AS INFLUÊNCIAS DO ILUMINISMO-RACIONALISTA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL THE INFLUENCES OF THE ILUMINIS-RATIONALIST IN CIVIL PROCEDURAL Cristiano Becker Isaia Jênia Maria Lopes Saldanha RESUMO O presente trabalho tem por objetivo investigar a fixação da processualística (civil) clássica na busca pelo encontro de certezas e verdades, local habitado pelo juiz solipsista, cuja solidão se manifesta diante do (complexo) binômio neutralidade-protagonismo. Como o modelo de processo civil de que se dispõe atualmente encontra-se num evidente déficit de realidade, é preciso repensar a atividade processual para fazer cumprir a Constituição. Dessa forma, esse direito processual civil adstrito ao espírito dogmático, distante das ciências da compreensão, deve dar lugar a um re-pensar da atividade cognitivo-processual. Um novo exercício jurisdicional que não renuncie à historicidade, à própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva). Por isso é preciso compreender quais os principais elementos filosóficos e políticos que representa(ra)m os ideais de um processo focado na satisfação do binômio certeza e segurança e que continua a buscar, em pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que se expressa enquanto meio transformador da realidade, o desvelar (ficcional) de verdades eternas. PALAVRAS-CHAVES: processo civil – iluminismo – racionalismo ABSTRACT This study aims to investigate the establishment of processualistic (civil) classic encounter in the quest for certainty and truth, a place inhabited by the judge solipsist, whose loneliness is against the (complex) binomial neutrality-role. As the model of civil procedure that is available today is a clear deficit of reality, we must rethink the judicial activity to enforce the Constitution. Thus, the civil procedure attached to the dogmatic spirit, far from the science of understanding, should lead to a re-think of cognitive activityprocess. A new exercise jurisdiction that does not renounce the historicity, the hermeneutic (as comprehensive activity). So you must understand that the main philosophical and political elements representing (ra) m the ideals of a process focused on the satisfaction of the relation between certainty and security and continues to seek, in the XXI century, and before a state paradigm that expressed as a means of transforming reality, the unveiling (fictional) of eternal truths. KEYWORDS: procedural – iluminis – rationalist As influências do iluminismo-racionalista no direito processual civil The influences of the iluminis-rationalist in civil procedural Resumo O presente trabalho tem por objetivo investigar a fixação da processualística (civil) clássica na busca pelo encontro de certezas e verdades, local habitado pelo juiz solipsista, cuja solidão se manifesta diante do (complexo) binômio neutralidade- * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7530 protagonismo. Como o modelo de processo civil de que se dispõe atualmente encontra-se num evidente déficit de realidade, é preciso repensar a atividade processual para fazer cumprir a Constituição. Dessa forma, esse direito processual civil adstrito ao espírito dogmático, distante das ciências da compreensão, deve dar lugar a um re-pensar da atividade cognitivo-processual. Um novo exercício jurisdicional que não renuncie à historicidade, à própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva). Por isso é preciso compreender quais os principais elementos filosóficos e políticos que representa(ra)m os ideais de um processo focado na satisfação do binômio certeza e segurança e que continua a buscar, em pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que se expressa enquanto meio transformador da realidade, o desvelar (ficcional) de verdades eternas. Palavras-chave: processo civil – iluminismo – racionalismo Abstract This study aims to investigate the establishment of processualistic (civil) classic encounter in the quest for certainty and truth, a place inhabited by the judge solipsist, whose loneliness is against the (complex) binomial neutrality-role. As the model of civil procedure that is available today is a clear deficit of reality, we must rethink the judicial activity to enforce the Constitution. Thus, the civil procedure attached to the dogmatic spirit, far from the science of understanding, should lead to a re-think of cognitive activity-process. A new exercise jurisdiction that does not renounce the historicity, the hermeneutic (as comprehensive activity). So you must understand that the main philosophical and political elements representing (ra) m the ideals of a process focused on the satisfaction of the relation between certainty and security and continues to seek, in the XXI century, and before a state paradigm that expressed as a means of transforming reality, the unveiling (fictional) of eternal truths. Keywords: civil procedural – iluminis – rationalist Introdução O direito processual civil, que ao longo dos séculos foi alvo das inúmeras transformações jurídicopolítico-filosóficas enfrentadas pelo Direito e pelo Estado, tem a contribuir com o ideário almejado pelo Estado Democrático de Direito. Na transformação de uma sociedade complexa e na construção de uma situação de igualdade à comunidade. Teoricamente (procedimentalmente) estruturado a servir como instrumento de satisfação do direito material, inicialmente como sua parte integrante, veio a se tornar autônomo no século XIX, com Oskar Vön Bülow. De outro lado a Jurisdição, principalmente a partir do segundo pós-guerra, acabou por assumir uma função essencial na busca dos direitos abnegados pelo positivismo jurídico[1], comprometendo-se medularmente com um agir judicial de nítida neutralidade (já que declaratório), o que se deve principalmente às filosofias do racionalismo do século XVII e aos movimentos políticos que deram suporte à construção do Estado Liberal e sua teoria da separação dos poderes. Entretanto, em pleno século XXI, local onde a Constituição definitivamente deve servir como pauta interpretativa ao Direito, o que também incluiu o processo civil, tem o processo um lugar a assumir diante * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7531 da contingência social. Hoje é possível afirmar que o exercício meramente declaratório na atividade judicial