A VIDA E OS DIREITOS HUMANOS Itamar Soares Veiga1 Resumo: Este artigo trata do tema dos direitos humanos através da hipótese de um espaço prévio à própria área do direito. Este espaço prévio é ocupado por diferentes conteúdos como os direitos naturais, a pergunta pela fundamentação do direito e a concepção de “vida nua”. Esta hipótese é confirmada pela argumentação ao longo do texto. O resultado final busca acentuar a importância de duas possibilidades para preencher o espaço prévio perante a tarefa de refletir sobre os direitos humanos e na própria área do direito em si mesma. Estas possibilidades são: a abertura proporcionada por uma posição filosófica e a “vida nua”, concepção retirada do texto de Agamben. Palavras-chave: Direitos naturais. Direitos humanos. Posição filosófica. Vida nua. LIFE AND HUMAN RIGHTS Abstract: This article seeks to investigate the issue of human rights through the hypothesis of a previous space to their own area of law. The previous space is occupied by different contents such as natural rights, the question about the foundation and the concept of “bare life”. This hypothesis is supported by the argumentation in the text. The final result aims to accentuate the importance of two possibilities to fill the previous space in the task of reflecting about the issue of human rights and on the area of law itself. These possibilities are: the opening provided by a philosophical position and the “bare life”, conception caught from the text of Agamben. Keywords: Natural rights. Human right. Philosophical position. Bare life. Os direitos humanos possuem um marco histórico expresso na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. É possível também descrever um percurso histórico mostrando uma evolução a partir de uma ótica teórica determinada. Esta descrição apenas revelaria os fatos históricos antecedentes dos direitos humanos antes da declaração de 1948, considerando todos eles como que encadeados por uma ótica ou posição específica, e esta possibilidade permaneceria no âmbito da especulação. Para um aprofundamento filosófico do tema é necessário 1 Mestre e doutor em Filosofia, atualmente é professor da Universidade de Caxias do Sul e integra o Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Filosofia. 52 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 um outro enfoque, onde o elemento histórico seria apenas um auxílio disponível, mas não o elemento central. Um aprofundamento filosófico possível pode ser encontrado através do fio condutor da positividade do direito. A investigação do caráter positivo do direito, como um todo, demonstra o espaço que antecede o ordenamento jurídico, mas o inspira; demonstra o problema de fundamento do direito enquanto área de conhecimento e demonstra o estabelecimento do direito por meio do poder estatal. Além disso, no contexto deste artigo, o aprofundamento filosófico do direito não se torna disperso entre os diferentes conteúdos e áreas do âmbito jurídico, mas mantém como referente os direitos humanos. E, este é o primeiro elo de nossa investigação: um aprofundamento do direito por meio do estudo dos espaços teóricos que o cercam como a positividade, fundamentação e o tema complexo dos direitos humanos. O segundo elo de nossa investigação é a vida, considerada “tal como ela é”. O que significa a “vida tal como ela é”? Nesta expressão queremos denotar a vida dentro de uma difícil classificação de ser em si mesma. Ou seja, a “vida tal como ela é” não significa a vida em uma das formas possíveis dentro de um relativismo cultural, ou mesmo, compreendida a partir de um ou mais dos seus sentidos históricos. No sentido expresso neste artigo, a “vida tal como ela é” significa uma instância fora do relativismo das culturas e épocas, fora do ordenamento jurídico e diferente do poder estatal. Com estas qualificações, a expressão a “vida tal como ela é” busca se aproximar do significado almejado na expressão “direitos naturais” e, também, busca ser coincidente com o uso da expressão “vida nua” por Giorgio Agamben. Esta investigação pretende estudar filosoficamente o âmbito do direito na medida em que um conceito dá origem a um outro, como é o caso dos direitos naturais e dos direitos humanos. Além disso, a investigação pretende explorar outros espaços que serão indicados pelos problemas decorrentes da fundamentação do direito. E, como um elemento que ilustra a complexidade na geração de conceitos e a ambiguidade da positividade do ordenamento jurídico, trataremos do conceito de “vida nua” e de poder soberano através de um recorte da análise de Agamben. O estabelecimento destes três eixos deve prover uma base de apoio na forma de subsídios filosóficos que auxiliem a compreensão de problemas vinculados aos direitos humanos, seja quando estes são objetos de preocupação das entidades estatais ou de organizações supranacionais. Para alcançar os nossos objetivos acima, vamos tratar, em primeiro lugar, das diferenças entre os dois tipos de direitos: naturais e humanos, através do verbete de Brenda Almond: “Los Derechos” constante no livro organizado por Peter Singer: Compendio de Ética (1995). Em segundo lugar, vamos ressaltar o problema da fundamentação do direito, onde se mostra a ameaça da positividade e a necessidade de esclarecer as posições filosóficas adotadas. Para esta seção, utilizaremos alguns elementos centrais Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 53 da análise de Ernildo Stein, que se encontram no livro Exercícios de fenomenologia – limites de um paradigma (2004). Em terceiro lugar, vamos ampliar o status de positividade, mesmo que mínima, do direito para o âmbito da sua instituição efetiva. Isto será feito para anunciar um quadro geral que subjaz ao direito e às complexidades de seus conteúdos, onde o nosso conteúdo catalizador configura-se nos direitos humanos. Para isto utilizaremos as concepções de “vida nua”, soberano e exceção, retiradas do livro Homo sacer – O poder soberano e a vida nua I (2010) de Giorgio Agamben. OS DIREITOS NATURAIS E OS DIREITOS HUMANOS Brenda Almond (1995), em sua exposição sobre o tema geral dos direitos, mostra diferentes relações entre os direitos naturais e os direitos humanos. Inicialmente, ela refere que os direitos naturais constituem as raízes dos direitos humanos universais2. Mas, a seguir, Almond (1995) começa a apresentar alguns elementos de oposição entre estes dois tipos de direito. Estes elementos de oposição remetem a um fator mais específico no âmbito do direito, trata-se das leis. Assim, a noção de direitos naturais, conduz a noção de leis naturais, as quais não deveriam ser variadas conforme as circunstâncias e as culturas. No entanto, a comparação entre “direitos” em seu sentido amplo, mas aplicado, mostra que determinadas leis existentes em diferentes culturas, resultam também diferentes entre si. Isto posto, frente à noção de lei natural, derivada da noção de “direito natural”, abre-se a possibilidade de que uma lei, instituída e aceita em uma determinada cultura, seja “injusta” a partir da perspectiva das leis naturais que, por serem universais, servem como parâmetro para a geração e consideração posterior das próprias leis instituídas. Brenda Almond destaca o papel dos estoicos sobre este aspecto: [...]