conotativos a partir de um nó de sentido, mas como um “centro” exterior constitutivo, aquele do já dito, com o que se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26/27) 134 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa Os fragmentos supracitados são representativos daquilo que foi tomado como importante nos estudos de Bakhtin para a AD francesa – seu enfoque no diálogo necessário de um discurso com outros já ditos. A memória do futuro e a interação social, problematizadas em escritos de Bakhtin, ficam em segundo plano em estudos que se baseiam nessa leitura produzida pela linguista francesa. São precisamente esses aspectos da obra bakhtiniana que se pretendem recuperar nesta pesquisa. Atualização da memória discursiva na Revista Língua Portuguesa Na Revista Língua Portuguesa, encontram-se discursos opostos – o discurso normativo/prescritivo da tradição gramatical e o discurso descritivo da Linguística. Considera-se aqui que a Linguística é uma disciplina que se constituiu, no Brasil, com a valorização da fala e do falante, e com a oposição sistemática ao normativismo das reflexões sobre língua feitas por gramáticos e filólogos; estas se pautavam pelo caráter prescritivo, pelos juízos do certo/errado. Geraldi (1996) destaca que a nova ordem discursiva dos enunciados da “nova disciplina”, no momento de sua constituição no país, na década de 1960, era a descrição da língua e a posição de que “o informante adequado para dizer a língua é o falante”. Exemplo desse diálogo com discursos opostos encontra-se no sumário do veículo: nele, entrelaçam-se o discurso sobre o “bem dizer” e aquele que descreve aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos da língua portuguesa. Fragmento retirado da edição de n. 23, transcrito a seguir, exemplifica esse diálogo: por um lado, materializa tanto o discurso do “erro” como desvio da norma prescritiva 135 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa quanto a atitude linguística preconceituosa, características do discurso do “bem dizer”; por outro, o fragmento materializa discurso que se propõe descrever as variações do idioma. Gramática cotidiana 32 DITO & ESCRITO Os erros induzidos pela forma feminina do pronome Vossa Excelência, por Josué Machado 38 LINGÜÍSTICA José Luis Fiorin faz um balanço das variações nos idiomas 40 LIÇÃO DE CASA O uso indiscutível, aceitável e ruim que dói da expressão “através de” (LÍNGUA PORTUGUESA, 2007, p. 4) Análise de uma reportagem dessa revista sobre o uso brasileiro do gerúndio, feita por esta pesquisadora (MENDONÇA, 2007b), mostra que a atualização da memória realiza uma aproximação entre esses dois discursos e que ela indicia que os limites da disciplina Linguística, nesse veículo, não são vistos com o mesmo olhar que na instância científica. Na reportagem, essas vozes que vêm de esferas diferentes estão misturadas. Esse esgarçamento dos limites entre a disciplina Linguística e a tradição gramatical pode gerar, segundo esta pesquisadora, duas possíveis consequências políticas: ou a Linguística ganha forças por interferir no discurso da tradição gramatical, ou perde forças pelo apagamento de sua especificidade. Como nos sumários, as capas atualizam discursos que dialogam com memórias discursivas em conflito. No suporte de textos revista impressa, mostra Barzotto (1998) que as chamadas das capas são ressignificadas nos diversos gêneros em que elas “reaparecem” – no caso, sumário e matérias jornalísticas. O autor interpreta os efeitos de sentido que se produzem nessas ressignificações, entre eles o “efeito de novidade”: “(...) de maneira a parecer ao leitor que o que ele vai ler ainda não foi anunciado”. Na presente pesquisa, interessa considerar não essa ressignificação do discurso quando 136 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa “migra” de um gênero para outro da mesma esfera de atividade, mas os sentidos produzidos na co-paginação, em uma dada esfera, daquilo que vem de esferas diferentes. Na capa, os sentidos produzidos por essa co-paginação constroem