acaba se mostrando incapaz em atender a satisfação dos direitos sociais-fundamentais previstos na Constituição. O mesmo se pode dizer em relação ao protagonismo do juiz, que em processo civil remonta a Oskar Vön Bülow e a construção das teorias inerentes ao direito de ação processual. Ambas as posturas contrariam o Estado Democrático de Direito, que deseja um Judiciário efetivo é verdade, mas também consciente e responsável. Assim, para romper com a função eminentemente declaratória presente na atividade jurisdicional, visando também coibir a prática de decisionismos pelos juízes, buscando reconstruir um processo civil que diante de uma sociedade[2] complexa deve funcionar de uma maneira acessível e eficaz, mostra-se necessário aproximar a Jurisdição ao próprio fato/direito submetido em juízo. Não se trata de uma missão qualquer, haja vista a histórica e inegável relação do processo como meio de acesso a “verdades” e “certezas”, alcançáveis a partir da relação entre a “consciência” do juiz e o objeto a investigar. Uma relação que manteve o processo civil diante do próprio esquema sujeito-objeto da filosofia da consciência. Veja-se que essa é a razão maior para a concentração da processualística clássica no procedimentalismo, no método. É a causa do déficit de realidade de que faz parte o processo civil de que se dispõe atualmente, embebido por um solitarismo judicial que se deflagra nas mais variadas situações do mundo jurídico-processual. O que dizer dos poderes conferidos ao relator (art. 557, Código de Processo Civil), dos recursos repetitivos (art. 543-C), das sentenças liminares de improcedência (art. 285-A), dentre outros vários exemplos do que estamos a tratar? Por isso uma releitura do direito processual civil é necessária. Seu comprometimento com o liberalismo e com a ideologia da ordinariedade, o que remonta ao direito processual civil romano tardio, deve dar lugar a um novo modelo capaz de garantir efetividade principalmente aos direitos sociaisfundamentais previstos na Constituição. A condição de possibilidade para que se alcance esse desiderato está em não renunciar a história. E essa não-renúncia relaciona-se a necessidade de se compreender hermeneuticamente o direito processual civil. Por isso o objetivo deste trabalho guarda relação à investigação dos principais movimentos que condicionaram os rumos do processo de que se dispõe na atualidade, principalmente os relacionados à fixação do mundo jurídico pelo vetor “segurança” jurídica e sua sedução pela matematização (ou geometrização). É isso que será aprofundado nas linhas que seguem, para ao final propormos um rompimento a esse modelo, onde o processo civil seja afinal compreendido enquanto local de manifestação da democracia. 1. O predomínio do vetor segurança sobre o vetor justiça na formação do espírito científico moderno e seus reflexos no direito processual civil O problema relacionado ao que se referiu nas linhas acima está no fato de que a processualística jamais se preocupou em pensar o processo civil hermeneuticamente (já que apostou no solipsismo judicial), o que o levou a um distanciamento em relação ao direito subjetivo material (e Constitucional), a uma blindagem capaz de afastá-lo do caso concreto. Acabou, a processualística, por afastar-lhe dos demais sistemas que estão ao seu entorno, dentre os quais o constitucional, civil, tributário, o que se deve * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7532 principalmente às pesquisas do processualista alemão Adolf Wach, para quem haveria a possibilidade de se buscar em juízo algo não tecnicamente respaldado pelo direito positivo material, mas, v.g., simplesmente uma declaração de que nada era devido ao suposto titular de um interesse reconhecido juridicamente.[3] Nesse viés, a existência de uma relação jurídica processual independente da relação jurídica de direito material passou a ser evidenciada e sobrelevada pelo processualismo, premissa que levou Chiovenda, corifeu da doutrina processual italiana, a sustentar ser a “ação” processual um direito de natureza potestativa através do qual a vontade da lei se realiza no caso concreto. A partir de então a própria subsistência do direito material passaria a estar em jogo, pondo em causa a possibilidade mesma de seu sentido.[4] A aposta na atividade jurisdicional como desveladora do sentido único da lei levaria o intérprete a ignorar que sociologicamente o Direito deveria acompanhar a complexidade estrutural, dimensional e intencional das sociedades atuais. Ao contrário, revelou um Direito normativamente inadequado (diante do surgimento dos direitos de segunda, terceira, etc., dimensão) e institucionalmente ineficiente (na própria capacidade institucional de resposta pelo Poder Judiciário)[5] à satisfação dos interesses do povo. Atualmente, a possibilidade do referido quadro (onde o processo está inserido dogmaticamente) se alterar, ao menos no que se refere ao direito processual civil, perpassa, inevitavelmente, por uma nova compreensão de processo que rume à aproximação do plano fático, do plano do direito material (constitucionalizado) ao plano processual, o que inevitavelmente trará segurança àquele que se socorre do processo. Não uma segurança standartizada, marca de um processualismo que idolatra súmulas vinculantes, julgamentos de “reprodução” (o que pode facilmente ser encontrado no código de procedimento civil, em especial no art. 285-A e 543-C), impedimentos recursais alicerçados na “jurisprudência dominante” dos Tribunais (ver, para tanto, o teor do artigo 518, §1º, do código de procedimento), dentre outros. Mas uma segurança que seja efetivamente construída em cada processo. Que parta do pressuposto de que naquele caso concreto o Poder Judiciário haverá de se aproximar das partes, da própria sociedade. Responsabilizando-se eticamente pelas conseqüências de seus pronunciamentos. Isso pode ser obtido de várias formas, dentre as quais, v.g., o reconhecimento e aplicabilidade de ações de natureza sumária e especial[6] dotados de sistemas antecipatórios e de execução diferenciada (refugindo à forma clássica definida pelo art. 475-I do CPC), de forma principalmente a profanar a ordinarização que se sacralizou perante a doutrina processual civil a partir do legado jurídico-romano-tardio, o qual observava a Jurisdição como uma atividade reduzida à prolação de sentenças declaratórias. Esta é a roupagem que reveste o processo. Entretanto, o necessário acoplamento entre as estruturas de seu sistema e do direito material pode ser obtido quando superarmos a falsa idéia (sustentada pela corrente monista de processo) de que só há direito quando o juiz diz que há.