. Os gregos, em particular os filósofos estóicos, admitiam a possibilidade de que a leis humanas reais fossem injustas. Observaram que as leis variavam de um lugar a outro, e chegaram à conclusão de que estas leis vigentes – leis por convenção – podiam se contrastar com uma lei natural, a qual não era assim tão variável ou relativa. Uma lei a qual todos tivessem acesso mediante a consciência individual, e pela qual podiam julgar por si mesmos, e ocasionalmente denunciar, as leis reais de épocas e lugares concretos (ALMOND, 1995, p. 362). Brenda Almond acrescenta também uma observação de cunho histórico sobre a transição da compreensão das leis naturais para a dimensão da consciência 2 Estas raízes podem ser encontradas no trabalho de Hugo Grocio conforme Stephen BUCKLE: “Da mesma forma que os seus precursores antigos e medievais, o direito natural do começo da modernidade também se interessou de maneira destacada por refutar o ceticismo. Por isso, também tendeu a ter conclusões muito gerais, não sendo sempre útil como guia prático. Não obstante, a variante moderna proporcionou a base da teoria secular dos direitos humanos. Os elementos básicos de tal teoria se expuseram com claridade nos escritos de Hugo Grocio, de forma que este foi considerado o pai do direito natural moderno” (1995, p. 242). 54 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 individual. Esta transição desenvolveu-se de forma evolutiva, da Antiguidade até a época Moderna. Assim, segundo Almond (1995), a ideia de lei natural resultará a noção de direitos naturais. Estes direitos naturais se colocavam fora do âmbito jurídico das leis “reais de épocas e lugares concretos” (1995). Este importante aspecto do estar “fora”, ou externo, ou excluído do ordenamento jurídico será retomado mais adiante, quando tratarmos da concepção de “vida nua” de Agamben. A passagem em que Almond faz a sua observação de cunho histórico sobre o substrato, que prepara a época moderna e faz vicejar, de forma preliminar, a importância dos direitos naturais é a seguinte: Se bem que os gregos não realizaram esta transição, de fato esta ideia de lei natural facilmente desemboca na noção de direitos naturais que delimitam um âmbito no qual, as leis feitas pelo homem, as leis dos Estados, estão sujeitas a limites impostos por uma concepção de justiça mais ampla. Mas, é significativo que, na época antiga, tenha sido este conceito de pessoa interior independente do contexto social o que fez do estoicismo uma filosofia especialmente atrativa para os escravos – ou para as pessoas cujos direitos careciam por completo de reconhecimento público ou social (ALMOND, 1995, p. 362). A lei que carrega a possibilidade de ser “injusta” é aquela que pode variar de um lugar para outro, pois, a forma como é instituída, é por convenção. É a variabilidade, originada nas diferentes convenções possíveis e encontráveis, que abre a possibilidade de conflito com a lei natural. A lei natural, por sua vez, se diferenciaria da lei por convenção por repousar sobre um espectro mais amplo, não determinável por convenção e potencialmente percebível por todos. Este espectro mais amplo que se anuncia sob a forma de lei natural, termina por se configurar na concepção de “direitos naturais”. Os direitos naturais se tornariam uma base importante para a filosofia contratualista do século XVII. Contudo, a questão do acesso à lei natural se torna um tema urgente. Se, a lei natural não é determinada por convenção, então de alguma forma ela já está em vigor e todos devem poder compreendê-la. Mas, a própria concepção de “consciência individual”, enquanto conceito singular, possui uma evolução própria. Esta evolução é acompanhada e influenciada pelas mudanças na sociedade. Portanto, esta forma de acesso da consciência individual, até se tornar expressa na época moderna, assume um modo subjacente de influência, durante as épocas anteriores da Antiguidade e da Idade Média. É importante notar que no seu processo de evolução, a noção de lei natural repousa em um espaço de abstração que não é exatamente o da formação do Estado ou o da constituição da sociedade, no modo como mais tarde a expressão “leis naturais” será utilizada pelos contratualistas no século XVII. A noção de “lei natural” é compreendida, nesta influência subjacente e não moderna, como “lei moral”, a qual pertence a um âmbito de discussão diferenciado frente ao direito: o âmbito da ética. Assim, a expressão “lei natural” compreendida e tratada como “lei moral” evolui assumindo uma crescente autonomia. Ela se defronta com os desafios da Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 55 sociedade rumo ao seu amadurecimento na época moderna. A noção de lei natural perpassa o âmbito da moral e da ética3, resultando na noção de “direitos naturais”. Segundo Almond (1995), “a consciência individual” e o “respeito ao indivíduo” dão oportunidade para vigorar uma lei moral que se torne independente do que vigora de forma local através da convenção. A autora menciona o desenvolvimento da “consciência individual” e o “respeito ao indivíduo”, através dos fatos desencadeados pelo movimento cristão e aqueles que levaram a derrubada de Carlos I, em 1649, na Inglaterra: Um elemento adicional no desenvolvimento da concepção de uma lei moral independente de sua vigência local foi o respeito ao indivíduo e a consciência individual característica