uma imagem da revista para o destinatário e uma imagem deste último. Vejamos as chamadas de algumas capas:2 (1) INVENTE SEU PERSONAGEM – As técnicas de romances para descrever as pessoas imaginárias. A INDÚSTRIA DO DICIONÁRIO – As curiosidades, o trabalho e as palavras que faltam nas obras do gênero. CONFUSÃO NA FALA TECNO – Ninguém usa a mesma linguagem no mundo das pistas de dança do país. CORAÇÃO DE FILÓSOFO, RITMO DE SAMBA – Acostumado a usar a música para entender a existência humana, Paulinho da Viola diz que nem sempre se pode respeitar o idioma para compor uma canção. Acima do nome da revista: Mais: Eduardo Martins, Elis de Almeida Cardoso, José Luiz Fiorin, John Robert Schmitz, Marcelo Coelho. No rodapé: HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA – CONTOS DE FADAS - PALAVRAS DO CORAÇÃO. (REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, 2006) (2) VERBETE REGIONAL – O valor dos dicionários amadores. CASA DE FERREIRO – FHC comete erro ao criticar português alheio. A TÉCNICA DA POESIA – Como criar ritmos em forma de versos. HARRY POTTER PIRATA – A tradução dos internautas para o bruxo inglês. MONTEIRO LOBATO – Nova edição de Emília no País da Gramática revisa manifesto sobre português, feito pelo criador do Sítio do Picapau Amarelo. Acima do nome da revista: Mais: Beth Brait, Josué Machado, José Luiz Fiorin, Mário Eduardo Viaro, Sírio Possenti. No rodapé: ENTREVISTA COM MARCELO COELHO – O JARGÃO DOS NOVOS BAIANOS – A ORIGEM DO “JEITINHO”. (REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, 2008) (3) EUFEMISMO – maquiar a linguagem para atenuar a realidade virou mania nacional em tempos de crise. Gramática – Origem das palavras – Tradução – Retórica política – e mais: CARREIRA – Os dez erros de português que travam a vida nas empresas. 2 Apesar da extensão da citação, optou-se pela reprodução de todas as chamadas das capas selecionadas para dar ao leitor uma melhor ideia do corpus da pesquisa. 137 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa SARAMAGO AMARGO – Nobel afirma que Portugal está em dívida com o Brasil. O IDIOMA É MACHISTA? – Especialistas debatem se língua transmite preconceito sexista. DESCREVA UMA PERSONAGEM – As técnicas narrativas para caracterizar tipos imaginários. Acima do nome da revista: ENTREVISTA: AGUALUSA + A NOVA ORTOGRAFIA. No rodapé: A LINGUAGEM NO MUSEU DO FUTEBOL: REPORTAGEM VISUAL. (REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, 2009a) (4) CRIATIVIDADE – As técnicas que preparam o terreno para quem deseja escrever textos mais dinâmicos e inventivos. Gramática – Filosofia – Entrevista: João Pereira Coutinho – Retórica – e mais: PRONOME – Como usar diferentes pronomes relativos e evitar o excesso de “quês” numa frase. VÍRGULA ENGANOSA – Pontuação em livro de Içami Tiba indica forma específica de raciocínio. ADJETIVO PALPÁVEL – Qualidades concretas, em vez de abstratas, valorizam seu texto. POWERPOINT SEM GAFES – Os cuidados no uso da ferramenta que afeta a linguagem das empresas. Acima do nome da revista: “DITABRANDA” + EXCOMUNHÃO EM CORDEL. No rodapé: UM MERGULHO NAS TRADUÇÕES DE MOBY DICK. (REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, 2009b) Conforme anunciado anteriormente, essa revista dilui os limites entre uma abordagem científica e outra normativa da língua. Nas capas citadas, são atualizados, indistintamente, o discurso da tradição gramatical e o da Linguística. Representativa dessa indistinção é o fragmento (2), em que se enuncia o discurso do erro gramatical – “FHC comete erro(...)” – e o da variação linguística – “VERBETE REGIONAL – O valor dos dicionários amadores” / “JARGÃO DOS NOVOS BAIANOS”. Além do esgarçamento dos limites entre o que é científico ou não quando se trata de língua, destaca-se, nas capas, a presença do discurso da “técnica” aplicada ao fazer textual: “INVENTE SEU PERSONAGEM – As técnicas de romances para descrever as pessoas imaginárias.” / “A TÉCNICA DA POESIA – Como criar ritmos 138 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa em forma de versos”./ “DESCREVA UMA PERSONAGEM – As técnicas narrativas para caracterizar tipos imaginários.” / “CRIATIVIDADE – As técnicas que preparam o terreno para quem deseja escrever textos mais dinâmicos e inventivos.” Esse discurso encontra lugar na esfera pedagógica; podemos dizer que uma esfera, nesse caso, invade a outra (a de informação). A mídia assume o papel do sujeito de saber que ensina o destinatário a usar a linguagem literária e cotidiana. Esse discurso pedagógico tem sido estudado por analistas do discurso. É classificado como discurso autoritário (ORLANDI, 1987, p. 15-16), no sentido de que “(...) o referente está “ausente”, oculto pelo dizer; não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida”. Nessa concepção, fala nesse discurso uma voz segura e auto-suficiente, que pode interrogar e ordenar, e sua estratégia básica é a forma imperativa (vejam-se, nos exemplos citados, as chamadas com os verbos “Invente” e “Descreva”). Considerando-se essa proposta de Orlandi e a ressignificando à luz dos estudos de Bakhtin, pode-se dizer que esse discurso tende à monofonia e que atuam nele forças centrípetas. O discurso pedagógico também é visto, em seu funcionamento, como um discurso que toma o objeto de ensino como algo cristalizado em seu movimento, desconsiderando as condições de produção do conhecimento – o conteúdo de ensino, dessa maneira, é fetichizado, tido como algo destituído de instabilidades, as quais são constitutivas do fazer científico, da produção do conhecimento (GERALDI, 2003). É nesse sentido que esse discurso opera com o certo e o errado (de forma polarizada e cristalizada), com os modelos fechados (por exemplo, de tipos de textos), e com as técnicas (que permitem que o sujeito atinja um patamar próximo ao sujeito do saber, mas só próximo, porque a técnica é destituída do novo, do criativo, do acontecimento). 139 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa Assim, as “técnicas de redação”, nessa esfera de atividade, permitem ao sujeito chegar a um texto escolarizado, somente isso. Esse discurso que investe o sujeito-autor do saber-fazer (é um sujeito de saber) e se propõe levar ao interlocutor parte desse saber também está presente em outra esfera de atividade, na mídia: trata-se do discurso da autoajuda. Brunelli (2004, p. 68) assim se pronuncia acerca desse discurso: sabemos que o discurso de auto-ajuda se destina a ensinar, por assim dizer, aos seus interlocutores, o que e como fazer para realizar uma série de diferentes aspirações comuns a um grupo indefinido de pessoas (tais como: conseguir um emprego, melhorar de vida, enriquecer, curar uma doença, desenvolver-se espiritualmente, melhorar a auto-estima, etc). Desse modo, podemos concluir que ser sujeito-enunciador do discurso de auto-ajuda é assumir um lugar de saber, é colocar-se num lugar de enunciação que implica ter um conhecimento especial ou específico para ser transmitido. A contraparte do discurso do saber do enunciador, na autoajuda, é a carência do destinatário, sua necessidade de orientação; essa necessidade é um pressuposto desse discurso, caso contrário ele não se legitimaria. No caso das capas da Revista Língua Portuguesa, o discurso de aconselhamento sobre o uso da língua se manifesta. O exemplo (4) supracitado apresenta chamadas para textos que se propõem: expor técnicas “que preparam o terreno para quem deseja escrever textos mais dinâmicos e inventivos”; ajudar o destinatário a “usar diferentes pronomes relativos e evitar o excesso de “quês” numa frase”, a valorizar seu texto quando da seleção lexical e a usar de forma adequada o powerpoint nas atividades profissionais. Esse destinatário, carente do “bem-dizer”, necessita de um saber linguístico que o torne bem sucedido no trabalho e capacitado no campo do fazer literário. 