Modelo artigo AESA

Propaganda
Revista de Direito
Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009
TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHAS
DE JEOVÁ X RESPONSABILIDADE MÉDICA
Janda Thibes
Rede de Ensino LFG
RESUMO
[email protected]
O presente trabalho tem por objeto a análise da recusa à transfusão de sangue
manifestada pelos adeptos da religião Testemunha de Jeová, e a
responsabilidade médica por ato omissivo ou comissivo de acordo com a
Constituição Federal de 1988, o Código Civil, Código Penal e Leis Específicas.
Tem por objetivo mostrar o campo conflituoso criado quando a recusa é feita
perante iminente risco de vida ao paciente e a análise do aplicador do direito,
concernente à interpretação se, está diante de um conflito real ou aparente de
direitos fundamentais, visando apresentar uma solução ao caso concreto,
adotando critérios de solução de conflito utilizando-se de princípios e
ponderação de valores. Objetiva ainda, propor uma reflexão sobre a
intervenção do Estado na esfera dos direitos individuais do cidadão. Respeitar
os direitos fundamentais do cidadão é também uma obrigação do Estado, de
modo que posturas intervencionistas devem ser revistas frente ao papel do
Estado Democrático de Direito e os diversos grupos sociais que o compõem.
Palavras-Chave: Direitos fundamentais; transfusão de sangue; Testemunhas de
Jeová; conflito de direitos fundamentais.
ABSTRACT
This paper focuses on the analysis of the refusal of blood transfusion
expressed by adherents of the religion of Jehovah's Witnesses and medical
responsibility for the act or omission commissive according to the 1988 Federal
Constitution, the Civil Code, Criminal Code and specific laws. Its purpose is to
show the conflicting field created when the refusal is made before the
imminent risk of life to patients and analysis of the operator of law, concerning
the interpretation, is facing a real or apparent conflict of fundamental rights in
order to provide a solution to the case Specifically, adopting criteria for conflict
resolution using the principles and weighting values. It aims to even propose a
reflection on the state intervention in the sphere of individual rights. Respect
the rights of the citizen is also an obligation of the state, so that interventionist
positions should be reviewed against the role of the democratic state and the
various social groups that compose it.
Keywords: Basic rights; transfusion of blood; Jehovah's Witnesses; conflict of
basic rights.
Anhanguera Educacional S.A.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
[email protected]
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 5/8/2009
Avaliado em: 29/10/2009
Publicação: 31 de março de 2010
21
22
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
1.
INTRODUÇÃO
Desde o surgimento do homem, procuramos todas as formas e meios possíveis para
vivermos para sempre. O livro de Gênesis encontrado na Bíblia Sagrada diz que O TODO
PODEROSO (Jeová Deus) criou o homem com o propósito de povoar a terra e cuidar dela
por tempo indefinido. Com o inicio do pecado na terra o qual se deu pela desobediência
do primeiro homem Adão, O Todo Poderoso (Jeová Deus) resolveu extinguir a vida
eterna dada aos humanos e fazendo com que sentissem dor, sangrassem, adoecessem,
sofressem, trabalhassem para prover seu sustento, dentre outros castigos relatados na
Bíblia Sagrada o que vem ocorrendo até os dias atuais.
O homem por nascer com a perspectiva da vida eterna nunca se conformou em
ter que se entregar à morte e por isso cuidou de procurar meios que pudessem trazer tal
longevidade.
Na idade Média, Luis XII, da França, ordenou que sacrificassem um jovem para
que se banhasse em seu sangue achando que desta forma estaria prolongando sua vida já
avançada. Este ato tornou-se freqüente na idade média. Para alguns na Antiguidade, o
sangue era importante para a alma. Muitos acreditavam que os mortos poderiam
ressurgir se fosse dado sangue ao falecido. Na linha dos guerreiros, acreditavam que
tomando o sangue de seus inimigos, os quais morreram com bravura, tornar-se-iam mais
corajosos, fortes e inteligentes.
Como vemos a utilização já era conhecida desde os mais antigos, para muitos,
aproveitável e para outros totalmente proibidos o seu consumo. Hoje com o avanço da
medicina, a transfusão de sangue foi melhorada para que pudesse salvar vidas. O
verdadeiro início da transfusão de sangue deu-se no ano de 1628 por Harvey pela sua
obra “Os movimentos do Coração e do Sangue” a qual corporizou a descoberta da
Circulação Sangüínea, onde foi denominado para tal o nome “Cirurgia Infusória”, que
logo após ficou conhecido como “Cirurgia Transfusória” e como hoje conhecemos.
O inicio deste estudo era elaborado através de testes com animais, onde eram
inseridos em sua corrente sangüínea diversos tipos de substâncias químicas como açúcar,
vinagre, ópio, estes não tinham o efeito de morte imediata como tinha o azeite, alúmen e
outros componentes químicos.
No período de 1656 a 1666, Bayle e Clarke, injetavam outros tipos de
componentes como: açafrão, antinômico, suspensões de goma arábica, mas desta vez não
feitos em animais, mas sim em homens que eram condenados a morte. Outros afirmam
que a verdadeira concepção teórica da transfusão de sangue fora atribuída ao monge
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
23
Beneditino D. Robert de Gabets, de Metz. Haveria ele apresentado em 1658 uma
exposição pública sobre a transfusão de sangue.
Em um dos casos em estudo pelos cientistas médicos, após a primeira transfusão
de sangue notou-se no doente o alívio do sofrimento. Mas após a segunda transfusão,
houve alguns distúrbios que foram causados pela transfusão de sangue, como, braço
quente, pulso alterado, dores nos rins e mal estar e já no dia seguinte sua urina estava
escura. Insistiram nas transfusões alegando melhoria, mas morreu na mesma noite. E daí
em diante, outros casos similares apareceram.
No ano de 1664, a Academia das Ciências determinou a hostilidade da
transfusão de sangue. Naquela época, a condenação dar-se-ia pelo grande número de
acidentes decorrentes de transfusões de sangue, e hoje, devido ao avanço tecnológico,
sabemos que a causa de tais reações á transfusão ocorriam devido à formação dos
anticorpos que combatem o sangue estranho e também por causa de infecções
bacteriológicas.
