Teorias Estrutural Funcionalistas C a p í t u l o V Teorias Estrutural Funcionalistas SUMÁRIO • 1. Introdução; 2. Teoria da Anomia: Durkheim; 2.1. A normalidade do crime; 2.2. A utilidade do crime; 2.3. A função da pena; 3. A estrutura social defeituosa: Merton; 3.1. Tipologia de adaptações; 4. Conclusões; Quadro Sinótico 1. Introdução Já nos fins do século XIX e início do século XX, a Criminologia dos Estados Unidos orientava-se sob a perspectiva sociológica. A mola propulsora para o desenvolvimento da sociologia criminal, naquele período, foi o grande fenômeno migratório pelo qual passavam os Estado Unidos, aliado ao êxodo rural para as grandes cidades e o crescente desenvolvimento industrial. Este fenômeno descortinou graves problemas como crime, prostituição, desorganização social, fazendo surgir a necessidade de encarar o crime, não como fenômeno biológico-individual, mas como fenômeno social. Entre os sociólogos que, àquela altura, questionavam as premissas do determinismo individual, a teoria da anomia de Émile Durkheim merece destaque, porquanto era levante contra o determinismo biológico que dominava a Criminologia européia; no Novo Mundo, é digna de menção a teoria de Robert K. Merton. Antes da apreciação de cada uma destas teorias, cumpre sinalizar o cuidado ao utilizar o termo anomia, não raras vezes empregado de forma vaga e imprecisa, em termos pouco criteriosos100. 100. Mannheim, Hermann. Criminologia...Op. cit., p. 767. No mesmo sentido Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia...Op. cit., p. 311. 105 Eduardo Viana Convém, portanto, pontuar que o termo será utilizado no sentido macrossociológico, ou seja, ausência ou desintegração entre o sistema de valores e o sistema das normas sociais. A teoria da anomia se insere no tronco das teorias estruturais funcionalistas, teorias que se caracterizam, fundamentalmente, por interpretar e analisar o crime como fenômeno social, normal e funcional. 2. Teoria da Anomia: Durkheim Durkheim foi o criador do moderno pensamento sociológico. Ao dialogar com pensadores de sua época, ainda que fossem seus inimigos intelectuais, a exemplo de Garófalo, ele provoca uma aberta polêmica com os sociólogos e criminólogos positivistas, (re)construindo e fundando, a partir daí, a sociologia de matriz funcionalista. O enfoque macrossociológico encetado pelo sociólogo aparece em um contexto histórico bastante preciso, qual seja, a França de fins do século XIX, sacudida pela Revolução Francesa e a rápida industrialização. O novo fenômeno de vertiginosa industrialização e as consequências que vêm a reboque de ambas revoluções, a exemplo da desintegração da solidariedade dos membros da sociedade, aanimam e impulsionam Durkheim a criar as bases teórico-explicativas de uma sociedade racional e solidária. Foi, sobretudo, nas obras “A divisão do trabalho social” e “As regras do método sociológico” que Durkheim enfrentou a anomia. Basicamente, os conceitos elementares são o de solidariedade social e o de consciência coletiva. A nova programação social, derivada das sociedades altamente industrializadas, é a divisão social do trabalho, em suas expressões de especialização e individualismos, por um lado, e, por outro, a constatação de que os indivíduos, mesmo nesta singularidade, estão vinculados a uma consciência coletiva, entendida 106 Teorias Estrutural Funcionalistas como o sistema de representações coletivas comuns à média dos membros de uma sociedade101. O nível de coesão dessa consciência coletiva, contudo, varia de acordo com o tipo de sociedade. Durkheim apontava que existem dois tipos de sociedades, a sociedade primitiva e a contemporânea. Na primeira, existe um tipo de solidariedade mecânica; é a que ocorre em sociedades que não possuem ou possuem pouca diferenciação entre os membros que a integram, já que eles partilhariam os mesmos valores e sentimentos e crenças religiosos; são sociedades que correspondem aos estágios mais primitivos da evolução social, a exemplo do clã. Nas sociedades contemporâneas – caracterizadas por serem mais complexas, dinâmicas e evoluídas – existiria a solidariedade orgânica. Os indivíduos, em decorrência da divisão do trabalho, não compartilham as mesmas metas; a diferenciação entre eles provoca a desintegração dos valores e um enfraquecimento da consciência coletiva, podendo levar ao estado de anomia. A importância da teorização de Durkheim – especialmente considerando que, àquela altura, o positivismo era a teoria por excelência – é compreender o crime a partir das estruturas sociais, ou seja, o fenômeno criminal como um fenômeno social cultural. Em síntese, a teoria da anomia caracteriza-se por ser uma teoria estrutural, pelo determinismo sociológico, pela normalidade e funcionalidade do crime e pela ideia de que a perda das referências coletivas normativas que orientam a vida em sociedade leva ao enfraquecimento da solidariedade social. Em linhas próximas, segundo Baratta, a teoria da anomia ensaia as seguintes razões: 101. Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social; trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura [et al.]. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 41. 107 Eduardo Viana 1) as causas da desviação ser buscadas em fatores bioantropológicos, nem em uma situação patológica da estrutura social; 2) a desviação é um fenômeno normal de toda estrutura social; 3) só quando se ultrapassem certos limites, o crime é um fenômeno negativo. Do contrário, ou seja, dentro de certos limites, o crime é necessário e útil para o equilíbrio e desenvolvimento sócio-cultural102. Vou me deter em duas destas características: a normalidade e utilidade do crime. 2.1. A normalidade do crime A frequência do número de crimes, em determinados períodos, assim como chamou atenção dos membros da estatística moral, também despertou o interesse de Durkheim. Em “As regras do método sociológico” expôs ele que: “O crime não se produz só na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades, qualquer que seja o tipo destas. Não há nenhuma em que não haja criminalidade [...] Não há, portanto, um fenômeno que apresente de maneira tão irrefutável como a criminalidade, todos os sintomas da normalidade.[...] Pode, sem dúvida, acontecer que o crime tome formas anormais; é o que acontece quando, por exemplo atinge uma taxa exagerada. Mas é normal a existência de uma criminalidade que atinja mas não ultrapasse, para cada tipo social, um certo nível [...]103. Partindo do pressuposto de que o crime se apresenta em toda sociedade (1), pode-se dizer, dentro da concepção durkheimiana, ser ele inevitável. Para que uma sociedade não tenha crime, seria necessário que todos os sentimentos e valores merecedores de 102. Baratta, Alessandro. Criminología crítica y crítica del derecho penal: introducción a la sociología jurídico penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004, p. 56. 103. Durkheim, Émile. As regras do...Op. cit., p. 119. 108 Teorias Estrutural Funcionalistas proteção se encontrassem distribuídos igualmente em todas as consciências individuais e com força tal que fosse capaz de conter os sentimentos e impulsos criminosos. O normal, portanto, é o contínuo e longo processo de verificação da existência de crimes. Mais ainda, em boa medida, conforme se acentua logo abaixo, em algumas hipóteses, o crime anuncia ou até mesmo antecipa a mudança social. Embora a tese de normalidade seja sedutora, o grande equívoco de Durkheim decorre da confusão entre constância estatística e normalidade. A normalidade à qual Durkheim se refere não é, como aponta Manzanera, uma normalidade moral ou filosófica, senão uma normalidade estatística; o crime é normal quando se apresente frequente na sociedade104. Contrariando a doutrina do sociólogo francês, pode-se dizer que o crime é um fenômeno social anormal, embora constante. A presença dele em todos os tipos de sociedades não lhe empresta o predicado da normalidade, senão que põe acento na inclinação do homem para a prática daquilo que, na segunda metade do século XX, passa a ser encarado como etiquetamento. 