JUSTIÇA SOCIAL: Sociedade com pluralismo de fundamentações. Uma breve reflexão Alexandre Fernandes Dantas1 “A história da natureza começa pelo bem, pois ela é obra de Deus; a história da liberdade começa pelo mal, porque ela é obra do homem”. (Immanuel Kant, 1786) Resumo: O intuito deste trabalho é apresentar a problematicidade em torno da concretização da justiça social, onde se reflete sobre a necessidade de cooperação entre o Estado e a sociedade, com destaque para a participação de organizações não governamentais que atuam em prol do social. Sobre o tema, uma preocupação mundial, ocorrem várias controvérsias, aspectos polêmicos, como por exemplo, a posição de privilegiar os direitos individuais ou, a universalização da cidadania (para além do Estado pátrio). O papel que o “mercado” desempenha na efetivação da justiça social também é discutido para uma melhor compreensão de sua situação funcional. Palavras-Chave: Justiça social; Estado; direitos; mercado. 1. Introdução Qual será a idéia de justiça? Qual será o procedimento para alcança-la? A expressão justiça social hoje é do domínio público, mas sua significação está relacionada com o conceito político-econômico de cada autor. Há tanta complexidade em defini-lai quanto existe para definir o bem comum, que é o elemento central de qualquer doutrina de justiça social. A noção econômica de justiça social é a mais propagada: justa distribuição da renda ou riqueza, de acordo com as necessidades e a capacidade das pessoas; aumento do nível de renda das massas; diluição progressiva das 1 Pesquisador, Advogado, Pós-graduado latu sensu em Direito e Gestão da Segurança Pública pelo PPGD/UGF, mestre em Direito pelo PPGD/UGF-RJ. Contato: [email protected] diferenças de classe; fazer com que um número cada vez maior de pessoas participe da propriedade dos meios de produção e dos bens de consumo. Mas desde já, “permanece ao menos a exigência formal de pensar o todo como unido em função de um critério organizador do conjunto, a justiça social”. (GAUCHET, 2004, p. 231) Questão surpreendentemente variada é saber qual o melhor regime político para se atingir a justiça social: pode haver mais justiça social em regimes de força do que em democracias desorganizadas ou puramente formais. No terceiro milênio, o mundo virtual está se sobrepondo ao mundo real. E a influência que esta constatação gera para o debate sobre o que é justiça social; se esta é universal e como alcançá-la é de grande valor. A internet é uma ferramenta que aproxima os pensamentos mundiais, não há mais barreiras para a comunicação; há facilidade para acompanhar o conceito de justiça social de cada local ou, até mesmo um conceito goblal. Conforme preceitua Ubiratan Borges de Macedo, “justiça social é um ideal comum a todas as consciências sensíveis e alertas de nosso século” - sua obra foi escrita no século XX, mas a definição continua atual. (MACEDO, 1995, p.75) Na atualidade a discussão tende para o campo da moral, do discurso, processual. Há objetivamente justiça e liberdade? Há realmente solidariedade? E se existir, de que forma as pessoas têm acesso a esses valores objetivos? A objetividade dos valores (existência real daquilo que se concebeu no espírito) é o foco do proscênio presente. Hodiernamente o importante é a legitimidade da lei, quer dizer, se está de acordo com os direitos humanos. 2. A questão social Com o advento da Revolução Francesa e da Declaração de direitos do homem e do cidadão se assiste à formação – ressalta-se que a Declaração não cria direitos, e sim, aflora os que são pretensamente inatos ao homem – de uma cultura das liberdades em contraposição com o pretérito do Antigo Regime. ii A partir do século XVIII, com os frutos do iluminismo (Declaração de direitos humanos e do cidadão e Declaração de independência dos Estados Unidos da América) há o reconhecimento da igualdade de direito a todos os homens, estabelecendo o ideal de liberdade como o conceito básico como o qual se estabelecem os demais direitos. Porém, o conceito amplo de cidadaniaiii só vem a adquirir os contornos como hoje conhecemos, a partir de um novo paradigma: a ideia de que há um elemento social inserido nesse conceito, que se origina da transição do modelo de Estado Liberal para o Estado Social, ocorrida na Europa do século XIX e início do século XX. Esse elemento inclui desde o bem-estar econômico mínimo até a participação na herança social, e especialmente a ter a vida de um