Manifestações Clínicas de Fibrose Cística entre Pacientes

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Pneumologia
Manifestações Clínicas de
Fibrose Cística entre Pacientes
Diagnosticados na Vida Adulta
Profa. Dra. Neiva Damasceno*
F
* Professora Assistente de
Pneumologia Pediátrica da
Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia de São Paulo.
Coordenadora do Serviço de
Referência de Fibrose Cística
da mesma instituição e VicePresidente do Grupo Brasileiro
de Estudos da Fibrose Cística.
ibrose cística (FC) é a doença genética
tras e clínicos. Quase todos os indivíduos do
recessiva mais comum em caucasianos,
sexo masculino pós–púberes têm azoospermia
com uma incidência de 1 para 2.500
obstrutiva, 85% a 90% de todos os pacien-
nascimentos, porém variável de acordo com a
tes diagnosticados apresentam insuficiência
região demográfica. No Brasil, pelos resultados
pancreática exócrina e aproximadamente
da triagem neonatal que vem ocorrendo nos
98% apresentam valores de cloro elevados
Estados de Santa Catarina, Paraná e Minas
no suor.
Gerais, tem-se encontrado incidência de 1
Em geral, os critérios para o diagnóstico de
recém-nascido em 9.500 nascimentos. É possí-
FC são claros, sintomas clínicos consistentes
vel que a incidência seja maior nos Estados com
com FC em pelo menos um sistema de órgãos
maior população de origem européia e menor
(tabelas 2 e 3) e a demonstração da disfunção da
nos com maior população de origem africana
proteína CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane
e miscigenada, mas pelos dados disponíveis
Conductance Regulator).
até o momento não foi observada diferença
na incidência.
A disfunção da CFTR pode ser demonstrada por um dos quatro métodos: cloro no
É essencial que a doença seja prontamente
suor elevado (> 60 mmol/L), presença de duas
reconhecida para evitar exames desnecessários,
mutações CFTR conhecidas associadas à
proporcionar intervenção terapêutica adequada,
disfunção da proteína CFTR ou evidência de
aconselhamento genético, assegurar acesso aos
serviços especializados, programa de medicamentos e melhor prognóstico.
O diagnóstico clássico de FC é sugerido por
características fenotípicas e confirmado pela
demonstração de concentrações elevadas de
eletrólitos no suor (tabela 1).
As características clássicas: doença sinusopulmonar, insuficiência pancreática, infertilidade
masculina e níveis elevados de eletrólitos no
suor são conhecidas pela maioria dos pedia-
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Tabela 1. Critérios para o diagnóstico de FC
• Uma ou mais características fenotípicas
• História de FC em irmão ou screening neonatal
e
• Evidência laboratorial de disfunção CFTR documentada
por teste do suor com eletrólitos elevados
ou
• Identificação das mutações em cada gene ou
• Demonstração das anormalidades características no
transporte iônico através do epitélio nasal
FC atípica – comumente possuem mutações ainda
não identificadas ou incomuns na população
Tabela 2. Características fenotípicas
Tabela 3. Características fenotípicas
• Doença sinopulmonar crônica manifestada por:
- Infecção/colonização persistente por
patógenos típicos da FC:
Staphylococcus aureus, Haemophilus
influenzae não tipável, Pseudomonas
aeruginosa mucóide e não-mucóide e
Burkholderia cepacia
- Tosse crônica e produção de escarro
- Anormalidades persistentes na radiografia
de tórax (bronquiectasias, atelectasias,
infiltrados e hiperinsuflação)
- Obstrução aérea manifestada por sibilos e
aprisionamento de ar
- Pólipos nasais e RX ou CT com
anormalidades dos seios paranasais
- Baqueteamento digital
• Anormalidades nutricional e gastrintestinal
incluindo:
- Síndrome de obstrução intestinal distal
(DIOS) e prolapso retal
- Insuficiência pancreática e pancreatites
recorrentes
- Doença hepática crônica manifestada por
evidência clínica ou histológica de cirrose
biliar focal ou cirrose multilobular
- Má nutrição protéico-calórica,
hipoproteinemia e edema e complicações
secundárias a deficiência de vitaminas
lipossolúveis
- Síndromes de perda de sal: depleção de sal
aguda e crônica e alcalose metabólica
- Anormalidades urogenitais levando a
azoospermia
grau de disfunção na proteína CFTR, assim
como da sensibilidade do órgão a esta
disfunção.
O comprometimento de órgãos também é variável, assim como a gravidade
da doença pulmonar, freqüência de complicações e idade em que ocorre a morte.
O fenótipo pulmonar parece ser o mais
influenciado por uma combinação do genótipo CFTR, fatores ambientais e genes
modificadores (tabela 4).