2.
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Conceituar direitos fundamentais pode ser considerada uma árdua tarefa, pois as
diversas designações dadas ao tema causam, à primeira vista uma confusão conceitual.
Entre as diversas expressões empregadas em relação ao tema, é possível destacar
as seguintes: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais,
direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais,
liberdades públicas, direitos fundamentais do homem e direitos fundamentais.
No entanto, apesar das dissidências terminológicas, todas as expressões almejam
apresentar e representar direitos que visam criar e manter os pressupostos elementares de
uma vida na liberdade e na dignidade humana.
Afirma Sarlet que “os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem
ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa
humana”. Desta forma também se posiciona a maioria dos autores que se dedica a
estudar o apaixonante tema.
Para Pinho:
Direitos fundamentais são os indispensáveis à pessoa humana, necessários para
assegurar à todos uma existência digna, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los
formalmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no dia-a-dia dos cidadãos e de
seus agentes.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
24
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Moraes (2000), apesar de utilizar a terminologia direitos humanos fundamentais,
apresenta a seguinte conceituação:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por
finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio
do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento
da personalidade da pessoa humana [...] (MORAES, 2000, p. 39)
Do conceito apresentado por Perez Luño, sobre os direitos fundamentais do
homem, colhe-se o seguinte:
[...] considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento
histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade
humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos
em nível nacional e internacional. (LUÑO, 1997, p. 77).
Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizaremos a expressão direitos
fundamentais, pois de acordo com Farias (2000) , esta locução é utilizada para se referir
aos direitos positivados na constituição de um determinado Estado.
Usando como suporte os conceitos destacados, elaborados pelos autores citados,
propomos o seguinte significado para a expressão doravante adotada:
Conjunto institucionalizado de direitos e garantias, que visa à limitação do
arbítrio do poder estatal, assegurando ao ser humano uma vida digna, livre e pautada na
igualdade entre os homens, de acordo com um determinado momento histórico e os
valores nele inseridos.
Destacamos o fator histórico por acreditarmos que os direitos fundamentais não
surgem ao acaso e nem a qualquer tempo. Desta forma, se posiciona Bobbio:
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – continuo a defender, fortalecido por novos
argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa
de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todas.
Salientamos, no entanto, que não há unanimidade teórica a respeito da
justificativa dos direitos fundamentais, sendo possível encontrarmos uma variedade de
correntes filosófico-jurídicas, abordadas por Branco (2002) da seguinte forma:
[...] para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural,
anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do
homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os
direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo
do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e
políticas. (GONET, 2002, p. 113.).
O que ocorre, segundo Bobbio (1992), é uma crise dos fundamentos dos direitos
do homem, sendo que “deve-se reconhecê-la, mas não tentar superá-la, buscando outro
fundamento absoluto para o que se perdeu”, considerando que “o problema fundamental
em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los”
(BOBBIO, 1992, p. 05).
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
25
2.1. Análise Constitucional
À luz da Constituição Federal, o paciente tem pleno direito de recusar um determinado
tratamento médico, com fundamento no artigo 5º, II, que reza que ninguém é obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo (autonomia da vontade), salvo em virtude de lei
(legalidade). No caso em tela, como não há lei que obrigue a optar por transfusão de
sangue como tratamento para determinados casos, a recusa será legítima e deverá ser
respeitada. E se não há lei que determine, não será o Judiciário - e muito menos a classe
médica - que determinará tal procedimento, salvo por consentimento do paciente. Aliás,
um dispositivo legal neste sentido seria absurdo tendo em vista os métodos de tratamento
alternativos, inclusive em emergências.
Vale dizer que a recusa a determinados tratamentos que se baseie estritamente
em convicções religiosas ou filosóficas deve ser respeitada da mesma forma, por
imposição dos incisos VI e VIII do artigo 5º da Constituição Federal, que garantem a
liberdade de crença e consciência.
Em suma, ainda que não seja a opção terapêutica preferida pelo médico,
prevalece à vontade do paciente acima da decisão puramente técnica e profissional, por
força dos preceitos constitucionais aqui considerados.
A esse respeito, Sarlet (1998) leciona que a qualificação da dignidade da pessoa
humana, como princípio fundamental da Constituição da República de 1988, “constitui
valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica”. Este
preceito corresponde ao fundamento do princípio do Estado de Direito e vincula não
apenas o administrador e o legislador, mas também o julgador e o operador do direito.
O direito à vida, constitucionalmente defendido, envolve não apenas os
elementos materiais e biológicos da pessoa, mas também os morais, emocionais e
espirituais, que certamente lhe serão atingidos caso seja procedido o tratamento com o
uso de sangue sem seu consentimento.
3.
DIREITO À LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA
“Penso, logo existo!” Esta famosa frase de Descartes nos revela algo maravilhoso e
assombroso a respeito da natureza humana – a saber - a capacidade de nos relacionarmos
com o que está ao nosso redor e formarmos valores que, pouco a pouco constroem nossa
consciência, a qual moldará nossa personalidade. Assim sendo, é de fundamental
importância que a sociedade crie mecanismos para garantir a liberdade de consciência a
fim de que o indivíduo possa manifestar seus pensamentos, sentimentos e convicções.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
26
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Por outro lado, uma sociedade que não preza a liberdade de consciência dos seus
cidadãos, estará sufocando e negando (ou pelo menos subestimando) a própria
“personalidade humana”. A maior prova disso é que os regimes totalitários (tais como o
nazismo, o fascismo e o comunismo stalinista), são encarados como verdadeiras
aberrações ao jusnaturalismo, pois estrangulavam a pessoa humana num tenebroso
processo de “robotização”, transformando cada indivíduo numa “máquina” de
propriedade estatal.
