As influências do iluminismo-racionalista no direito

Propaganda
AS INFLUÊNCIAS DO ILUMINISMO-RACIONALISTA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL
THE INFLUENCES OF THE ILUMINIS-RATIONALIST IN CIVIL PROCEDURAL
Cristiano Becker Isaia
Jênia Maria Lopes Saldanha
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo investigar a fixação da processualística (civil) clássica na busca pelo
encontro de certezas e verdades, local habitado pelo juiz solipsista, cuja solidão se manifesta diante do
(complexo) binômio neutralidade-protagonismo. Como o modelo de processo civil de que se dispõe
atualmente encontra-se num evidente déficit de realidade, é preciso repensar a atividade processual para
fazer cumprir a Constituição. Dessa forma, esse direito processual civil adstrito ao espírito dogmático,
distante das ciências da compreensão, deve dar lugar a um re-pensar da atividade cognitivo-processual. Um
novo exercício jurisdicional que não renuncie à historicidade, à própria hermenêutica (enquanto atividade
compreensiva). Por isso é preciso compreender quais os principais elementos filosóficos e políticos que
representa(ra)m os ideais de um processo focado na satisfação do binômio certeza e segurança e que
continua a buscar, em pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que se expressa enquanto meio
transformador da realidade, o desvelar (ficcional) de verdades eternas.
PALAVRAS-CHAVES: processo civil – iluminismo – racionalismo
ABSTRACT
This study aims to investigate the establishment of processualistic (civil) classic encounter in the quest for
certainty and truth, a place inhabited by the judge solipsist, whose loneliness is against the (complex)
binomial neutrality-role. As the model of civil procedure that is available today is a clear deficit of reality,
we must rethink the judicial activity to enforce the Constitution. Thus, the civil procedure attached to the
dogmatic spirit, far from the science of understanding, should lead to a re-think of cognitive activityprocess. A new exercise jurisdiction that does not renounce the historicity, the hermeneutic (as
comprehensive activity). So you must understand that the main philosophical and political elements
representing (ra) m the ideals of a process focused on the satisfaction of the relation between certainty and
security and continues to seek, in the XXI century, and before a state paradigm that expressed as a means of
transforming reality, the unveiling (fictional) of eternal truths.
KEYWORDS: procedural – iluminis – rationalist
As influências do iluminismo-racionalista no direito processual civil
The influences of the iluminis-rationalist in civil procedural
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo investigar a fixação da processualística (civil)
clássica na busca pelo encontro de certezas e verdades, local habitado pelo juiz
solipsista, cuja solidão se manifesta diante do (complexo) binômio neutralidade-
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7530
protagonismo. Como o modelo de processo civil de que se dispõe atualmente
encontra-se num evidente déficit de realidade, é preciso repensar a atividade
processual para fazer cumprir a Constituição. Dessa forma, esse direito processual
civil adstrito ao espírito dogmático, distante das ciências da compreensão, deve dar
lugar a um re-pensar da atividade cognitivo-processual. Um novo exercício
jurisdicional que não renuncie à historicidade, à própria hermenêutica (enquanto
atividade compreensiva). Por isso é preciso compreender quais os principais
elementos filosóficos e políticos que representa(ra)m os ideais de um processo
focado na satisfação do binômio certeza e segurança e que continua a buscar, em
pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que se expressa enquanto meio
transformador da realidade, o desvelar (ficcional) de verdades eternas.
Palavras-chave: processo civil – iluminismo – racionalismo
Abstract
This study aims to investigate the establishment of processualistic (civil) classic
encounter in the quest for certainty and truth, a place inhabited by the judge
solipsist, whose loneliness is against the (complex) binomial neutrality-role. As the
model of civil procedure that is available today is a clear deficit of reality, we must rethink the judicial
activity to enforce the Constitution. Thus, the civil procedure attached to the dogmatic spirit, far from
the science of understanding, should lead to a re-think of cognitive activity-process. A new exercise
jurisdiction that does not renounce the historicity, the hermeneutic (as comprehensive activity). So you
must understand that the main philosophical and political elements representing (ra) m the ideals of a
process focused on the satisfaction of the relation between certainty and security and continues to seek,
in the XXI century, and before a state paradigm that expressed as a means of transforming reality, the
unveiling (fictional) of eternal truths.
Keywords: civil procedural – iluminis – rationalist
Introdução
O direito processual civil, que ao longo dos séculos foi alvo das inúmeras transformações jurídicopolítico-filosóficas enfrentadas pelo Direito e pelo Estado, tem a contribuir com o ideário almejado pelo
Estado Democrático de Direito. Na transformação de uma sociedade complexa e na construção de uma
situação de igualdade à comunidade. Teoricamente (procedimentalmente) estruturado a servir como
instrumento de satisfação do direito material, inicialmente como sua parte integrante, veio a se tornar
autônomo no século XIX, com Oskar Vön Bülow.
De outro lado a Jurisdição, principalmente a partir do segundo pós-guerra, acabou por assumir uma
função essencial na busca dos direitos abnegados pelo positivismo jurídico[1], comprometendo-se
medularmente com um agir judicial de nítida neutralidade (já que declaratório), o que se deve
principalmente às filosofias do racionalismo do século XVII e aos movimentos políticos que deram suporte
à construção do Estado Liberal e sua teoria da separação dos poderes.
Entretanto, em pleno século XXI, local onde a Constituição definitivamente deve servir como pauta
interpretativa ao Direito, o que também incluiu o processo civil, tem o processo um lugar a assumir diante
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7531
da contingência social. Hoje é possível afirmar que o exercício meramente declaratório na atividade judicial
acaba se mostrando incapaz em atender a satisfação dos direitos sociais-fundamentais previstos na
Constituição. O mesmo se pode dizer em relação ao protagonismo do juiz, que em processo civil remonta a
Oskar Vön Bülow e a construção das teorias inerentes ao direito de ação processual. Ambas as posturas
contrariam o Estado Democrático de Direito, que deseja um Judiciário efetivo é verdade, mas também
consciente e responsável.