ser civilizado, em acordo com os padrões da sociedade atual. O efeito dessa noção sobre o pensamento social foi tornar evidente que não há cidadania em sentido amplo sem que exista um conjunto de mecanismos democráticos, amparados num sólido ordenamento jurídico, que permita ao indivíduo ou ao sujeito ser incluído em todas as esferas da vida social. A aspiração de realizar os valores individuais levou o Estado Contemporâneo do século XX a uma crise quanto a sua organização e objetivos. Surge como ideal político de toda a Humanidade a aspiração a um Estado Democrático com algo a mais, resultando em regimes variados e contraditórios entre si. Cada um destes defendido como mais adequado às exigências desse Estado. Parece que a resposta encontrada pelos povos para essa crise é o “Estado Democrático dos Direitos Humanos”iv ou a social-democracia onde a justiça social ganha extrema relevância. O Estado deve conjuntar os direitos coletivos e os individuais; os direitos, as liberdades e as garantias hão de se harmonizar com os direitos sociais; a igualdade jurídica com a igualdade social e a segurança jurídica com a segurança social. Para Siqueira Jr. (2009, p. 105, 109) o Estado deve realizar várias atividades em prol da coletividade, devendo para tanto traçar um planejamento estratégico, elegendo prioridades e metas governamentais, bem como a escolha dos meios adequados para a consecução do bem comum. Trata-se de uma atividade discricionária. Ocorre que, tratando-se de determinadas políticas públicas, o Estado é obrigado a agir, fugindo da tradicional vinculação típica do Estado Liberal. Vicente Barreto (1999, p. 355, 359) destaca que “os estados democráticos modernos são usualmente caracterizados por serem qualificados pelo respeito aos direitos humanos e às liberdades públicas, à igualdade de todos os cidadãos diante da lei e à existência da sociedade civil”.v Com a vinda do Estado Democrático e Social de Direito surgem objetivos traçados pelo texto constitucional, vinculantes aos órgãos do Estado e em alguns casos extensivos à sociedade civil. Advém daí a obrigatoriedade de execução de determinadas políticas públicas. A mutação histórica do Estado Liberal faz surgir o Democrático e Social de Direito. Esse novo modelo é o encadeamento do Burguês e do Social, que surgiu com a Revolução Industrial. O Estado Democrático e Social de Direito procura conciliar os direitos individuais, que perdem o cunho burguês e egocêntrico de sua origem com o bem-estar social. Esse modelo adota um sistema que se pauta pelo equilíbrio entre os interesses do Estado e a garantia da liberdade individual do cidadão. Nesse sistema, o Estado encontra-se a serviço do indivíduo e da sociedade. O Estado Democrático e Social de Direito não substitui o Democrático de Direito, pelo contrário, é um desdobramento deste. Nesse contexto a justiça social aparece de forma preponderante na concretização dos direitos humanos no Estado democrático hodierno. Existe, como define Marcel Gauchet (2004, p. 32), um extraordinário equívoco que veicula o tema dos direitos do homem, vendo-se bem como certa maneira de apresentar os direitos do homem vem a “legitimar indiretamente a ordem ocidental estabelecida: desde o momento em que não há mais comunismo (ou fascismo) tudo vai bem”. E continua afirmando que isso “não resolve o problema social que nos convoca, do mesmo modo que amanhã, nada estará resolvido quanto à questão de uma sociedade justa, igual e livre”. Quanto à questão social, vale reproduzir as palavras de Karl Popper: É um fato, nem sequer muito digno de atenção, que não é assim tão difícil de, por meio da discussão, chegar a acordo quanto às reformas sociais mais urgentes. É muito mais fácil chegar a esse acordo do que a um acordo sobre a forma ideal da vida social. Pois os males encontramo-los no meio de nós aqui e agora. São frequentemente visíveis, podem ser experimentados e são diariamente sentidos por muita gente, que está na desgraça devido à pobreza, desemprego, opressão nacional, guerra e doença. Quem não sofre tais necessidades encontra todos os dias gente que as pode descrever. Isso é o que torna a desgraça concreta. É esse o motivo pelo qual podemos chegar a algo se discutirmos o problema, pelo qual podemos tirar proveito da atitude racional. Podemos aprender na medida em que escutamos reivindicações concretas e procuramos ponderá-las pacientemente e tão justa e imparcialmente quanto possível; e podemos