Iran: A pomba da paz trazida por ventos opostos Karim Modchtahedi Filósofo iraniano, residente em Teerã. (Artigo traduzido e adaptado por Humberto Schubert Coelho – líder do Núcleo de Pesquisa sobre Madame de Staël e o Romantismo Filosófico e Literário, da UFJF publicado no Jornal alemão DIE ZEIT, edição de 31 de dezembro de 2003). “O que é o iluminismo hoje?”, foi a pergunta que o redator do Jornal Die Zeit fez ao presidente da República Islâmica do Irã, Mohammed Chatami. Em seu nome respondeu o filósofo de Teerã, Karim Modchtahedi. Desde o início da era moderna os iranianos conheceram os produtos da técnica européia, e - por influência da dominação otomana - buscaram construir e projetar seu próprio aparato bélico, mas desde esta época eles jamais se voltaram seriamente para a pesquisa dos fundamentos teóricos que possibilitaram o desenvolvimento científico e técnico do ocidente. Em seu pensamento dominou prioritariamente o uso prático de tais conquistas. Um conhecimento que não produzisse imediatamente uma utilidade concreta, parecia-lhes distante de qualquer valor razoável. A partir daí se afastaram da filosofia e das bases do pensamento ocidental, inevitavelmente ligado ao Cristianismo. Neste sentido mantinham-se em suspeita quanto aos missionários estrangeiros e se mostraram alheios aos seus interesses. O Discurso do Método de Descartes só foi traduzido para o persa e divulgado pela primeira vez em 1862, sob ordem do então Cônsul francês em Teerã. Mas esta tradução jamais foi utilizada, porque o texto persa foi formulado de forma incompreensível. Quatro décadas depois mencionou-se pela primeira vez o nome de Descartes ao lado de outros filósofos, como Immanuel Kant, num curto fragmento do livro Badaje ol-hekam. O Badaje ol-hekam contém uma série de respostas filosóficas formuladas pelo erudito Agha Ali Sonousi, a partir de sete perguntas principais do principal manual de lógica da era Kadchar. Tais perguntas tratavam de conceitos de tempo e espaço, vazio e plenitude, finitude e infinitude, duração e eternidade. Pode-se dizer que, num certo sentido, ele chegou as mesmas conclusões de Kant acerca do conhecimento, como, por exemplo, os antagonismos da razão pura, e mais especificamente sobre os princípios newtonianos. Por isso é pertinente relacionar o Badaje ol-hekam como um exemplo de tratado filosófico iraniano, e compara-lo às filosofias ocidentais. Embora se baseie no contexto e métodos iranianos, o livro é evidentemente influenciado por idéias filosóficas ocidentais. Na formulação da constituição do Iran, assim como outras conquistas da modernização iraniana no início do século XX, a influência de Kant é bastante rara _ se consideramos o fato de que sua filosofia afetou profundamente a formulação das leis em quase todas as reformas modernistas. Como todos os demais filósofos ocidentais, Kant só foi corretamente apresentado a partir dos anos 1930-1940, através do manual O desenvolvimento da filosofia na Europa, extensa obra de três volumes de autoria de Mohammad Ali Foroughis. Mesmo depois de sete décadas este livro continua sendo um dos melhores acessos às questões kantianas. Após a fundação da Universidade do Teerã - seguindo modelo europeu - em 1934, e após a criação das cátedras de Literatura, Pedagogia, Filosofia e Direito, os filósofos europeus tornaram-se bem mais conhecidos. Com o progresso das ciências do espírito e a segmentação da filosofia como campo específico, o pensamento ocidental destacou-se rapidamente com uma concentração em Descartes e Kant. Embora só poucas obras tenham sido traduzidas, os resumos e cursos de filosofia kantiana tornaram-se significativos. É verdade que a pesquisa da filosofia transcendental não está no nível das publicações internacionais, mas as Críticas recebem sim grande atenção de professores e estudantes e chegam a ser obras básicas em cursos de artes (a terceira crítica) e no amplo espectro da formação ética (segundo crítica), além do fato de que a primeira crítica é tida como ponto de partida do conhecimento científico ocidental. Mesmo fora da universidade houve iniciativas públicas de debate e exposição do pensamento de Kant, em rádio e televisão, e também de outros pensadores europeus, como Martin Heidegger. O que se lamenta entre os estudiosos é justamente a ausência uma comparação profunda e competente dos contrastes entre a filosofia kantiana e a tradição filosófica islâmico-iraniana. Apesar disso há alguns trabalhos neste sentido. Por exemplo: o pensamento de Mullah Sadraje Shirasi, sobre a distinção entre fantasia e a faculdade de representação através da união de formas a priori da sensibilidade com as categorias do entendimento na filosofia kantiana. A continuação deste campo de pesquisa seria altamente desejável, e pode-se até especular que uma futura conciliação do pensamento kantiano com a tradição filosófica iraniana possa surgir algum dia. Editou-se há pouco na França uma série de livros de bolso sobre temas filosóficos específicos. Um destes volumes, com o título de Alma traz um texto de Mullah Sadra, com o tema Limbo, que se posiciona entre um tratado de Mestre Eckhart e um artigo de Kant. A leitura de qualquer um dos três textos não seria estranha ao leitor iraniano, e a brusca distinção entre Eckhart e Kant é muito bem conciliada pelo texto de Mullah Sadra. Além disso pode-se afirmar, grosso modo, que a consciência humana está, para Kant, radicada na subjetividade individual, e daí se projeta como razão universal. Esta razão está mais que presente nas dimensões da liberdade que se cristalizaram na atual fase da história humana. Na introdução à lógica Kant expõe três perguntas: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? A estas três segue-se uma quarta pergunta: O que é o homem? Para Kant a quarta pergunta não possui um sentido por si mesma, senão na medida em que está implícita nas três anteriores. Embora estas frases estejam na esfera da possibilidade humana, o homem possui em si uma dimensão metafísica, e no horizonte de sua consciência revela-se necessariamente o sentido de um ser superior. E este não se permite descrever a partir da física newtoniana ou de qualquer referência das leis materiais. Para concluir é preciso dizer que o homem, no sentido de Kant, constitui uma unidade teorética e prática. Mas em nenhum momento, tanto quanto este, se pode olvidar da raiz cultural de todo o pensamento. Nas palavras do próprio Kant, o fato de uma pomba não poder voar sem a resistência do ar, não implica em que o vôo seja resultado direto da resistência do ar. Igualmente não se pode acreditar que a compreensão entre os povos se dê na ausência dos elementos culturais que as distinguem necessariamente. A pomba da paz não nos chegaria mais depressa se estas matrizes culturais fossem suprimidas. Ao contrário, a liberdade alça vôo escorada nos ventos da cultura. Sem o intercâmbio das mais distintas dimensões culturais que orientam e procedem das raízes espirituais de cada povo, jamais se realizaria a compreensão e a paz. Quanto menos se poderiam realizar pela supressão das particularidades entre povos ou indivíduos. Os ideais humanos só são realizáveis a partir de um sentido profundo da realidade, correto estudo das culturas e mútuo respeito. E isto é o que a filosofia de Kant até hoje nos convida a fazer.