Felizmente, a nossa Constituição tutela a “liberdade de consciência e de crença”
como um “direito e garantia fundamental” (art. 5º, VI, C.F.). É valioso ressaltar que essa
proteção é decorrente do mais sublime fundamento da nossa sociedade que é a
“dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III, C.F.). De fato, ao analisarmos o tripé
“liberdade de consciência” (a qual projeta a “liberdade de crença”), “direito à
privacidade” (art. 5º, X. C.F.) e “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III C.F.),
chegaremos à conclusão de que o mesmo está inexoravelmente ligado a substância
humana, e que romper este tripé por suprimir ou desrespeitar tais imperativos da
conduta humana seria tão criminoso (e até mais doloroso) que provocar a própria “morte
física” do indivíduo.
Abordando de maneira específica a liberdade religiosa, o constitucionalista
Ferreira Filho (1994), observou algo interessante sobre o tema em análise:
Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a
liberdade... Mais do que isto é ela para todos os que aceitam um direito superior ao
positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é
ela a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres
animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. (FERREIRA
FILHO, 1994, p. 29).
Mas qual é o alcance da “liberdade religiosa?” Será que a “liberdade de culto” se
limita literalmente às missas e reuniões realizadas dentro das igrejas?
Bastos (2000), ao abordar os aspectos que integram a “liberdade de culto”,
elucida o ponto em questão: “Como já visto, a religião não pode... contentar-se com sua
dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai,
contudo, via de regra, procurar uma externação... a que se denomina „liberdade de culto‟”
(BASTOS, 2000, p. 13).
O referido jurista continua respondendo:
Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem
qualquer opção religiosa do indivíduo. Assim, as restrições decorrentes da invocação
religiosa estariam, igualmente, albergadas sob este título, sendo certo que, como dito,
não há verdadeira liberdade de religião se não se reconhece o direito de livremente
orientar-se de acordo com as posições religiosas estabelecidas... Ora, o culto não se
exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação
religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida,
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
27
independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem
liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas
„proteção aos locais de culto e as suas liturgias‟. (BASTOS, 2000, p. 14, grifo nosso).
Desta forma, a liberdade de religião não consiste apenas em o indivíduo estar
autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Dentre
estes se destacam os cultos religiosos e suas liturgias Obviamente, isto também abrange a
garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como na literatura, na melodia
ou na escolha de tratamentos médicos. Esta interpretação segue a lógica do sistema.
Portanto, a lógica do sistema é no sentido de que o “Direito fundamental e
constitucional à Liberdade de Consciência e Crença”, bem com a proteção aos cultos e
liturgias, projetam, no caso em análise, a satisfação da necessidade do cidadão poder
adentrar em um hospital cônscio de que seus direitos e o respeito ao seu “ser” não ficarão
do lado de fora.
3.1. Direito à Liberdade Religiosa
Luño (1997) que “a liberdade sem igualdade não conduz a uma sociedade livre e
pluralista, mas a uma oligarquia, vale dizer, à liberdade de alguns e à não liberdade de
muitos” ainda que não se possa perder de mira que “a igualdade sem liberdade não
conduz à democracia, mas ao despotismo, ou seja, à igual submissão da maioria à
opressão de quem detêm o poder (situação que evoca a divisão do igualitarismo cínico do
Animal Farm de George Orwell, a teor do qual „ todos os animais são iguais, mas alguns são
mais iguais que outros‟)”.
Hodiernamente, considerando a evolução dos direitos fundamentais e o fato de
vivermos em um Estado Democrático de Direito, não cabe mais nos apegarmos ao
conceito antigo de liberdade, pois o termo autoridade, que até então se resistia, assumiu
nova postura, novo significado.
A necessidade de seguir referenciais sempre fez parte do comportamento
humano e, dentro deste contexto, a religião sempre foi uma forma de unir pessoas em
torno de valores e crenças que por fim acabam por influenciar os comportamentos sociais.
A busca para explicações sobre a vida e seus fenômenos, inclusive a morte, é
uma constante na sociedade. As religiões apresentam-se oferecendo respostas a estas
indagações, de acordo uma doutrina pautada na crença e culto a uma divindade e nos
seus dogmas.
Para Ferreira Filho (1994), “a religião constitui um dos mais fortes componentes
das diferentes civilizações. Não é por outra razão que os estudiosos das civilizações o
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
28
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
mais das vezes as caracterizam em função desse elemento religioso: civilização cristã;
civilização muçulmana etc”. (FERREIRA FILHO, 1994, p. 21).
De acordo com Davis (2004), o princípio moderno de liberdade religiosa, através
do qual os governos declaram sua neutralidade sobre questões religiosas, permitindo a
cada cidadão individual, com base na sua própria dignidade humana, adotar suas crenças
religiosas sem medo de represália, é conseqüência natural do esclarecimento. Ele recebeu
reconhecimento universal na Declaração de 1948, sem dúvida o maior marco da evolução
da liberdade religiosa internacional.
3.2. Do direito à vida
O direito à vida está previsto no “caput” do art. 5º da Constituição. Este consiste não só no
direito de não ser morto pelo Estado ou algum particular, mas também á uma vida digna,
ou seja, também é uma projeção do fundamento constitucional da dignidade da pessoa
humana (Art. 1º, III, C.F.).
Assim, numa visão mais ampla, a Carta Magna não está apenas garantindo o
funcionamento biológico do indivíduo, mas o seu bem estar físico, emocional-psicológico
e espiritual. Não se pode reduzir o ser humano a uma abordagem puramente fisiológica,
pois o mesmo, ao contrário das demais espécies existentes no planeta, é capaz de abstrair
e transcender em busca do seu originador.
O direito à vida é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos
constitucionais. Por outro lado, a mesma, desprovida de liberdade e dignidade, torna-se
pesarosa. Atento a isso, o legislador vai além de prover a mera existência biológica do
indivíduo, objetivando também resguardar sua intimidade, privacidade, consciência,
crença, segurança etc. No caso em análise, todos esses bens jurídicos devem ser levados
em consideração, pois, por mais que um médico bem intencionado realize uma transfusão
de sangue forçada acreditando que é o melhor para salvar a vida de seu paciente, na
realidade, ele poderá estar ferindo os sentimentos mais íntimos do cidadão,
estigmatizando-o permanentemente com a infelicidade! O ideal é obter a cura física do ser
humano sem ferir-lhe psicologicamente.
