Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHAS DE JEOVÁ X RESPONSABILIDADE MÉDICA Janda Thibes Rede de Ensino LFG RESUMO [email protected] O presente trabalho tem por objeto a análise da recusa à transfusão de sangue manifestada pelos adeptos da religião Testemunha de Jeová, e a responsabilidade médica por ato omissivo ou comissivo de acordo com a Constituição Federal de 1988, o Código Civil, Código Penal e Leis Específicas. Tem por objetivo mostrar o campo conflituoso criado quando a recusa é feita perante iminente risco de vida ao paciente e a análise do aplicador do direito, concernente à interpretação se, está diante de um conflito real ou aparente de direitos fundamentais, visando apresentar uma solução ao caso concreto, adotando critérios de solução de conflito utilizando-se de princípios e ponderação de valores. Objetiva ainda, propor uma reflexão sobre a intervenção do Estado na esfera dos direitos individuais do cidadão. Respeitar os direitos fundamentais do cidadão é também uma obrigação do Estado, de modo que posturas intervencionistas devem ser revistas frente ao papel do Estado Democrático de Direito e os diversos grupos sociais que o compõem. Palavras-Chave: Direitos fundamentais; transfusão de sangue; Testemunhas de Jeová; conflito de direitos fundamentais. ABSTRACT This paper focuses on the analysis of the refusal of blood transfusion expressed by adherents of the religion of Jehovah's Witnesses and medical responsibility for the act or omission commissive according to the 1988 Federal Constitution, the Civil Code, Criminal Code and specific laws. Its purpose is to show the conflicting field created when the refusal is made before the imminent risk of life to patients and analysis of the operator of law, concerning the interpretation, is facing a real or apparent conflict of fundamental rights in order to provide a solution to the case Specifically, adopting criteria for conflict resolution using the principles and weighting values. It aims to even propose a reflection on the state intervention in the sphere of individual rights. Respect the rights of the citizen is also an obligation of the state, so that interventionist positions should be reviewed against the role of the democratic state and the various social groups that compose it. Keywords: Basic rights; transfusion of blood; Jehovah's Witnesses; conflict of basic rights. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 5/8/2009 Avaliado em: 29/10/2009 Publicação: 31 de março de 2010 21 22 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica 1. INTRODUÇÃO Desde o surgimento do homem, procuramos todas as formas e meios possíveis para vivermos para sempre. O livro de Gênesis encontrado na Bíblia Sagrada diz que O TODO PODEROSO (Jeová Deus) criou o homem com o propósito de povoar a terra e cuidar dela por tempo indefinido. Com o inicio do pecado na terra o qual se deu pela desobediência do primeiro homem Adão, O Todo Poderoso (Jeová Deus) resolveu extinguir a vida eterna dada aos humanos e fazendo com que sentissem dor, sangrassem, adoecessem, sofressem, trabalhassem para prover seu sustento, dentre outros castigos relatados na Bíblia Sagrada o que vem ocorrendo até os dias atuais. O homem por nascer com a perspectiva da vida eterna nunca se conformou em ter que se entregar à morte e por isso cuidou de procurar meios que pudessem trazer tal longevidade. Na idade Média, Luis XII, da França, ordenou que sacrificassem um jovem para que se banhasse em seu sangue achando que desta forma estaria prolongando sua vida já avançada. Este ato tornou-se freqüente na idade média. Para alguns na Antiguidade, o sangue era importante para a alma. Muitos acreditavam que os mortos poderiam ressurgir se fosse dado sangue ao falecido. Na linha dos guerreiros, acreditavam que tomando o sangue de seus inimigos, os quais morreram com bravura, tornar-se-iam mais corajosos, fortes e inteligentes. Como vemos a utilização já era conhecida desde os mais antigos, para muitos, aproveitável e para outros totalmente proibidos o seu consumo. Hoje com o avanço da medicina, a transfusão de sangue foi melhorada para que pudesse salvar vidas. O verdadeiro início da transfusão de sangue deu-se no ano de 1628 por Harvey pela sua obra “Os movimentos do Coração e do Sangue” a qual corporizou a descoberta da Circulação Sangüínea, onde foi denominado para tal o nome “Cirurgia Infusória”, que logo após ficou conhecido como “Cirurgia Transfusória” e como hoje conhecemos. O inicio deste estudo era elaborado através de testes com animais, onde eram inseridos em sua corrente sangüínea diversos tipos de substâncias químicas como açúcar, vinagre, ópio, estes não tinham o efeito de morte imediata como tinha o azeite, alúmen e outros componentes químicos. No período de 1656 a 1666, Bayle e Clarke, injetavam outros tipos de componentes como: açafrão, antinômico, suspensões de goma arábica, mas desta vez não feitos em animais, mas sim em homens que eram condenados a morte. Outros afirmam que a verdadeira concepção teórica da transfusão de sangue fora atribuída ao monge Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 23 Beneditino D. Robert de Gabets, de Metz. Haveria ele apresentado em 1658 uma exposição pública sobre a transfusão de sangue. Em um dos casos em estudo pelos cientistas médicos, após a primeira transfusão de sangue notou-se no doente o alívio do sofrimento. Mas após a segunda transfusão, houve alguns distúrbios que foram causados pela transfusão de sangue, como, braço quente, pulso alterado, dores nos rins e mal estar e já no dia seguinte sua urina estava escura. Insistiram nas transfusões alegando melhoria, mas morreu na mesma noite. E daí em diante, outros casos similares apareceram. No ano de 1664, a Academia das Ciências determinou a hostilidade da transfusão de sangue. Naquela época, a condenação dar-se-ia pelo grande número de acidentes decorrentes de transfusões de sangue, e hoje, devido ao avanço tecnológico, sabemos que a causa de tais reações á transfusão ocorriam devido à formação dos anticorpos que combatem o sangue estranho e também por causa de infecções bacteriológicas. 