Assim, para romper com a função eminentemente declaratória presente na atividade jurisdicional,
visando também coibir a prática de decisionismos pelos juízes, buscando reconstruir um processo civil que
diante de uma sociedade[2] complexa deve funcionar de uma maneira acessível e eficaz, mostra-se
necessário aproximar a Jurisdição ao próprio fato/direito submetido em juízo. Não se trata de uma missão
qualquer, haja vista a histórica e inegável relação do processo como meio de acesso a “verdades” e
“certezas”, alcançáveis a partir da relação entre a “consciência” do juiz e o objeto a investigar.
Uma relação que manteve o processo civil diante do próprio esquema sujeito-objeto da filosofia da
consciência. Veja-se que essa é a razão maior para a concentração da processualística clássica no
procedimentalismo, no método. É a causa do déficit de realidade de que faz parte o processo civil de que se
dispõe atualmente, embebido por um solitarismo judicial que se deflagra nas mais variadas situações do
mundo jurídico-processual. O que dizer dos poderes conferidos ao relator (art. 557, Código de Processo
Civil), dos recursos repetitivos (art. 543-C), das sentenças liminares de improcedência (art. 285-A), dentre
outros vários exemplos do que estamos a tratar?
Por isso uma releitura do direito processual civil é necessária. Seu comprometimento com o
liberalismo e com a ideologia da ordinariedade, o que remonta ao direito processual civil romano tardio,
deve dar lugar a um novo modelo capaz de garantir efetividade principalmente aos direitos sociaisfundamentais previstos na Constituição.
A condição de possibilidade para que se alcance esse desiderato está em não renunciar a história. E
essa não-renúncia relaciona-se a necessidade de se compreender hermeneuticamente o direito processual
civil. Por isso o objetivo deste trabalho guarda relação à investigação dos principais movimentos que
condicionaram os rumos do processo de que se dispõe na atualidade, principalmente os relacionados à
fixação do mundo jurídico pelo vetor “segurança” jurídica e sua sedução pela matematização (ou
geometrização). É isso que será aprofundado nas linhas que seguem, para ao final propormos um
rompimento a esse modelo, onde o processo civil seja afinal compreendido enquanto local de manifestação
da democracia.
1. O predomínio do vetor segurança sobre o vetor justiça na formação do espírito científico moderno e
seus reflexos no direito processual civil
O problema relacionado ao que se referiu nas linhas acima está no fato de que a processualística
jamais se preocupou em pensar o processo civil hermeneuticamente (já que apostou no solipsismo judicial),
o que o levou a um distanciamento em relação ao direito subjetivo material (e Constitucional), a uma
blindagem capaz de afastá-lo do caso concreto. Acabou, a processualística, por afastar-lhe dos demais
sistemas que estão ao seu entorno, dentre os quais o constitucional, civil, tributário, o que se deve
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7532
principalmente às pesquisas do processualista alemão Adolf Wach, para quem haveria a possibilidade de se
buscar em juízo algo não tecnicamente respaldado pelo direito positivo material, mas, v.g., simplesmente
uma declaração de que nada era devido ao suposto titular de um interesse reconhecido juridicamente.[3]
Nesse viés, a existência de uma relação jurídica processual independente da relação jurídica de
direito material passou a ser evidenciada e sobrelevada pelo processualismo, premissa que levou Chiovenda,
corifeu da doutrina processual italiana, a sustentar ser a “ação” processual um direito de natureza potestativa
através do qual a vontade da lei se realiza no caso concreto. A partir de então a própria subsistência do
direito material passaria a estar em jogo, pondo em causa a possibilidade mesma de seu sentido.[4]
A aposta na atividade jurisdicional como desveladora do sentido único da lei levaria o intérprete a
ignorar que sociologicamente o Direito deveria acompanhar a complexidade estrutural, dimensional e
intencional das sociedades atuais. Ao contrário, revelou um Direito normativamente inadequado (diante do
surgimento dos direitos de segunda, terceira, etc., dimensão) e institucionalmente ineficiente (na própria
capacidade institucional de resposta pelo Poder Judiciário)[5] à satisfação dos interesses do povo.
Atualmente, a possibilidade do referido quadro (onde o processo está inserido dogmaticamente) se
alterar, ao menos no que se refere ao direito processual civil, perpassa, inevitavelmente, por uma nova
compreensão de processo que rume à aproximação do plano fático, do plano do direito material
(constitucionalizado) ao plano processual, o que inevitavelmente trará segurança àquele que se socorre do
processo.
Não uma segurança standartizada, marca de um processualismo que idolatra súmulas vinculantes,
julgamentos de “reprodução” (o que pode facilmente ser encontrado no código de procedimento civil, em
especial no art. 285-A e 543-C), impedimentos recursais alicerçados na “jurisprudência dominante” dos
Tribunais (ver, para tanto, o teor do artigo 518, §1º, do código de procedimento), dentre outros. Mas uma
segurança que seja efetivamente construída em cada processo. Que parta do pressuposto de que naquele
caso concreto o Poder Judiciário haverá de se aproximar das partes, da própria sociedade.
Responsabilizando-se eticamente pelas conseqüências de seus pronunciamentos.
Isso pode ser obtido de várias formas, dentre as quais, v.g., o reconhecimento e aplicabilidade de
ações de natureza sumária e especial[6] dotados de sistemas antecipatórios e de execução diferenciada
(refugindo à forma clássica definida pelo art. 475-I do CPC), de forma principalmente a profanar a
ordinarização que se sacralizou perante a doutrina processual civil a partir do legado jurídico-romano-tardio,
o qual observava a Jurisdição como uma atividade reduzida à prolação de sentenças declaratórias.
