A JUSTIÇA EM AGOSTINHO Na sua principal obra, A cidade de Deus, Agostinho estabelece uma distinção entre a cidade humana, eivada dos vícios, instabilidades e injustiças próprios dos homens, que são pecadores a partir do pecado original de Adão e Eva, e a cidade de Deus, que se estabelece na vida pós-morte, junto aos santos e salvos, e cujas marcas chegam à Terra por intermédio daqueles que Deus ungiu. Por conta dessa distinção, na Terra, sua ordem, seus arranjos sociais, sua lei e seus julgamentos são injustos, na medida da falibilidade e do pecado dos homens. Em Deus reside a justiça. A chave para o justo passa a ser, então, a fé, a justiça não dos atos, mas do íntimo do crente. Nas Confissões, no seu Livro III, são célebres as explicações de Agostinho a respeito dessa nova justiça, distinta da clássica, pois pautada pela fé: Ignorava a verdadeira justiça interior que não julga pelo costume mas pela lei retíssima de Deus Onipotente. Segundo ela formam-se os costumes das nações e dos tempos, consoante as nações e os tempos, permanecendo ela sempre a mesma em toda a parte, sem se distinguir na essência ou nas modalidades, em qualquer lugar. À face desta lei foram justos Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Davi e todos os que Deus louvou por sua própria boca.1 A justiça, para Santo Agostinho, não se vê no costume, isto é, nas ações do homem na Terra. Vê-se na lei de Deus. E, assim sendo, não é mensurável pelos atos, mas apenas pela boca de Deus. É somente assim que se sabe que Abraão e Davi foram justos. Para Agostinho, ao contrário da tradição jurídica clássica, não é possível mensurar os atos justos. Chega-se mesmo a considerar uma presunção a busca do justo pelas próprias atitudes do homem. O justo é uma graça divina. Está escrito: o justo vive da fé, porque, como ainda não vemos nosso bem, é preciso que o busquemos pela fé. O próprio bem-viver não o obtemos com nossas próprias forças, se quem nos deu a fé, que nos leva a crer em nossa debilidade, não nos auxilia a crer em nossa debilidade, não nos auxilia a crer e a suplicar. Com estranha vaidade, fizeram a felicidade depender de si mesmos aqueles que julgaram encontrar-se nesta vida o fim dos bens e dos males e, assim, radicaram o soberano bem no corpo ou na alma, ou nos dois juntos.2 Também Agostinho opera um afastamento da tradição clássica ao tratar da justiça agora como lei retíssima e eterna. Sendo expressão divina, a lei é imutável, e seus conteúdos de justiça e injustiça são os mesmos para todos os povos e tempos. Porventura a justiça é desigual e mutável? Não. Os tempos a que ela preside é que não correm a par, pois são tempos. [...] Não reparava que a justiça, a que os homens retos e santos se sujeitaram, formava nos seus preceitos um todo muito mais belo e sublime. Não varia na sua parte essencial, nem distribui e determina, para as diversas épocas, tudo simultaneamente, mas o que é próprio de cada uma delas.3 1 Santo Agostinho, Confissões. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 67. Santo Agostinho, A cidade de Deus. Petrópolis, Vozes, 2001, Parte II, p. 388. 3 Santo Agostinho, Confissões, op. cit., p. 67-68. 2 Inaugura-se, com Agostinho, uma outra visão daquilo que se possa chamar por direito natural. Para os gregos, o direito natural era a busca da natureza das coisas, flexível, histórica, social, de cada caso. Para a tradição medieval, o direito natural – se é que assim se pode chamá-lo na visão agostiniana – é um rol de regras inflexíveis, não naturais no sentido de que não se v êem na natureza nem na sociedade, mas que são oriundas do desígnio divino. Nem com a tradição estóica a visão agostiniana sobre a justiça se parece. Para Cícero, a lei natural era a mesma porque a natureza do homem é a mesma, e a razão assim também. Para Agostinho, não é a razão que alcança o justo, nem a natureza do homem, mas o desígnio de Deus, que é insondável em suas razões. O poder e a obediência Sendo a justiça uma expressão divina e os homens pecadores, as ações do homem, na Terra, são injustas. O mesmo se pode então pensar sobre as leis humanas. Por extensão, os poderes humanos são defeituosos. Isso levaria a uma insubordinação à ordem terrena, mas será justamente o contrário que proporá Agostinho. É verdade que se deva reconhecer a injustiça e a provisoriedade do mando terreno. A autoridade é injusta, porque é falível. No entanto, Agostinho reconhece que a autoridade assim o é por conta dos desígnios de Deus, restando então ao homem, temente a Deus, submissão aos poderes