procurar os meios e as vias se satisfazer as exigências mais prementes sem causar com isso o pior dos males (POPPER, 1994, p. 10). Com efeito, há vários tipos de justiça social e até mesmo de sociedade. Por exemplo: a igualdade de oportunidades correlaciona-se ao liberalismo e sua sociedade aberta; à igualdade de resultados correlacionam-se postulações socialistas, a sociedade fechada e o critério do padrão de necessidades para determinar a justiça social. Enquanto que o critério de mérito estaria ligado à sociedade aberta. Nesse contexto, visão positivista é aquela que separa direito de moral. Já a visão não-positivista, ou seja, jurisdicizar a moral, está relacionada a valores dentro do discurso de justificação, de legitimação. Chegar à condições de dignidade humana sem partir de textos e sim de direitos inerentes ao homem, que vêm da liberdade humana, valores transcendentais. A melhor decisão é o melhor argumento. Não existe uma única decisão correta. Argumentação é a chave mestra. Neste ponto, a visão de Habermas (1999, p. 10) é bem esclarecedora; ele afirma que o diálogo é a ponte para uma sociedade mais equânime, solidária e tolerante. Assim, o modelo habermaseano é o do uso da razão comunicativa, não subjetivista, mas dialogal. O argumento não pode ser vazio de sentido, pois, se assim for, não se sustentará e, consequentemente, será descartado pelos outros. Se os problemas envolvidos na justiça social não são apenas jurídicos, a lei não consegue resolvê-los sozinha, por conseguinte, é necessário o uso da moral e da ética na solução desses problemas. Certamente a teoria da justiça está ligada intimamente com a teoria dos direitos fundamentais. É procedimental, pois se constrói através da discussão jurídica. O direito está se aproximando da ética; enfrenta problemas de consenso político. Para John Rawls (2000, p. 177-180), uma das metas centrais da justiça política e social é a organização da estrutura básica da sociedade de tal maneira que maximize os bens primários à disposição dos menos favorecidos para que eles utilizem as liberdades básicas que estão à disposição de todos. De acordo com o filósofo americano, a garantia das liberdades políticas e somente essas liberdade são garantidas pelo que denomina seu “justo valor”. Essa garantia significa que o valor das liberdades políticas para todos os cidadãos, qualquer que seja sua situação social ou econômica, deve ser aproximadamente igual ou pelo menos suficientemente igual, no sentido de que cada qual tenha uma oportunidade imparcial (fair)vi de ocupar uma função pública e de influenciar no resultado das decisões políticas. Essa garantia do justo valor das liberdades políticas assegura a cada cidadão um acesso equitativo e bastante igual à utilização dos serviços públicos destinados a servir a um objetivo político definido, isto é, aos serviços públicos definidos pelas regras e procedimentos constitucionais que regem o processo político e controlam o acesso às situações de autoridade política; essas regras e procedimentos devem formar um processo equitativo, destinado a produzir uma legislação justa e eficaz. No esquema procedimental ou processual, importa é o processo de sua afirmação. A teoria da justiça de Rawls (1980, p. 62) é procedural,vii já que não se propõe a fazer a distribuição dos bens sociais, mas, apenas, a garantir o processo tendente a permitir que os cidadãos livres manifestem as suas escolhas, resguardadas a situação e a sobrevivência daqueles que se encontram no nível mais baixo da sociedade. Como bem expõe Ubiratan Macedo (1995, p. 75): “Acabei concluindo que a justiça social incumbe tanto ao indivíduo como ao Estado, e que sua correta interpretação é procedimental”. Como procedimental, acaba por chegar aos valores. Mas, através do procedimento retorna então a ideia de existência objetiva de valores. Procedimentos são argumentação jurídica e ética. Hoje há a entrada dos princípios no direito. Porém, os princípios de justiça atuais são vazios, baseiam-se na discussão da realidade. Percebe-se que a teoria da argumentação em busca da discussão sobre a justiça e sobre a legitimação dos atos governamentais tem tornado-se cada vez mais presente no campo judicial e da política; a discussão das ações empreendidas pelo governo, juntamente com a livre crítica é o que o filósofo Karl Popper (1994, p. 72) denomina de atitude racional no campo da política. Hoje tem-se o encaminhamento para discussão permanente, diferente