2.2. A utilidade do crime Durkheim avança na construção de sua teoria para defender que o crime é um fator de saúde pública e é parte integrante de toda sociedade sã. Aliás, uma sociedade que não apresente crime é uma sociedade primitiva e, consequentemente, pouco evoluída. Ressalta que o crime “está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social e, precisamente por isso, é útil; porque essas condições às quais está ligado são indispensáveis para a evolução normal da moral e do direito105”. Portanto, o crime abre 104. Rodriguez Manzanera, Luis. Criminologia...Op. cit, p. 353. 105. Durkheim, Émile. As regras do...Op. cit., p. 121. 109 Eduardo Viana o caminho para as necessárias mudanças dos sentimentos coletivos, às vezes, inclusive, prepara essas mudanças, significando uma simples antecipação da moral futura. Pontua que a liberdade de pensamento de que gozamos hoje nunca poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam nunca tivessem sido violadas106. A conclusão que chega Durkheim é ainda mais interessante. Ora, se o crime prepara e, às vezes, antecipa a moral futura, o criminoso também tem um importante papel na sociedade, “o criminoso já não parece ser um ser radicalmente insociável, como uma espécie de elemento parasitário, de corpo estranho e inassimilável, introduzido no seio da sociedade; é um agente regular da vida social107 ”. Essa visão contraria toda a tradição da criminologia precedente que colocava acento na patologia do criminoso. A normalidade e utilidade do crime, atributos aparentemente incompatíveis, se explicam perfeitamente na teorização de Durkheim: se o delito provoca e estimula uma reação social, ele estabiliza e reforça o sentimento coletivo em torno dos valores proporcionando, a transformação social. 2.3. A função da pena Antecipando as modernas concepções funcionalistas, como a de Jakobs, Durkheim também desenvolve uma importante noção sobre a teoria da pena. O sociólogo francês discorda das conhecidas teorias da prevenção geral e da prevenção especial. Como é sabido, ele define crime em função da pena, daí porque o único ponto de semelhança entre os crimes é a pena. O ato é criminoso quando ofende intensamente o estado da consciência coletiva108. Ele parte da premissa de que o crime não possui 106. Ibidem, p. 122. 107. Id., ibidem (sem destaque no original). 108. Anitua adverte que Segundo Durkheim “há delitos que não são considerados como uma afronta pelas ‘consciências saudáveis’. Ele os explica que 110 Teorias Estrutural Funcionalistas uma realidade ôntica ou operacional, mas sim uma realidade construída e modificável. Assim, afirma o seguinte “[...] não é preciso dizer que um ato fere a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque fere a consciência comum. Não reprovamos porque é um crime, mas é um crime porque reprovamos109”. Noção que, anos mais tarde, seria revigorada pela reação social. Assim, se o crime é normal e não tem nada de patológico, a pena não é um remédio para o mal. Defende Durkheim: “Embora [a pena] proceda de uma reação completamente mecânica, de movimentos passionais e em grande parte irrefletidos, não deixa de desempenhar um papel útil. Este papel apenas não está ali onde se o vê ordinariamente Ela não serve, ou não serve senão secundariamente para corrigir o culpado ou intimidar seus imitadores possíveis; sob esse duplo ponto de vista, sua eficácia é justamente duvidosa e, em qualquer caso, medíocre. Sua verdadeira função é manter intata a coesão social mantendo toda vitalidade da consciência comum110”. Sendo assim, a leitura precisa da teoria durkheimiana, põe acento no fato de que o comportamento criminoso debilita o valor universal das normas que regem o convívio social, bem por isso a pena desempenha a nodal função de reforçar a consciência coletiva sobre valores dominantes. No artigo “Deux lois de l’évolution pénale”, a teoria da pena recebe outras precisões. À luz da noção de progresso e modernidade, escreve o sociólogo francês que a evolução do sistema repressivo sofreu dois tipos de variações: quantitativa e qualitativa. Em relação às quantitativas, afirmava que a intensidade são ofensas contra o Estado e, ao ser este o guardião dos sentimentos coletivos, devem ser considerados ofensas contra a consciência coletiva e, por conseguinte, devem ter uma resposta punitiva, ainda que não afetem a ‘alma comum’.” Ignácio Anitua, Gabriel. História... Op. cit., p. 445. 