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS Conceituar direitos fundamentais pode ser considerada uma árdua tarefa, pois as diversas designações dadas ao tema causam, à primeira vista uma confusão conceitual. Entre as diversas expressões empregadas em relação ao tema, é possível destacar as seguintes: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, direitos fundamentais do homem e direitos fundamentais. No entanto, apesar das dissidências terminológicas, todas as expressões almejam apresentar e representar direitos que visam criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana. Afirma Sarlet que “os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”. Desta forma também se posiciona a maioria dos autores que se dedica a estudar o apaixonante tema. Para Pinho: Direitos fundamentais são os indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar à todos uma existência digna, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no dia-a-dia dos cidadãos e de seus agentes. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 24 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Moraes (2000), apesar de utilizar a terminologia direitos humanos fundamentais, apresenta a seguinte conceituação: O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade da pessoa humana [...] (MORAES, 2000, p. 39) Do conceito apresentado por Perez Luño, sobre os direitos fundamentais do homem, colhe-se o seguinte: [...] considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. (LUÑO, 1997, p. 77). Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizaremos a expressão direitos fundamentais, pois de acordo com Farias (2000) , esta locução é utilizada para se referir aos direitos positivados na constituição de um determinado Estado. Usando como suporte os conceitos destacados, elaborados pelos autores citados, propomos o seguinte significado para a expressão doravante adotada: Conjunto institucionalizado de direitos e garantias, que visa à limitação do arbítrio do poder estatal, assegurando ao ser humano uma vida digna, livre e pautada na igualdade entre os homens, de acordo com um determinado momento histórico e os valores nele inseridos. Destacamos o fator histórico por acreditarmos que os direitos fundamentais não surgem ao acaso e nem a qualquer tempo. Desta forma, se posiciona Bobbio: Do ponto de vista teórico, sempre defendi – continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Salientamos, no entanto, que não há unanimidade teórica a respeito da justificativa dos direitos fundamentais, sendo possível encontrarmos uma variedade de correntes filosófico-jurídicas, abordadas por Branco (2002) da seguinte forma: [...] para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas. (GONET, 2002, p. 113.). O que ocorre, segundo Bobbio (1992), é uma crise dos fundamentos dos direitos do homem, sendo que “deve-se reconhecê-la, mas não tentar superá-la, buscando outro fundamento absoluto para o que se perdeu”, considerando que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO, 1992, p. 05). Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 25 2.1. Análise Constitucional À luz da Constituição Federal, o paciente tem pleno direito de recusar um determinado tratamento médico, com fundamento no artigo 5º, II, que reza que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo (autonomia da vontade), salvo em virtude de lei (legalidade). No caso em tela, como não há lei que obrigue a optar por transfusão de sangue como tratamento para determinados casos, a recusa será legítima e deverá ser respeitada. E se não há lei que determine, não será o Judiciário - e muito menos a classe médica - que determinará tal procedimento, salvo por consentimento do paciente. Aliás, um dispositivo legal neste sentido seria absurdo tendo em vista os métodos de tratamento alternativos, inclusive em emergências. Vale dizer que a recusa a determinados tratamentos que se baseie estritamente em convicções religiosas ou filosóficas deve ser respeitada da mesma forma, por imposição dos incisos VI e VIII do artigo 5º da Constituição Federal, que garantem a liberdade de crença e consciência. Em suma, ainda que não seja a opção terapêutica preferida pelo médico, prevalece à vontade do paciente acima da decisão puramente técnica e profissional, por força dos preceitos constitucionais aqui considerados. A esse respeito, Sarlet (1998) leciona que a qualificação da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental da Constituição da República de 1988, “constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica”. Este preceito corresponde ao fundamento do princípio do Estado de Direito e vincula não apenas o administrador e o legislador, mas também o julgador e o operador do direito. O direito à vida, constitucionalmente defendido, envolve não apenas os elementos materiais e biológicos da pessoa, mas também os morais, emocionais e espirituais, que certamente lhe serão atingidos caso seja procedido o tratamento com o uso de sangue sem seu consentimento. 3. DIREITO À LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA “Penso, logo existo!” Esta famosa frase de Descartes nos revela algo maravilhoso e assombroso a respeito da natureza humana – a saber - a capacidade de nos relacionarmos com o que está ao nosso redor e formarmos valores que, pouco a pouco constroem nossa consciência, a qual moldará nossa personalidade. Assim sendo, é de fundamental importância que a sociedade crie mecanismos para garantir a liberdade de consciência a fim de que o indivíduo possa manifestar seus pensamentos, sentimentos e convicções. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 26 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Por outro lado, uma sociedade que não preza a liberdade de consciência dos seus cidadãos, estará sufocando e negando (ou pelo menos subestimando) a própria “personalidade humana”. A maior prova disso é que os regimes totalitários (tais como o nazismo, o fascismo e o comunismo stalinista), são encarados como verdadeiras aberrações ao jusnaturalismo, pois estrangulavam a pessoa humana num tenebroso processo de “robotização”, transformando cada indivíduo numa “máquina” de propriedade estatal. Felizmente, a nossa Constituição tutela a “liberdade de consciência e de crença” como um “direito e garantia fundamental” (art. 5º, VI, C.F.). É valioso ressaltar que essa proteção é decorrente do mais sublime fundamento da nossa sociedade que é a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III, C.F.). De fato, ao analisarmos o tripé “liberdade de consciência” (a qual projeta a “liberdade de crença”), “direito à privacidade” (art. 5º, X. C.F.) e “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III C.F.), chegaremos à conclusão de que o mesmo está inexoravelmente ligado a substância humana, e que romper este tripé por suprimir ou desrespeitar tais imperativos da conduta humana seria tão criminoso (e até mais doloroso) que provocar a própria “morte física” do indivíduo. Abordando de maneira específica a liberdade religiosa, o constitucionalista Ferreira Filho (1994), observou algo interessante sobre o tema em análise: Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a liberdade... Mais do que isto é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ela a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. (FERREIRA FILHO, 1994, p. 29). Mas qual é o alcance da “liberdade religiosa?” Será que a “liberdade de culto” se limita literalmente às missas e reuniões realizadas dentro das igrejas? Bastos (2000), ao abordar os aspectos que integram a “liberdade de culto”, elucida o ponto em questão: “Como já visto, a religião não pode... contentar-se com sua dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai, contudo, via de regra, procurar uma externação... a que se denomina „liberdade de culto‟” (BASTOS, 2000, p. 13). O referido jurista continua respondendo: Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem qualquer opção religiosa do indivíduo. Assim, as restrições decorrentes da invocação religiosa estariam, igualmente, albergadas sob este título, sendo certo que, como dito, não há verdadeira liberdade de religião se não se reconhece o direito de livremente orientar-se de acordo com as posições religiosas estabelecidas... Ora, o culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 27 independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas „proteção aos locais de culto e as suas liturgias‟. (BASTOS, 2000, p. 14, grifo nosso). Desta forma, a liberdade de religião não consiste apenas em o indivíduo estar autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Dentre estes se destacam os cultos religiosos e suas liturgias Obviamente, isto também abrange a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como na literatura, na melodia ou na escolha de tratamentos médicos. Esta interpretação segue a lógica do sistema. Portanto, a lógica do sistema é no sentido de que o “Direito fundamental e constitucional à Liberdade de Consciência e Crença”, bem com a proteção aos cultos e liturgias, projetam, no caso em análise, a satisfação da necessidade do cidadão poder adentrar em um hospital cônscio de que seus direitos e o respeito ao seu “ser” não ficarão do lado de fora. 3.1. Direito à Liberdade Religiosa Luño (1997) que “a liberdade sem igualdade não conduz a uma sociedade livre e pluralista, mas a uma oligarquia, vale dizer, à liberdade de alguns e à não liberdade de muitos” ainda que não se possa perder de mira que “a igualdade sem liberdade não conduz à democracia, mas ao despotismo, ou seja, à igual submissão da maioria à opressão de quem detêm o poder (situação que evoca a divisão do igualitarismo cínico do Animal Farm de George Orwell, a teor do qual „ todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros‟)”. Hodiernamente, considerando a evolução dos direitos fundamentais e o fato de vivermos em um Estado Democrático de Direito, não cabe mais nos apegarmos ao conceito antigo de liberdade, pois o termo autoridade, que até então se resistia, assumiu nova postura, novo significado. A necessidade de seguir referenciais sempre fez parte do comportamento humano e, dentro deste contexto, a religião sempre foi uma forma de unir pessoas em torno de valores e crenças que por fim acabam por influenciar os comportamentos sociais. A busca para explicações sobre a vida e seus fenômenos, inclusive a morte, é uma constante na sociedade. As religiões apresentam-se oferecendo respostas a estas indagações, de acordo uma doutrina pautada na crença e culto a uma divindade e nos seus dogmas. Para Ferreira Filho (1994), “a religião constitui um dos mais fortes componentes das diferentes civilizações. Não é por outra razão que os estudiosos das civilizações o Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 28 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica mais das vezes as caracterizam em função desse elemento religioso: civilização cristã; civilização muçulmana etc”. (FERREIRA FILHO, 1994, p. 21). De acordo com Davis (2004), o princípio moderno de liberdade religiosa, através do qual os governos declaram sua neutralidade sobre questões religiosas, permitindo a cada cidadão individual, com base na sua própria dignidade humana, adotar suas crenças religiosas sem medo de represália, é conseqüência natural do esclarecimento. Ele recebeu reconhecimento universal na Declaração de 1948, sem dúvida o maior marco da evolução da liberdade religiosa internacional. 