[7] Daí que o presente trabalho parte do pressuposto (percorrendo o caminho inverso ao da subsunção) que em processo civil o que realmente interessa é a observação (numa linguagem sistêmica) ou a compreensão (numa linguagem hermenêutica) do fato submetido a juízo, ciente de que se a significação fática varia em cada contexto onde é trabalhada, a clausura em-si-mesmada do processo acaba sendo um obstáculo complicado para uma “ciência processual” que atualmente depende da consolidação de um aporte teórico suficiente a relacioná-la a outros elementos. A Constituição, por exemplo. Logo, não é mais possível, em pleno século XXI, observar o processo civil somente enquanto * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7533 processo civil. É necessário que este seja observado diante de outras áreas do conhecimento, de outros sistemas. É fundamental imbricá-lo ao sistema da sociedade! Ao sistema de uma sociedade complexa! A questão está em que o campo temático do processo não é (não pode ser!) limitado a si mesmo. É absolutamente dependente de outros sistemas, tendo reflexos extremamente relevantes perante a sociedade. O próprio procedimento reflete no social. A morosidade processual e o descrédito para com o Poder Judiciário são exemplos disso. O direito processual civil não pode mais limitar-se a uma atuação operacionalmente fechada. Deve abrir-se a operações cognitivas, que certamente demonstrarão que o processo também deve trabalhar com algo que não é processo. Esse inter-relacionamento não é tarefa fácil, ainda mais quando toda uma processualística está inserida numa tradição que “analisa” o direito processual como algo que se basta.[8] Por isso, não se mostra mais possível, na chamada pós-modernidade[9], pensar a Jurisdição como o fez o modelo liberal de Estado, influenciado pelas filosofias iluministas do século XVII através de um modo de produção do conhecimento que objetivava “certezas absolutas”, a partir de “demonstrações lógicas”[10], na proteção unicamente aos direitos de liberdades de contratos e na propriedade individual.[11] A Jurisdição do século XXI deve se adaptar às exigências de uma sociedade que, como alerta Chevallier, entrou numa nova fase, em que se mostram perturbados os equilíbrios sociais diante da ocorrência de revoluções tecnológicas, das mutações do sistema produtivo e das transformações da estratificação social.[12] Nesse talante, o presente trabalho pretende demonstrar que a sobreposição da razão, pelo homem, como meio de acesso às verdades absolutas (ideário do iluminismo), influenciou diretamente tanto o Direito quanto o processo civil, confinando os juristas a um mundo jurídico totalmente desvinculado do mundo da vida, do mundo social. Castanheira Neves leciona que a razão moderna levou o jurídico não mais a um mundo de soluções normativas para problemas práticos concretos, individualizados em sua problematicidade, mas a um sistema racionalmente normativo. Um “platonismo de regras” relacionado a uma sistematicidade normativoprescrita a-concreta, antecipada e logicamente construída, onde as soluções para os problemas em Direito haveriam de estar previamente previstas e deveriam corresponder à prática do dedutivismo-lógico (subsunção) mediante uma redução sistemático-conceitual.[13] Este é o terreno fértil para o desenvolvimento do positivismo jurídico, que a partir do positivismo sociológico comteano desenvolveu-se cientificamente, vinculado à necessidade de segurança da sociedade burguesa. Se o Ancien Regime enfraqueceu a justiça através de um imensurável uso do poder da força, fezse necessária a criação de uma sistematização jurídica que imporia aos juristas a valorização da lei. A partir de então, refere Ferraz Júnior, a tarefa do jurista passou a recair na “teorização e sistematização da experiência jurídica, em termos de uma unificação construtiva dos juízos normativos e do esclarecimento dos seus fundamentos”.[14] Conseqüentemente, o predomínio do vetor segurança sobre o vetor justiça condicionou a formação do espírito científico moderno, submetendo o pensamento jurídico a métodos e a princípios das ciências lógico-experimentais, ensejando, num movimento constante e gradativo, o início da era das codificações[15], onde o que realmente importava era a satisfação das leis do Estado, independentemente de eventuais injustiças, até mesmo porque o Direito se traduziria na expressão da vontade do soberano. Um mundo de conceitos e proposições jurídicas em-si-mesmadas, dando continuidade à tradição jusnaturalista e * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7534 a idéia de sistema enquanto método, onde o ser dos entes adviria do próprio texto positivado, desvelando-se pela prática da subsunção e seu estabelecimento das premissas maior (lei) e menor (caso concreto). A sede do iluminismo-racionalista pelo método (próprio das ciências lógicas) acabou por pretender descobrir um Direito em fases (interpretação-compreensão-aplicação), de forma que contivesse a exatidão de uma equação algébrica, contribuindo ao predomínio do valor segurança (certeza), que por sua vez é o elemento preponderante na formação do conceito moderno de Direito.[16] Conseqüentemente, o processo e a própria atuação jurisdicional passaram a ser guiados por essa ideologia. Assim, ao crerem que a lei – obra de exclusividade do legislador – seja análoga às proposições matemáticas, os juízes atingiram a tranqüilidade de consciência, o que lhes permitiu (e ainda permite!) a ilusão de se manter irresponsáveis.