109. Durkheim, Émile. Da divisão...Op. cit., p. 41. 110. Durkheim, Émile. Da divisão...Op. cit., p. 56 (sem destaque no original). 111 Eduardo Viana do castigo é maior na medida em que a sociedade pertence a um tipo menos desenvolvido e na medida em que o poder central tem um caráter mais absoluto111. Essa afirmação deixa evidente como o processo civilizatório a tende a suavizar a repressão. Para além disso, há que se destacar a importância do fator político como influenciador da intensidade das penas; a maior ou menor intensidade da repressão penal é diretamente proporcional ao modelo político: democracia é indicativo de maior benevolência; absolutismo, maior severidade penal. No que se refere às variações qualitativas, ele expressava que as penas privativas de liberdade, por períodos de tempo que variam com a gravidade do crime, tendem, mais e mais, a tornar-se o tipo normal de sanção112 . Essa segunda formulação complementa e conecta-se com a anterior, na medida em que o autor aponta que a pena privativa de liberdade, e somente ela, é um exemplo da benevolência dos Estados modernos. Essa afirmação, conforme esclarece Anitua, rendeu ao autor críticas de superficialidade, por não compreender outras funções sociais que este tipo de pena desempenha nas sociedades modernas113. Seja como for, impossível não reconhecer vitalidade no pensamento durkheimiano, especialmente no que se refere à teoria da pena. Com efeito, as novas roupagens com que o funcionalismo veste a teoria da pena não são suficientes para desconsiderar a marca de Durkheim. 111. Durkheim, Émile. Deux lois de l'évolution pénale. In: L’anné sociologique. Paris: Félix Alcan Éditeur, 1901, p. 65. 112. Ibidem, p. 78 113. Ignácio Anitua, Gabriel. Op. cit., p. 447. 112 Teorias Estrutural Funcionalistas 3. A estrutura social defeituosa: Merton Robert K. Merton assume e adapta a teoria da anomia ao modelo de vida americano da primeira metade do século XX. O estudo da anomia foi retomado por ele em um ensaio de 1938, no qual, assim como Durkheim, contesta as concepções patológicas da desviação. Partindo de uma base sociológica estrutural, analisada a partir da contradição entre indivíduo e sociedade, e considerando esta como uma força que impulsiona o indivíduo a determinados comportamentos, cria uma ponte entre desviação e estruturas sociais. O comportamento, por assim dizer, não tem uma origem individual, mas sim uma origem cultural do modelo de vida norteamericano. Para entender o porquê desta virada etiológica é preciso situar historicamente a formulação mertoniana. Sua teoria reflete o momento de expansão econômica vivido pelos Estados Unidos, a partir da primeira metade do século XX. Segundo ele, os Estados Unidos constroem uma defasagem entre uma estrutura cultural ideologicamente igualitária – o sonho das trajetórias sociais meteóricas, vale dizer, “qualquer um pode chegar à casa branca” – e uma estrutura social visivelmente desigual. Além disso, trata-se de uma sociedade onde a interiorização dos fins culturais não tem equilíbrio com a interiorização das normas institucionalizadas, ou seja, há a procura do sucesso econômico a qualquer custo. A crença falaciosa desta ideologia geral de índole igualitária, no plano teórico, e o fomento implementado pelas agências de publicidade e meios de comunicação de massa desempenham um papel fundamental para a origem do comportamento criminoso, pois distribuem sobre os indivíduos o símbolo de status associado ao fator econômico. Conforme percebeu Merton, o principal valor cultural da sociedade americana era o sucesso econômico pouco importando se é possível atingir este objetivo pelos meios legítimos postos à 113 Eduardo Viana disposição. O “American dream” não tem ponto final114 nem comporta nenhuma limitação na senda do sucesso115. Naturalmente que, a essa altura, fica