Esta é a roupagem que reveste o processo. Entretanto, o necessário acoplamento entre as estruturas
de seu sistema e do direito material pode ser obtido quando superarmos a falsa idéia (sustentada pela
corrente monista de processo) de que só há direito quando o juiz diz que há.[7] Daí que o presente trabalho
parte do pressuposto (percorrendo o caminho inverso ao da subsunção) que em processo civil o que
realmente interessa é a observação (numa linguagem sistêmica) ou a compreensão (numa linguagem
hermenêutica) do fato submetido a juízo, ciente de que se a significação fática varia em cada contexto onde
é trabalhada, a clausura em-si-mesmada do processo acaba sendo um obstáculo complicado para uma
“ciência processual” que atualmente depende da consolidação de um aporte teórico suficiente a relacioná-la
a outros elementos. A Constituição, por exemplo.
Logo, não é mais possível, em pleno século XXI, observar o processo civil somente enquanto
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7533
processo civil. É necessário que este seja observado diante de outras áreas do conhecimento, de outros
sistemas. É fundamental imbricá-lo ao sistema da sociedade! Ao sistema de uma sociedade complexa! A
questão está em que o campo temático do processo não é (não pode ser!) limitado a si mesmo. É
absolutamente dependente de outros sistemas, tendo reflexos extremamente relevantes perante a sociedade.
O próprio procedimento reflete no social. A morosidade processual e o descrédito para com o Poder
Judiciário são exemplos disso.
O direito processual civil não pode mais limitar-se a uma atuação operacionalmente fechada. Deve
abrir-se a operações cognitivas, que certamente demonstrarão que o processo também deve trabalhar com
algo que não é processo. Esse inter-relacionamento não é tarefa fácil, ainda mais quando toda uma
processualística está inserida numa tradição que “analisa” o direito processual como algo que se basta.[8]
Por isso, não se mostra mais possível, na chamada pós-modernidade[9], pensar a Jurisdição como o fez o
modelo liberal de Estado, influenciado pelas filosofias iluministas do século XVII através de um modo de
produção do conhecimento que objetivava “certezas absolutas”, a partir de “demonstrações lógicas”[10], na
proteção unicamente aos direitos de liberdades de contratos e na propriedade individual.[11]
A Jurisdição do século XXI deve se adaptar às exigências de uma sociedade que, como alerta
Chevallier, entrou numa nova fase, em que se mostram perturbados os equilíbrios sociais diante da
ocorrência de revoluções tecnológicas, das mutações do sistema produtivo e das transformações da
estratificação social.[12] Nesse talante, o presente trabalho pretende demonstrar que a sobreposição da
razão, pelo homem, como meio de acesso às verdades absolutas (ideário do iluminismo), influenciou
diretamente tanto o Direito quanto o processo civil, confinando os juristas a um mundo jurídico totalmente
desvinculado do mundo da vida, do mundo social.
Castanheira Neves leciona que a razão moderna levou o jurídico não mais a um mundo de soluções
normativas para problemas práticos concretos, individualizados em sua problematicidade, mas a um sistema
racionalmente normativo. Um “platonismo de regras” relacionado a uma sistematicidade normativoprescrita a-concreta, antecipada e logicamente construída, onde as soluções para os problemas em Direito
haveriam de estar previamente previstas e deveriam corresponder à prática do dedutivismo-lógico
(subsunção) mediante uma redução sistemático-conceitual.[13]
Este é o terreno fértil para o desenvolvimento do positivismo jurídico, que a partir do positivismo
sociológico comteano desenvolveu-se cientificamente, vinculado à necessidade de segurança da sociedade
burguesa. Se o Ancien Regime enfraqueceu a justiça através de um imensurável uso do poder da força, fezse necessária a criação de uma sistematização jurídica que imporia aos juristas a valorização da lei. A partir
de então, refere Ferraz Júnior, a tarefa do jurista passou a recair na “teorização e sistematização da
experiência jurídica, em termos de uma unificação construtiva dos juízos normativos e do esclarecimento
dos seus fundamentos”.[14]
Conseqüentemente, o predomínio do vetor segurança sobre o vetor justiça condicionou a formação
do espírito científico moderno, submetendo o pensamento jurídico a métodos e a princípios das ciências
lógico-experimentais, ensejando, num movimento constante e gradativo, o início da era das
codificações[15], onde o que realmente importava era a satisfação das leis do Estado, independentemente de
eventuais injustiças, até mesmo porque o Direito se traduziria na expressão da vontade do soberano. Um
mundo de conceitos e proposições jurídicas em-si-mesmadas, dando continuidade à tradição jusnaturalista e
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7534
a idéia de sistema enquanto método, onde o ser dos entes adviria do próprio texto positivado, desvelando-se
pela prática da subsunção e seu estabelecimento das premissas maior (lei) e menor (caso concreto).
A sede do iluminismo-racionalista pelo método (próprio das ciências lógicas) acabou por pretender
descobrir um Direito em fases (interpretação-compreensão-aplicação), de forma que contivesse a exatidão
de uma equação algébrica, contribuindo ao predomínio do valor segurança (certeza), que por sua vez é o
elemento preponderante na formação do conceito moderno de Direito.[16] Conseqüentemente, o processo e
a própria atuação jurisdicional passaram a ser guiados por essa ideologia.
Assim, ao crerem que a lei – obra de exclusividade do legislador – seja análoga às proposições
matemáticas, os juízes atingiram a tranqüilidade de consciência, o que lhes permitiu (e ainda permite!) a
ilusão de se manter irresponsáveis.[17] Quanto ao processo civil, o método exigiu pensá-lo como uma
equação algébrica que somente admitisse um resultado certo, uma verdade, que naquele caso seria absoluta.
Observe-se a filiação do processo civil ao método subsuntivo-dedutivo, próprio do positivismo
jurídico do século XIX, acabou sedimentando a criação de códigos de procedimento que “sofisticaram-se” a
estimular o jurista a percorrer um caminho que partiria da verificação das proposições jurídicas para assim
alcançar os fatos concretos, como se o processo fosse constituído por um sistema jurídico perfeito e
acabado, onde o teórico procura ordenar os fenômenos a partir da utilização de conceitos que o “mundo
jurídico” lhe oferece.