4.
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SUA CONVICÇÃO RELIGIOSA
A crença das Testemunhas de Jeová, por séculos tem sido a de que Deus Jeová, o criador
dos céus e terra, e de todo o ser vivente, tem um propósito para a vida de todos nós.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
29
O fundamento de tal alegação encontra-se no livro de Provérbios, capítulo 16
(dezesseis), versículo 24 (vinte e quatro) da Bíblia Sagrada e é com esta convicção que as
Testemunhas de Jeová mantém sua esperança de vida apenas no criador de todas as
coisas, Deus.
Conforme a previsão bíblica, contida no livro de Isaías 45 (quarenta e cinco),
versículo 18 (dezoito), Deus não criou a terra para o nada, mas para que fosse habitada, e
o desejo de Deus é que isto se desse com incontável final dos dias numa terra paradisíaca.
Para os estudiosos da bíblia, no caso as Testemunhas de Jeová, Deus não se
esqueceu de seu propósito: “Seguramente, assim como tencionei, assim terá de acontecer,
e assim como aconselhei, deste modo se efetuará” (ISAÍAS, 14:24; 46:11).
As Testemunhas de Jeová seguem o que está escrita nas escrituras sagradas, a
bíblia, e para eles, assim como descrito no livro de Josué capítulo 23 (vinte e três),
versículo 14 (quatorze): “não falhou nem uma única de todas as boas palavras que Jeová
Deus, Vosso Deus, vos falou”.
4.1. O temor a Deus
Conforme demonstrado anteriormente, Deus criou a terra para que os homens a
governassem e mesmo embora tenha havido governantes/políticos sinceros, que desejam
realmente ajudar a humanidade/sociedade, seus esforços não tem êxito, ou apenas o faça
em curto prazo.
Como podemos verificar todo o Mundo se encontra em colapso governamental.
Por isso a bíblia aconselha para que os cristãos não confiem nos nobres, nem no filho do
homem terreno, a quem não pertence à salvação...
De acordo com as escrituras sagradas e partindo desta, para tudo há um tempo
determinado. Após o término do tempo que Deus estabeleceu, permitindo a iniqüidade e
o sofrimento, irá intervir nos assuntos humanos, acabando com a dor e a iniqüidade,
existente hoje e cumprirá com o seu propósito desde o livro de Gênesis, de encher a terra
com uma família perfeita e feliz para usufruir total paz e segurança econômica em
condições plenas.
Biblicamente, o sangue é mais que um complexo liquido biológico. Ela menciona
o sangue mais de 400 (quatrocentas) vezes e algumas destas referências envolvem a
salvação de vidas.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
30
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Em uma das primeiras referências que a bíblia faz sobre o sangue, Deus declara
que tudo aquilo que é vivo poderá servir de comida, mas não devemos comer da carne
com vida, ou seja, com sangue. O sangue humano tem grande significado e não deve ser
mal empregado. O Criador acrescenta pormenores, por meio das quais podemos
facilmente depreender as questões morais que ele vincula ao sangue vital.
Conforme a norma descrita no livro de Deuteronômio, capítulo 12 (doze),
versículo 23 (vinte e três), o criador ordenou aos homens que derramassem o sangue na
terra como se fosse água. Diferentemente das idéias hoje defendidas de que a lei Divina
sobre o sangue não deveria ser considerada em situação de emergência.
De acordo com o cientista Joseph Priestly (1767), a proibição de comer sangue,
dada a Noé, passou a ser obrigatória para toda a posterioridade e podemos concluir então
que nenhum homem verdadeiramente cristão o poderia fazê-lo.
Embora naquele tempo, o uso medicinal do sangue não existia, por mais ou
menos 2000 (dois mil anos), o sangue era utilizado como remédio para lepra e em Roma
como tratamento contra epilepsia. Mas, aqueles que eram cristãos, já naquele tempo,
entendiam que não podiam aceitar tal tratamento para curar suas doenças.
As Testemunhas de Jeová dão a vida um valor muito alto ao respeito às leis de
Deus e por isso não aceitam este tipo de tratamento.
5.
RESPONSABILIDADE MÉDICA
A intenção do médico é de salvar o paciente, e não de feri-lo. Entretanto, este
posicionamento sofre uma forçosa crítica: fatalmente, ao submeter o paciente à
intervenção cirúrgica, o médico age com animus de cortar, ainda que, obviamente, não aja
com dolo prescrito pelo tipo penal de lesões corporais, pois o profissional está agindo
terapeuticamente.
Em regra, ao médico é vetado intervir terapeuticamente sem o consentimento do
paciente, o que comportando exceções, pois estará atendendo ao princípio da
beneficência.
É imprescindível que o consentimento seja dado pelo paciente ou quando não for
possível este ser dado por si próprio, será suplantado pelos familiares. Todavia, quando o
primeiro estiver impossibilitado, em casos como estar o paciente em coma, e não se
podendo ter a anuência de algum representante, o médico age com a presunção do
consentimento do enfermo pra salvar-lhe a vida, pois sem o consentimento real ou
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
31
presumido do paciente, estaria o médico obrigando-o ao tratamento terapêutico, não
permitindo o livre-arbítrio do paciente de poder dispor do próprio corpo.
Parte da doutrina compreende que ainda que o médico-cirurgião tenha causado
lesões ao organismo necessárias à cirurgia, sua conduta está conforme o Direito e às
exigências de cunho ético-jurídico-social. Há, no entanto, quem entenda que a conduta do
médico constitui uma excludente de tipicidade, mesmo que o paciente tenha uma piora
no seu estado de saúde em virtude desta conduta.