[17] Quanto ao processo civil, o método exigiu pensá-lo como uma equação algébrica que somente admitisse um resultado certo, uma verdade, que naquele caso seria absoluta. Observe-se a filiação do processo civil ao método subsuntivo-dedutivo, próprio do positivismo jurídico do século XIX, acabou sedimentando a criação de códigos de procedimento que “sofisticaram-se” a estimular o jurista a percorrer um caminho que partiria da verificação das proposições jurídicas para assim alcançar os fatos concretos, como se o processo fosse constituído por um sistema jurídico perfeito e acabado, onde o teórico procura ordenar os fenômenos a partir da utilização de conceitos que o “mundo jurídico” lhe oferece. Nesse diapasão, se a constituição do processo de conhecimento, na forma como estruturado nos dias de hoje, deita suas raízes no fenômeno da ordinarização procedimental, fruto do legado justinianeu na elaboração de uma atividade judiciária limitada à declaração de direitos, também o tem na construção do conceito moderno de Estado calcado nas filosofias do século XVII e no movimento positivista do século XIX. Estes, ao plenipotencializarem o ideal segurança, acabaram por apostar suas fichas numa Jurisdição neutra, donde decorre que o sentido da lei deve ser unívoco, cabendo ao juiz, dispensada a interpretação[18], declará-lo na sentença. São justamente tais elementos que serão investigados nas linhas que seguem. 2. A filosofia do racionalismo e suas conseqüências à Jurisdição e ao processo: o Direito seduzido pelo “método” dedutivo (e pela matematização) e a ficcionalização do texto legal (conceitualismo) na previsão de “todas” as hipóteses aplicativas A leitura do direito processual civil a partir da influência do pensamento racionalista presente no século XVII consiste num legado extremamente rico deixado pelo jurista Ovídio Baptista. Como poucos, o referido processualista teve a perspicácia de observar a necessidade de investigar o processo civil para além do dogmatismo, buscando os elementos necessários para diagnosticar as razões pelas quais as estruturas do procedimento (ordinário) ainda impõem ao juiz a autorização ao julgamento da contenda que se lhe apresenta somente após ampla discussão probatória (e contraditório prévio). Consoante o ideal racionalista, isso traria “segurança” ao julgador. Seria o processo de conhecimento, para o saudoso professor, enraizado com a exigência de que a verdade proclamada depois de um amplo debate judicial adviria de um juízo de certeza[19]. Um “instrumento” capaz de abrigar essa espécie de filosofia política, que possui na ideologia da separação dos * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7535 poderes sua base de sustentação. [20] Veja-se que a verificação do nascimento de uma “ciência” processual civil comprometida com a filosofia racionalista do século XVII, transformando o Direito numa ciência em busca da verdade, sem qualquer comprometimento com a justiça do caso concreto, contribuiu decisivamente para que Ovídio Baptista demonstrasse a cristalização histórica do modelo do ordo iudiciorum romano com seus correspondentes lógicos da actio e da ação condenatória, alertando (criticamente), por conseqüência disso, que somente o procedimento ordinário seria capaz de assegurar uma situação de neutralidade do juiz.[21] A aproximação com os filósofos racionalistas do século XVII exerceu um papel fundamental para que o processualista chegasse a essa conclusão. Trata-se de um século em que a filosofia necessitou de que o saber tivesse alcançado a idéia de um ser supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido. A escolha por métodos, como o da demonstração e o da dedução rigorosa, relacionam-se a esse desiderato. São eles os responsáveis pelo perpasse a toda a cadeia do cognoscível, onde nenhum elo pode ser separado na recondução à causa primeira do ser e da certeza.[22] É nesse talante que o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz e o inglês John Locke, filósofos do racionalismo, ocuparam um lugar de destaque na tentativa de “geometrizar” o Direito, local onde o exame do caso concreto deveria ser abandonado em razão da complexidade com que se revestia. Observe-se que Locke, em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690), dedicou-se a pesquisar as fontes do pensamento, uma vez que não aceitava a tese de que o ser humano já viria ao mundo com o conhecimento dentro de si, cabendo à filosofia apenas revelá-lo. Para o filósofo, a compreensão adviria unicamente da experiência, da demonstração (daí o surgimento do empirismo inglês), o que justifica porque Locke defendeu os direitos naturais, apreendidos pela razão, o que a sociedade civil deveria proteger. A obtenção do equilíbrio do homem com o direito natural derivaria da propriedade, que seria a forma do elemento constitutivo do sujeito humano. É a propriedade, em Locke, compreendida não somente enquanto objeto acumulado pelo trabalho, mas também enquanto vida e liberdade, tendo sua condição jurídica relacionada ao acúmulo de riquezas, uma situação que no estado de natureza está em igualdade originária. Este quadro assume uma posição diferente definida pela instituição da moeda, quando a propriedade passa então a ser trocada pelo dinheiro, superando os limites “naturais” da apropriação privada, transmudando um estado de paz natural num estado precário, gerando a necessidade de um poder político que construa leis para regulamentar e limitar a própria propriedade. [23] Entretanto, qual efetivamente o compromisso de Locke com as ciências matemáticas? E o reflexo disso para o Direito e para o Processo Civil? A investigação perpassa, obrigatoriamente, pela obra Processo e Ideologia, de autoria de Ovídio Baptista, e pela observação do autor de que em Locke o conhecimento pode ser intuitivo ou demonstrativo, tendo em qualquer caso origem nas sensações. No primeiro caso, a única certeza adviria da intuição imediata oriunda das percepções sensoriais. Para o filósofo inglês, as idéias morais seriam demonstráveis, tais como a matemática. Por isso é que Locke, seguindo a “onda” racionalista, preocupa-se com definições, não com o que acontece enquanto manifestação do comportamento.[24] Ao Direito (e, consequentemente, ao processo), dar-se-ia a separação entre o “mundo dos conceitos” e o “mundo dos fatos”[25], o que certamente sofreria a influência da própria * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7536 cisão entre práxis e doxa. Já o conhecimento demonstrativo seria aquele manifestado quando as percepções imediatas não se mostrassem possíveis. Vale então o alerta de Ovídio Baptista no sentido de que na visão lockeana a moral e (consequentemente) o Direito seriam “demonstráveis”, onde o acesso às próprias coisas mesmas dar-se-ia diante de um “conhecimento perfeito” num mundo composto de “acertos” e “erros”. O problema está em que o empirismo de Locke renunciaria o problema do conhecimento histórico. A hermenêutica em geral.