terrenos. Assim sendo, os homens, ainda que compreendendo que as leis humanas, por sua falibilidade, são injustas, devem a elas se submeter. As instituições são injustas, mas o seu poder, ainda assim, deve ser respeitado. Tratando dos juízes, que, humanamente, podem errar, porque a plena justiça nos julgamentos seria só divina, mesmo de tal modo Agostinho manda que julguem, para manter a ordem, pois a sociedade não pode prescindir de tal autoridade. Ainda que injustamente o tribunal se valha da tortura para arrancar a verdade do réu, a tortura é uma miséria e uma barbaridade, mas o julgamento é necessário para a manutenção da ordem social: Que dizer dos juízos que os homens fazem dos homens, atividade que já não pode faltar nas cidades, por mais em paz que estejam? Já pensamos alguma vez em quais, quão miseráveis e quão dolorosos são? [...] Nessas trevas da vida civil, juiz que seja sábio se sentará ou não no tribunal? Sentar-se-á, sem dúvida, porque a isso o constrange e obriga a sociedade humana, a qual ele considera crime abandonar. [...] O juiz sábio não se julga culpado de tantos pecados e de tão enormes males, porque não os pratica com vontade perversa, mas por invencível ignorância, e, como a isso o força a sociedade humana, também por ofício se vê obrigado a praticá-los. No caso há, por conseguinte, miséria do homem e não malignidade do juiz.4 A filosofia do direito cristã medieval, assim, finca-se num exacerbado conservadorismo, de legitimação das injustiças terrenas em razão de uma insondável vontade divina. Tal visão conservadora, impondo o respeito à ordem acima da preocupação com a justiça dos julgamentos, das distribuições e das ações, já faz de Agostinho um grande antecipador do modo de pensar moderno. 4 Santo Agostinho, A cidade de Deus, op. cit., p. 394. SÃO TOMÁS DE AQUINO No início da Idade Média, o pensamento de Santo Agostinho tornou-se doutrina imediata e oficial da Igreja para o que tange às questões de teologia e filosofia. Sua proeminência foi inabalável até a parte final da Idade Média. Não houve filosofia que rivalizasse com a agostiniana em prestígio no mundo cristão medieval. As bases para o agostinianismo estavam assentadas. Os ecos filosóficos do passado eram apenas os platônicos, ou neoplatônicos, e se ajustavam às ideias de Agostinho. Os debates medievais, durante muito tempo, ignoraram fontes filosóficas distintas. No entanto, nos séculos finais da Idade Média, o contato da Europa cristã com outras filosofias foi decisivo para uma mudança de pensamento. Por uma fase, a tentativa da Igreja foi a de perseguir e de rejeitar o aristotelismo. No entanto, ao tempo de São Tomás de Aquino (1225-1274 d. C.), então definitivamente pôs-se a Igreja a dialogar com o pensamento de Aristóteles. Será São Tomás o responsável pela grande síntese da teologia católica com o aristotelismo. A mais notável obra de São Tomás é a Suma teológica. Nesse livro, resume-se o extrato mais importante das preocupações filosóficas e teológicas da Idade Média. Sua envergadura é muito grande, lembrando também, nesse sentido, a amplitude da própria investigação aristotélica. O trabalho de São Tomás de Aquino alia, à exegese atenta das obras de Aristóteles, uma ligação direta à teologia ortodoxa. Além disso, no que tange ao método, Tomás é um expoente da escolástica. Tal escola de filosofia e teologia, no mundo medieval, representou um método particular de leitura, compreensão e exposição dos textos sagrados e das obras que gozavam de reputação e autoridade. Tomás de Aquino se vale dessa grande tradição passada como meio de argumentação. Fé e razão Num ambiente intelectual dominado pelo agostinianismo, Tomás de Aquino representou uma grande novidade intelectual. Para Agostinho, a fé é o meio fundamental de acesso à virtude e ao justo. Num contexto filosófico neoplatônico, somado à visão hebraica do pecado original, a Terra era o ambiente da corrupção dos valores e atos do homem, e a plenitude da virtude somente era posta em Deus. Tomás de Aquino, tendo em vista a tradição aristotélica das virtudes como atos do homem para com os outros, dá um passo em direção à atenuação da dicotomia entre fé e razão, consolidada já há muito no pensamento cristão. Se para Agostinho a razão era um substrato menor no concerto da salvação, sempre ofuscado pela fé e pela graça, para Tomás os atos e a razão passam a ter papel relevante. Agostinho não deixava margem à ação política e social dos homens, na medida em que lia o pecado original com tintas muito carregadas. Para ele, o