do positivismo onde a lei era absoluta, segura de si. Chega-se à sociedade com pluralismo de fundamentações, onde convivem vários pensamentos baseados em fundamentações díspares. A justiça social deve prevalecer em toda a sociedade? Como seria, classe rica contra classe pobre? Através do que, distribuição de renda, tirar dos ricos? Até que ponto vai a relação liberdade/dignidade humana? É um problema ético ligado aos direitos humanos. Nessa esteira Luis Prieto Sanchís (2003. p. 13) reconhece que “o conteúdo da constelação de valores em que repousam os direitos individuais não aparece exaustivamente tipificado e cerrado nos enunciados constitucionais”.viii A educação tem o poder de ser o maior diferenciador na busca pela justiça social. É no ponto médio, entre o benefício e o malefício, que encontramos o que é justo para todos. A educação deve ensinar a discernir estes extremos e a adotar situações intermediárias. Dar o correto valor a cada coisa e a cada pessoa. Ser justo é estabelecer regras claras sem dar vantagem para uns e desvantagem para outros irracionalmente. Ser justo é encontrar o equilíbrio que satisfaz ou sacrifica, por igual, sem deixar resíduos de insatisfação. T. H. Marshall (1967, p. 63) aponta como instituições mais ligadas ao elemento social, o sistema de ensino e o serviço social.ix A ausência de uma sólida educação de base, nesse sentido, tem propiciado comportamentos extremistas (ora omisso, ora violento) por parte da maioria dos cidadãos. O maior problema, consequente desse tipo de comportamento surge com o decorrer do tempo. A falta de diálogo para se estabelecer o que é justo e correto faz o cidadão prejudicado se cansar de ser omisso e partir para violência (ir direto ao outro extremo). Pesa também a falta de credulidade na Justiça. Por isso, a reeducação cívica é de extrema importância. 3. Justiça social: Estado, mercado e sociedade No passado, pretenderam substituir o Estado pelo mercado. O Estado que os liberais clássicos consideravam um mal necessário passou a ser visto quase que como um ente descartável.x Quando a conta ética e social foi se tornando insuportável, os herdeiros dessa idéia elegeram as ONGs como legítimas sucessoras do Estado. Por mais importantes e necessárias que sejam as entidades e pessoas que conformam o chamado terceiro setor, elas não substituem o Estado no seu papel de expressão da sociedade, de pensar e planejar o futuro, de articular e integrar setores e regiões, de assentar, enfim, as bases do projeto nacional, visando a justiça social. Os desafios da pobreza e das políticas públicas sociais que viabilizem os objetivos sociais do terceiro milênio devem ser resolvidos em comum pelo Estado e pela sociedade, englobando a iniciativa privada e o chamado terceiro setor. De acordo com o filósofo político Gauchet (2004, p. 150), o Estado tem se mostrado sem força como instrumento de controle político da economia, mais isso não significa de modo algum que haja chegado a hora de sua extinção. Ao contrário, quanto mais devemos viver com esse princípio de despossuimento irremediável, inscrito na mobilidade industrial e financeira, mais as funções de coerência, proteção e formação cumpridas pelo Estado serão decisivas. Numa visão anticapitalista, Comparato (2007. p. 540, 541) defende que uma civilização que garanta a toda humanidade o direito de buscar uma vida mais feliz há de contrapor-se radicalmente ao capitalismo, tanto pelo seu espírito quanto pelo sistema institucional ou a prática da vida. Para o autor, em oposição ao individualismo excludente, o espírito da nova civilização há de ser a organização de uma humanidade solidária. Quando o capitalismo avassala o Estado, ele introduz em seu funcionamento a lógica mercantil do intercâmbio de prestações, e dele tira o poder-dever de submeter os interesses particulares à supremacia da coisa pública, ou bem comum do povo (república). O autor afirma que nunca como hoje se percebeu, tão nitidamente, o caráter anticapitalista dos direitos humanos de natureza social, econômica e cultural. Para o indivíduo, a justiça social consiste na observância das regras éticas gerais da atividade econômica e da profissão, e no respeito às leis tributárias. A observância, pelo indivíduo, da justiça social, legitima suas aquisições e rendimentos. Pelo Estado, a justiça social significa a instauração de uma ordem econômica competitiva que permita “o desenvolvimento de cada um e de todos, bem como