compreensível o porquê de interpretar a desviação como produto de uma estrutura social defeituosa, ou seja, um modelo cultural de sociedade responsável pelo estímulo e pressão sobre a conduta individual. Por esse motivo, o funcionalismo mertoniano permite estudar o desvio como produto normal de determinada estrutura social, daí porque o comportamento criminoso é tão normal quanto o comportamento não criminoso, o que equivale a dizer que o criminoso não é um doente, apenas (re)age diante da pressão que a estrutura social exerce sobre ele. Dois, portanto, são os elementos fundamentais para a compreensão do pensamento de Merton: estrutura cultural e estrutura social. A estrutura cultural é o conjunto de valores que regulam o comportamento comum dos membros de uma determinada sociedade116. São, portanto, os objetivos culturais de cada sociedade como, por exemplo, ascensão social e sucesso econômico. A estrutura social, por sua vez, é o complexo de relações sociais em que os membros de uma sociedade ou de um grupo se acham diversamente inseridos117, isto é, a estrutura das oportunidades reais, que condiciona de fato a possibilidade dos membros da sociedade se orientarem para os objetivos culturais, respeitando as normas institucionalizadas118. A etiologia do comportamento criminoso fica condicionada à ausência de sintonia entre as estruturas culturais e os meios para alcançá-las.. Em uma sociedade onde os meios legítimos são suficientes para se alcançar as metas culturais, há uma perfeita 114. Taylor, Ian; Walton, Paul. e Young, Jock. La nueva...Op. cit. p. 109. 115. Mannheim, Hermann. Op. cit., p. 770. 116. Baratta, Alessandro. Criminología...Op. cit., p. 60. 117. Ibidem, p. 61 118. Dias, Jorge de Figueiredo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia...Op. cit., p. 323. 114 Teorias Estrutural Funcionalistas harmonia. Ao passo que, em uma sociedade com estrutura social e estrutura cultural discrepantes, defasadas, ou seja, mal integradas, há uma tendência a impulsionar o comportamento desviante. Anomia em Merton é, portanto, a crise da estrutura cultural que se verifica especialmente quando existe uma forte discrepância entre normas e fins culturais, de um lado, e as possibilidades estruturadas socialmente de atuar em conformidade com aquelas, por outro lado119. Um exemplo ajuda a compreender melhor: a riqueza e sucesso econômico podem ser atingidos tanto pelo trabalho legítimo, como assaltando a bancos. A diferença é, obviamente, que o primeiro meio é socialmente aceito, enquanto o segundo é recusado pela maioria da sociedade. Mas, ambos desembocam no fim comum, ou seja, na meta imposta culturalmente a todos os indivíduos. Pode-se dizer que a explicação mertoniana do desvio reside na incongruência entre a estrutura social e estrutura cultural. Uma sociedade anômica é caracterizada por uma distribuição seletiva das estruturas sociais, permitindo que apenas alguns indivíduos possam alcançar as metas culturais. O comportamento desviante não é, portanto, uma opção do indivíduo, senão uma consequência da estrutura social defeituosa; tampouco uma escolha, mas uma determinação gerada pela ordem social. Uma leitura apressada poderia conduzir à afirmação de que, segundo Merton, a existência de uma estrutura social e estrutura cultural são suficientes para produzir uma situação de anomia e gerar o comportamento desviante, mas esta conclusão, embora coerente, merece alguns temperamentos. Nesse ponto, a observação de Mannheim é irretocável, “[...]a falta de oportunidades só é decisiva se ocorrer numa sociedade dominada por uma ideologia 119. Taylor, Ian; Walton, Paul. e Young, Jock. La nueva criminologia: contribución a una teoría social de la conducta desviada. Buenos Aires: Amorrortu, 1997, p.111. 115 Eduardo Viana igualitária e que se revê no evangelho da igualdade de oportunidades para todos[...]120.” Sumarizando, é o desajuste entre os objetivos culturais (dinheiro) e os meios legítimos para a consecução daqueles objetivos, desajuste este que foi difundido e fomentado pela sociedade americana dos anos trinta e o mito do “homem americano”, que pode propiciar o surgimento do comportamento criminoso. A partir dessa compreensão, pode-se encaminhar o alerta: a perigosa ideologia social da igualdade em uma sociedade estruturada desigualmente e o fetichismo do sucesso econômico são os primordiais fatores para a etiologia do comportamento criminoso. 