[26] Também Leibniz, para o jurista gaúcho, teria contribuído na elaboração desse projeto de transformar a moral e o Direito em uma ciência demonstrativa. Referindo-se a Welzel, relata que Leibniz construíra um projeto de uma ciência do Direito enquanto ciência puramente racional, o que faria com que a própria jurisprudência, quanto ao que está positivado, apoiasse-se totalmente em fundamentos racionais, extraindo a decisão, na falta de disposição legal, do direito natural com o auxílio da razão.[27] Na obra Os elementos de direito natural o filósofo traz algumas passagens que acabam por desvelar um dos pontos de partida de que se valeu Ovídio Baptista na busca da compreensão das origens do atual sistema de conceitos em que o processo civil está embebido. Para o filósofo alemão a doutrina do Direito não dependeria da experiência, [...] senão de definições, não das demonstrações dos sentidos, mas da razão, e são, por assim dizer, próprias do Direito e não do fato. Assim, pois, como a justiça consiste em um certo acordo e proporção, pode entender-se que algo é justo, ainda que não haja quem exerça a justiça, nem sobre a quem recaia, de maneira semelhante a como os cálculos numéricos são verdadeiros, ainda que não haja quem numere nem quem numerar, da mesma maneira como não se pode predizer de uma coisa, de uma máquina ou de um Estado que, se existirem, haverão de ser charmosos, eficazes e felizes, ainda que nunca tenham existido. Por tanto, não é surpreendente que os princípios destas ciências sejam verdades eternas, pois todos eles são condicionais, e nem sequer necessitam que algo exista, mas apenas que aceitem sua suposta existência.[28] Disso se constata que em Leibniz as proposições jurídicas haveriam de admitir uma significação precisa, das quais fosse possível extrair conseqüências igualmente definidas e inquestionáveis, o que torna possível compreender, justamente a partir da tentativa de superação do dogmatismo e da constante busca pela recuperação da dimensão hermenêutica no direito processual, porque Ovídio Baptista dedicou uma vida a demonstrar as raízes do processo civil enquanto fenômeno diretamente relacionado a filosofia do racionalismo e a uma “ciência de demonstração”, os quais, por sua vez, teriam contribuído decisivamente para o estabelecimento do pensamento conservador[29] em processo. Um pensamento relacionado a uma “ciência do processo” preocupada com a clareza dos textos jurídicos, partindo do pressuposto que estes deveriam conter o sentido das próprias proposições jurídicas, relegando a linguagem a uma terceira coisa, já que seu fundamento estaria em “encontrar significados” que justificassem os exemplos “mais representativos”.[30] O presente trabalho compartilha da visão de que é justamente esse pensamento que sustenta a ideologia do atual processo de conhecimento, local, como logo se verá, onde residem o magistrado e sua neutralidade. Uma neutralidade advinda da tentativa racionalista de transformar o Direito numa ciência lógica, matematizada, cuja produção caberia ao “iluminado” legislador, o qual teria a missão de produzir um texto de lei tão claro e transparente que fosse capaz de dispensar sua interpretação.[31] São muitos os resquícios dessa forma de pensamento em nosso sistema processual civil. Afinal de * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7537 contas, quão “matematizante” é a chamada “súmula impeditiva de recurso”, prevista no §1º do artigo 518 do código de procedimento, através da qual pode o juiz não receber o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, como se as respostas às singulares relações jurídicas materiais submetidas em processo fossem de alguma forma “demonstravelmente” antevistas pelas súmulas e por sua capacidade de enunciar significados. O que dizer, nesse mesmo sentido, quando o legislador, ao tratar do recurso especial, acrescentou a alínea “c” no artigo 543 do código de processo civil, levando inclusive a doutrina (em sua grande maioria, de forma a-crítica) a cunhar a expressão “recursos repetitivos”. Tal dispositivo pressupõe (de forma absolutamente ficcional) a possibilidade da existência de uma multiplicidade recursal com fundamento “em idêntica questão de direito”, cuja “ocorrência” autoriza o presidente do Tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça “representado” os demais que assim ficariam suspensos. Estes são exemplos que demonstram claramente como o processo civil de que se dispõe atualmente mantém-se adstrito ao espírito dogmático, longe das ciências da compreensão. Um processo que renuncia a historicidade e a própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva); que representa os ideais de um racionalismo focado na satisfação do binômio certeza e segurança em prol de uma sociedade excludente e concentradora do poder; que continua a buscar, em pleno século XXI, e diante de um paradigma estatal que se expressa enquanto meio transformador da realidade, o desvelar de verdades eternas. E o fará fomentando a reprodução de súmulas, de sentenças anteriores de improcedência (vide artigo 285-A do código de procedimento), etc., na vã ilusão de que tais “instrumentos” contêm o significado de todos os casos, já que detém todas as hipóteses aplicativas em Direito. Trata-se, como já afirmara Castanheira Neves, de uma nítida tentativa de fungibilização do fático, pressupondo que algumas lides são idênticas, merecendo, diante disso, tratamento idêntico. É assim que o caso concreto perde completamente sua singularidade, tornando-se uma espécie de exemplar de um gênero que o absorve, dando azo à construção de sentenças objetivas e eliminando qualquer possibilidade de compromisso ético daquele que as prolata. Fomentando, ainda, a funcionalidade (Castanheira Neves) do Direito a serviço do político.[32] O sonho racionalista, como se percebe, é o sonho da exatidão, da demonstração (matemática), da descoberta, o que o Direito e o processo civil não tiveram como escapar. E se tanto o Direito quanto o processo civil haveriam de ser exatos, as respostas da Jurisdição não poderiam compartilhar o erro.