da religião cristã, ainda que os cristãos estejam divididos sobre a questão de se a lei é independente de Deus ou é o resultado de um mandato divino. Não obstante, em ambos os casos, se crê em uma relação entre ser humano e sua consciência que inclusive pode justificar o rechaço dos súditos a seu governante. Uma ilustração contundente disso foi o processo, e execução do rei Carlos I em 1649. Um acontecimento que, segundo alguns, marca o início da concepção moderna de direitos (ALMOND, 1995, p. 362). No quadro inicial fornecido por Almond (1995), nós podemos identificar que direito natural não é o mesmo do que o direito institucionalmente constituído, não sendo também os direitos humanos. Os direitos humanos são o resultado de um processo que passa pela formulação dos direitos do cidadão na Revolução Francesa. Por outro lado, os direitos naturais não são os direitos humanos porque se situam no princípio da filosofia política, ao serem utilizados como constructos teóricos, pois as elaborações das filosofias contratualistas. E, nos direitos naturais repousa uma herança importante: a noção de um âmbito “fora” do direito das leis convencionais. Este âmbito “de fora” pode receber uma posição filosófica, e assim, servir como espaço de apoio para que esta tal ou tal posição filosófica estabeleça uma fundamentação possível do direito. Isto será visto no próximo item. E, por outro lado, este âmbito “de fora” do direito pode ser tematizado através das concepções de vida nua e de exceção, ambas encontradas na obra de Agamben, a qual nós abordaremos na terceira parte. Na próxima seção vamos tratar dos problemas da fundamentação do direito, destacando a positividade que lhe é inerente. O ESPAÇO PRÉVIO NO PROBLEMA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO O direito convencionado, isto é, instituído, seja na forma dos direitos humanos, seja em qualquer outra forma, possui um grau de positividade que orienta a sua aplicação. Esta positividade surge em um ordenamento de uma 3 Neste artigo compreendemos a moral e a ética como instâncias diferentes. A moral remete às ações no mundo cotidiano e a ética visa a uma reflexão em um processo argumentativo de justificação. 56 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 visão específica, ou seja, sob uma determinada visão do mundo que é acionada e assumida. Então, o direito, em sua positividade, apresenta uma visão de mundo determinada que remete à efetividade concreta (a sua aplicação enquanto sanção possível). A proximidade entre a interpretação do mundo, através de uma visão determinada que é assumida, e um grau mínimo de positividade, se “coagulam” no mundo através de uma intervenção. Em outras palavras, o direito passa da positividade inserida no seu discurso para a efetividade do mundo, modificando-o. A questão que se coloca para o direito, em sua mínima positividade4, é a da sua fundamentação. Esta questão pode ser expressa na seguinte pergunta: o que fundamenta o direito em sua estrutura de leis, instâncias discursivas e intervenção na realidade? Uma resposta, que apela apenas para o texto da lei, será considerada demasiadamente positiva, além de enfrentar o problema de a lei ser de âmbito geral, e a sua aplicação remeter a instâncias singulares. A investigação sobre a fundamentação do direito ultrapassa as instâncias do discurso jurídico e entra no discurso filosófico. Neste novo discurso, a filosofia que tematiza o direito, deve mostrar e oferecer diferentes posições filosóficas. Ou a própria formulação filosófica deve assumir tal e tal posição de forma clara. Ernildo Stein, em seu livro Exercícios de fenomenologia – limites de um paradigma (2004), analisa esta peculiar relação que o direito estabelece com a filosofia, quando o que está em jogo é a fundamentação. Stein propõe diferentes matrizes de pensamento dentro da filosofia, as quais ele denomina diferentes “standarts de racionalidade”5 (STEIN, 2004). Neste enquadramento da questão do fundamento, o direito é apresentado em sua relação com a filosofia sob uma forma crítica: “O discurso jurídico que se multiplica infinitamente na tentativa de uma autofundamentação positiva torna-se, assim, a manifestação mais clara dos impasses de qualquer teoria que se quer fundamentar positivamente” (STEIN, 2004, p. 152). Isto interpõe ao direito uma dificuldade. Uma “autofundamentação positiva” não é desejável, e o direito deve recorrer a um outro recurso para justificar a sua fundamentação. Este recurso deve estabelecer uma posição ou um espaço de reflexão, onde as proposições plausíveis sobre o próprio fundamento do direito possam ser colocadas. Neste momento a filosofia é convocada para estabelecer claramente uma posição e permitir um espaço de reflexão. E, na interface com o direito, a filosofia surge sob a figura de uma esperança de “orientação”: Sem dúvida, quando no Direito confessamos a nossa perplexidade, já estamos abrindo a guarda e manifestando a esperança de uma “orientação”. Então a Filosofia a que pretendemos recorrer deve ter uma atualidade que se impõe 4 Dizemos que o direito possui uma positividade mínima quando o direito não se prende à positividade da lei, mas ainda assim permanece positivo, mesmo em uma base relativizada. Por isto, acrescentamos a expressão adjetiva: “mínima”. 5 O autor defende um standart de racionalidade oriundo da fenomenologia hermenêutica como será visto no texto. Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 57 pela sua novidade ou então pelo fato de ter sobrevivido a muitos testes em debates históricos. [...]