3.1. Tipologia de adaptações Frente à já tantas vezes mencionada dissociação entre os fins culturais e os meios institucionais legítimos, o indivíduo pode adaptar-se, comportamentalmente, aderindo ou recusando os fins e os meios. Esses tipos de respostas, gerados pela variação com que os indivíduos internalizam e (re)agem à discrepância social, correspondem a cinco modelos de adaptação individual, a saber: conformismo, inovação, ritualismo, evasão e rebelião. O conformismo corresponde a uma resposta positiva do indivíduo, tanto em relação aos meios, como às metas culturais. Neste modelo, o indivíduo aceita e internaliza o respeito às metas culturais e aos meios institucionalizados para alcançá-las. Tratase, em verdade, do modo mais comum de adaptação, pois, do contrário, a sociedade se desintegraria. Diferente é o segundo modo de adaptação, a inovação. Tipicamente criminoso, na inovação o indivíduo que adere aos fins culturais, mas não aos meios legítimos para alcança-los, razão pela qual pretende obter o sucesso por meios ilegítimos, ou seja, o 120. Mannheim, Hermann. Criminologia...Op. cit., p. 771. 116 Teorias Estrutural Funcionalistas crime121. Merton explica como os estratos sociais mais inferiores são impulsionados pelas metas culturais da sociedade norteamericana. Em regra, essa adaptação é dominante nos estratos mais inferiores da sociedade. No entanto, intuitivamente pode-se imaginar que essa explicação refere-se apenas às classes inferiores; deveras, essa é a regra, mas esse desequilíbrio entre metas culturais e meios legítimos, segundo Merton, também é suficiente para explicar a criminalidade de colarinho branco. Para ele, a criminalidade de colarinho branco reforça a tipologia da adaptação. Os empresários e as grandes fortunas norteamericanas se encontram em uma boa parte da população que tem comportamento desviante, mas são escassamente perseguidos. Seus comportamentos correspondem a adicionais tipos de inovação. O terceiro modelo de adaptação é o ritualismo. Esse modelo é característico da baixa classe média americana. Trata-se de um modo de adaptação em que o indivíduo renuncia às metas culturais impostas pela sociedade, por se achar incapaz de alcançá-las, mas respeita aqueles que buscam atingir os fins culturais através dos meios legítimos. A maior interiorização das normas reduz o horizonte do indivíduo, ou seja, seu nível de ambição, em nome do medo de que “quanto maior o salto, maior a queda”. É a perspectiva do indivíduo que entrega à sociedade aquilo que ele pode, nem mais nem menos. O modelo da evasão ou apatia se traduz na negação, tanto das metas culturais, quanto dos meios legítimos. Encontramos, neste modo de adaptação, aqueles que pouco se importam com que os outros acham de si, ou seja, são os alienados socialmente. Parafraseando Ignácio Anitua, os apáticos são os personagens abandonados no meio da grande cidade, são, pois, os que se encontram no mundo das drogas, o alcoólatra, “vagabundo”, párias. São indivíduos que estão na sociedade, mas não fazem parte da sociedade. 121. Criticando o uso do termo inovação cf. Mannheim, Hermann. Op. cit., p. 771. 117 Eduardo Viana Por fim, o modelo da rebelião corresponde não à simples negação das metas culturais e dos meios institucionalizados, mas sua substituição por novos fins culturais e novos meios institucionalizados. Neste modelo, os indivíduos criticam os fins e meios imperantes na sociedade, considerando-os arbitrários, e propõem novos valores e critérios adequados à sua visão de mundo, ou seja, querem uma nova ordem social. A partir das tipologias de Merton, fica fácil concluir que – nesta perspectiva – o comportamento desviante não é derivado de fatores biopsicológicos dos indivíduos, senão do pertencimento a determinado