[33] Não poderiam compartilhar, v.g., em razão mesmo da ânsia por segurança, com a emissão, em processo civil, de juízos de verossimilhança. Este é um problema paradigmático no processo civil. Qualquer um que proponha romper com a “sagrada” ordinariedade deve se dar conta disso. Deve investigar as conseqüências desse pensamento para o processo e seus institutos. Um pensamento que expurgou os fatos em processo civil, criando a possibilidade de sua reunião em súmulas e enunciados, e até mesmo diante da “jurisprudência dominante”, como se outras lides fossem idênticas à lide “rotulada”. As respostas em processo civil, a partir disso, devem ser certas ou erradas; são dependentes de definições, que sempre vem pré-dadas (Savigny). Como se fosse possível permitir ao homem a construção de um mundo harmônico e tranqüilo. Essa é a ideologia do agir jurisdicional a partir do século XVII e da * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7538 construção do Estado da modernidade, onde o Direito passa a ser obra exclusiva do legislador. Ao juiz não restaria alternativa senão a de se transformar no oráculo da lei (local onde foi aprisionado) através da prática do silogismo, o que hoje revela o componente autoritário dessa ideologia, escancarada num Direito produzido unicamente pela “vontade soberana” e reproduzido pela funcionalidade judicial. Veja-se que, como já se referiu, a conseqüência desses fenômenos no âmbito do processo civil não poderia ser outro: a proscrição dos provimentos fundados em juízos de verossimilhança. A “matematização” do processo levaria a magistratura a uma condição de reprodutora do sentido da lei, de declaração de seu sentido, o que somente poderia ocorrer após cognição exauriente (cujo local de manifestação seria o rito ordinário), dada mesmo a compreensão do Judiciário como um poder subordinado, retirando qualquer compromisso de eticidade dos juízes no momento de dizer o Direito. A própria dificuldade de aceitação, pela processualística moderna, na concepção de uma tutela unicamente preventiva, advém dessa relação do processo à filosofia do racionalismo. Tais julgamentos seriam eminentemente provisórios (a própria ação cautelar prescinde do ajuizamento de uma “ação principal” que lhe dê fundamento); incompatíveis, portanto, com a revelação, pelo juiz, da vontade da lei (Chiovenda).[34] Qualquer decisão calcada em juízo de verossimilhança acabaria correspondendo à “justiça do juiz”, o que o próprio processualista advertira. Ainda no século XVII, antecedendo a Locke, Hobbes, em seu Leviatã, contribuiu decisivamente para a instauração desse paradigma ao afirmar que a missão do juiz não deveria ser outra que não a de reproduzir a lei, assim considerada a construída unicamente pelo legislador. A bem da verdade Hobbes foi um dos precursores a sustentar o inter-relacionamento entre a moral e as ciências da demonstração, o que afetaria, conseqüentemente, o Direito. A obsessão hobbesiana em transformar a moral e o Direito em disciplinas científicas veio a enfatizar, ao tratar da natureza do Estado, a construção de uma ciência civil[35] fundada num nominalismo radical que o levaria a ocupar, posteriormente, a posição de “pai do positivismo moderno”.[36] Isso porque, como alerta Cassirer, para Hobbes a verdade seria criação livre do homem, enquanto ser detentor da palavra e da linguagem; uma articulação de nomes (nominalismo) distante da realidade dos fenômenos, dos fatos, onde o conceito se manteria dentro dos limites por ele mesmo traçado.[37] Nesse talante, a fixação dos filósofos do racionalismo pelos métodos das “ciências autênticas”, os quais serviriam por si só para ditar a aceitação das verdades que descobrissem, teria influenciado diretamente na relação dos vínculos entre o direito processual civil, o agir jurisdicional e a construção do conceito político de Estado na modernidade. Hoje é possível dizer que é inaceitável que o processo continue a ser seduzido por uma lógica metafísico-universalizante típica do Estado liberal e da filosofia da consciência, que se ancora principalmente no rito ordinário (e, conseqüentemente, no instrumentalismo, na técnica) como condição de possibilidade (validade) à produção-satisfação jurisdicional e à proteção de relações obrigacionais ou patrimoniais, local de uma jurisdição concebida como um poder (deslegitimo) solitário do juiz. O próprio Direito, em pleno século XXI (locus de novos direitos), deve ser compreendido enquanto meio transformador da sociedade, não mais simplesmente mantenedor da ordem ou cessionário do poder político às mãos dos detentores do poder econômico, característica de um Direito (e de um processo) liberal. Os novos direitos, pós-modernos, exigem também um processo pós-moderno, não simplesmente racional- * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7539 iluminista. Exigem um re-pensar da atividade cognitivo-processual que guarde relação a um processo civil compreendido enquanto fenômeno, impedindo que a força do ritualismo fase-a-fase ordinário seja um óbice à satisfação dos direitos sociais-fundamentais. Um processo construído democraticamente (com participação ativa dos envolvidos) diante de um compartilhamento de poderes entre o juiz e as partes, onde o diálogo seja o fio condutor a desvelar a compreensão do caso concreto diante de um redimensionamento espaçotemporal na trajetória processual. Por isso é fundamental, nessa quadra da história, pensarmos em locus processuais de abertura à sociedade, rompendo com a estrutura tripartite em processo e, conseqüentemente, com uma função jurisdicional institucionalizada na posição de um terceiro a quem incumbe ditar o certo ou o errado. Uma abertura que a própria constitucionalização exige diante do resultado da história e da cultura. Conclusão A clássica dificuldade do processualismo moderno em compreender hermeneuticamente o direito processual civil condicionou os rumos do processo, levando-o a um déficit de realidade. Tal lacuna cognitiva deve-se principalmente a fixação da doutrina processual em atribuir ao juiz a missão de desvelador de verdades a partir de uma atividade tecnicamente exauriente. A correspondência entre sua “consciência” e o objeto investigativo serviria como pauta fulcral inclusive na evolução do direito de “ação processual”. A fonte disso, pelo que se pôde perceber nas linhas acima, está na relação do Direito e