. Assim também, no Direito, se espera da Filosofia um todo harmônico onde encontrar uma instalação na realidade, de poder viver no mundo. Era assim que a Filosofia, enquanto orientação, sempre foi compreendida como estabelecimento de uma visão de mundo, ou como modo de uniformização da realidade, tendo a função de orientação sobre a realidade e num mundo. Quando o Direito espera uma orientação da Filosofia, ele não a quer como uma imagem filosófica do mundo, ou como uma moldura de orientação filosófica. A orientação, então, não quer ser simplesmente a instalação de uma perspectiva filosófica no Direito. Se fosse assim o Direito encontraria na Filosofia sempre novas imagens de mundo e molduras de orientação que transformariam a realidade na uniformidade de um mundo. A busca de orientação é apenas uma forma superficial de presença da Filosofia. O que o Direito, por exemplo, espera da Filosofia para vencer o fantasma da positividade é a possibilidade de um compromisso intersubjetivo escondido numa determinada forma de descrição do mundo (STEIN, 2004, p. 155). Este compromisso intersubjetivo é constituído no espaço de reflexão comum, onde os conceitos de ambas as áreas podem estabelecer um diálogo a partir de pressupostos claros. Como o direito carrega consigo uma positividade, mesmo que mínima, o compromisso intersubjetivo deve remeter ao mundo. Ou seja, no diálogo com a filosofia, esta deve manter para o direito a possibilidade de uma descrição (visão) efetiva do mundo. Na vinculação com a dimensão ampla do mundo, o direito faz com que sua positividade se dilua no âmbito geral que subjaz ao regramento geral e, ao mesmo tempo, torne possível uma intervenção singular. Mas, a interface entre filosofia e o apelo feito a ela por parte do direito não é algo realizado pacificamente. O Direito tem um forte arraigamento na positividade, e este arraigamento transforma a sua recepção da filosofia em uma seleção. Ao ser visada pelo direito, a filosofia revela o seu aspecto peculiar que é o discurso e a “lógica da argumentação”. Assim, a recepção seletiva da filosofia pode reconduzir o direito à positividade. Justamente a positividade que se deseja evitar, quando o que está em questão é o fundamento mesmo do direito. Por tudo isto, Stein afirma em tom de advertência: O Direito tendencialmente pensa encontrar na lógica da argumentação de caráter puramente axiomático-dedutivo o principal auxílio da Filosofia. Se assim fosse, então a Filosofia apenas viria confirmar o caráter de positividade que é apresentado pelo Direito. Poderíamos até dizer que a Filosofia, em lugar de apresentar os limites do Direito, antes confirmaria o positivismo jurídico (STEIN, 2004, p. 158). As consequências de um deslocamento do foco da positividade é a busca por uma outra instância que tenha igual importância com o caráter aplicadointervencionista do direito na efetividade do mundo. Deve-se justificar esta outra instância, para não recair na positividade da lei como fundamento. Somente com o foco deslocado da positividade, é que o direito pode encontrar esta outra instância possível para investigar a sua fundamentação. Mas, aqui o papel da filosofia é duplo: esta outra instância é uma posição, uma posição filosófica que abre um espaço de reflexão possível para as diversas ciências, inclusive para as ciências jurídicas. Além disso, a duplicidade se completa, porque o desenvolvimento do debate, que desloca 58 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 a positividade em prol de uma outra instância de fundamentação, é feito através do discurso argumentativo filosófico. Qual instância é esta? Uma instância que é diferente da positividade? Uma instância que vai propiciar o espaço de debate? Com a ajuda da filosofia, esta instância não é única, mas muitas podem ser as instâncias, e seu número depende das diferentes posições filosóficas. Por isto, a escolha de uma ou outra posição filosófica, que vai permitir tal deslocamento da positividade, é muito importante. Stein vai adotar uma posição filosófica denominada de fenomenologia, tal como é anunciado nestas passagens: Um exame das realidades jurídicas que decorrem da própria constituição quando é situado nesse contexto filosófico, passa ter efeitos surpreendentes. Toda a dogmática jurídica passa a ser percebida como um terreno em que se infiltra uma certa provisoriedade, ou uma fragilidade de caráter muito particular. A distinção sujeito-objeto, o discurso puramente positivo, a fixação de princípios absolutos e a ideia de um sistema que se auto-regula passam a receber, pela fenomenologia hermenêutica, uma dimensão de profundidade que sustenta todo o seu modo de operar. Assim a escolha da fenomenologia hermenêutica representa a superação do domínio da metafísica no Direito. Descobriremos, desse modo, que essa formação histórica dotada de historicidade nunca alcançamos em sua radicalidade. É por isso que se fala em fundamento sem fundo, ou numa dimensão de sentido que é dado pelo próprio modo de o homem ser um serno-mundo (STEIN, 2004, p. 167-168). E, em uma obra mais recente, Stein reafirma a importância desta posição filosófica elaborada a partir dos principais elementos da fenomenologia hermenêutica. A posição filosófica, assim caracterizada, subsidia uma reflexão interna ao âmbito jurídico, tornando mais denso o discurso: Quando descrevemos, portanto, o discurso jurídico como implicando num compreender, num pré-compreender, estamos descrevendo a condição existencial, o ser-em do ser-aí, e com isso não estamos competindo com o discurso jurídico, mas descrevendo um acontecer que envolve existencialmente a quem se manifesta numa forma de linguagem específica. Neste sentido deve ser entendida a questão da Filosofia no Direito. Pensa-se num operar estrutural, não empírico, que se estende, sob muitos aspectos, pelo vasto campo do discurso jurídico. A fenomenologia hermenêutica apresenta-se ao discurso jurídico com um intuito filosófico que pretende adensar a linguagem, descobrir nela uma espessura, uma dupla estrutura, cujo desconhecimento empobrece o ocupar-se com a realidade do discurso jurídico, por exemplo (STEIN, 2011, p. 206). Os elementos que caracterizam a posição filosófica da fenomenologia hermenêutica estão indicados pelos constructos do “pré-compreender” e as condições existenciais do “ser-em” e do “ser-aí”. O espaço de reflexão aberto por esta posição filosófica possibilita o “acontecer” específico do discurso jurídico. Os elementos da posição são condicionantes, e o que a própria posição possibilita é também condicionante em relação ao “acontecer” jurídico. A adoção de uma posição filosófica clara permite uma pesquisa que forneça uma resposta para a pergunta sobre o fundamento do direito sem o peso da positividade. Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 59 Esta seção procurou mostrar, através dos subsídios fornecidos por Stein, que existe uma instância prévia ao estabelecimento positivo do direito. E esta instância prévia é preenchida por diferentes posições filosóficas possíveis. Uma delas, como foi mostrada ao longo desta seção, é a da fenomenologia hermenêutica. A possibilidade de diálogo com o direito e a resolução mesma do problema de fundamentação foram somente apontados ao longo da exposição. O principal aspecto é a existência dessa instância prévia, a qual deverá também ser confrontada com o tema dos direitos naturais e a vida do homem, ou vida nua, porque a positividade mínima do direito exige uma sanção intervencionista no mundo efetivo. A instância prévia pode também ser denominada de espaço prévio, mostrando mais a noção de anterioridade. Este espaço prévio concorda com a anterioridade das leis naturais e dos direitos naturais. Mas, neste caso, o que se modifica é o conteúdo e a função: os direitos naturais, como vimos na primeira seção, não realizam o mesmo efeito de abertura oriundo de posições filosóficas claras e adequadas. Mesmo assim, permanece a anterioridade dos espaços filosóficos frente ao ordenamento jurídico. Um outro elemento a ocupar este espaço prévio é a vida humana pura e simplesmente. Este é o caso da vida, considerada “tal como ela é”. Para a compreensão diferenciada deste espaço, sem esquecer a sua vinculação com um movimento de anterioridade já encontrado na prerrogativa dos direitos naturais e na pergunta pela fundamentação, vamos utilizar o conceito de “vida nua” desenvolvido por Agamben. A VIDA NUA E O ESPAÇO PRÉVIO AO ÂMBITO JURÍDICO Giorgio Agamben é um filósofo italiano cujos estudos estão sendo cada vez mais considerados pela comunidade filosófica internacional. Os seus temas tratam sobre biopolítica, linguagem, antropologia filosófica, entre outros intercruzamentos. Entre os principais filósofos que influíram o seu pensamento estão Benjamin, Focault e Heidegger. Em seu livro Homo sacer – O poder soberano e a vida nua I (2010), Agamben trabalha um tema transversal entre política e Direito. Ele desenvolve a sua análise através dos conceitos de “vida nua” e “estado de exceção”. A sua inspiração para introduzir ambos os conceitos é retirada inicialmente de Focault6. O autor vai destacar os elementos relativos ao poder e ao espaço político, mostrando que a relação entre a vida nua, ou zoé, e bios, conduz a uma explicação inicial da exceção através da ação do poder. A sua introdução do conceito de “vida nua” começa com uma observação crítica a respeito de uma caracterização da política moderna: 6 Na obra de Focault, podemos citar dois momentos em que se destacam uma caracterização da biopolítica ou biopoder: (a) quando se articulam o âmbito jurídico, educacional e médico na tentativa de normalizar a vida (FOCAULT, 1976, p. 184); e (b) quando o poder político começa a exercer o poder de matar (FOCAULT, 1996, p. 205). 60 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 A tese foucaultiana deverá então ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na polis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele. Tudo ocorre como se, no mesmo passo do processo disciplinar através do qual o poder estatal faz do homem enquanto vivente o próprio objeto específico, entrasse em movimento um outro processo, que coincide grosso modo com o nascimento da democracia moderna, no qual o homem como vivente se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do poder político (AGAMBEN, 2010, p. 16). A duplicidade e a alternância entre inclusão e exclusão criam um espaço onde não se distinguem o “direito e o fato”. Esta “indistinção” se explica porque, na constituição da polis, sujeito e objeto são duas faces da mesma “vida nua” (zoé). Neste momento de constituição dos fundamentos de uma sociedade, o âmbito político também se mostra importante. Pois, é através do ordenamento desse âmbito que a vida nua se reapresenta na cidade, ou seja, nas palavras de Agamben, ela “libera-se na cidade”. Desta forma, o espaço onde ela se libera, coincide: o “espaço da vida nua” coincide com o “espaço político”. Esta coincidência está sob um processo de ordenamento social, o que implica em um ordenamento social e também jurídico. Nessa necessidade de ordenamento, por parte da sociedade, a vida nua é excluída, mas ao mesmo tempo é incluída, gerando a oportunidade para que a “vida como tal” seja um objeto de estudo do poder estatal, onde, “a exceção se torna em todos os lugares a regra”. A análise de Agamben ultrapassa, assim, a importância dada às construções científicas situadas historicamente na época moderna. O autor acolhe esta influência de Focault, mas conduz a sua própria análise para um aprofundamento. No que diz respeito às épocas históricas, este aprofundamento coloca a sua análise em uma instância atemporal. Uma instância que se identifica com os primórdios da vida em sociedade e também com os tempos futuros. Mas, um dos elementos do processo de ordenamento social é destacado. Trata-se do papel do soberano. O poder soberano estabelece limites entre o que está fora e o que está dentro do regramento jurídico da sociedade. Ele estabelece um espaço possível, onde vige a situação de normalidade jurídica. Ao tratar das situações que surgem em lados opostos de um limite, como aquelas que expressam o fora e o dentro do ordenamento social, o soberano relaciona-se diretamente com o estado de exceção. Nesse aspecto, Agamben remete a Carl Schmitt, o qual não Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 61 apenas reforça a característica topológica da análise de Agamben, mas igualmente a importância da decisão do soberano: Todo Direito é “direito situacional”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele tem o monopólio da última decisão. Nisso repousa a natureza da soberania estatal que, corretamente deve ser definida, juridicamente, não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio decisório, em que a palavra decisão é utilizada no sentido geral ainda a ser desenvolvido. O estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal. Nisso, a decisão distingue-se da norma jurídica e (para formular paradoxalmente) a autoridade comprova que, para criar direito, ela não precisa ter razão/direito (SCHMITT, 2006, p. 14). O próprio estado de exceção é necessário neste âmbito limitado da vigência do direito. Agamben acompanha Schmitt, aprofundando: “O soberano, através do estado de exceção, ‘cria e garante a situação’, da qual o direito tem necessidade para a própria vigência. Mas que coisa é esta ‘situação’, qual