grupo social. A cultura impõe aos membros dos extratos inferiores das classes sociais exigências culturais inconciliáveis: por um lado, têm que comportar-se e orientar sua conduta na busca de um elevado sucesso econômico; por outro, não dispõem dos meios institucionalmente legítimos para alcançá-lo. Graficamente, a explicação mertoniana para o comportamento desviante é representada pelos sinais (+) e (-). Onde o primeiro (+) significa interiorização, o sinal (-) representa rejeição e o duplo sinal (±) rejeição dos valores prevalentes e substituição por novos valores122: Modos de adaptação Objetivos Meios legítimos 1) Conformismo + + 2) Inovação + - 3) Ritualismo - + 4) Evasão ou apatia - - 5) Rebelião ± ± 4. Conclusões De início, vale destacar uma distinção básica entre a anomia de Durkheim e a anomia em Merton. Para o primeiro, a anomia 122. Merton, Robert K. Social Teoria y estructura sociales; trad. Florentino M. Torner. México: Fondo de Cultura, 1964, p. 149. 118 Teorias Estrutural Funcionalistas surge quando, pela desintegração da consciência coletiva, as necessidades naturais do homem emergem além da possibilidade de cumprimento; para Merton, as necessidades de sucesso, status, não são naturais, mas sim socialmente induzidas. Outra distinção, segundo Dias e Andrade, é o caráter sistêmico da teoria mertoniana que oferece uma explicação de todo comportamento desviante, superando o caráter avulso da explicação ddurkheimiana123. De outro lado, o conceito mertoniano de anomia é limitado ao modelo de ideologia norteamericamo, pois o exame das sociedades indica que nem todos os indivíduos estão em permanente processo de competição (rivalidad deportiva), tampouco aceitam a meta de sucesso individual como fim e objetivo primordial de vida124. Há também outro ponto cego na construção. Pela teoria mertoniana, pode-se concluir que todos os indivíduos pertencentes a uma mesma classe social e sujeitos, portanto, à mesma intensidade de pressão cultural, tenderiam a adaptar-se da mesma forma, vale dizer, partiriam para o comportamento inovador, o que é indemonstrável empiricamente. Essa afirmação parece bastante clara quando, transferindo-se à realidade fática, constata-se facilmente que indivíduos pertencentes aos mesmos estratos sociais e, portanto, sujeitos às mesmas pressões, não necessariamente adaptam-se ao mesmo modelo de comportamento. Enquanto a grande maioria permanece como conformista, o que garante a integração da sociedade, apenas uma pequena parcela parte para o comportamento inovador. Para a concepção de Merton ser universalmente válida, todos os indivíduos pertencentes às classes sociais baixas tenderiam ao comportamento criminoso, mas a realidade desmente essa conclusão. 123. Op. cit, p. 322 124. Pavarini, Massimo. Control...Op. cit., p. 112 e ss. 119 Eduardo Viana A par da existência destas críticas e falhas, a teoria estrutural funcionalista inspira, sem qualquer dúvida, um grande conjunto de teorias que aparecem na moderna sociologia jurídica, sobretudo na Alemanha e que têm como representantes, entre outros, Otto, Amelung e Luhmann, encontrando sua expressão sistemática mais recente em Jakobs, o que revela seu alto prestígio não só diante da moderna sociologia alemã, como também na dogmática penal contemporânea. Quadro Sinótico CAPÍTULO V – TEORIAS ESTRUTURAL-FUNCIONALISTAS Instituto Conteúdo Item Teoria da Anomia A Teoria da anomia se insere num conjunto de teorias sociológicas estruturais funcionais, que se caracterizam, fundamentalmente, por analisar e explicar o crime como fenômeno social, normal e funcional. 