homem, pecador por natureza, estava eivado de um vício mortal. Tomás de Aquino, reabilitando os atos, considera o pecado original não uma morte, mas sim uma doença, da qual se pode conseguir cura. Assim sendo, os homens não estão necessariamente condenados a produzir injustiça na vida terrena. Podem, ainda que decaídos pelo pecado original de Adão e Eva, se soerguer tanto pela graça quanto pelos atos bons e justos. Trata-se de uma debilidade, e não de uma condenação fatal: Como foi dito, o bem da natureza que diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude. Esta inclinação convém ao homem pelo fato de ele ser racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar completamente do homem que seja racional, porque já não seria capaz de pecado. Por conseguinte, não é possível que o predito bem da natureza seja tirado totalmente.5 Assim sendo, Tomás de Aquino, embora não retorne plenamente à filosofia das virtudes do mundo antigo, atenua grandemente o afastamento teológico em relação às ações do homem na sociedade. Enquanto Santo Agostinho enfatiza a fé e a graça como fontes da salvação, Tomás de Aquino, ainda que as mantendo, chama ao seu lado os atos. Para Agostinho, em se considerando uma dicotomia invencível entre a vida em Deus e a vida humana, com virtudes de um lado e vícios de outro, não havia espaço para que se pensasse a justiça como um agir do homem para com os demais. Além disso, a justiça divina era tida como um preceito da graça, revelada e alcançada apenas pela fé. No pensamento agostiniano, fé e razão estão numa relação ou de confronto ou de grande subordinação da segunda à primeira. Para Tomás, por outro lado, vislumbra-se já, a partir da relação complementar entre fé e razão, o espaço a uma racionalidade da justiça na própria ação dos homens para com os demais. O tratado das leis Em termos jurídicos, também Tomás de Aquino atenua os preceitos agostinianos. Em Agostinho, distinguiam-se a justiça em Deus e a injustiça nos homens – numa vaga relação com o mundo das ideias e o mundo sensível de uma leitura platônica. Há, assim sendo, para Agostinho, duas instâncias opostas nas quais a apreciação do justo e do injusto se dão: Deus e os homens. Embora não maniqueísta, Agostinho é dual quanto ao justo. Tomás de Aquino refina o pensamento agostiniano e o da tradição cristã medieval, trazendo-os mais próximos de Aristóteles e da base filosófica greco-romana. Sem abandonar o pressuposto da graça e da fé, Tomás insiste no fato de que há a possibilidade de o homem descobrir, na natureza, atos, comportamentos e medidas justos. Tais apreciações da natureza são mensuráveis pelo homem, mas se devem indiretamente a Deus. Assim, além dos mandamentos divinos obtidos por meio da revelação e da fé, há um espaço das leis naturais, que são divinas porque a natureza é criação de Deus, mas são passíveis do conhecimento humano. No quadro da Suma teológica, São Tomás de Aquino dedica aos assuntos da filosofia do direito duas grandes partes: - o tratado das leis (I Seção da II Parte, Questões 90 a 108) e, 5 Tomás de Aquino, Suma teológica. São Paulo, Loyola, 2005, v. IV, p. 461. - o tratado da justiça (II Seção da II Parte, Questões 57 a 80). Na primeira, dá-se a discussão sobre as específicas leis, aqui entendidas não apenas no sentido jurídico, mas, essencialmente, moral e teológico – lei eterna, lei divina, lei natural e lei positiva. Na segunda parte, então tratando especificamente do direito – que é o objeto da justiça –, Tomás de Aquino chega à questão do direito natural. A lei, para São Tomás, é uma regra e uma medida dos atos humanos. É um princípio que orienta o homem e a natureza, e, por orientar, é passível de compreensão pela razão humana. No pensamento tomista, somente se considera lei aquela ordenação que visa ao bem comum. Diferentemente dos modernos, para os quais basta a validade formal estatal para que uma lei seja assim considerada, e em consonância com o pensamento dos clássicos, em Tomás de Aquino uma lei que não é voltada ao bem comum não é lei: Portanto, é necessário que, dado que a lei se nomeia maximamente segundo a ordenação ao bem comum, qualquer outro preceito sobre uma obra particular não tenha razão de lei a não ser segundo a ordenação ao bem comum. E assim toda lei ordena-se ao bem comum.6 Tratando das leis de Deus, Tomás de Aquino expõe: A respeito da lei eterna: - que é a razão divina, transcendente, que governa o mundo. A lei eterna é praticamente ininteligível ao homem, na medida em que é da razão divina, e o homem é a ela