a sua estrutura, a partir do momento em que ela não consiste senão na suspensão da norma?” (AGAMBEN, 2010, p. 24)”. Estas relações opostas entre o fora e o dentro, ou em outras palavras, entre o “interno e o externo” encontram uma complexidade que se espelha na antiga relação entre zoé e bios. Como vimos acima, esta relação entre zoé e bios é o mesmo que a vida nua e o seu regramento jurídico através de normas em plena convivência em sociedade. O pano de fundo da vida nua, em um estado dúbio de exclusão e inclusão, constitui a complexidade subjacente às decisões do soberano, quando este decide sobre o que está topologicamente fora e o que está dentro do regramento social7, ou seja, quando o soberano estabelece o que é uma situação normal e o que é o caos. Assim, no papel desempenhado pelo soberano a sua função não é lidar com um excesso, mas sim com o estabelecimento de um espaço, onde o excesso pode ser julgado como normal ou caótico. Este espaço possível fica sempre como elemento subjacente do caráter duplo da vida nua. Pois, a própria vida nua oscila em uma inclusão ou exclusão no ordenamento social. Agamben apresenta este papel da seguinte forma: Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor. Ela é, neste sentido, a localização (Ortung) fundamental, que não se limita a distinguir o que está dentro e o que está fora, a situação normal e o caos, mas traça entre eles um limiar (o estado de exceção) a partir do qual interno e externo entram 7 O uso da expressão “topologia” ou “topológica” é importante em Agamben.. Um outro esclarecimento dos seus significados encontra-se no livro Estado de exceção (AGAMBEN, 2004): “Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer, tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido pelo oximoro êxtase-pertencimento” (p. 57, grifos do autor). 62 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 naquelas complexas relações topológicas que tornam possível a validade do ordenamento (AGAMBEN, 2010, p. 25-26). E, de uma forma mais específica no âmbito do papel desempenhado pelo soberano, a sua ação de permitir um espaço jurídico e político, acarreta que o soberano tenha uma posição de exceção. Isto é justificável na medida em que ele é instituidor dos limites para o espaço “jurídico-político”, portanto de onde vigora e onde deixa de vigorar o Direito. Esta instituição de limite representa também um conflito potencial entre as competências do Direito, pois carrega consigo uma disposição da vida nua que é aceita e outra disposição que não é aceita pelo ordenamento social. Esta duplicidade faz parte da tentativa sempre renovada do âmbito jurídico de capturar a vida nua em uma positividade. A positividade, na medida em que é algo instituído o ordenamento jurídico-social moderno, dirige-se diretamente para a vida nua, a qual está, por assim dizer, no exterior ou excluída. A origem desta positividade jurídica é o soberano, por isto Agamben pode afirmar: “A exceção soberana representa um limiar ulterior: ela desloca o contraste entre duas exigências jurídicas numa relação-limite entre o que está dentro e o que está fora do direito.” (AGAMBEN, 2010, p. 30). A positividade incide sobre a ambiguidade constitutiva da vida nua, forçando o poder soberano a participar desses dois lados do limite: dentro e fora do ordenamento jurídico. Finalmente, o resultado é um quadro onde a decisão do soberano, o conceito de vida nua e o estado de exceção se interelacionam em uma descrição possível do ordenamento jurídico. Esta descrição possui uma positividade, mesmo que mínima, cuja origem está na decisão do soberano. Este quadro de relações forma uma base que pode ser uma conclusão. Agamben o apresenta com as seguintes palavras: A decisão não é aqui a expressão da vontade de um sujeito hierarquicamente superior a qualquer outro, mas representa a inscrição, no corpo do nomos, da exterioridade que o anima e lhe dá sentido. O soberano não decide entre lícito e ilícito, mas a implicação originária do ser vivente na esfera do direito, ou, nas palavras de Schmitt, a “estruturação normal das relações de vida”, de que a lei necessita. A decisão não concerne nem a uma quaestio iuris nem a uma quaestio facti, mas à própria relação entre o direito e o fato. Não se trata aqui apenas, como Schmitt parece sugerir, da irrupção da “vida efetiva” que, na exceção, “rompe a crosta de um mecanismo enrijecido na repetição”, mas de algo que concerne à natureza mais íntima da lei. O direito tem caráter normativo, é “norma” (no sentido próprio de “esquadro”) não porque comanda e prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na vida real, normalizá-la. [...] Que a lei tenha inicialmente a forma de uma lex talionis (talio, talvez de talis, quer dizer: a mesma coisa), significa que a ordem jurídica não se apresenta em sua origem simplesmente como sanção de um fato transgressivo, mas constitui-se, sobretudo, através do repetir-se do mesmo ato sem sanção alguma, ou seja, como caso de exceção (AGAMBEN, 2010, p. 32-33). A citação acima permite inferir um quadro que mostra a vida nua como um duplo lugar. Neste duplo lugar ela dá espaço para a exceção e para a inclusão. Esta última sob a forma da “liberação” na cidade conforme o ordenamento jurídico. Além disso, o quadro permitiria inferir o papel do soberano, quando este, ocupando Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 63 e delimitando a exceção e inclusão, pode estabelecer o limite do “lícito e ilícito” no ordenamento social e jurídico. Assim inferidos os principais elementos, podemos nos aproximar do nosso objeto de estudo, os direitos humanos. Nós vamos manter a coerência de nosso percurso e fazer esta aproximação através do texto de Agamben. No capítulo intitulado “Os direitos do homem e a biopolítica”, Agamben (2010) mostra as modificações que ocorreram entre os direitos do homem e a ordem político-jurídica. Estas modificações ocorreram na passagem entre os seguintes períodos: do antigo regime ao regime pós Revolução Francesa, do regime instituído pela Revolução Francesa ao regime do pós Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, no antigo regime, existia uma certa indiferença aos direitos do homem. O foco nestes direitos começa com a ideia dos direitos do cidadão, os quais são adquiridos através do nascimento. Após este período, principalmente nas sociedades atuais, valoriza-se os direitos do homem estabelecendo-se uma diferença progressiva em relação aos direitos do cidadão. Estes elementos são anunciados no seguinte trecho: No segundo pós-guerra, a ênfase instrumental sobre os direitos do homem e o multiplicar-se das declarações e das convenções no âmbito de organizações supranacionais acabaram por impedir uma autêntica compreensão do significado histórico do fenômeno. Mas é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que tendem (na verdade sem muito sucesso) a vincular o legislador ao respeito pelos princípios éticos eternos, para então considerálas de acordo com aquela que é a sua função histórica real na formação do moderno Estado-nação. As declarações dos direitos representam aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estadonação. Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoê da vida política (bios), entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás, o fundamento terreno de sua legitimidade e da sua soberania (AGAMBEN, 2010, p. 124). Agamben chama a atenção para o surgimento dos fenômenos referente aos refugiados, a partir da Primeira Guerra Mundial, e também dos campos de extermínio nazistas. Estes dois fenômenos juntos assinalam o fim do alcance e efeito referentes a ideia de direitos do cidadão, os quais eram adquiridos em função do seu nascimento (o “nexo nascimento-nação”). Há um “reinvestimento” dos Estados em relação à vida nua, a qual, não obstante os direitos do cidadão, precisa ser protegida. Ele concebe a transição e estes pontos da seguinte forma: Estes dois fenômenos, de resto intimamente correlatos, mostram que o nexo nascimento-nação, sobre o qual a declaração de 1789 havia fundado a nova soberania nacional, havia então perdido o seu automatismo e o seu poder de autorregulação. Por um lado, os Estados-nação operam um maciço reinvestimento da vida natural, discriminando em seu interior uma vida por assim dizer autêntica e uma vida nua privada de todo valor político (o racismo e a eugenética nazista são compreensíveis somente se restituídos a este contexto); por outro, os direitos do homem, que faziam sentido apenas como 64 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 pressuposto dos direitos do cidadão, separam-se progressivamente destes e são utilizados fora do contexto da cidadania, com o suposto fim de representar e proteger uma vida nua que vem a encontrar-se, em proporção crescente, expulsa às margens dos Estados-nação, para ser então posteriormente recodificada em uma nova identidade nacional. O caráter contraditório destes processos está certamente entre as causas que determinaram a falência dos esforços de vários comitês e organismos, através dos quais os Estados, a Sociedade das Nações e, mais tarde, a ONU tentaram fazer frente ao problema dos refugiados e da salvaguarda dos direitos do homem, do Bureau Nansen (1922) até o atual Alto Comissariado para os Refugiados (1951), cuja atividade não pode ter, segundo o estatuto, caráter político, mas “unicamente humanitário e social (AGAMBEN, 2010, p. 129). A contradição contribui para a instalação de uma ambiguidade no espaço político. O núcleo desta ambiguidade encontra-se no conceito de vida nua que participa tanto da distinção entre “uma vida por assim dizer vida autêntica e uma vida privada”, e também na separação entre direitos dos cidadãos e direitos humanos. Esta separação efetiva entre os direitos do homem e os direitos do cidadão gera um confronto direto que se expressa na biopolítica de um ordenamento jurídico-político. Este confronto torna ainda mais complexa à análise dos problemas enfrentados por organizações humanitárias que visam defender os direitos do homem. Trata-se, com efeito, do caráter ambíguo (de inclusão-exclusão) da vida nua, que se transforma em um ponto de duplo interesse: por parte dos Estados e por parte das organizações supranacionais. Na ambiguidade carregada pela vida nua, o espaço da política se confunde com a situação de exclusão-inclusão e disputa uma compreensão clara das situações deste tipo (exclusão-inclusão) nas óticas das organizações humanitárias. A partir das bases históricas (refugiados da Primeira Guerra e campos de extermínio nazistas), o paradigma da biopolítica se apresenta como uma espécie de armadilha. Uma forma de retratarmos teoricamente as consequências dessa evolução histórica encontra-se nesta última passagem de Agamben que reproduzimos abaixo: A separação entre humanitário e político, que estamos hoje vivendo, é a fase extrema do descolamento entre os direitos do homem e os direitos do cidadão. As organizações humanitárias, que hoje em número crescente se unem aos organismos supranacionais, não podem, entretanto, em última análise, fazer mais do que compreender a vida humana na figura da vida nua ou da vida sacra, e por isto mesmo mantêm a contragosto uma secreta solidariedade com as forças que deveriam combater. É suficiente um olhar sobre as recentes campanhas publicitárias para arrecadação de fundos para os refugiados de Ruanda, para dar-se conta de que a vida humana é aqui considerada (e existem aí certamente boas razões para isto) exclusivamente como vida sacra, ou seja, matável e insacrificável, e somente como tal feita objeto de ajuda e proteção. Os “olhos suplicantes” do menino ruandês, cuja fotografia se desejaria exibir para obter dinheiro, mas que “agora está se tornando difícil encontrar vivo”, são o índice talvez mais significativo da vida nua no nosso tempo, da qual as organizações humanitárias têm necessidade em proporção exatamente simétrica à do poder estatal. O humanitário separado do político não pode Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 65 senão reproduzir o isolamento da vida sacra sobre o qual se baseia a soberania, e o campo, isto é, o espaço puro da exceção, é o paradigma biopolítico para o qual ele não consegue encontrar solução (AGAMBEN, 2010, p. 130). Enfim, essa seção tratou dos conceitos de vida nua, poder soberano, direitos do cidadão, e a separação crescente em relação aos direitos humanos. A análise realizada mostra que antes da positividade do direito, encontra-se a vida fora do ordenamento jurídico: a vida nua. E ela é transposta, através de um ordenamento jurídico para o âmbito da sociedade, quando o poder desenvolve