Nesse diapasão, se a constituição do processo de conhecimento, na forma como estruturado nos dias
de hoje, deita suas raízes no fenômeno da ordinarização procedimental, fruto do legado justinianeu na
elaboração de uma atividade judiciária limitada à declaração de direitos, também o tem na construção do
conceito moderno de Estado calcado nas filosofias do século XVII e no movimento positivista do século
XIX. Estes, ao plenipotencializarem o ideal segurança, acabaram por apostar suas fichas numa Jurisdição
neutra, donde decorre que o sentido da lei deve ser unívoco, cabendo ao juiz, dispensada a
interpretação[18], declará-lo na sentença. São justamente tais elementos que serão investigados nas linhas
que seguem.
2. A filosofia do racionalismo e suas conseqüências à Jurisdição e ao processo: o Direito seduzido pelo
“método” dedutivo (e pela matematização) e a ficcionalização do texto legal (conceitualismo) na
previsão de “todas” as hipóteses aplicativas
A leitura do direito processual civil a partir da influência do pensamento racionalista presente no
século XVII consiste num legado extremamente rico deixado pelo jurista Ovídio Baptista. Como poucos, o
referido processualista teve a perspicácia de observar a necessidade de investigar o processo civil para além
do dogmatismo, buscando os elementos necessários para diagnosticar as razões pelas quais as estruturas do
procedimento (ordinário) ainda impõem ao juiz a autorização ao julgamento da contenda que se lhe
apresenta somente após ampla discussão probatória (e contraditório prévio). Consoante o ideal racionalista,
isso traria “segurança” ao julgador.
Seria o processo de conhecimento, para o saudoso professor, enraizado com a exigência de que a
verdade proclamada depois de um amplo debate judicial adviria de um juízo de certeza[19]. Um
“instrumento” capaz de abrigar essa espécie de filosofia política, que possui na ideologia da separação dos
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7535
poderes sua base de sustentação. [20]
Veja-se que a verificação do nascimento de uma “ciência” processual civil comprometida com a
filosofia racionalista do século XVII, transformando o Direito numa ciência em busca da verdade, sem
qualquer comprometimento com a justiça do caso concreto, contribuiu decisivamente para que Ovídio
Baptista demonstrasse a cristalização histórica do modelo do ordo iudiciorum romano com seus
correspondentes lógicos da actio e da ação condenatória, alertando (criticamente), por conseqüência disso,
que somente o procedimento ordinário seria capaz de assegurar uma situação de neutralidade do juiz.[21]
A aproximação com os filósofos racionalistas do século XVII exerceu um papel fundamental para
que o processualista chegasse a essa conclusão. Trata-se de um século em que a filosofia necessitou de que
o saber tivesse alcançado a idéia de um ser supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e
que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido. A escolha por
métodos, como o da demonstração e o da dedução rigorosa, relacionam-se a esse desiderato. São eles os
responsáveis pelo perpasse a toda a cadeia do cognoscível, onde nenhum elo pode ser separado na
recondução à causa primeira do ser e da certeza.[22]
É nesse talante que o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz e o inglês John Locke, filósofos do
racionalismo, ocuparam um lugar de destaque na tentativa de “geometrizar” o Direito, local onde o exame
do caso concreto deveria ser abandonado em razão da complexidade com que se revestia. Observe-se que
Locke, em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690), dedicou-se a pesquisar as fontes do
pensamento, uma vez que não aceitava a tese de que o ser humano já viria ao mundo com o conhecimento
dentro de si, cabendo à filosofia apenas revelá-lo.
Para o filósofo, a compreensão adviria unicamente da experiência, da demonstração (daí o
surgimento do empirismo inglês), o que justifica porque Locke defendeu os direitos naturais, apreendidos
pela razão, o que a sociedade civil deveria proteger. A obtenção do equilíbrio do homem com o direito
natural derivaria da propriedade, que seria a forma do elemento constitutivo do sujeito humano.
É a propriedade, em Locke, compreendida não somente enquanto objeto acumulado pelo trabalho,
mas também enquanto vida e liberdade, tendo sua condição jurídica relacionada ao acúmulo de riquezas,
uma situação que no estado de natureza está em igualdade originária. Este quadro assume uma posição
diferente definida pela instituição da moeda, quando a propriedade passa então a ser trocada pelo dinheiro,
superando os limites “naturais” da apropriação privada, transmudando um estado de paz natural num estado
precário, gerando a necessidade de um poder político que construa leis para regulamentar e limitar a própria
propriedade. [23]
Entretanto, qual efetivamente o compromisso de Locke com as ciências matemáticas? E o reflexo
disso para o Direito e para o Processo Civil? A investigação perpassa, obrigatoriamente, pela obra Processo
e Ideologia, de autoria de Ovídio Baptista, e pela observação do autor de que em Locke o conhecimento
pode ser intuitivo ou demonstrativo, tendo em qualquer caso origem nas sensações. No primeiro caso, a
única certeza adviria da intuição imediata oriunda das percepções sensoriais.
Para o filósofo inglês, as idéias morais seriam demonstráveis, tais como a matemática. Por isso é que
Locke, seguindo a “onda” racionalista, preocupa-se com definições, não com o que acontece enquanto
manifestação do comportamento.[24] Ao Direito (e, consequentemente, ao processo), dar-se-ia a separação
entre o “mundo dos conceitos” e o “mundo dos fatos”[25], o que certamente sofreria a influência da própria
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7536
cisão entre práxis e doxa.