Ainda que nesta questão se trate de bem jurídico indisponível, que pode ser a
vida ou a integridade física do paciente, a conduta, em regra, não constituirá crime
porque será considerado irrelevante para o Direito Penal, bastando apenas que não haja
dolo por parte do médico em prejudicar o enfermo e também ao atuar na intervenção
cirúrgica o faça com a lege artis. Para tanto, existe ainda a teoria da imputação objetiva que
isenta a responsabilidade penal do médico quando realiza uma intervenção médica
cirúrgica, desde que ele tenha seguido rigorosamente a lege artis, em razão dos riscos que
foram criados para o paciente eram riscos permitidos.
È cediço que é impossível que uma operação deixe intacto o bem jurídico
integridade física, não havendo como evitar o agravamento do estado geral do enfermo,
pois existe de fato um defloramento do seu corpo, visando uma melhora futura. Em
função disso, parte da corrente doutrinária entende que o tratamento médico cirúrgico é
um exercício regular de direito para aqueles que o profissional, no caso o médico, ao
adquirir este título possui o direito de realizar todos os atos inerentes a sua profissão para
atingir o fim social a que esta se propõe, ainda que para isto tenha que violar alguns bens
juridicamente tutelados.
5.1. Natureza jurídica
Classifica-se a natureza jurídica da responsabilidade médica como meramente contratual,
por haver entre o médico e o paciente, uma relação de consumo, apresentando-se
inicialmente como uma obrigação de meio, pois não existe neste caso a obrigação de se
chegar ao resultado, mas de prestar-lhe os cuidados necessários de forma consciente e
atenta, utilizando-se de todos os recursos da medicina.
A obrigação de resultado estará clausulada no contrato, quando o médico tiver a
obrigação de alcançar o resultado. Exemplo: Medicina estética ou estética reparatória.
Para analisarmos a responsabilidade médica, temos de entender duas teorias que
cercam a responsabilidade; a objetiva e a subjetiva.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
32
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
A teoria subjetivista tem seu alicerce na culpa, ou seja, é o elemento ilícito, que
girará em torno da falta de vontade ou não do agente para o resultado. Já a teoria
objetivista, a análise da presença ou ausência da vontade do agente, não importa. Basta a
existência do nexo de causalidade (ato e dano) para que apareça a obrigação de reparar o
dano. O nexo causal consistirá apenas ao dano ou a omissão.
Existem divergências sobre esta última teoria. Muitos doutrinadores alegam que
seria uma forma injusta de reparar um dano, dizem eles, que está teoria veste-se com a lei
de Hamurabi e de Talião, “olho por olho e dente por dente”.
Mas destes, temos que discordar totalmente, uma vez que não versa a teoria
objetivista na vontade de causar o mesmo dano em suas proporções, mas de coibir,
reprimir e de reparar.
Alguns
doutrinadores
resolveram
dar
mais
complexidade
a
esta
responsabilidade, distinguindo-as entre contratuais e extracontratuais. O entendimento
majoritário é de que, tanto uma quanto à outra, conduzem ao mesmo resultado, reparar o
dano.
Quando a paciente contrata com o médico, uma consulta, tratamento, terapia ou
cirurgia, o negócio jurídico é meramente contratual de caráter oneroso e comutativo. Já o
paciente que contrata o médico para uma cirurgia plástica estética enseja na mesma
forma, mas a obrigação passa a ser de resultado.
Quando o médico agir por sua iniciativa (em casos de emergência) ou ainda
contra a vontade do paciente, o contrato passa a ser unilateral, onde a responsabilidade
emergirá da conduta e não do contrato.
5.2. Sob a ótica do Novo Código Civil
Venosa (2001), bem nos coloca que este terá natureza delitual, quando o médico cometer
ilícito penal e quando violar normas regulamentadoras da profissão. Desta forma, tendo o
médico utilizado todos os meios técnicos a seu alcance e não explicando a origem do
dano, não haverá obrigação por risco profissional, pois seus serviços médicos são em
regra de meio e não de resultado.
Não demonstrada a negligência, imperícia ou imprudência, não haverá base para
a responsabilidade civil. Sendo assim, no caso de um paciente vir a óbito, numa obrigação
de meio, não haverá a presunção de culpa do médico, este deverá provar que o dano não
resultou de imperícia, negligência ou imprudência.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
33
A responsabilidade civil do médico, apenas ocorrerá de culpa devidamente
comprovada e que decorra dos casos acima enumerados, sendo ainda considerado o erro
grosseiro. Apenas doutrinariamente, tratam o erro grosseiro como uma exceção, sob a
alegação da falibilidade do profissional em relação à imperfeição da ciência.
Ficando provado através de perícia médica o erro médico, além de o médico
responder civilmente, responderá penalmente, pelo ato danoso ou culposo, lesionando o
bem alheio.
O erro médico não ocorre apenas durante a cirurgia como a maioria das pessoas
pensa, pode ocorrer também durante o tratamento de uma determinada doença, a simples
prescrição de um medicamento, quando o médico orienta o paciente de forma errada, no
sentido de não encaminhá-lo ao especialista correto (em casos de atendimento por clinico
geral em PS‟s de hospitais públicos e quando da procrastinação. Muitos doutrinadores
pregam, que o direito á indenização apenas será logrado ao paciente, quando houver
incapacidade permanente para o trabalho. Mas o fato é que a partir do momento em que o
paciente sentir as conseqüências do descuido do médico, seja o dano permanente ou não,
deve ser indenizado).
5.3. De acordo com o Código de Ética Médica
O Código de Ética Médica é um complemento e praticamente é ele que direciona e limita
a atividade médica sobre sua aplicação (medicina) para que não se perca os valores
humanos, conduzindo a um bom relacionamento entre médico/paciente, médico/médico
e médico/sociedade.
Nossos códigos e leis específicas têm o condão de balizar as atividades do
homem/médico, flagrando deslizes nesta profissão que acaba passando despercebido
pelos Conselhos de Ética Médica.