Na maioria dos diagnósticos de FC,
70% ocorrem no 1º ano de vida, 8% após
os dez anos e há um número crescente de
diagnósticos na idade adulta. Com isto e a
melhora na expectativa de vida, em 2000
os dados da Fundação Americana de FC
Tabela 4. Correlação genótipo CFTR – Fenótipo na fibrose cística
mostraram que 40% dos pacientes tinham
2 Mutações graves
1 Mutação grave - 1 Mutação leve
Idade ao diagnóstico
Precoce (< 1 ano)
Tardia (> 10 anos)
Fenótipo pancreático
Insuficiente
Suficiente
Entre os adolescentes e adultos,
Comum (20-30%)
Ausente
muitos têm história típica (respiratória e
Fenótipo pulmonar
Variável
Variável
gastrintestinal leves) desde a infância e
Níveis de cloro no suor
Elevados
Limítrofes ou pouco elevados
Fertilidade masculina
Nenhuma
Possível
Íleo meconial
idade superior a 18 anos (fig. 1).
freqüentemente associada a pouco crescimento. Em alguns, os sintomas pulmonares podem ser a primeira manifestação
anormalidade no transporte iônico por
clássica ou atípica para descrever qualquer
quantificação direta com a medida da
indivíduo com suficiência pancreática é
diferença de potencial nasal e demons-
após os 13 anos.
O diagnóstico de FC em adultos ocorre
predominantemente em uma minoria de
incorreto.
A FC exibe extensa variabilidade feno-
pacientes que são suficientes pancreá­
típica e pode ter apresentações diferentes
ticos e que não apresentam sintomas
Entretanto, o reconhecimento cres-
e iniciadas em idades precoce ou tardia,
respiratórios ou estes são leves durante a
cente de casos atípicos de FC em adoles-
dependentes da mutação genética e seu
infância (fig. 2).
tração da atividade da proteína CFTR em
biópsia de epitélio retal.
centes e adultos com acometi-
FC deve ser considerada
mento de um ou dois sistemas
em pacientes adultos que
de órgãos e confirmados não
apresentam crises freqüentes
apenas por valores elevados
ou recorrentes de asma ou
de cloro, mas pelos outros
bronquite com tosse produtiva
métodos citados, tem pos-
e de difícil controle. Alguns
sibilitado que muitos clínicos
adultos com FC apresentam
estabeleçam o diagnóstico
sintomas respiratórios das
nesta faixa etária.
vias aéreas superiores mais
O uso do termo FC não
proeminentes, como sinusite
recorrente e/ou polipose nasal
Figura 1. Sobrevida da
população FC adulta
(Fundação Americana)
(fig. 3). Freqüentemente os
sintomas são leves e respondem bem ao tratamento, mas
Prática Hospitalar • Ano IX • Nº 53 • Set-Out/2007 219
recorrem com mais freqüência do que
seria esperado. É comumente o grupo
de pacientes com FC não clássica que
oferece a maior provocação diagnóstica
aos médicos pediatras e clínicos.
Embora a definição de FC não clássica
possa ser revista futuramente, o grupo é
descrito como indivíduos que apresentam
um fenótipo FC em pelo menos um órgão
e têm valores do íon cloro normal ou
limítrofe. Baseado nos dados do registro
americano de FC, aproximadamente 2%
dos pacientes preenchem os critérios
para o diagnóstico de FC não clássica.
Isto pode subestimar a prevalência real,
assim como um significante número de
indivíduos com FC não clássica permanece
A confirmação do diagnóstico
pode requerer detalhada
avaliação laboratorial e
análise genética de mutações
ou encaminhamento para
serviço especializado em FC
para quantificação da função
da proteína CFTR através
da medida da diferença de
potencial elétrico nasal ou
biópsia retal
Em geral, nesse grupo os indivíduos
e freqüentemente apresentam doença
pulmonar mais leve. Ocasionalmente, os
homens podem ser férteis.
Alternativamente, FC não clássica
pode ter apresentação na qual apenas um
sistema de órgão apresenta um fenótipo
FC óbvio.
Pacientes com FC não clássica possuem duas mutações CFTR, pelo menos
uma dela é comumente uma mutação leve,
Figura. 2. Paciente com sintomas
respiratórios diagnosticados como asma na
infância e FC aos 26 anos com CT de tórax
evidenciando extensas lesões.
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da proteína CFTR.
Na apresentação denominada de
atípica ou não clássica, os indivíduos apresentam um fenótipo FC em pelo menos
um sistema de órgãos e têm testes do
suor normal (< 40 mmol/L) ou “limítrofe”
(40-60 mmol/L). Nestes pacientes predomina uma única característica clínica, isto
é, anormalidades eletrolíticas, pancreatites,
doença hepática, sinusite ou azoospermia
obstrutiva.
Isto comumente dificulta o reconhecimento e o diagnóstico. Tais pacientes
são freqüentemente diagnosticados em
idade tardia. Se eles apresentam alguma
combinação de doença pulmonar, infecção
por Pseudomonas, doença pancreática
sem diagnóstico.
tendem a ser suficientes pancreáticos
resultando em expressão e função parcial
Tabela 5. Avaliação clínica de casos FC
não clássicos
ou infertilidade masculina, o diagnóstico
• Microbiologia do trato respiratório
• Avaliação de bronquiectasias (rX, CT).
• Avaliação dos seios paranasais (rX, CT).