Já o conhecimento demonstrativo seria aquele manifestado quando as percepções imediatas não se
mostrassem possíveis. Vale então o alerta de Ovídio Baptista no sentido de que na visão lockeana a moral e
(consequentemente) o Direito seriam “demonstráveis”, onde o acesso às próprias coisas mesmas dar-se-ia
diante de um “conhecimento perfeito” num mundo composto de “acertos” e “erros”. O problema está em
que o empirismo de Locke renunciaria o problema do conhecimento histórico. A hermenêutica em
geral.[26]
Também Leibniz, para o jurista gaúcho, teria contribuído na elaboração desse projeto de transformar
a moral e o Direito em uma ciência demonstrativa. Referindo-se a Welzel, relata que Leibniz construíra um
projeto de uma ciência do Direito enquanto ciência puramente racional, o que faria com que a própria
jurisprudência, quanto ao que está positivado, apoiasse-se totalmente em fundamentos racionais, extraindo a
decisão, na falta de disposição legal, do direito natural com o auxílio da razão.[27]
Na obra Os elementos de direito natural o filósofo traz algumas passagens que acabam por desvelar
um dos pontos de partida de que se valeu Ovídio Baptista na busca da compreensão das origens do atual
sistema de conceitos em que o processo civil está embebido. Para o filósofo alemão a doutrina do Direito
não dependeria da experiência,
[...] senão de definições, não das demonstrações dos sentidos, mas da razão, e são, por assim dizer,
próprias do Direito e não do fato. Assim, pois, como a justiça consiste em um certo acordo e
proporção, pode entender-se que algo é justo, ainda que não haja quem exerça a justiça, nem sobre a
quem recaia, de maneira semelhante a como os cálculos numéricos são verdadeiros, ainda que não haja
quem numere nem quem numerar, da mesma maneira como não se pode predizer de uma coisa, de uma
máquina ou de um Estado que, se existirem, haverão de ser charmosos, eficazes e felizes, ainda que
nunca tenham existido. Por tanto, não é surpreendente que os princípios destas ciências sejam verdades
eternas, pois todos eles são condicionais, e nem sequer necessitam que algo exista, mas apenas que
aceitem sua suposta existência.[28]
Disso se constata que em Leibniz as proposições jurídicas haveriam de admitir uma significação
precisa, das quais fosse possível extrair conseqüências igualmente definidas e inquestionáveis, o que torna
possível compreender, justamente a partir da tentativa de superação do dogmatismo e da constante busca
pela recuperação da dimensão hermenêutica no direito processual, porque Ovídio Baptista dedicou uma vida
a demonstrar as raízes do processo civil enquanto fenômeno diretamente relacionado a filosofia do
racionalismo e a uma “ciência de demonstração”, os quais, por sua vez, teriam contribuído decisivamente
para o estabelecimento do pensamento conservador[29] em processo.
Um pensamento relacionado a uma “ciência do processo” preocupada com a clareza dos textos
jurídicos, partindo do pressuposto que estes deveriam conter o sentido das próprias proposições jurídicas,
relegando a linguagem a uma terceira coisa, já que seu fundamento estaria em “encontrar significados” que
justificassem os exemplos “mais representativos”.[30]
O presente trabalho compartilha da visão de que é justamente esse pensamento que sustenta a
ideologia do atual processo de conhecimento, local, como logo se verá, onde residem o magistrado e sua
neutralidade. Uma neutralidade advinda da tentativa racionalista de transformar o Direito numa ciência
lógica, matematizada, cuja produção caberia ao “iluminado” legislador, o qual teria a missão de produzir um
texto de lei tão claro e transparente que fosse capaz de dispensar sua interpretação.[31]
São muitos os resquícios dessa forma de pensamento em nosso sistema processual civil. Afinal de
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7537
contas, quão “matematizante” é a chamada “súmula impeditiva de recurso”, prevista no §1º do artigo 518 do
código de procedimento, através da qual pode o juiz não receber o recurso de apelação quando a sentença
estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal,
como se as respostas às singulares relações jurídicas materiais submetidas em processo fossem de alguma
forma “demonstravelmente” antevistas pelas súmulas e por sua capacidade de enunciar significados.
O que dizer, nesse mesmo sentido, quando o legislador, ao tratar do recurso especial, acrescentou a
alínea “c” no artigo 543 do código de processo civil, levando inclusive a doutrina (em sua grande maioria,
de forma a-crítica) a cunhar a expressão “recursos repetitivos”. Tal dispositivo pressupõe (de forma
absolutamente ficcional) a possibilidade da existência de uma multiplicidade recursal com fundamento “em
idêntica questão de direito”, cuja “ocorrência” autoriza o presidente do Tribunal de origem admitir um ou
mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça
“representado” os demais que assim ficariam suspensos.
Estes são exemplos que demonstram claramente como o processo civil de que se dispõe atualmente
mantém-se adstrito ao espírito dogmático, longe das ciências da compreensão. Um processo que renuncia a
historicidade e a própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva); que representa os ideais de um
racionalismo focado na satisfação do binômio certeza e segurança em prol de uma sociedade excludente e
concentradora do poder; que continua a buscar, em pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que
se expressa enquanto meio transformador da realidade, o desvelar de verdades eternas.
E o fará fomentando a reprodução de súmulas, de sentenças anteriores de improcedência (vide artigo
285-A do código de procedimento), etc., na vã ilusão de que tais “instrumentos” contêm o significado de
todos os casos, já que detém todas as hipóteses aplicativas em Direito. Trata-se, como já afirmara
Castanheira Neves, de uma nítida tentativa de fungibilização do fático, pressupondo que algumas lides são
idênticas, merecendo, diante disso, tratamento idêntico.
É assim que o caso concreto perde completamente sua singularidade, tornando-se uma espécie de
exemplar de um gênero que o absorve, dando azo à construção de sentenças objetivas e eliminando qualquer
possibilidade de compromisso ético daquele que as prolata. Fomentando, ainda, a funcionalidade
(Castanheira Neves) do Direito a serviço do político.[32]
O sonho racionalista, como se percebe, é o sonho da exatidão, da demonstração (matemática), da
descoberta, o que o Direito e o processo civil não tiveram como escapar. E se tanto o Direito quanto o
processo civil haveriam de ser exatos, as respostas da Jurisdição não poderiam compartilhar o erro.[33] Não
poderiam compartilhar, v.g., em razão mesmo da ânsia por segurança, com a emissão, em processo civil, de
juízos de verossimilhança.