ações afirmativas que restaurem, sempre que necessário, um mínimo de igualdade de oportunidades entre indivíduos, setores, regiões, etc.” (MACEDO, 1995, p. 75). Já para Marcel Gauchet (2004, p. 149) está claro que as velhas disputas sobre o capitalismo se tornaram obsoletas por sua redefinição de fato como economia da inovação. Na produção, o que conta são as condições de sua renovação. É com esta vara imperativa que há de se julgar o regime de propriedade, o estatuto do capital, a organização da empresa ou o enquadramento do mercado. A esse capitalismo se pode aperfeiçoar, se pode torná-lo mais eficaz, se pode também abri-lo, porém não é possível superá-lo. Concretização, esta é palavra-chave para atingirem-se os objetivos da Justiça Social neste terceiro milênio. Isto só será possível com a integração e conscientização do Estado e da Sociedade trabalhando juntos para atingir um presente e futuro com desigualdades sociais bem menores. Neste sentido, Rawls (2000, p. 179) adverte que a sociedade “deve arcar com pelo menos uma grande parte do custo da organização e da execução do processo político e supervisionar a realização das eleições”. Definitivamente a sociedade deve compreender que o peso da concretização não pode ser suportado tão somente pelo Estado. A Sociedade não pode continuar apenas exigindo prestação do Estado, e não fazer a sua parte na concretude dos objetivos sociais. É importante que os cidadãos se sintam parte de um projeto nacional, ou quem sabe internacional, no atual mundo globalizado, com efetivos espaços de participação social e compartilhamento de responsabilidades. De acordo com o pensamento de Duguit (2006, p. 74), os governantes são indivíduos semelhantes a quaisquer outros, também implicados nos laços de solidariedade social, e submetidos também à regra de direito que se funda nesta solidariedade. A regra de direito imposta aos governantes é mesma para os governados; só pode haver uma regra de direito que é sempre a mesma: cooperar na solidariedade social. As sociedades atuais, abertas, cosmopolitas, são formadas por homens independentes dos países de origem, empresas multinacionais, Organizações Não Governamentais internacionais, onde novas formas de solução de conflitos sociais ocorrem fora da chancela estatal. É a sociedade tentando suprir o Estado. Esta é característica do mundo social ou intersubjetivo, onde os campos da moral, do direito e dos fatos, se inter-relacionam. Sayão Romita (2008) acentua que o Estado Liberal não pode declinar de sua obrigação de satisfazer sua função social. A reserva do possível é intrínseca à problemática da “concretização dos direitos sociais pelos Poderes Públicos”, tendo em vista, de um lado, o caráter programático de alguns deles, e de outro, a necessidade de recursos financeiros para a implementação de políticas públicas que os tornem efetivos. O jurista Romita (2008) aduz que os direitos fundamentais que exigem uma prestação positiva do Estado dependem da existência de recursos orçamentários para sua concretização. No caso do Brasil, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 garante uma considerável enumeração de direitos sociais; uns de eficácia plena e aplicabilidade imediata, outros de conteúdo programático, sujeitos da atuação positiva dos órgãos estatais para sua concretização. Ocorre que, como é notória, a execução dos direitos sociais reclama do Estado investimento de recursos financeiros, muitas vezes parcos. Em face dessa realidade – onerosidade da efetivação dos direitos sociais - é que se afirma que a execução dos direitos sociais, tais como o direito à distribuição gratuita de medicamentos a pacientes com AIDS (STF, RE 271.286/RS, rel. Min. Celso de Mello, 12.09.2000), o direito à educação infantil (STF, ADPF 45, rel. Min. Celso de Mello, 29.04.2004) e o direito à vida e à saúde (STF, RE 393.175/RS, rel. Min. Celso de Mello, 01.02.2006) está sujeita à reserva do financeiramente possível, por conseguinte, o Estado está constitucionalmente obrigado a concretizar os direitos sociais, mas somente na medida do que lhe seja financeiramente possível. Ricardo Lobo Torres (2008), ao tratar da reserva do possível, começa esclarecendo o tema do “mínimo existencial”. Para ele, Direito à existência é diferente de Direito à vida. Aquele engloba saúde, educação, moradia e participação social.xi Em sua visão, o mínimo existencialxii representa um conjunto imprescindível de condições iniciais para