3.2. Do direito à vida O direito à vida está previsto no “caput” do art. 5º da Constituição. Este consiste não só no direito de não ser morto pelo Estado ou algum particular, mas também á uma vida digna, ou seja, também é uma projeção do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, C.F.). Assim, numa visão mais ampla, a Carta Magna não está apenas garantindo o funcionamento biológico do indivíduo, mas o seu bem estar físico, emocional-psicológico e espiritual. Não se pode reduzir o ser humano a uma abordagem puramente fisiológica, pois o mesmo, ao contrário das demais espécies existentes no planeta, é capaz de abstrair e transcender em busca do seu originador. O direito à vida é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos constitucionais. Por outro lado, a mesma, desprovida de liberdade e dignidade, torna-se pesarosa. Atento a isso, o legislador vai além de prover a mera existência biológica do indivíduo, objetivando também resguardar sua intimidade, privacidade, consciência, crença, segurança etc. No caso em análise, todos esses bens jurídicos devem ser levados em consideração, pois, por mais que um médico bem intencionado realize uma transfusão de sangue forçada acreditando que é o melhor para salvar a vida de seu paciente, na realidade, ele poderá estar ferindo os sentimentos mais íntimos do cidadão, estigmatizando-o permanentemente com a infelicidade! O ideal é obter a cura física do ser humano sem ferir-lhe psicologicamente. 4. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SUA CONVICÇÃO RELIGIOSA A crença das Testemunhas de Jeová, por séculos tem sido a de que Deus Jeová, o criador dos céus e terra, e de todo o ser vivente, tem um propósito para a vida de todos nós. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 29 O fundamento de tal alegação encontra-se no livro de Provérbios, capítulo 16 (dezesseis), versículo 24 (vinte e quatro) da Bíblia Sagrada e é com esta convicção que as Testemunhas de Jeová mantém sua esperança de vida apenas no criador de todas as coisas, Deus. Conforme a previsão bíblica, contida no livro de Isaías 45 (quarenta e cinco), versículo 18 (dezoito), Deus não criou a terra para o nada, mas para que fosse habitada, e o desejo de Deus é que isto se desse com incontável final dos dias numa terra paradisíaca. Para os estudiosos da bíblia, no caso as Testemunhas de Jeová, Deus não se esqueceu de seu propósito: “Seguramente, assim como tencionei, assim terá de acontecer, e assim como aconselhei, deste modo se efetuará” (ISAÍAS, 14:24; 46:11). As Testemunhas de Jeová seguem o que está escrita nas escrituras sagradas, a bíblia, e para eles, assim como descrito no livro de Josué capítulo 23 (vinte e três), versículo 14 (quatorze): “não falhou nem uma única de todas as boas palavras que Jeová Deus, Vosso Deus, vos falou”. 4.1. O temor a Deus Conforme demonstrado anteriormente, Deus criou a terra para que os homens a governassem e mesmo embora tenha havido governantes/políticos sinceros, que desejam realmente ajudar a humanidade/sociedade, seus esforços não tem êxito, ou apenas o faça em curto prazo. Como podemos verificar todo o Mundo se encontra em colapso governamental. Por isso a bíblia aconselha para que os cristãos não confiem nos nobres, nem no filho do homem terreno, a quem não pertence à salvação... De acordo com as escrituras sagradas e partindo desta, para tudo há um tempo determinado. Após o término do tempo que Deus estabeleceu, permitindo a iniqüidade e o sofrimento, irá intervir nos assuntos humanos, acabando com a dor e a iniqüidade, existente hoje e cumprirá com o seu propósito desde o livro de Gênesis, de encher a terra com uma família perfeita e feliz para usufruir total paz e segurança econômica em condições plenas. Biblicamente, o sangue é mais que um complexo liquido biológico. Ela menciona o sangue mais de 400 (quatrocentas) vezes e algumas destas referências envolvem a salvação de vidas. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 30 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Em uma das primeiras referências que a bíblia faz sobre o sangue, Deus declara que tudo aquilo que é vivo poderá servir de comida, mas não devemos comer da carne com vida, ou seja, com sangue. O sangue humano tem grande significado e não deve ser mal empregado. O Criador acrescenta pormenores, por meio das quais podemos facilmente depreender as questões morais que ele vincula ao sangue vital. Conforme a norma descrita no livro de Deuteronômio, capítulo 12 (doze), versículo 23 (vinte e três), o criador ordenou aos homens que derramassem o sangue na terra como se fosse água. Diferentemente das idéias hoje defendidas de que a lei Divina sobre o sangue não deveria ser considerada em situação de emergência. De acordo com o cientista Joseph Priestly (1767), a proibição de comer sangue, dada a Noé, passou a ser obrigatória para toda a posterioridade e podemos concluir então que nenhum homem verdadeiramente cristão o poderia fazê-lo. Embora naquele tempo, o uso medicinal do sangue não existia, por mais ou menos 2000 (dois mil anos), o sangue era utilizado como remédio para lepra e em Roma como tratamento contra epilepsia. Mas, aqueles que eram cristãos, já naquele tempo, entendiam que não podiam aceitar tal tratamento para curar suas doenças. As Testemunhas de Jeová dão a vida um valor muito alto ao respeito às leis de Deus e por isso não aceitam este tipo de tratamento. 5. RESPONSABILIDADE MÉDICA A intenção do médico é de salvar o paciente, e não de feri-lo. Entretanto, este posicionamento sofre uma forçosa crítica: fatalmente, ao submeter o paciente à intervenção cirúrgica, o médico age com animus de cortar, ainda que, obviamente, não aja com dolo prescrito pelo tipo penal de lesões corporais, pois o profissional está agindo terapeuticamente. Em regra, ao médico é vetado intervir terapeuticamente sem o consentimento do paciente, o que comportando exceções, pois estará atendendo ao princípio da beneficência. É imprescindível que o consentimento seja dado pelo paciente ou quando não for possível este ser dado por si próprio, será suplantado pelos familiares. Todavia, quando o primeiro estiver impossibilitado, em casos como estar o paciente em coma, e não se podendo ter a anuência de algum representante, o médico age com a presunção do consentimento do enfermo pra salvar-lhe a vida, pois sem o consentimento real ou Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 31 presumido do paciente, estaria o médico obrigando-o ao tratamento terapêutico, não permitindo o livre-arbítrio do paciente de poder dispor do próprio corpo. Parte da doutrina compreende que ainda que o médico-cirurgião tenha causado lesões ao organismo necessárias à