Este é um problema paradigmático no processo civil. Qualquer um que proponha romper com a
“sagrada” ordinariedade deve se dar conta disso. Deve investigar as conseqüências desse pensamento para o
processo e seus institutos. Um pensamento que expurgou os fatos em processo civil, criando a possibilidade
de sua reunião em súmulas e enunciados, e até mesmo diante da “jurisprudência dominante”, como se outras
lides fossem idênticas à lide “rotulada”.
As respostas em processo civil, a partir disso, devem ser certas ou erradas; são dependentes de
definições, que sempre vem pré-dadas (Savigny). Como se fosse possível permitir ao homem a construção
de um mundo harmônico e tranqüilo. Essa é a ideologia do agir jurisdicional a partir do século XVII e da
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7538
construção do Estado da modernidade, onde o Direito passa a ser obra exclusiva do legislador. Ao juiz não
restaria alternativa senão a de se transformar no oráculo da lei (local onde foi aprisionado) através da prática
do silogismo, o que hoje revela o componente autoritário dessa ideologia, escancarada num Direito
produzido unicamente pela “vontade soberana” e reproduzido pela funcionalidade judicial.
Veja-se que, como já se referiu, a conseqüência desses fenômenos no âmbito do processo civil não
poderia ser outro: a proscrição dos provimentos fundados em juízos de verossimilhança. A “matematização”
do processo levaria a magistratura a uma condição de reprodutora do sentido da lei, de declaração de seu
sentido, o que somente poderia ocorrer após cognição exauriente (cujo local de manifestação seria o rito
ordinário), dada mesmo a compreensão do Judiciário como um poder subordinado, retirando qualquer
compromisso de eticidade dos juízes no momento de dizer o Direito.
A própria dificuldade de aceitação, pela processualística moderna, na concepção de uma tutela
unicamente preventiva, advém dessa relação do processo à filosofia do racionalismo. Tais julgamentos
seriam eminentemente provisórios (a própria ação cautelar prescinde do ajuizamento de uma “ação
principal” que lhe dê fundamento); incompatíveis, portanto, com a revelação, pelo juiz, da vontade da lei
(Chiovenda).[34] Qualquer decisão calcada em juízo de verossimilhança acabaria correspondendo à “justiça
do juiz”, o que o próprio processualista advertira.
Ainda no século XVII, antecedendo a Locke, Hobbes, em seu Leviatã, contribuiu decisivamente para
a instauração desse paradigma ao afirmar que a missão do juiz não deveria ser outra que não a de reproduzir
a lei, assim considerada a construída unicamente pelo legislador. A bem da verdade Hobbes foi um dos
precursores a sustentar o inter-relacionamento entre a moral e as ciências da demonstração, o que afetaria,
conseqüentemente, o Direito.
A obsessão hobbesiana em transformar a moral e o Direito em disciplinas científicas veio a
enfatizar, ao tratar da natureza do Estado, a construção de uma ciência civil[35] fundada num nominalismo
radical que o levaria a ocupar, posteriormente, a posição de “pai do positivismo moderno”.[36] Isso porque,
como alerta Cassirer, para Hobbes a verdade seria criação livre do homem, enquanto ser detentor da palavra
e da linguagem; uma articulação de nomes (nominalismo) distante da realidade dos fenômenos, dos fatos,
onde o conceito se manteria dentro dos limites por ele mesmo traçado.[37]
Nesse talante, a fixação dos filósofos do racionalismo pelos métodos das “ciências autênticas”, os
quais serviriam por si só para ditar a aceitação das verdades que descobrissem, teria influenciado
diretamente na relação dos vínculos entre o direito processual civil, o agir jurisdicional e a construção do
conceito político de Estado na modernidade. Hoje é possível dizer que é inaceitável que o processo continue
a ser seduzido por uma lógica metafísico-universalizante típica do Estado liberal e da filosofia da
consciência, que se ancora principalmente no rito ordinário (e, conseqüentemente, no instrumentalismo, na
técnica) como condição de possibilidade (validade) à produção-satisfação jurisdicional e à proteção de
relações obrigacionais ou patrimoniais, local de uma jurisdição concebida como um poder (deslegitimo)
solitário do juiz.
O próprio Direito, em pleno século XXI (locus de novos direitos), deve ser compreendido enquanto
meio transformador da sociedade, não mais simplesmente mantenedor da ordem ou cessionário do poder
político às mãos dos detentores do poder econômico, característica de um Direito (e de um processo) liberal.
Os novos direitos, pós-modernos, exigem também um processo pós-moderno, não simplesmente racional-
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7539
iluminista.
Exigem um re-pensar da atividade cognitivo-processual que guarde relação a um processo civil
compreendido enquanto fenômeno, impedindo que a força do ritualismo fase-a-fase ordinário seja um óbice
à satisfação dos direitos sociais-fundamentais. Um processo construído democraticamente (com participação
ativa dos envolvidos) diante de um compartilhamento de poderes entre o juiz e as partes, onde o diálogo seja
o fio condutor a desvelar a compreensão do caso concreto diante de um redimensionamento espaçotemporal na trajetória processual.
Por isso é fundamental, nessa quadra da história, pensarmos em locus processuais de abertura à
sociedade, rompendo com a estrutura tripartite em processo e, conseqüentemente, com uma função
jurisdicional institucionalizada na posição de um terceiro a quem incumbe ditar o certo ou o errado. Uma
abertura que a própria constitucionalização exige diante do resultado da história e da cultura.