subordinado. A lei eterna nada é senão a razão da divina sabedoria, segundo é diretiva de todos os atos e movimentos. A respeito da lei divina: - que é a regra de Deus anunciada aos homens por meio da revelação. A lei divina é um mandamento revelado ao homem, que o alcança por meio da fé. Tomados de longe, a lei eterna e a lei divina podem ser compreendidas num bloco, na medida em que ambas se distinguem das leis naturais e das leis humanas. A lei divina se manifesta como direcionamento moral e jurídico aos homens, e sua diretiva é dada por Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Ao lado desse bloco das leis eternas e divinas, inalcançáveis pela razão humana, há uma lei que se comunica com os homens a partir da própria existência natural destes. É a lei natural: - se verifica na natureza, que é obra de Deus, mas que é inteligível à razão humana. A lei natural é divina pela sua origem, mas passível de compreensão pelo homem. Por isso, como todas as coisas que estão sujeitas à providência divina, são reguladas e medidas pela lei eterna é manifesto que todas participam, de algum modo, da lei eterna. Assim, por impressão desta (lei eterna), recebemos inclinações para nossos atos e fins próprios. Isso porque como a criatura racional (homem) está 6 Ibid., p. 524. sujeita à providência divina de um modo mais excelente, o homem se torna participante da providência, provendo a si mesmo e aos outros. Portanto, no próprio homem participa da razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural (consciência) ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. [...] Daí se evidencia que a lei natural nada mais é que a participação da lei eterna na criatura racional.7 A lei natural é considerada, para São Tomás, como uma participação da lei eterna na criatura racional. Se ela é dada pela razão, mensurável pela natureza, a lei natural não é conhecida apenas pelos crentes. Qualquer ser humano, pela sua participação na natureza, dela pode extrair a lei natural. Ela também fala aos pagãos, e é então por meio dessa lei natural que o que não conhece a fé pode agir no sentido de sua salvação. A lei natural, por se encerrar na natureza, atinge tanto aos homens quanto aos animais. Nestes, a inclinação à lei natural advém do instinto. Nos homens, na sua parte animal, também o instinto inclina à lei natural. Mas, além disso, há nos homens uma inclinação racional à lei natural. Por isso ela é superiormente alcançada pela razão, e o homem se posiciona em relação à lei natural a partir de sua liberdade, porque não só pelo instinto se volta a ela. Luis Alberto de Boni expõe a questão do conhecimento da lei natural em Tomás de Aquino: Quanto ao modo como o homem chega ao conhecimento da lei natural, assemelha-se àquele pelo qual chega ao conhecimento dos primeiros princípios da razão especulativa. Não se trata de um conhecimento infuso, no sentido de inato, ou de dado ao homem por uma graça especial – algo que contraria toda a teoria tomasiana do conhecimento –, nem de um conhecimento dedutivo, o qual, a partir de umas verdades conhecidas, vai descobrindo outras. Trata-se de princípios evidentes, cuja retidão a inteligência percebe de modo imediato. Assim como a razão especulativa apreende de forma imediata que o todo é maior que a parte, ou que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, assim também a razão prática apreende que se deve fazer o bem e evitar o mal. Este é o enunciado supremo da lei natural.8 Ao contrário do que o senso muito conservador poderia entender, para Tomás de Aquino – e diferentemente de Agostinho – a lei natural pode mudar. Sendo a natureza voltada ao fim da plenitude de Deus, seu criador, essa própria natureza não está inerte. Há novos tempos, novas situações, novas demandas, e, por isso, o direito natural deve se adaptar, em grande parte acrescendo previsões novas às já consolidadas. Quanto aos seus preceitos primeiros, a natureza não muda. Quanto aos seus preceitos secundários, para Tomás de Aquino ela muda. A leitura teológica 7 Ibid., p. 531. De Boni, Luis Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2003, p. 95. 