A autonomia do paciente é a extensão da equidade onde associamos a idéia de
respeito pelo próximo. É tratando com respeito o paciente em sua condição humana que o
médico poderá obter o consentimento para que realize sua função o qual está repleto de
riscos e compreender as razões de certas terapêuticas não serem aceitas e viável e a partir
daí, procurar alternativas para curá-lo ou amenizar o seu sofrimento. O médico deve
manter o sigilo que a sua profissão pede, uma vez que terá acesso a informações que
poderá acarretar em constrangimento se forem revelados. O respeito à vida é um dos
maiores princípios da ética médica, tendo de se moldar às condições sociais vividas.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
34
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
5.4. Recusa da transfusão de sangue por maior e capaz e representante legal de
menor ou incapaz
Há uma corrente que afirma ser a liberdade o primeiro direito na hierarquia dos direitos
fundamentais do indivíduo e chega mesmo a enfatizar que entre o direito à vida e o
direito à liberdade, a escolha é do titular desse privilégio, atendendo-se ao princípio da
autonomia. Desta forma, teria o paciente o direito de aceitar ou não um tratamento por
imperativo religioso, mesmo que ele fosse o único meio de salvar-lhe a vida, pois isto
estaria constitucionalmente consagrado em nossa Carta Magna (incisos VI e X do artigo
5º), em respeito á liberdade de consciência e de crença.
O princípio da autonomia ou da liberdade é complementado por outro essencial,
o da informação adequada, onde prevê que o consentimento deve ser emanado de um
paciente capaz de compreender claramente a notícia que for dada pelo médico quanto ao
tratamento a que será submetido. Em caso do paciente, não poder consentir lucidamente,
o consentimento poderá ser substituído pelo do seu representante legal.
Nos casos que houver dissenso do representante legal e o incapaz, o médico
deverá em caso de emergência intervir oponente ao consentimento do representante legal.
Entretanto, se for possível postergar a intervenção, em caso de não ser de urgência, a
doutrina entende que deve recorrer ao Judiciário para solucionar o conflito.
Afirma-se ainda que o dever do médico é de fonte legal e o direito do paciente de
aceitar ou recusar um tratamento é “expressão de sua liberdade”, segundo a Constituição
brasileira em vigor. O médico cumpriria suas obrigações apenas informando ao paciente
ou ao seu responsável legal da necessidade ou da conveniência de uma conduta ou de um
tratamento e de suas conseqüências advindas pela não aceitação, mesmo que seu Código
de Ética se expresse claramente dizendo que “é vedado ao médico efetuar qualquer
procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu
responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”.
Insiste-se dizendo que a interpretação literal deste dispositivo do Código de Ética
Médica é absurda, pois pelo fato de o paciente estar diante de um perigo de vida ele não
perdeu o direito fundamental à liberdade, seja no aspecto religioso, seja no aspecto de sua
privacidade.
Há ainda a afirmação de que no atendimento médico à recusa do paciente não
existe crime porque isto se deu por manifestação tácita ou expressa do assistido ou de
seus responsáveis legais. Houve, apenas, segundo aqueles defensores desta idéia, uma
recusa de tratamento por parte do paciente.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
35
Com o advento do Código Civil/02, a maioridade foi antecipada para os dezoito
anos. Assim, isto só vem a reforçar o que Ferreira Filho questionou. Do mesmo modo, a
faculdade de direito da Universidade de Cambridge (Inglaterra), no artigo “Detentores
Múltiplos das Chaves – Tutela e Consentimento Para Tratamento Médico”, analisando
um caso em concreto, diz que “se a criança dotada de suficiente maturidade há de ter o
direito de consentir com o desejado processo de tratamento, é difícil compreender por que
se deveria negar a ele ou ela o direito de recusar alguma medicação indesejada”.
Muito esclarecedor um julgado da Suprema Corte de Maine que reconheceu o
direito de um jovem de 17 anos em recusar a manutenção artificial de sua vida quando
entrasse em estado vegetativo:
É um fato estabelecido que em todas as facetas da vida, o menor adquire a capacidade
de consentir em diferentes classes de invasões e de conduta nas diversas etapas de seu
desenvolvimento. Existe capacidade quando o menor compartilha a habilidade da
pessoa mediana para entender e avaliar os riscos e benefícios‟... Reconhecemos isto na
lei de nosso próprio Estado ao estabelecer diferentes idades nas quais pessoas alcançam
a capacidade para consentir na adoção, conduzir um veículo motorizado, comprar
cigarros, deixar a escola, votar, casar-se e adquirir bebidas alcoólicas e tomá-las. 1,2
Por fim, não podemos esquecer que o E.C.A. nos artigos 15 c.c 16, II e III, diz que
a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo,
não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível,
ouvir o menor na medida de sua maturidade.
5.5. Diante de perigo iminente de morte ao paciente
Deve-se entender como perigo para vida, a situação em que existe uma possibilidade
concreta de êxito letal e que exige uma atuação rápida, decisiva e inadiável, a fim de
evitar a morte.
Nossa legislação penal substantiva em vigor admite como crime deixar de
prestar assistência a pessoas em grave e iminente perigo de morte (artigo 135) e exclui da
categoria de delito a intervenção médica ou cirúrgica, mesmo sem consentimento do
paciente ou de seu responsável legal, se justificada por iminente perigo de vida (artigo
146). Neste caso, o médico deve agir porque está amparado no exercício regular de seus
direitos e no cumprimento do dever legal. Código Penal:
Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, à
criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em
grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
1
MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9,
n.661, 28 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641>. Acesso em: 14 jan. 2006.
2
CUIDADOS COM A FAMÍLIA E TRATAMENTO MÉDICO PARA AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Cesário Lange/SP. Associação Torre
de Vigia de Bíblias e Tratados.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
36
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal
de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência, ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que
a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.
Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa.
Parágrafo 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I – A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Na proteção do mais irrecusável de todos os direitos – o direito à vida, nossa
legislação penal despenalizou o constrangimento ilegal, desde que a vida de uma pessoa
corra perigo iminente de morte, e que alguém faça isso por meios moderados e sem
colocar em risco a sua própria segurança.