Conclusão
A clássica dificuldade do processualismo moderno em compreender hermeneuticamente o direito
processual civil condicionou os rumos do processo, levando-o a um déficit de realidade. Tal lacuna
cognitiva deve-se principalmente a fixação da doutrina processual em atribuir ao juiz a missão de
desvelador de verdades a partir de uma atividade tecnicamente exauriente. A correspondência entre sua
“consciência” e o objeto investigativo serviria como pauta fulcral inclusive na evolução do direito de “ação
processual”.
A fonte disso, pelo que se pôde perceber nas linhas acima, está na relação do Direito e do processo
com a filosofia do racionalismo e com o Estado liberal e sua teoria da separação dos poderes. Essas são as
causas para o excessivo apego ao procedimentalismo no direito processual civil. Uma obsessão que acabou
renunciando o plano fático, o mundo da vida (Husserl), elegendo a razão como meio de acesso as coisas em
processo.
Qualquer pesquisa que tenha por objetivo aprofundar as raízes históricas da Jurisdição e do processo
civil não pode desconsiderar esse fenômeno. Não pode simplesmente ignorar a tradição em que o processo
está inserido. Caso contrário será uma pesquisa a-histórica, anti-hermenêutica.
Diante disso, o presente artigo propôs alertar que em pleno paradigma instituído pelo Estado
Democrático de Direito o processo civil deve abrir-se a novas operações cognitivas, trabalhando em prol da
satisfação dos direitos sociais-fundamentais previstos na Constituição. O problema é que o procedimento
ordinário, pelo que se viu, tem se revelado incompatível com esse desiderato.
Isso porque tais direitos não podem esperar pelo ritualismo fase-a-fase. Esse método satisfaz
sistemas racionamente normativos, relacionados a uma sistematicidade normativo-prescrita a-concreta,
antecipada e logicamente construída (Castanheira Neves), local onde habita o vetor “segurança jurídica”, tal
qual prescrito pelo liberalismo.
É evidente que todos almejam segurança quando se socorrem do processo civil. A questão está em
compreender que essa segurança não é e nem pode ser pré-dada. Ela é (deve ser!) construída, o que
condiciona o direito processual civil a ser estudado enquanto fenômeno, enquanto ciência da cultura, da
compreensão. Enquanto ciência do espírito, não enquanto ciência da demonstração.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7540
Viu-se que os filósofos do racionalismo pretenderam alçar o método à condição de possibilidade
para o reconhecimento dos direitos. Deram suporte à sofisticação (ao menos pensaram ter sofisticado) e a
clareza dos textos jurídicos, partindo do pressuposto que estes deveriam conter o sentido das próprias
proposições jurídicas, relegando a linguagem a uma terceira coisa. Olvidaram a posição do intérprete nessa
construção.
O processo civil, diante disso, passou a ser estudado e aplicado como pura atividade metódica,
matematizada, geometrizada, local onde a súmula, o enunciado, a “jurisprudência dominante”, ferramentas
do juiz e de seu solitarismo, ocuparam um lugar de destaque, a desprezo da singularidade de cada concreto.
Logo, o presente trabalho teve por objetivo maior alertar pela necessidade de um re-pensar no direito
processual civil. Uma nova leitura de processo que rompa com a estrutura tripartite, almejando a construção
de um local de exercício de poder compartilhado, difundido, ainda que a partir de cortes de sumarização
processual e material. Um local não habitado pelo juiz neutro ou pelo juiz protagonista (o de Oskar Vön
Bülow), mas pelo juiz participativo-democrático. Um locus processual de abertura à sociedade.
Referências
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Direito, marxismo e liberalismo. Florianópolis: Ed. Cesusc, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução de José
Gradel. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008.
. CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Ed.
Unicamp, 1992.
. O problema do conhecimento. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1993.
CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido?O problema actual da autonomia
do Direito. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2002.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Ed.
Fórum, 2009.
FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2009.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Volume I. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1997.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Tradução para o espanhol de Tomás
Guillén Vera. Madrid: Ed. Tecnos, 1991.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo
Capitanio. Campinas: Ed. Bookseller, 2001.
MERLO, Maurizio. Poder natural, propriedade e poder político em John Locke. In: O Poder: história da
filosofia política moderna. Giuseppe Duso (org.). Tradução de Andrea Caiacchi, Líssia da Cruz e Silva e
Giuseppe Tosi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XIII. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1976.
ROCCO, Arturo. La riparazione alle vitime degli errori giudiziari. Nápoles: Ed. Jovene, Ed. Jovene, 1906.
SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7541
Unesp, 1999.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª edição. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 1997.
. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2009.
WACH, Adolf. Manual de derecho procesal civil. 1ª ed. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America,
1977.
[1] O positivismo guarda relação a doutrina comteana, que no século XIX, sob a justificativa de negação da metafísica, deu
preferência às ciências experimentais, partindo do pressuposto de que a ação humana é sempre limitada, supondo que o
desenvolvimento humano é sempre o mesmo, apenas modificado na desigualdade de sua velocidade. Já o positivismo jurídico é uma
tendência científica, ligada a necessidade de segurança pela burguesia, no mesmo século XIX. Cf. FERRAZ JÚNIOR. Tércio
Sampaio. A ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2009, pp. 31-32.
[2] O termo sociedade, no presente artigo, aproxima-se do pensamento de Bauman, para quem a sociedade guarda relação com o ato
de compartilhar e de respeitar o compartilhado; com o poder que faz com que aquilo que foi concordado e compartilhado seja
dignificado. Isso porque, como a própria natureza, a sociedade estava aqui muito antes de qualquer um de nos ter chegado, e aqui
continuará após todos terem partido. A sociedade é um mito vivo do significado da vida humana, uma desafiadora criação de
significados (parafraseando Ernest Becker). Por isso as sociedades são as sementeiras da vida com sentido. In: A sociedade
individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008, p. 08.
[3] Para um maior aprofundamento, consultar: WACH, Adolf. Manual de derecho procesal civil. 1ª ed. Buenos Aires: Ed. Juridicas
Europa-America, 1977.