o exercício da liberdade, exibe as características básicas dos direitos da liberdade: é pré-constitucional, posto que inerente à pessoa humana; constitui direito público subjetivo do cidadão, não sendo outorgado pela ordem jurídica, mas condicionando-a; tem validade erga omnes, é dotado de historicidade, variando de acordo com o contexto social. Sobre este assunto, Rawls (2000, p. 176) faz a seguinte afirmação: “É claro que a ignorância e a pobreza, assim como a falta em geral dos meios materiais, impedem as pessoas de exercer os seus direitos e de se beneficiar das liberdades básicas”. O filósofo Torres (1989, p. 32) explica que se extremam da problemática do mínimo existencial os direitos econômicos e sociais, que se distinguem dos fundamentais porque dependem da concessão do legislador; são o status positivus socialis e se subordinam à idéia de justiça social. Prossegue afirmando que o status positivus socialis é de suma importância para o aperfeiçoamento do Estado social de direito, sob sua configuração de Estado de prestações e em sua missão de protetor dos direitos sociais e de curador da vida social, depende da situação econômica do país e da riqueza nacional, sendo tanto mais abrangente quanto mais rico e menos suscetível a crises seja o Estado. Ao contrário do status positivus libertatis (a prestação estatal que visa garantir as condições de liberdade, a segurança do mínimo existencial e a personalidade do cidadão), se afirma de acordo com a situação econômica conjuntural, isto é, sob a „reserva do possível‟ ou na conformidade da autorização orçamentária.xiii Há plena justiciabilidade do mínimo existencial, ao passo que os direitos sociais não podem ser reclamados perante o Judiciário. “O direito ao mínimo existencial, como núcleo essencial dos direitos fundamentais, não pode ficar ao sabor da maioria; é papel do Judiciário adjudicar o mínimo ao indivíduo”. (TORRES. 2008) 4. CONCLUSÃO Como se pôde ver, através da Justiça Social não se atingirá uma sociedade perficiente. “Há muita coisa na vida social que é cruel, detestável, tola e injusta; há sempre lugar para melhoramentos. Mas sonhos de uma sociedade perfeita são perigosos”. (POPPER, 1994, p. 73) Não se deve transformar a busca pela justiça social numa utopia. Se Estado e Sociedade estiverem unidos é possível atingir importantes reformas sociais. A justiça no mundo, sem a qual se diz não haver paz, deve começar no próprio país, o que exige de muitos cidadãos a consciência de excessivas desigualdades (nada a ver com certa fantasia de igualitarismo) e a vontade de atenuá-las. Neste momento vale destacar a reflexão contundente da socióloga Márcia de Castro Lopes: As questões dos valores são muito importantes e pouco faladas. Quantos atos de violência ocorrem e a eles já nos acostumamos – incluindo a falta de atendimento nos hospitais, os desvios de recursos da merenda escolar, os desmandos políticos? Honestos são “bobos” que pensam nos outros. E, que, de alguma forma, se conformam e têm medo. Medo de sair à rua, de denunciar crimes, de reagir a um assalto. Parece que, em nossa sociedade, o mal e a falta de valores têm triunfado. Cada vez nos conformamos mais, por medo ou comodismo, ainda que a indignação cresça. Temos dificuldade de reagir, mas é preciso começar. Por que não iniciar um trabalho nas escolas municipais, discutir com crianças e jovens o que é importante para a vida em sociedade? Por que não levá-los a refletir sobre o “outro”, sobre o medo que nos paralisa e sobre a solidariedade, que tornaria a vida mais fácil? Há que se começar, e talvez pelas crianças e jovens seja mais fácil. Com essa interação na escola, esses alunos poderiam começar a discutir em casa esses temas e tornar-se multiplicadores de novas posturas ( LOPES, 2008, p. 5). Deve-se alvidrar que, apesar da bem vinda participação da sociedade na busca pela concretização da justiça social, esta é um dever precípuo do Estado, o qual a deve buscar através dos mecanismos que lhe são reservados. O ideal para atingir a justiça social é um equilíbrio, onde o Estado procura regular o mercado, evitando intervenções. Busca-se harmonia entre o princípio da igualdade e o livre mercado, atalhando maiores desigualdades decorrentes da força predatória do livre mercado. Notas: i Não se quer chegar aqui a um “verbalismo vazio resultante da procura de precisão em definições” tão bem exposto em POPPER, 1994. p. 72. ii Ensina FIORAVANTI (2003, p. 59) que “todo o