140 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa Essa relação entre uso linguístico e sucesso profissional manifesta-se em um tipo de metalinguagem purista presente na mídia brasileira no final do século XX, denominada por esta pesquisadora de purismo neoliberal. Essa metalinguagem advoga (...) a necessidade de limpar os “erros” da fala e da escrita da classe média, que quer ter sucesso econômico ou acesso aos bens produzidos pelo mercado. Trata-se de uma atitude lingüística sóciopoliticamente condicionada, em que, frente ao desemprego estrutural, à terceirização, à insegurança, supervaloriza-se o sucesso pessoal/individual, em detrimento da “coletivização” (com suporte na classe social, nos interesses sociais, na busca de um bem-estar comum etc); em que o sucesso buscado à exaustão é fruto do esforço de cada um, não das condições sociais a que teve acesso o indivíduo. (MENDONÇA, 2006a, p 63-64) Esse purismo também se manifesta nos discursos supracitados, nos trechos: (3) CARREIRA – Os dez erros de português que travam a vida nas empresas / (4) POWERPOINT SEM GAFES – Os cuidados no uso da ferramenta que afeta a linguagem das empresas. Seu contexto de produção é a globalização econômica e cultural, sob a égide do individualismo – que é o terreno em que, segundo Brunelli (2004), também se constitui o discurso da autoajuda. O diálogo que a Revista Língua Portuguesa empreende com o já-dito incorpora e ressignifica vozes provenientes de esferas de atividade diferentes, entre elas a científica, a pedagógica e a de informação. No acontecimento dessa materialização discursiva, como foi apontado, discursos que se opõem em outras esferas (científica/pedagógica) se mesclam, perdem sua polarização e especificidade. Nessa grande esfera de atividade que é a mídia, em que se dá o acontecimento em análise, mesclam-se as atitudes de produzir conhecimento (a revista divulga artigos científicos de linguistas, por exemplo), informar (o veículo está a meio caminho da divulgação 141 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa científica e da divulgação de assuntos “de última hora” quando o tema é a língua portuguesa) e ensinar (seja no tom do aconselhamento da autoajuda, seja no tom normativo das típicas aulas de língua portuguesa regadas a gramática normativa). As três atitudes são avalizadas pelo sujeito de saber que enuncia. Acrescente-se a esse diálogo com o já-dito a expectativa da compreensão responsiva do destinatário – um suposto sujeito destituído de determinado saber, que valoriza esse saber que se oferta, que se coloca no lugar daquele que aprende e que deve se informar, que crê e age de acordo com o individualismo, como valor ideológico (já que busca o aperfeiçoamento de sua linguagem tendo em vista um melhor uso linguístico). Esse contexto de interação verbal constitui um discurso em mescla, pedagógicoinformativo, prescritivo-descritivo, cristalizado-fluido, que se propõe democrático (afinal, distribui saber para a classe média brasileira), mas que é extremamente excludente. Isso não somente porque designa ao outro um lugar de não-saber e se dirige a ele como tal, produzindo um diálogo de forças centrípetas, mas sobretudo porque normaliza o preconceito linguístico ao aproximá-lo de discursos de especialistas quando atualiza a memória discursiva. Referências Bibliográficas BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1988. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 142 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa BARZOTTO, Valdir Heitor. A materialidade do texto publicado em revistas periódicas. Leitura: teoria & prática, Campinas, n.31, p. 27-49, jun. 1998. BRUNELLI, Anna Flora. O sucesso está em suas mãos: análise do discurso de autoajuda. 2004, 149 f. (Tese de Doutoramento em Linguística). Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), 2004. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,1993. ________. Descrição da língua e ensino da língua. ABRALIN – Boletim da Associação Brasileira de Linguística, v. 9, p. 9-13, dez. 1996. MENDONÇA, Marina Célia. A luta pelo direito de dizer a língua: a linguística e o purismo linguístico na passagem do século XX para o século XXI. 2006, 249 f. 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