cirurgia, sua conduta está conforme o Direito e às exigências de cunho ético-jurídico-social. Há, no entanto, quem entenda que a conduta do médico constitui uma excludente de tipicidade, mesmo que o paciente tenha uma piora no seu estado de saúde em virtude desta conduta. Ainda que nesta questão se trate de bem jurídico indisponível, que pode ser a vida ou a integridade física do paciente, a conduta, em regra, não constituirá crime porque será considerado irrelevante para o Direito Penal, bastando apenas que não haja dolo por parte do médico em prejudicar o enfermo e também ao atuar na intervenção cirúrgica o faça com a lege artis. Para tanto, existe ainda a teoria da imputação objetiva que isenta a responsabilidade penal do médico quando realiza uma intervenção médica cirúrgica, desde que ele tenha seguido rigorosamente a lege artis, em razão dos riscos que foram criados para o paciente eram riscos permitidos. È cediço que é impossível que uma operação deixe intacto o bem jurídico integridade física, não havendo como evitar o agravamento do estado geral do enfermo, pois existe de fato um defloramento do seu corpo, visando uma melhora futura. Em função disso, parte da corrente doutrinária entende que o tratamento médico cirúrgico é um exercício regular de direito para aqueles que o profissional, no caso o médico, ao adquirir este título possui o direito de realizar todos os atos inerentes a sua profissão para atingir o fim social a que esta se propõe, ainda que para isto tenha que violar alguns bens juridicamente tutelados. 5.1. Natureza jurídica Classifica-se a natureza jurídica da responsabilidade médica como meramente contratual, por haver entre o médico e o paciente, uma relação de consumo, apresentando-se inicialmente como uma obrigação de meio, pois não existe neste caso a obrigação de se chegar ao resultado, mas de prestar-lhe os cuidados necessários de forma consciente e atenta, utilizando-se de todos os recursos da medicina. A obrigação de resultado estará clausulada no contrato, quando o médico tiver a obrigação de alcançar o resultado. Exemplo: Medicina estética ou estética reparatória. Para analisarmos a responsabilidade médica, temos de entender duas teorias que cercam a responsabilidade; a objetiva e a subjetiva. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 32 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica A teoria subjetivista tem seu alicerce na culpa, ou seja, é o elemento ilícito, que girará em torno da falta de vontade ou não do agente para o resultado. Já a teoria objetivista, a análise da presença ou ausência da vontade do agente, não importa. Basta a existência do nexo de causalidade (ato e dano) para que apareça a obrigação de reparar o dano. O nexo causal consistirá apenas ao dano ou a omissão. Existem divergências sobre esta última teoria. Muitos doutrinadores alegam que seria uma forma injusta de reparar um dano, dizem eles, que está teoria veste-se com a lei de Hamurabi e de Talião, “olho por olho e dente por dente”. Mas destes, temos que discordar totalmente, uma vez que não versa a teoria objetivista na vontade de causar o mesmo dano em suas proporções, mas de coibir, reprimir e de reparar. Alguns doutrinadores resolveram dar mais complexidade a esta responsabilidade, distinguindo-as entre contratuais e extracontratuais. O entendimento majoritário é de que, tanto uma quanto à outra, conduzem ao mesmo resultado, reparar o dano. Quando a paciente contrata com o médico, uma consulta, tratamento, terapia ou cirurgia, o negócio jurídico é meramente contratual de caráter oneroso e comutativo. Já o paciente que contrata o médico para uma cirurgia plástica estética enseja na mesma forma, mas a obrigação passa a ser de resultado. Quando o médico agir por sua iniciativa (em casos de emergência) ou ainda contra a vontade do paciente, o contrato passa a ser unilateral, onde a responsabilidade emergirá da conduta e não do contrato. 5.2. Sob a ótica do Novo Código Civil Venosa (2001), bem nos coloca que este terá natureza delitual, quando o médico cometer ilícito penal e quando violar normas regulamentadoras da profissão. Desta forma, tendo o médico utilizado todos os meios técnicos a seu alcance e não explicando a origem do dano, não haverá obrigação por risco profissional, pois seus serviços médicos são em regra de meio e não de resultado. Não demonstrada a negligência, imperícia ou imprudência, não haverá base para a responsabilidade civil. Sendo assim, no caso de um paciente vir a óbito, numa obrigação de meio, não haverá a presunção de culpa do médico, este deverá provar que o dano não resultou de imperícia, negligência ou imprudência. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 33 A responsabilidade civil do médico, apenas ocorrerá de culpa devidamente comprovada e que decorra dos casos acima enumerados, sendo ainda considerado o erro grosseiro. Apenas doutrinariamente, tratam o erro grosseiro como uma exceção, sob a alegação da falibilidade do profissional em relação à imperfeição da ciência. Ficando provado através de perícia médica o erro médico, além de o médico responder civilmente, responderá penalmente, pelo ato danoso ou culposo, lesionando o bem alheio. O erro médico não ocorre apenas durante a cirurgia como a maioria das pessoas pensa, pode ocorrer também durante o tratamento de uma determinada doença, a simples prescrição de um medicamento, quando o médico orienta o paciente de forma errada, no sentido de não encaminhá-lo ao especialista correto (em casos de atendimento por clinico geral em PS‟s de hospitais públicos e quando da procrastinação. Muitos doutrinadores pregam, que o direito á indenização apenas será logrado ao paciente, quando houver incapacidade permanente para o trabalho. Mas o fato é que a partir do momento em que o paciente sentir as conseqüências do descuido do médico, seja o dano permanente ou não, deve ser indenizado). 