projeto revolucionário se construiu através da contraposição radical ao passado do antigo regime, na luta contra a dupla dimensão do privilégio e do particularismo e, por tanto, a favor dos novos valores constitucionais: fundamentalmente, os direitos naturais individuais e a soberania da nação”. iii Ver MARSHALL (1967, p.76), onde ele diz: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status”. iv Nomenclatura desenvolvida pelo jurista brasileiro Alberto Nogueira em sua obra Jurisdição das liberdades públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. v BARRETO, 1998 / 1999, p. 355, 359. O autor continua sua explanação dizendo que: “Os direitos humanos adquiriram, a partir de 1945, uma força própria que cresceu progressivamente, vindo a expressar-se numa filosofia cosmopolita, num corpo de leis internacionais, num conjunto de instituições com o objetivo de administrá-los, além de ser importante fator legitimador de uma sociedade civil global emergente. Neste contexto, os direitos humanos têm um caráter de universalidade que os aproximam do ideal democrático, ideal este comum a todas as nações, e que se expressa na hipótese de que todos os adultos são capazes de escolha política desde que tenham informações relevantes. Os direitos humanos da mesma forma têm uma conceituação semelhante, não havendo discrepância quanto ao seu conteúdo, mas exclusivamente quanto a sua observância, pois são afirmados com solenidade e, muitas vezes, negados na prática de políticas públicas. Os direitos humanos, entretanto, diferenciam-se do ideal democrático quando se verificam as limitações universais da ordenação da democracia”. vi Ricardo Lobo Torres alerta para o fato de que algumas traduções trazem erroneamente o termo fairness como equidade, quando o correto é imparcialidade. TORRES. Palestra Direito & Justiça. loc. cit. vii Há ainda em Rawls o “consenso sobreposto”, que é resumido por SILVEIRA (2007): “A categoria de consenso sobreposto na teoria da justiça como equidade de John Rawls nas obras Political Liberalism (Lecture IV), Justice as Fairness: A Restatement (§ 11) e Replay to Habermas (§ 2), identifica um modelo pragmático de justificação em um âmbito público, compreendendo os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade como um mínimo social que visa a garantia da estabilidade e legitimidade, assegurando critérios públicos para a determinação dos principais acordos constitucionais, econômicos e sociais. Com a afirmação dos valores políticos de razoabilidade e reciprocidade, identificar-se-á um modelo pragmatista universalista de justificação com base em um intuicionismo mitigado”. viii No original: “... la propia constelación de valores en que reposan los derechos. Pero dado que, como veremos, el contenido de estos últimos no aparece exhaustivamente tipificado y cerrado desde los enunciados constitucionales”. ix MARSHALL, 1967. p. 63, 64. O autor divide o conceito de cidadania em três partes, ou elementos – civil, política e social -: “O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito `a justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”. x Desta linha de pensamento pode-se destacar, para exemplificar, os seguintes autores: PAINE, Thomas. Rights of man (1791). Londres: Pelican, 1976; GODWIN, Wilham. Enquiry concerning political justice (1793). Londres: Pelican, 1976; Para um aprofundamento dessa questão recomenda-se a leitura de ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da ideia de mercado. Tradução: Antonio Penalves Rocha. Bauru: EDUSC, 2002. xi Definição aduzida pelo Dr. Ricardo Lobo Torres em palestra Direito & Justiça realizada na Universidade Gama Filho – campus Piedade em 29/10/2008. xii A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 25. -1 ao dispor sobre o mínimo existencial, o define como: “Um padrão de vida suficiente à que toda pessoa tem direito para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários”. xiii RAWLS. 2000, p. 40, 41, 44. Sintetiza aduzindo que: “As normas constitucionais sobre os direitos econômicos e sociais são meramente programáticas, restringem-se a fornecer as diretivas ou a orientação para o legislador”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Vicente de Paulo. Globalização e democracia cosmopolita. Revista da Faculdade de Direito – UERJ (nº 6 e 7) – 1998 / 1999. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5ª edição. 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