O direito moderno considera a vida um bem coletivo. O homem não se pertence
só a si, senão à sociedade, de que faz parte integrante. A hipótese se enquadra, então, sem
a menor dúvida em questão de ordem pública. E sendo assim, como de fato é, a vida um
bem coletivo, claro está que, em tais circunstâncias excepcionais (perigo de vida ou
iminência de morte), o médico pode e deve agir arbitrariamente, porque há uma razão
jurídica a invocar: o interesse do agente é legítimo, a utilidade manifesta para a sociedade
(HUNGRIA, 1958, p. 178). E para arrematar a convicção que esta tese visa defender, Prado
(2002) escreve:
Fundamenta-se o estado de necessidade porque a conduta do médico visa afastar de
perigo atual ou iminente bem jurídico alheio (vida do paciente), cujo sacrifício, nas
circunstâncias não era razoável exigir-se. O mal causado (violação da liberdade pessoal)
é menor do que aquele que se aprende evitar (morte). (PRADO, 2002, p.276).
Há conflito entre bens de valor diferencial, com sacrifício do bem de menor
valor. O ordenamento jurídico faculta a lesão do bem jurídico de menor valor com o único
meio de salvaguardar o de maior valor. Dessa forma, somente haverá a exclusão da
ilicitude de uma intervenção médica sem o consentimento do paciente em casos de
iminente perigo para vida, que seja impostergável em razão da urgência e que constitua
único meio para salvar a vida do paciente. Existindo outro tratamento alternativo, ainda
que lesivo e na opinião médica inviável, deverá ele direcionar sua atuação em
consonância com a opção eleita pelo enfermo, caso contrário estará o médico atuando de
forma arbitrária e violando o direito do indivíduo de decidir o melhor para si. Código de
Ética Médica:
É vedado ao médico:
Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento
prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.
Art. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico tratamento a seu
alcance em favor do paciente.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
6.
37
PONDERAÇÃO DE VALORES NA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O tema da recusa às transfusões de sangue por pacientes adeptos da religião Testemunha
de Jeová envolve uma aparente colisão de preceitos fundamentais. De um lado, está o
direito indisponível à vida e, de outro, o direito de recusa por convicções religiosas,
ambos protegidos igualmente na nossa Constituição, isto é, o legislador constituinte não
estabelece cláusula de reserva de lei, ou seja, quando restringe o exercício de um direito à
observância do outro Por outro lado, em se tratando de direitos fundamentais não
acobertados pela “reserva de lei”, a solução fica a cargo da jurisprudência, a qual deve
realizar a “ponderação dos bens envolvidos”, com o intuito de resolver a colisão por meio
do “sacrifício mínimo dos direitos em jogo”.
Sendo assim, em não havendo prevalência in abstrato por nenhum destes direitos
fundamentais, como se proceder diante da colisão entre eles no plano concreto?
Em primeiro lugar, deve-se fixar a noção de que nenhum direito é absoluto. Nem
mesmo o direito à vida. Prova disto é a permissão constitucional de condenação à pena de
morte em estado de guerra e, ainda, a possibilidade de realização de aborto autorizado
judicialmente, diante da previsão no Código Penal, no caso de gravidez resultante de
crime de estupro.
Em segundo, afirma-se que se trata somente de um conflito aparente de direitos
constitucionais, pois, de acordo com os princípios da hermenêutica constitucional, as
normas constitucionais não entram em colisão, uma vez que há critérios para que a
jurisprudência realize o mencionado juízo de ponderação. Ressaltando-se que esta, ao
realizar “uma necessária e casuística ponderação dos bens envolvidos”, deve visar o
“sacrifício mínimo dos direitos contrapostos”.
A solução é, então, buscar estes critérios para resolver a aparente colisão de
direitos fundamentais, diante de um caso concreto, nos princípios informadores da
hermenêutica constitucional, já que não há um critério dogmático a priori, e balizar a
ponderação de tais valores na supremacia da dignidade humana, fundamento do nosso
Estado de Direito democrático e social e princípio informador de qualquer interpretação
de direitos fundamentais.
6.1. A hermenêutica constitucional
Diante da concepção de Estado de Direito Democrático e Social, com a positivação de
direitos fundamentais e a inserção de cláusulas constitucionais de conteúdo aberto,
principiológico, a hermenêutica constitucional urge por mudanças. A idéia de “Nova
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
38
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Interpretação Constitucional”, defendida, dentre outros, por Luís Roberto Barroso e Ana
Paula Barcellos, não importa em desprezo dos métodos clássicos, mas na constatação de
sua insuficiência, principalmente quando se depara com a colisão de direitos
fundamentais.
Na colisão de direitos fundamentais não é possível uma solução adequada in
abstrato, esta somente podendo ser formulada à vista dos elementos do caso concreto. A
moderna interpretação envolve juízo discricionário do intérprete, o qual, por sua vez,
encontra limites nos princípios informadores da hermenêutica constitucional, que servem
como parâmetros para ponderação de valores e interesses.
É cediço que os direitos fundamentais contêm um fundamento ético e uma alta
carga valorativa. Sendo assim, a colisão destes direitos é não somente possível, como faz
parte da lógica do sistema, pois valores estão sujeitos a variações conforme o contexto
social e, além disso, necessitam de um juízo discricionário no momento da interpretação
casuística.
O princípio da unidade da constituição determina a análise do texto
constitucional como um todo, como um sistema que necessita “compatibilizar preceitos
discrepantes”, surgindo para o intérprete o ônus de detectar na Constituição as normas
pertinentes ao caso, identificar eventuais conflitos entre elas e considerá-las em conjunto
para sua solução.
A concordância prática, ou princípio da harmonização expressa uma
conseqüência lógica do princípio da unidade da constituição, pois, conforme aqueles, os
valores e direitos fundamentais devem ser harmonizados, no caso concreto, por meio de
juízos de ponderação que vise concretizar ao máximo os direitos constitucionalmente
protegidos, não se devendo por meio de uma precipitada ponderação de bens ou valores
in abstrato, desprezar um direito a custa da prevalência do outro.