5.3. De acordo com o Código de Ética Médica O Código de Ética Médica é um complemento e praticamente é ele que direciona e limita a atividade médica sobre sua aplicação (medicina) para que não se perca os valores humanos, conduzindo a um bom relacionamento entre médico/paciente, médico/médico e médico/sociedade. Nossos códigos e leis específicas têm o condão de balizar as atividades do homem/médico, flagrando deslizes nesta profissão que acaba passando despercebido pelos Conselhos de Ética Médica. A autonomia do paciente é a extensão da equidade onde associamos a idéia de respeito pelo próximo. É tratando com respeito o paciente em sua condição humana que o médico poderá obter o consentimento para que realize sua função o qual está repleto de riscos e compreender as razões de certas terapêuticas não serem aceitas e viável e a partir daí, procurar alternativas para curá-lo ou amenizar o seu sofrimento. O médico deve manter o sigilo que a sua profissão pede, uma vez que terá acesso a informações que poderá acarretar em constrangimento se forem revelados. O respeito à vida é um dos maiores princípios da ética médica, tendo de se moldar às condições sociais vividas. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 34 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica 5.4. Recusa da transfusão de sangue por maior e capaz e representante legal de menor ou incapaz Há uma corrente que afirma ser a liberdade o primeiro direito na hierarquia dos direitos fundamentais do indivíduo e chega mesmo a enfatizar que entre o direito à vida e o direito à liberdade, a escolha é do titular desse privilégio, atendendo-se ao princípio da autonomia. Desta forma, teria o paciente o direito de aceitar ou não um tratamento por imperativo religioso, mesmo que ele fosse o único meio de salvar-lhe a vida, pois isto estaria constitucionalmente consagrado em nossa Carta Magna (incisos VI e X do artigo 5º), em respeito á liberdade de consciência e de crença. O princípio da autonomia ou da liberdade é complementado por outro essencial, o da informação adequada, onde prevê que o consentimento deve ser emanado de um paciente capaz de compreender claramente a notícia que for dada pelo médico quanto ao tratamento a que será submetido. Em caso do paciente, não poder consentir lucidamente, o consentimento poderá ser substituído pelo do seu representante legal. Nos casos que houver dissenso do representante legal e o incapaz, o médico deverá em caso de emergência intervir oponente ao consentimento do representante legal. Entretanto, se for possível postergar a intervenção, em caso de não ser de urgência, a doutrina entende que deve recorrer ao Judiciário para solucionar o conflito. Afirma-se ainda que o dever do médico é de fonte legal e o direito do paciente de aceitar ou recusar um tratamento é “expressão de sua liberdade”, segundo a Constituição brasileira em vigor. O médico cumpriria suas obrigações apenas informando ao paciente ou ao seu responsável legal da necessidade ou da conveniência de uma conduta ou de um tratamento e de suas conseqüências advindas pela não aceitação, mesmo que seu Código de Ética se expresse claramente dizendo que “é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”. Insiste-se dizendo que a interpretação literal deste dispositivo do Código de Ética Médica é absurda, pois pelo fato de o paciente estar diante de um perigo de vida ele não perdeu o direito fundamental à liberdade, seja no aspecto religioso, seja no aspecto de sua privacidade. Há ainda a afirmação de que no atendimento médico à recusa do paciente não existe crime porque isto se deu por manifestação tácita ou expressa do assistido ou de seus responsáveis legais. Houve, apenas, segundo aqueles defensores desta idéia, uma recusa de tratamento por parte do paciente. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 35 Com o advento do Código Civil/02, a maioridade foi antecipada para os dezoito anos. Assim, isto só vem a reforçar o que Ferreira Filho questionou. Do mesmo modo, a faculdade de direito da Universidade de Cambridge (Inglaterra), no artigo “Detentores Múltiplos das Chaves – Tutela e Consentimento Para Tratamento Médico”, analisando um caso em concreto, diz que “se a criança dotada de suficiente maturidade há de ter o direito de consentir com o desejado processo de tratamento, é difícil compreender por que se deveria negar a ele ou ela o direito de recusar alguma medicação indesejada”. Muito esclarecedor um julgado da Suprema Corte de Maine que reconheceu o direito de um jovem de 17 anos em recusar a manutenção artificial de sua vida quando entrasse em estado vegetativo: É um fato estabelecido que em todas as facetas da vida, o menor adquire a capacidade de consentir em diferentes classes de invasões e de conduta nas diversas etapas de seu desenvolvimento. Existe capacidade quando o menor compartilha a habilidade da pessoa mediana para entender e avaliar os riscos e benefícios‟... Reconhecemos isto na lei de nosso próprio Estado ao estabelecer diferentes idades nas quais pessoas alcançam a capacidade para consentir na adoção, conduzir um veículo motorizado, comprar cigarros, deixar a escola, votar, casar-se e adquirir bebidas alcoólicas e tomá-las. 1,2 Por fim, não podemos esquecer que o E.C.A. nos artigos 15 c.c 16, II e III, diz que a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo, não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível, ouvir o menor na medida de sua maturidade. 5.5. Diante de perigo iminente de morte ao paciente Deve-se entender como perigo para vida, a situação em que existe uma possibilidade concreta de êxito letal e que exige uma atuação rápida, decisiva e inadiável, a fim de evitar a morte. Nossa legislação penal substantiva em vigor admite como crime deixar de prestar assistência a pessoas em grave e iminente perigo de morte (artigo 135) e exclui da categoria de delito a intervenção médica ou cirúrgica, mesmo sem consentimento do paciente ou de seu responsável legal, se justificada por iminente perigo de vida (artigo 146). Neste caso, o médico deve agir porque está amparado no exercício regular de seus direitos e no cumprimento do dever legal. Código Penal: Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. 