• Avaliação da estrutura e função pancreática
• Avaliação do trato genital masculino
- Análise do sêmen
- Exame urológico
- USG
- Exploração escrotal
• Exclusão de outros diagnósticos
- Estrutura ciliar e função
- Estado imunológico
- Alergia
- Infecção
* Pesquisa das mutações CFTR
* Medida da diferença de potencial elétrico nasal
* Biópsia retal
do teste do suor com eletrólitos normal
será freqüentemente reconhecido apesar
ou limítrofe.
A confirmação do diagnóstico pode
requerer detalhada avaliação laboratorial
e análise genética de mutações ou encaminhamento para serviço especializado
em FC para quantificação da função da
proteína CFTR através da medida da diferença de potencial elétrico nasal ou biópsia
retal (tabela 5). Infelizmente, estas análises
ainda não são rotineiramente disponíveis
em nosso meio.
Figura 3. Sinusopatia em adolescente FC.
Pneumologia
Na Santa Casa de São Paulo, dos 120
pacientes em seguimento, 22% têm mais
que 18 anos, com idade média de 25,4
anos. O diagnóstico foi estabelecido após
os 18 anos em apenas cinco pacientes e
em quatro deles a confirmação ocorreu
através da concentração elevada do íon
Infecções por micobactérias atípicas
Pancreatite recorrente
em indivíduos adolescentes e adultos
idiopática é outra
como manifestação inicial que conduziu
manifestação clínica que pode
conduzir ao diagnóstico de FC
ao diagnóstico FC têm sido relatadas na
literatura e em nosso serviço.
A importância clínica de rotular-se indivíduos que apresentam doença limitada e
cloro no suor, forma clássica, o que su-
não clássica. Alguns estudos
gere haver subdiagnóstico dos casos não
têm determinado que 10% a
como FC não clássica permite identificar
20% destes indivíduos possuem
de risco para expressão da doença em
clássicos.
Ausência congênita bilateral de vasos
deferentes (ABVD) acontece em apro-
valores de cloro no suor normal ou limítrofe
um grupo de pacientes que pode ser
duas mutações CFTR
múltiplos sistemas de órgãos e que se be-
infertilidade masculina. Alguns estudos
e pelo menos uma
da doença pulmonar. Também auxilia no
sugerem que cerca de 50% destes indi-
delas é invariavelmente uma
aconselhamento genético e o “rótulo de
mutação leve. Na maioria
no entendimento de que seu curso clínico
destes, a pancreatite
da informação pública disponível não se
ximadamente 1% a 2% dos casos de
víduos possuem duas mutações CFTR,
sendo que uma delas é comumente uma
mutação leve. A maioria destes indivíduos
pode ter valores de cloro no suor normal ou
limítrofe. Existem evidências de que uma
proporção significativa destes indivíduos
neficiarão do monitoramento subseqüente
FC não clássica” pode ajudar os pacientes
é diferente da FC clássica e que muito
aplica a eles. t
é o único sintoma FC
tem doença sinusopulmonar leve, en-
bronquiectasia idiopática. Embora estas
quanto outros apresentam ABVD apenas
doenças pareçam ser influenciadas pela
e, talvez, futuramente sejam classificados
função alterada da proteína CFTR, elas são
em outra categoria.
muito influenciadas por fatores ambientais
Pancreatite recorrente idiopática é
e outros genes não CFTR.
outra manifestação clínica que pode con-
Indivíduos com FC são de risco para
duzir ao diagnóstico de FC não clássica.
ABPA, com 5% a 10% desenvolvendo
Alguns estudos têm determinado que 10%
esta complicação durante o curso de sua
a 20% destes indivíduos possuem duas
doença. Uma associação entre ABPA e
mutações CFTR e pelo menos uma delas
mutações CFTR tem sido descrita em
é invariavelmente uma mutação leve. Na
indivíduos sem FC, sendo relatada a
maioria destes, a pancreatite é o único
freqüência de 12,5% e 28,5% em dois
sintoma FC.
estudos isolados. Nenhum dos pacientes
Outras características variam entre
tinha duas mutações CFTR.
indivíduos, mas a maioria tem cloro no suor
Rinossinusite crônica em paciente
normal ou limítrofe e anormalidades na
não FC também tem sido associada a
medida de diferença de potencial elétrico
mutações CFTR, embora a prevalência
nasal e pouca ou nenhuma evidência de
encontrada tenha sido baixa, 7% em um
doença pulmonar.
estudo e 12% em outro, sugerindo que o
Outras doenças não preenchem os cri-
seu desenvolvimento seja multifatorial.
térios diagnósticos para FC, mas estão as-
Bronquiectasia idiopática é outra
sociadas com mutações CFTR e têm sido
entidade de doença em que vários in-
denominadas de “doenças relacionadas à
vestigadores têm associado à disfunção
CFTR”, e incluem aspergilose broncopul-
CFTR, porém os dados disponíveis até o
monar alérgica (ABPA), sinusite crônica e
momento são discrepantes.
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Endereço para correspondência:
R. Martinico Prado, 106 - apto 111 Higienópolis - CEP 01224-010
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