do processo com a filosofia do racionalismo e com o Estado liberal e sua teoria da separação dos poderes. Essas são as causas para o excessivo apego ao procedimentalismo no direito processual civil. Uma obsessão que acabou renunciando o plano fático, o mundo da vida (Husserl), elegendo a razão como meio de acesso as coisas em processo. Qualquer pesquisa que tenha por objetivo aprofundar as raízes históricas da Jurisdição e do processo civil não pode desconsiderar esse fenômeno. Não pode simplesmente ignorar a tradição em que o processo está inserido. Caso contrário será uma pesquisa a-histórica, anti-hermenêutica. Diante disso, o presente artigo propôs alertar que em pleno paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito o processo civil deve abrir-se a novas operações cognitivas, trabalhando em prol da satisfação dos direitos sociais-fundamentais previstos na Constituição. O problema é que o procedimento ordinário, pelo que se viu, tem se revelado incompatível com esse desiderato. Isso porque tais direitos não podem esperar pelo ritualismo fase-a-fase. Esse método satisfaz sistemas racionamente normativos, relacionados a uma sistematicidade normativo-prescrita a-concreta, antecipada e logicamente construída (Castanheira Neves), local onde habita o vetor “segurança jurídica”, tal qual prescrito pelo liberalismo. É evidente que todos almejam segurança quando se socorrem do processo civil. A questão está em compreender que essa segurança não é e nem pode ser pré-dada. Ela é (deve ser!) construída, o que condiciona o direito processual civil a ser estudado enquanto fenômeno, enquanto ciência da cultura, da compreensão. Enquanto ciência do espírito, não enquanto ciência da demonstração. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7540 Viu-se que os filósofos do racionalismo pretenderam alçar o método à condição de possibilidade para o reconhecimento dos direitos. Deram suporte à sofisticação (ao menos pensaram ter sofisticado) e a clareza dos textos jurídicos, partindo do pressuposto que estes deveriam conter o sentido das próprias proposições jurídicas, relegando a linguagem a uma terceira coisa. Olvidaram a posição do intérprete nessa construção. O processo civil, diante disso, passou a ser estudado e aplicado como pura atividade metódica, matematizada, geometrizada, local onde a súmula, o enunciado, a “jurisprudência dominante”, ferramentas do juiz e de seu solitarismo, ocuparam um lugar de destaque, a desprezo da singularidade de cada concreto. Logo, o presente trabalho teve por objetivo maior alertar pela necessidade de um re-pensar no direito processual civil. Uma nova leitura de processo que rompa com a estrutura tripartite, almejando a construção de um local de exercício de poder compartilhado, difundido, ainda que a partir de cortes de sumarização processual e material. Um local não habitado pelo juiz neutro ou pelo juiz protagonista (o de Oskar Vön Bülow), mas pelo juiz participativo-democrático. Um locus processual de abertura à sociedade. Referências ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Direito, marxismo e liberalismo. Florianópolis: Ed. Cesusc, 2001. BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008. . CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992. . O problema do conhecimento. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1993. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido?O problema actual da autonomia do Direito. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2002. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2009. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Volume I. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1997. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Tradução para o espanhol de Tomás Guillén Vera. Madrid: Ed. Tecnos, 1991. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Ed. Bookseller, 2001. MERLO, Maurizio. Poder natural, propriedade e poder político em John Locke. In: O Poder: história da filosofia política moderna. Giuseppe Duso (org.). Tradução de Andrea Caiacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XIII. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1976. ROCCO, Arturo. La riparazione alle vitime degli errori giudiziari. Nápoles: Ed. Jovene, Ed. Jovene, 1906. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7541 Unesp, 1999. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997. . Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. . Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2009. WACH, Adolf. Manual de derecho procesal civil. 1ª ed. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1977. [1] O positivismo guarda relação a doutrina comteana, que no século XIX, sob a justificativa de negação da metafísica, deu preferência às ciências experimentais, partindo do pressuposto de que a ação humana é sempre limitada, supondo que o desenvolvimento humano é sempre o mesmo, apenas modificado na desigualdade de sua velocidade. Já o positivismo jurídico é uma tendência científica, ligada a necessidade de segurança pela burguesia, no mesmo século XIX. Cf. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2009, pp. 31-32. [2] O termo sociedade, no presente artigo, aproxima-se do pensamento de Bauman, para quem a sociedade guarda relação com o ato de compartilhar e de respeitar o compartilhado; com o poder que faz com que aquilo que foi concordado e compartilhado seja dignificado. Isso porque, como a própria natureza, a sociedade estava aqui muito antes de qualquer um de nos ter chegado, e aqui continuará após todos terem partido. A sociedade é um mito vivo do significado da vida humana, uma desafiadora criação de significados (parafraseando Ernest Becker). Por isso as sociedades são as sementeiras da vida com sentido. In: A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008, p. 08. [3] Para um maior aprofundamento, consultar: WACH, Adolf. Manual de derecho procesal civil. 1ª ed. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1977. [4] Cf. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido?O problema actual da autonomia do Direito. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2002, p. 10. [5] Idem, ibidem, pp. 10-11. [6] Um bom exemplo disso são as ações de natureza especial, ou procedimentos especiais. Ensina Pontes de Miranda que tais procedimentos justificam-se para a obtenção de tutela jurídica quando, por algum dado do direito material, ou do documento em que se funda a demanda, ou da pessoa autora, ao legislador pareceu inadequada a forma ordinária. Entretanto, lembra o autor que a especialidade nem sempre significa exclusão da ordinariedade (o que demonstra o apego ao rito ordinário), que por vezes persiste e apenas se modifica diante da roupagem especial. In: MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XIII. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1976, pp. 03-04. [7] O que, de certa forma, encontra guarida na obra de J.J. Calmon de Passos, para quem “só há direito que o processo produz”. In: É possível pensar o direito processual. Revista Incijur, n. 63. Joinville, outubro de 2004, p. 02. [8] O que guarda relação com a “transformação” do direito processual em ciência, em método, onde não há espaço para o caso concreto, que para ela é secundário, afinal de contas o que importa é a projeção das formas das relações processuais em-si-mesmas. [9] Ainda que o Brasil esteja diante de uma espécie de pré-modernidade, o que é possível concluir justamente em razão da inoperacionalidade, em terra brasilis, do Welfare State. Para um maior aprofundamento, consultar: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Direito, marxismo e liberalismo. Florianópolis: Ed. Cesusc, 2001, p. 56. Já em Chevallier, parafraseando Cooper, o Brasil é um exemplo de um autêntico Estado moderno, vinculado à noção tradicional de Estado como detentor do monopólio da força. Cf. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009, p. 21. [10] Sobre a influência do racionalismo-iluminista no pensamento filosófico, consultar: CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992. Refere o autor, em p. 24, face ao referido tema, que “o século XVII via na construção de sistemas filosóficos a tarefa própria do conhecimento filosófico. Para que lhe parecesse verdadeiramente filosófico, era preciso que o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia primordial de um ser supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido. É o que efetivamente ocorre quando, pelo método da demonstração e da dedução rigorosa, são mediatamente ligadas à certeza primordial outras proposições, a fim de se percorrer, por meio dessa conexão mediata, toda a cadeia do cognoscível e de a encerrar sobre si mesma.” [11] Esse, na verdade, é o ponto central do Direito moderno, o que restou bem identificado por Jürgen Habermas na obra Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Volume I. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7542 1997, pp. 45-47. [12] Cf. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Op. cit., pp. 16-17. [13] Cf. CASTANHEIRA NEVES, António. O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do Direito. Op. cit., pp. 25-26. [14] Cf. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A ciência do Direito. Op. cit., p. 32. [15] Ovídio Baptista lembra, contudo, que se mostra interessante observar como o predomínio da segurança sobre os ideais de justiça que, na Europa continental, deu ensejo à era das codificações, foi igualmente uma constante na doutrina jurídica inglesa, embora a Inglaterra, fiel ao mesmo princípio, tivesse procurado idêntica segurança para o Direito no sistema dos precedentes, evitando a codificação. In: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 105. [16] Idem, ibidem, p. 110. [17] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 16. [18] Lembra Ovídio Baptista que ao juiz não seria dado hermeneuticamente compreender a norma jurídica, mas, ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o problema algébrico da descoberta de sua vontade. Reproduziu-se no século XIX a tentativa de Justiniano de impedir a compreensão hermenêutica de suas leis. Ibidem, p. 24. [19] Sobre isso, mostra-se interessante a conclusão de Malatesta, que concentra justamente a antítese do pensamento de Ovídio Baptista: “se a certeza tem uma natureza subjetiva, o sujeito natural não é e não pode ser senão a alma do julgador (grifou-se). Em virtude de uma simples dedução, poder-se-á ser obtida sem necessidade de qualquer outra indagação, sob o ponto de vista racional”. Cf. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Ed. Bookseller, 2001, p. 47. [20] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. Op. cit., p. 117. [21] Ibidem, p. 132. [22] Cf. CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Op. cit., p. 24. [23] Cf. MERLO, Maurizio. Poder natural, propriedade e poder político em John Locke. In: O Poder: história da filosofia política moderna. Giuseppe Duso (org.). Tradução de Andrea Caiacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 157. [24] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., pp. 80-81. [25] Idem, ibidem. [26] Idem, ibidem, pp. 82-84. [27] Idem, ibidem, pp. 77-78. [28] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Tradução para o espanhol de Tomás Guillén Vera. Madrid: Ed. Tecnos, 1991, pp. 70-71. [29] Um pensamento que possui como marca registrada a “naturalização” da realidade que ele próprio elabora, de modo que todo aquele que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico. In: SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., p. 16. [30] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos de Derecho natural. Op. cit., p. 72. [31] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., p. 24. [32] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2009, p. 09. [33] Até mesmo porque ao Estado cumpriria a função de indenizar o lesado em caso de erro jurisdicional. Para um maior aprofundamento sobre o tema, especialmente no que se refere à responsabilidade do Estado e à responsabilidade pessoal do juiz, consultar a seguinte obra: ROCCO, Arturo. La riparazione alle vitime degli errori giudiziari. Nápoles: Ed. Jovene, Ed. Jovene, 1906. [34] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Op. cit., p. 108. [35] Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Unesp, 1999, p. 17. [36] Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 75. [37] Cf. CASSIRER, Ernest. O problema do conhecimento. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1993, pp. 181-184. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7543