1 Considerado o criador do pensamento moderno sociológico, entende ele que o crime é um fenômeno normal na sociedade, enquanto se apresente constante, e o criminoso um individuo biológica e psicologicamente normal. O crime é necessário e útil ao desenvolvimento da sociedade, daí porque ele é inevitável. O autor francês salienta que o delito integra toda sociedade sã. Onde não há crime é indicativo de sociedade primitiva, pouco desenvolvida. Anomia Normalidade Durkheim Confunde com constância Patológico Quando ultrapassa os limites usuais Consciência Coletiva Sistema de representações coletivas comuns à média da população. Solidariedade Social 120 Desintegração entre o sistema de valores e o sistema das normas Solidariedade Mecânica: (Sociedade primitiva) Possui pouca ou nenhuma diferenciação entre os membros que a integram; indivíduos partilham os mesmos sentimento e anseios. Solidariedade Orgânica: (Sociedades contemporâneas) Neste tipo, em virtude da divisão do trabalho entre os indivíduos, há enfraquecimento da solidariedade, podendo chegar ao estado de anomia. 2 Teorias Estrutural Funcionalistas Da pena Crítica Robert K. Merton Tipologias Crítica Durkheim define o crime em razão da pena, ou seja, a única semelhança entre os delitos é a pena. O ato é considerado criminoso quando ofende a consciência coletiva. A função da pena é reforçar as consciência coletiva. 3 A principal crítica que se faz à teoria de Durkheim é o fato dele considerar o crime algo normal. Adaptou a teoria da anomia, formulada por Dukheim, para o padrão de vida da década de 1930 nos EUA (american dream). O crime estaria ligado ao modelo cultural de vida norte-americano. Cada sociedade propõe aos seus indivíduos metas culturais que devem alcançar e essa estrutura social forma as pressões sociais sobre o comportamento humano. O desajuste entre os objetivos culturais e as formas legítimas de alcançá-los é que propicia o surgimento do comportamento criminoso. Estrutura Cultural Conjunto de valores que regulam o comportamento comum dos indivíduos de determinada sociedade. Estrutura Social Complexo de relações sociais em que os membros de uma sociedade se acham diversamente inseridos. Conformismo Resposta positiva do indivíduo quanto às metas e aos meios culturais. Inovação Adere aos fins culturais, mas não aos meios. Tipicamente indicativo de um comportamento criminoso. Ritualismo O indivíduo renuncia aos fins culturais, por achar-se incapaz de consegui-los, porém respeita quem consegue. Evasão ou Apatia Os apáticos abrem mão tanto das metas como dos meios, vivem à margem da sociedade (ex: dependentes, párias) Rebelião Proposta de novos meios e meios e metas culturais. Na formulação, todos os indivíduos pertencentes aos estratos sociais inferiores fatalmente praticariam crimes, eis que sujeitos à mesma pressão derivada da estrutura social defeituosa. 3 3.1 4 121 Eduardo Viana Questões 1. (MPE-SC – Promotor de Justiça – SC/2013 – Adaptada) A Teoria da Anomia caracteriza-se por ser uma política ativa de prevenção que intenta tutelar a sociedade, protegendo também o delinquente, pois visaria assegurar-lhe, através de condições e vias legais, um tratamento apropriado. 2. (DPPR – Defensor Público – 2012) Paulo, executivo do mercado financeiro, após um dia estressante de trabalho, foi demitido. O mundo desabara sobre sua cabeça. Pegou seu carro e o que mais queria era chegar em casa. Mas o horário era de rush e o trânsito estava caótico, ainda chovia. No interior de seu carro sentiu o trauma da demissão e só pensava nas dívidas que já estavam para vencer, quando fora acometido de uma sensação terrível: uma mistura de fracasso, com frustração, impotência, medo e etc. Neste instante, sem quê nem porque, apenas querendo chegar em casa, jogou seu carro para o acostamento, onde atropelou um ciclista que por ali trafegava, subiu no passeio onde atropelou um casal que ali se encontrava, andou por mais de 200 metros até bater num poste, desceu do carro meio tonto e não hesitou, agrediu um motoqueiro e subtraiu a motocicleta, evadindo- se em desabalada carreira, rumo à sua casa. Naquele dia, Paulo, um pacato cidadão, pagador de impostos, bom pai de família, representante da classe média-alta daquela metrópole, transformou-se num criminoso perigoso, uma fera que ocupara as notícias dos principais telejornais. Diante do caso narrado, identifique dentre as Teorias abaixo, a que melhor analisa (estuda/explica) o caso. A) Escola de Chicago. B) Teoria da associação diferencial. C) Teoria da anomia. D) Teoria do labeling approach. E) Teoria crítica. GAB 122 1 F 2 C