8 dos tomistas conservadores, posteriormente, interpretou a lei natural como um rol de regras preestabelecidas. O próprio Tomás de Aquino, na lembrança de Aristóteles, é mais flexível nesse ponto: Pode-se entender que a lei natural muda, de dois modos. De um modo, por algo que se lhe acrescenta. E dessa maneira nada proíbe que a lei natural seja mudada: muitas coisas, com efeito, foram acrescentadas à lei natural, úteis para a vida humana, tanto pela lei divina, quanto também pelas leis humanas. De outro modo, entende-se a mudança da lei natural a modo de subtração, a saber, de modo que deixe de ser lei natural algo que antes fora segundo a lei natural. E assim quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei da natureza é totalmente imutável. Quanto, porém, aos preceitos segundos, que dizemos ser como que conclusões próprias próximas dos primeiros princípios, assim a lei natural não muda sem que na maioria das vezes seja sempre reto o que a lei natural contém. Pode, contudo, mudar em algo particular, e em poucos casos, em razão de algumas causas especiais que impedem a observância de tais preceitos, como acima foi dito.9 Além disso, Tomás de Aquino compreende, no quadro das leis, a lei humana, positiva. Ela não é, necessariamente, algo injusto e corruptível, como o foi na visão agostiniana. O homem, embebido da fé e da razão da lei natural, pode confeccionar leis racionais, que portanto auxiliarão no bem comum, na paz e na virtude. São Tomás de Aquino, assim sendo, postula um quadro das leis partindo de três grandes quadrantes, e não mais de dois, como o fez Santo Agostinho, que tratava apenas das leis de Deus, justas, e dos homens, injustas. Para Tomás, há três grandes tipos de leis. As leis criadas por Deus são de dois tipos: eternas/divinas e naturais. As primeiras são objeto de fé, reveladas e sabidas por meio da graça. A razão não as alcança plenamente. Mas as leis naturais são leis passíveis da descoberta racional pelos homens. Além disso, há as leis humanas, positivas, que, podendo se orientar pelas leis naturais e pela revelação, não hão mais de ser consideradas necessariamente injustas, como era a previsão agostiniana. O tratado da justiça Ao lado das leis, há a questão da justiça, cujo objeto específico é o direito. Tomás de Aquino segue em linhas gerais, a esse respeito, o pensamento de Aristóteles na Ética a Nicômaco. A justiça será por ele considerada o bem do outro, e sua manifestação específica é distributiva e retributiva. Nesse ponto, Tomás de Aquino ressalta o caráter casual e não taxativo do direito natural. Não é um direito cerebrino nem extraído diretamente da teologia. É aprendiz da natureza. O justo natural, que deveria ser por excelência o método do jurista, é a observação do que é da natureza, dele concluindo objetivamente as consequências, ou então lhe extraindo as melhores conveniências: Como se disse, o direito ou o justo natural é o que, por natureza, é ajustado ou proporcional a outrem. Ora, isso se pode dar de duas maneiras: primeiro, segundo a consideração absoluta da coisa em si mesma. Assim, o macho, por natureza, está adaptado à fêmea para dela gerar filhos; e o pai, ao filho, para que o nutra. – Segundo, algo 9 Tomás de Aquino, Suma teológica, op. cit., v. IV, p. 569. é naturalmente adaptado a outrem, não segundo a razão absoluta da coisa em si, mas tendo em conta as suas consequências: por exemplo, a propriedade privada. Com efeito, a considerar tal campo de maneira absoluta, nada tem que o faça pertencer a um indivíduo mais do que a outro. Porém, considerado sob o ângulo da oportunidade de cultivá-lo ou de seu uso pacífico, tem certa conveniência que seja de um e não de outro, como o Filósofo o põe em evidência.10 Em pleno século XIII, Tomás de Aquino mantém, com o resgate de Aristóteles, a sua ideia de direito natural como distribuição do justo entre os iguais. O pensamento tomista abre espaço à razão e aos atos justos, sob a égide de um direito natural, ainda que mantenha, coroando o sistema do direito e do justo, o mando divino. Por isso, em termos de filosofia do direito, o tomismo é uma abertura em relação ao agostinianismo, na medida em que permite ao homem, novamente, conhecer a medida do justo. Mas é uma abertura parcial, porque mantém o sistema jusfilosófico sob a égide teológica. Numa posição mais alta que a razão ainda está a fé, ainda que a fé não negue nem se oponha à razão, já que esta é serva daquela. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA De Boni, Luis Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2003, p. 95. SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Parte II. Petrópolis, Vozes, 2001. ___________________. Confissões. Petrópolis, Vozes, 2001. TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo, Loyola, 2005. v. IV. __________________ . Suma teológica. São Paulo, Loyola, 2005. v. VI. 10 Tomás de Aquino, Suma teológica. São Paulo, Loyola, 2005, v. VI, p. 50.