[4] Cf. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido?O problema actual da autonomia do Direito. Lisboa:
Ed. Instituto Piaget, 2002, p. 10.
[5] Idem, ibidem, pp. 10-11.
[6] Um bom exemplo disso são as ações de natureza especial, ou procedimentos especiais. Ensina Pontes de Miranda que tais
procedimentos justificam-se para a obtenção de tutela jurídica quando, por algum dado do direito material, ou do documento em que
se funda a demanda, ou da pessoa autora, ao legislador pareceu inadequada a forma ordinária. Entretanto, lembra o autor que a
especialidade nem sempre significa exclusão da ordinariedade (o que demonstra o apego ao rito ordinário), que por vezes persiste e
apenas se modifica diante da roupagem especial. In: MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XIII.
Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1976, pp. 03-04.
[7] O que, de certa forma, encontra guarida na obra de J.J. Calmon de Passos, para quem “só há direito que o processo produz”. In: É
possível pensar o direito processual. Revista Incijur, n. 63. Joinville, outubro de 2004, p. 02.
[8] O que guarda relação com a “transformação” do direito processual em ciência, em método, onde não há espaço para o caso
concreto, que para ela é secundário, afinal de contas o que importa é a projeção das formas das relações processuais em-si-mesmas.
[9] Ainda que o Brasil esteja diante de uma espécie de pré-modernidade, o que é possível concluir justamente em razão da
inoperacionalidade, em terra brasilis, do Welfare State. Para um maior aprofundamento, consultar: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo
Lima de. Direito, marxismo e liberalismo. Florianópolis: Ed. Cesusc, 2001, p. 56. Já em Chevallier, parafraseando Cooper, o Brasil é
um exemplo de um autêntico Estado moderno, vinculado à noção tradicional de Estado como detentor do monopólio da força. Cf.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009, p. 21.
[10] Sobre a influência do racionalismo-iluminista no pensamento filosófico, consultar: CASSIRER, Ernst. A filosofia do
iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992. Refere o autor, em p. 24, face ao referido tema, que “o
século XVII via na construção de sistemas filosóficos a tarefa própria do conhecimento filosófico. Para que lhe parecesse
verdadeiramente filosófico, era preciso que o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia primordial de um ser
supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o
saber dela deduzido. É o que efetivamente ocorre quando, pelo método da demonstração e da dedução rigorosa, são mediatamente
ligadas à certeza primordial outras proposições, a fim de se percorrer, por meio dessa conexão mediata, toda a cadeia do cognoscível
e de a encerrar sobre si mesma.”
[11] Esse, na verdade, é o ponto central do Direito moderno, o que restou bem identificado por Jürgen Habermas na obra Direito e
democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Volume I. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro,
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7542
1997, pp. 45-47.
[12] Cf. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Op. cit., pp. 16-17.
[13] Cf. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do Direito. Op.
cit., pp. 25-26.
[14] Cf. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A ciência do Direito. Op. cit., p. 32.
[15] Ovídio Baptista lembra, contudo, que se mostra interessante observar como o predomínio da segurança sobre os ideais de
justiça que, na Europa continental, deu ensejo à era das codificações, foi igualmente uma constante na doutrina jurídica inglesa,
embora a Inglaterra, fiel ao mesmo princípio, tivesse procurado idêntica segurança para o Direito no sistema dos precedentes,
evitando a codificação. In: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª edição. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 105.
[16] Idem, ibidem, p. 110.
[17] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 16.
[18] Lembra Ovídio Baptista que ao juiz não seria dado hermeneuticamente compreender a norma jurídica, mas, ao contrário, com a
neutralidade de um matemático, resolver o problema algébrico da descoberta de sua vontade. Reproduziu-se no século XIX a
tentativa de Justiniano de impedir a compreensão hermenêutica de suas leis. Ibidem, p. 24.
[19] Sobre isso, mostra-se interessante a conclusão de Malatesta, que concentra justamente a antítese do pensamento de Ovídio
Baptista: “se a certeza tem uma natureza subjetiva, o sujeito natural não é e não pode ser senão a alma do julgador (grifou-se). Em
virtude de uma simples dedução, poder-se-á ser obtida sem necessidade de qualquer outra indagação, sob o ponto de vista racional”.
Cf. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Ed.
Bookseller, 2001, p. 47.
[20] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. Op. cit., p. 117.
[21] Ibidem, p. 132.
[22] Cf. CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Op. cit., p. 24.
[23] Cf. MERLO, Maurizio. Poder natural, propriedade e poder político em John Locke. In: O Poder: história da filosofia política
moderna. Giuseppe Duso (org.). Tradução de Andrea Caiacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005,
p. 157.
[24] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., pp. 80-81.
[25] Idem, ibidem.
[26] Idem, ibidem, pp. 82-84.
[27] Idem, ibidem, pp. 77-78.
[28] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Tradução para o espanhol de Tomás Guillén Vera.
Madrid: Ed. Tecnos, 1991, pp. 70-71.
[29] Um pensamento que possui como marca registrada a “naturalização” da realidade que ele próprio elabora, de modo que todo
aquele que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico. In: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o
paradigma racionalista. Op. cit., p. 16.
[30] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Op. cit., p. 72.
[31] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., p. 24.
[32] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2009, p. 09.
[33] Até mesmo porque ao Estado cumpriria a função de indenizar o lesado em caso de erro jurisdicional. Para um maior
aprofundamento sobre o tema, especialmente no que se refere à responsabilidade do Estado e à responsabilidade pessoal do juiz,
consultar a seguinte obra: ROCCO, Arturo. La riparazione alle vitime degli errori giudiziari. Nápoles: Ed. Jovene, Ed. Jovene,
1906.
[34] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., p. 108.
[35] Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Unesp, 1999, p. 17.
[36] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 75.
[37] Cf. CASSIRER, Ernest. O problema do conhecimento. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1993, pp. 181-184.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
7543
Download