1 MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma análise jurídico-bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.661, 28 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6641>. Acesso em: 14 jan. 2006. 2 CUIDADOS COM A FAMÍLIA E TRATAMENTO MÉDICO PARA AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Cesário Lange/SP. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 36 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência, ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Parágrafo 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I – A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Na proteção do mais irrecusável de todos os direitos – o direito à vida, nossa legislação penal despenalizou o constrangimento ilegal, desde que a vida de uma pessoa corra perigo iminente de morte, e que alguém faça isso por meios moderados e sem colocar em risco a sua própria segurança. O direito moderno considera a vida um bem coletivo. O homem não se pertence só a si, senão à sociedade, de que faz parte integrante. A hipótese se enquadra, então, sem a menor dúvida em questão de ordem pública. E sendo assim, como de fato é, a vida um bem coletivo, claro está que, em tais circunstâncias excepcionais (perigo de vida ou iminência de morte), o médico pode e deve agir arbitrariamente, porque há uma razão jurídica a invocar: o interesse do agente é legítimo, a utilidade manifesta para a sociedade (HUNGRIA, 1958, p. 178). E para arrematar a convicção que esta tese visa defender, Prado (2002) escreve: Fundamenta-se o estado de necessidade porque a conduta do médico visa afastar de perigo atual ou iminente bem jurídico alheio (vida do paciente), cujo sacrifício, nas circunstâncias não era razoável exigir-se. O mal causado (violação da liberdade pessoal) é menor do que aquele que se aprende evitar (morte). (PRADO, 2002, p.276). Há conflito entre bens de valor diferencial, com sacrifício do bem de menor valor. O ordenamento jurídico faculta a lesão do bem jurídico de menor valor com o único meio de salvaguardar o de maior valor. Dessa forma, somente haverá a exclusão da ilicitude de uma intervenção médica sem o consentimento do paciente em casos de iminente perigo para vida, que seja impostergável em razão da urgência e que constitua único meio para salvar a vida do paciente. Existindo outro tratamento alternativo, ainda que lesivo e na opinião médica inviável, deverá ele direcionar sua atuação em consonância com a opção eleita pelo enfermo, caso contrário estará o médico atuando de forma arbitrária e violando o direito do indivíduo de decidir o melhor para si. Código de Ética Médica: É vedado ao médico: Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida. Art. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico tratamento a seu alcance em favor do paciente. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 6. 37 PONDERAÇÃO DE VALORES NA COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS O tema da recusa às transfusões de sangue por pacientes adeptos da religião Testemunha de Jeová envolve uma aparente colisão de preceitos fundamentais. De um lado, está o direito indisponível à vida e, de outro, o direito de recusa por convicções religiosas, ambos protegidos igualmente na nossa Constituição, isto é, o legislador constituinte não estabelece cláusula de reserva de lei, ou seja, quando restringe o exercício de um direito à observância do outro Por outro lado, em se tratando de direitos fundamentais não acobertados pela “reserva de lei”, a solução fica a cargo da jurisprudência, a qual deve realizar a “ponderação dos bens envolvidos”, com o intuito de resolver a colisão por meio do “sacrifício mínimo dos direitos em jogo”. Sendo assim, em não havendo prevalência in abstrato por nenhum destes direitos fundamentais, como se proceder diante da colisão entre eles no plano concreto? Em primeiro lugar, deve-se fixar a noção de que nenhum direito é absoluto. Nem mesmo o direito à vida. Prova disto é a permissão constitucional de condenação à pena de morte em estado de guerra e, ainda, a possibilidade de realização de aborto autorizado judicialmente, diante da previsão no Código Penal, no caso de gravidez resultante de crime de estupro. Em segundo, afirma-se que se trata somente de um conflito aparente de direitos constitucionais, pois, de acordo com os princípios da hermenêutica constitucional, as normas constitucionais não entram em colisão, uma vez que há critérios para que a jurisprudência realize o mencionado juízo de ponderação. Ressaltando-se que esta, ao realizar “uma necessária e casuística ponderação dos bens envolvidos”, deve visar o “sacrifício mínimo dos direitos contrapostos”. A solução é, então, buscar estes critérios para resolver a aparente colisão de direitos fundamentais, diante de um caso concreto, nos princípios informadores da hermenêutica constitucional, já que não há um critério dogmático a priori, e balizar a ponderação de tais valores na supremacia da dignidade humana, fundamento do nosso Estado de Direito democrático e social e princípio informador de qualquer interpretação de direitos fundamentais. 6.1. A hermenêutica constitucional Diante da concepção de Estado de Direito Democrático e Social, com a positivação de direitos fundamentais e a inserção de cláusulas constitucionais de conteúdo aberto, principiológico, a hermenêutica constitucional urge por mudanças. A idéia de “Nova Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 38 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Interpretação Constitucional”, defendida, dentre outros, por Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, não importa em desprezo dos métodos clássicos, mas na constatação de sua insuficiência, principalmente quando se depara com a colisão de direitos fundamentais. Na colisão de direitos fundamentais não é possível uma solução adequada in abstrato, esta somente podendo ser formulada à vista dos elementos do caso concreto. A moderna interpretação envolve juízo discricionário do intérprete, o qual, por sua vez, encontra limites nos princípios informadores da hermenêutica