A proporcionalidade, por sua vez, consiste na “realização do princípio da
concordância prática no caso concreto”, ou seja, significa a “distribuição necessária e
adequada dos custos de forma a salvaguardar direitos fundamentais e/ou valores
constitucionalmente colidentes”. O princípio da proporcionalidade caminha junto com o
princípio da razoabilidade, formam uma espécie de parceria: significam a ponderação
entre os meios empregados e os fins atingidos: é a busca do razoável.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
39
6.2. A técnica da ponderação de valores
A técnica da ponderação consiste em apurar os pesos ou a importância relativa que
devem ser atribuídos a cada elemento em disputa, a fim de se escolher qual deles, no caso
concreto, prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro, ressalvando-se que a
produção dessa solução deve nortear-se pelo princípio da proporcionalidade.
No caso de colisão de direitos fundamentais, faz necessária a opção de
preferência de um direito sobre o outro oposto, em que se perquire, inicialmente, todos os
valores constitucionais envolvidos e, num juízo de ponderação, aplica-se ao caso concreto
os princípios constitucionais específicos, especialmente a proporcionalidade e a
razoabilidade.
6.3. O princípio da dignidade da pessoa humana
Conclui-se pela prevalência da dignidade da pessoa humana como limite e fundamento
do exercício dos demais direitos, isto é, no momento da concretização daqueles valores
positivados.
O princípio da dignidade da pessoa humana denota um respeito à criação,
independente da crença que se professe quanto à sua origem, isto é, assegura o direito à
integridade moral e ao mínimo ético a todas as pessoas apenas por sua existência no
mundo.
Ao eleger a dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado de
Direito Democrático e Social, o legislador explicita o seu papel fundamental na estrutura
constitucional: o de fonte normativa dos demais direitos fundamentais. É baseado na
dignidade humana que emergem os demais direitos e garantias fundamentais, é aquele
princípio que dá unidade e coerência ao conjunto destes.
É imprescindível que se reconheça a força normativa do princípio da dignidade
humana e, por um raciocínio lógico, a sua carga axiológica como um valor absoluto, o
único que possui este atributo.
7.
CONCLUSÃO
Durante toda a história das Testemunhas de Jeová, vimos que seus fiéis seguidores se
mantêm firmes em recusar o método terapêutico transfusional, devido conflitar com sua
lealdade a Deus.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
40
Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica
Diante de tantas opções de tratamento, podemos concluir que “a medicina
encarou o desafio” e tem desenvolvido métodos terapêuticos alternativos sem sangue,
respeitando a dignidade e encarando o paciente como um todo e não só como um ser
biológico. Paralelo a isso, a própria legislação tem evoluído para respeitar a autonomia e
vontade dos pacientes, como é o caso do novo Código Civil, da lei de Transplantes de
Órgãos e do Estatuto do idoso.
O crescente uso de alternativas médicas às transfusões de sangue vem
demonstrando que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora da
realidade. De fato, a compreensão por parte da equipe médica, ao invés do combate, é o
caminho para a solução. Ao passo que esses procedimentos se tornarem o padrão, esse
tipo de questão deixará de ocorrer por completo.
Antes de impor uma transfusão ao paciente, os médicos e os tribunais devem
serenamente analisar se vale à pena passar por cima de sua consciência (a qual desfruta
de proteção constitucional), o que aniquilaria sua Autonomia como paciente e ser humano
deve-se levar em consideração os riscos das transfusões e o impacto emocional advindo
do desrespeito à intimidade e a dignidade do cidadão.
Todo profissional tem que trabalhar com a realidade de que nem sempre seus
clientes concordarão com o seu modo de pensar. Este é um fato natural da vida. Por isso,
é de fundamental importância que o médico tenha uma mente democrática, não levando
para o lado pessoal, e ser versátil em aprimorar seus conhecimentos.
Nenhum ser humano, devido seu instinto natural, deixará de agir de acordo com
sua conduta interna, por força de lei. O direito positivo existe para que a sociedade viva
pacificamente, mas ela nunca poderá incidir sobre o direito natural do homem.
Assim sendo, esperamos que essas considerações sejam úteis para desfazer
alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais cooperativa, tendo como
alicerce a liberdade e a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às
transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Parecer Jurídico, São Paulo,
SP, p. 13, 23 nov. 2000.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992. p. 5.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral de direitos fundamentais: Brasília
Jurídica, 2002. p.183.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Janda Thibes
41
DAVIS, Derek H. A evolução da liberdade religiosa como direito humano universal. Disponível
em: <http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/1101/ijdp/id110106.htm>. Acesso em: 18 set. 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; DAVIS, Derek H. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasília, DF: Brasília Jurídica, 2002, p. 113.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Questões constitucionais e legais referentes a tratamento
médico sem transfusão de sangue. Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 24 out. 1994.
______. Religião, Estado e Direito. Revista Direito Mackenzie, São Paulo, ano 3, n. 2, p. 83-89,
jan./jun. 2002.
FARIAS, Edílson Pereira. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada, a imagem
versus a liberdade de expressão e informação. 2 ed. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2000. p. 72.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
PRIESTLY, Joseph. O sangue é vital para a vida. Disponível em:
<http://www.watchtower.org/t/hb/article_01.htm>. Acesso em: 30 set. 2006.
MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídicobioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 661, 28 abr. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641>. Acesso em: 14 jan. 2006.
MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2000.
______. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo, SP: Editora Atlas, 2001.
LUNO, Pérez. Derechos Humanos Y Constitucionalismo Ante el Tercer Milenio. p. 26, 77.
PINHO, Rodrigo César Rabello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais – Sinopses
Jurídicas, São Paulo: Saraiva, 2000.
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro - parte especial. v. II, 2. ed. São Paulo:
Revista do Tribunais, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – natureza da responsabilidade médica. 2001.
Revista de Direito  Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009  p. 21-41
Download