o seu projeto biopolítico. O poder soberano permanece como ponto decisório do que está fora e do que está dentro do ordenamento jurídico nas mais diversas situações. Podemos acrescentar que o mérito desta seção foi mostrar que há uma dimensão anterior (ou fora) do ordenamento jurídico e que esta dimensão é mesmo necessária ao próprio ordenamento. Mas, ao tratar dos direitos do cidadão e do homem, mostra-se que tal anterioridade está colocada aquém de uma concepção de direitos naturais. Portanto, trata-se da vida nua que, assumida em sua dimensão excluída, está por si mesma, radicalmente fora da positividade do direito. Mas, não obstante esteja fora, ela sofre os efeitos da positividade quando é “capturada” no ordenamento jurídico. Todos estes elementos serão ponderados a seguir em nossas considerações finais. CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações finais da nossa pesquisa destacam três aspectos tratados ao longo do texto. Em primeiro lugar, na apresentação orientada pela leitura do texto de Brenda Almond, foi possível identificar algumas características dos direitos humanos a partir dos direitos naturais. Os direitos naturais não são o mesmo que direitos humanos, mas alguns elementos os aproximam: direitos naturais possuem uma pretensão de universalidade para além do relativismo cultural e temporal, e os direitos humanos, uma vez elaborados e propostos (1948), também possuem as mesmas pretensões. Os direitos naturais se colocam como inspiradores da constituição do Estado de direito e, por sua vez, os direitos humanos também se colocam como inspiradores de uma elaboração legal adaptada para cada país em seus ordenamentos jurídicos. A análise que mostra a passagem dos direitos naturais para os direitos humanos destaca a importância da lei e, respectivamente, a importância de um espaço prévio à lei, na instauração da positividade jurídica. Assim, a primeira seção abre uma discussão para este espaço “de fora” do direito constituído e convencionado. Tal espaço pode ser considerado como um elemento privilegiado nas discussões de filosofia do direito, mais precisamente, no que tange ao problema de fundamentação do direito. O segundo eixo estuda os problemas da fundamentação da área jurídica e ressalta um espaço prévio ao ordenamento jurídico a ser ocupado pela filosofia num trabalho que exige a clareza da posição filosófica envolvida. Isto reforça a ideia do espaço prévio tal como indicado no acima. No problema da fundamentação, o espaço prévio é ocupado por uma posição filosófica, e desenvolve-se uma reflexão sobre o direito. O procedimento deve deslocar a ameaça da positividade como 66 Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 fundante único do âmbito jurídico. O espaço prévio será enriquecido pelo conceito de vida nua. O terceiro eixo visa à seguinte tese: o espaço prévio ao ordenamento jurídico é ocupado pela “vida nua”. Trata-se aqui de um novo enfoque: o espaço prévio continua sendo ocupado por um apelo aos direitos naturais, atualizado sob a forma dos direitos humanos e com a função de abertura para uma posição filosófica determinada. Mas, a vida nua possui a ambiguidade de estar dentro e fora do ordenamento jurídico, além de estar implicada nas decisões do poder soberano. Assim, há um tratamento do espaço prévio e, também, um resgate do poder de sanção jurídica. Por isso, o conceito de vida nua, retirado de Agamben, se mostra como um recurso valioso na análise da positividade do direito. A caracterização da concepção de vida nua conduziu necessariamente a uma apresentação do poder do soberano. Além de reafirmar a dimensão de anterioridade através do espaço prévio, a concepção de vida nua mostrou o poder soberano nesta ambiguidade fundamental. A ambiguidade se explicita na situação de exclusão-inclusão da vida nua, onde o poder soberano exerce o seu papel decisório. Ela, a “vida nua”, permanece excluída, quando fora do ordenamento jurídico, e incluída, quando o ordenamento jurídico tem uma ação efetiva, influindo diretamente na normalização social através de algum projeto biopolítico. Assim, a condição de ambiguidade se transfere para poder político, e caracteriza o próprio poder soberano, ou poder estatal, na medida em que é o mesmo poder trabalha com a decisão do limite, sobre o que está “dentro” e o que “está fora”. O conceito retirado de Agamben cumpre bem o seu o papel de comprometimento filosófico, alcançando igualmente esta positividade mínima existente no âmbito jurídico. Finalmente, em relação aos nossos objetivos iniciais, podemos dizer que a passagem do direito natural aos direitos humanos abre uma reflexão, a partir da “lei natural” e da derivação nos próprios direitos humanos, resultando na conclusão da existência de um espaço prévio ao ordenamento jurídico. A segunda parte mostra que esse espaço prévio se destaca no papel desempenhado pela filosofia com relação ao estudo do problema de fundamentação do direito, o que exige um deslocamento da mera autofundamentação positiva. E, a terceira parte mostra que a vida nua é um dos principais recursos conceituais para se pensar filosoficamente o direito e a política, apresentando-se como um importante complemento que abrange as áreas de atuação do poder. A vida nua se torna cada vez mais um elemento indispensável na reflexão dos direitos humanos dentro do ordenamento jurídico e do respectivo poder biopolítico nas sociedades atuais. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer - o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ______. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. ALMOND, Brenda. “Los derechos”. In: SINGER, Peter. Compendio de Ética. Madrid, Alianza, 1995. Signos, ano 34, n. 1, p. 51-67, 2013. ISSN 1983-0378 67 BUCKLE, Stephen. “El derecho natural”. In: SINGER, Peter. Compendio de Ética. Madrid, Alianza, 1995. FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité I. La Volonté de Savoir. Paris: Gallimard, 1976. ______. Genealogia del racismo. La Plata: Altamira, 1996. STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia – limites de um paradigma. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2004. ______. Pensar e errar – um ajuste de contas com Heidegger. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2011. SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.