constitucional, que servem como parâmetros para ponderação de valores e interesses. É cediço que os direitos fundamentais contêm um fundamento ético e uma alta carga valorativa. Sendo assim, a colisão destes direitos é não somente possível, como faz parte da lógica do sistema, pois valores estão sujeitos a variações conforme o contexto social e, além disso, necessitam de um juízo discricionário no momento da interpretação casuística. O princípio da unidade da constituição determina a análise do texto constitucional como um todo, como um sistema que necessita “compatibilizar preceitos discrepantes”, surgindo para o intérprete o ônus de detectar na Constituição as normas pertinentes ao caso, identificar eventuais conflitos entre elas e considerá-las em conjunto para sua solução. A concordância prática, ou princípio da harmonização expressa uma conseqüência lógica do princípio da unidade da constituição, pois, conforme aqueles, os valores e direitos fundamentais devem ser harmonizados, no caso concreto, por meio de juízos de ponderação que vise concretizar ao máximo os direitos constitucionalmente protegidos, não se devendo por meio de uma precipitada ponderação de bens ou valores in abstrato, desprezar um direito a custa da prevalência do outro. A proporcionalidade, por sua vez, consiste na “realização do princípio da concordância prática no caso concreto”, ou seja, significa a “distribuição necessária e adequada dos custos de forma a salvaguardar direitos fundamentais e/ou valores constitucionalmente colidentes”. O princípio da proporcionalidade caminha junto com o princípio da razoabilidade, formam uma espécie de parceria: significam a ponderação entre os meios empregados e os fins atingidos: é a busca do razoável. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 Janda Thibes 39 6.2. A técnica da ponderação de valores A técnica da ponderação consiste em apurar os pesos ou a importância relativa que devem ser atribuídos a cada elemento em disputa, a fim de se escolher qual deles, no caso concreto, prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro, ressalvando-se que a produção dessa solução deve nortear-se pelo princípio da proporcionalidade. No caso de colisão de direitos fundamentais, faz necessária a opção de preferência de um direito sobre o outro oposto, em que se perquire, inicialmente, todos os valores constitucionais envolvidos e, num juízo de ponderação, aplica-se ao caso concreto os princípios constitucionais específicos, especialmente a proporcionalidade e a razoabilidade. 6.3. O princípio da dignidade da pessoa humana Conclui-se pela prevalência da dignidade da pessoa humana como limite e fundamento do exercício dos demais direitos, isto é, no momento da concretização daqueles valores positivados. O princípio da dignidade da pessoa humana denota um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem, isto é, assegura o direito à integridade moral e ao mínimo ético a todas as pessoas apenas por sua existência no mundo. Ao eleger a dignidade da pessoa humana como fundamento do nosso Estado de Direito Democrático e Social, o legislador explicita o seu papel fundamental na estrutura constitucional: o de fonte normativa dos demais direitos fundamentais. É baseado na dignidade humana que emergem os demais direitos e garantias fundamentais, é aquele princípio que dá unidade e coerência ao conjunto destes. É imprescindível que se reconheça a força normativa do princípio da dignidade humana e, por um raciocínio lógico, a sua carga axiológica como um valor absoluto, o único que possui este atributo. 7. CONCLUSÃO Durante toda a história das Testemunhas de Jeová, vimos que seus fiéis seguidores se mantêm firmes em recusar o método terapêutico transfusional, devido conflitar com sua lealdade a Deus. Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 p. 21-41 40 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová x responsabilidade médica Diante de tantas opções de tratamento, podemos concluir que “a medicina encarou o desafio” e tem desenvolvido métodos terapêuticos alternativos sem sangue, respeitando a dignidade e encarando o paciente como um todo e não só como um ser biológico. Paralelo a isso, a própria legislação tem evoluído para respeitar a autonomia e vontade dos pacientes, como é o caso do novo Código Civil, da lei de Transplantes de Órgãos e do Estatuto do idoso. O crescente uso de alternativas médicas às transfusões de sangue vem demonstrando que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora da realidade. De fato, a compreensão por parte da equipe médica, ao invés do combate, é o caminho para a solução. Ao passo que esses procedimentos se tornarem o padrão, esse tipo de questão deixará de ocorrer por completo. Antes de impor uma transfusão ao paciente, os médicos e os tribunais devem serenamente analisar se vale à pena passar por cima de sua consciência (a qual desfruta de proteção constitucional), o que aniquilaria sua Autonomia como paciente e ser humano deve-se levar em consideração os riscos das transfusões e o impacto emocional advindo do desrespeito à intimidade e a dignidade do cidadão. Todo profissional tem que trabalhar com a realidade de que nem sempre seus clientes concordarão com o seu modo de pensar. Este é um fato natural da vida. Por isso, é de fundamental importância que o médico tenha uma mente democrática, não levando para o lado pessoal, e ser versátil em aprimorar seus conhecimentos. Nenhum ser humano, devido seu instinto natural, deixará de agir de acordo com sua conduta interna, por força de lei. O direito positivo existe para que a sociedade viva pacificamente, mas ela nunca poderá incidir sobre o direito natural do homem. Assim sendo, esperamos que essas considerações sejam úteis para desfazer alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais cooperativa, tendo como alicerce a liberdade e a dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Parecer Jurídico, São Paulo, SP, p. 13, 23 nov. 2000. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. 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