Diálogo com Agamben sobre “segurança”: o Homo sacer entre o estado de exceção e de direito Esta comunicação apresenta indagações que orientam uma pesquisa de doutoramento sobre o pensamento político de Giorgio Agamben no que concerne aos processos de estabelecimento e legitimação da ordem jurídica burguesa contemporânea. Através de uma leitura critica da legislação constitucional e infraconstitucional procuro desenvolver um debate a respeito do processo de sacralização do poder político através dos dispositivos jurídicos (AGAMBEN 2007). Ao examinar tal processo, verifica-se que contemporaneamente o direito a “segurança” – conceito a ser problematizado mais profundamente através da obra de Agamben – vem reconfigurando os ordenamentos jurídicos ocidentais de modo a possibilitar à Agamben afirmar que o estado de exceção se tornou o paradigma de governo dominante (AGAMBEN 2004). Neste processo emerge a figura do homo sacer como produto desta sacralização do poder político, onde corpos biológicos convertidos em populações tornam-se objetos passives de eliminação física, sem que necessariamente se deslegitime os fundamentos do ordenamento jurídico. Neste nexo, a proposta política de Agamben será utilizada para criticar o diretito democrático a segurança indagando se tal dispositivo jurídico configura um ordenamento onde o direito a segurança não se confunde com a segurança do direito. Explorar tal limiar de indicernibilidade é o escopo desta comunicação, tendo em vista que a condição de homo sacer é a genuína materialização de tal ordenamento político-jurdico. Avaliamos que ao verificar a expansão da aplicabilidade do “conceito de segurança” em diversos campos de saber, o que se evidencia é que a aplicação da racionalidade de segurança implica de fato no maior rigor por procedimentos reflexivos, individualizantes, disciplinares e de controle, de modo que o “conceito de segurança” é suprimido no objeto que ele procura regular. Esse deslizamento de significado será apreciado como indício de um problema mais profundo, que aponta para um desejo de segurança indistinto a própria prática social. Deste modo o “conceito de segurança” se relaciona com expectativas estruturantes na condução da vida social que procura parametrizar o que existe pelo que é recorrentemente afirmado como procedimentos seguros. Uma questão a ser explorada conjuntamente é a proximidade existente entre o conceito de estado de exceção e o conceito de segurança tal como pretendemos definir. Uma primeira aproximação é que ambos se apresentam como sintagmas nominais. Agamben ao examinar o estado de exceção como paradigma de governo (2004) afirma que a incerteza existente no estado de exceção é análoga a sua incerteza terminológica. Esta incerteza terminológica não impediu que a partir do fim da Guerra Fria e com a desagregação do mundo soviético, verificássemos, no mundo ocidental, uma profunda e marcante transformação no conjunto prático-discursivo para a aplicabilidade do “conceito de segurança”: “Conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo.” (AGAMBEN, 2004: 28-9) Tal perspectiva contribuiu definitivamente para a reflexão crítica da política e da filosofia, pois aponta e revigora as potencialidades da política em um momento de inflexão, vivenciada pelo esvaziamento da função publica da política contemporânea em tempos de terror de Estado, desregulamentação institucional e medos sistêmicos revigorados como reguladores ostensivos da sociedade1. Tal sintoma encontra ressonância através da constituição de estados de exceção considerados necessários e desejados2, por seus sujeitos de modo que: “Ao longo de uma gradual neutralização da política e a progressiva capitulação das tarefas tradicionais do Estado, a segurança tornou-se o princípio básico da atividade do Estado. O que costumava ser uma entre diversas medidas definidas da administração pública até a primeira metade do século XIX agora se tornou o único critério de legitimação política. [...] O pensamento da segurança traz, dentro de si, um risco essencial. Um Estado que tem a segurança como única tarefa e origem de legitimidade é um organismo frágil; ele sempre pode ser provocado pelo terrorismo para se tornar ele próprio terrorista. [...] As medidas de segurança funcionam no sentido de uma crescente despolitização da sociedade. A longo prazo, elas são irreconciliáveis com a democracia” (AGAMBEN, 2002b: 145-6). Neste sentido, verificamos que no plano das práticas discursivas oficiais, o estado de exceção se aproxima da ideia de segurança pública e, mais precisamente, da regulação da sociedade pela difusão do poder de polícia. Esta redução do conceito de segurança a manutenção da ordem pública como bem coletivo (SAPORI 2008) aparece na forma como o legislador defiram constitucionalmente o que seria segurança pública (art. 144): “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, (que) é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esta forma de redação da lei amplia para a sociedade civil a co-responsabilidade da construção da segurança pública de modo a configurar um plano de indicernibilidade entre a responsabilidade civil e a responsabilidade do Estado na realização e manutenção desta ordem “segura” declarada como “pública”. 1 Com Hobbes podíamos considerar a guerra um momento de conflito de todos contra todos e, afinal através da paz, se constituía a ordem. Hoje, pelo contrário, a ordem não nasce do fim da guerra, mas através de uma promoção contínua de guerra. É por meio dessa ação permanente de guerra que se propõem e se aplicam as funções de disciplina e controle. (...) A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer uma forma de governo destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social (NEGRI; 2003: 34). 2 “Há uma característica comum a todas as proclamações reacionárias de ‘estado de emergência’: foram todas dirigidas contra a agitação popular (“confusão”) e apresentadas como medidas para restaurar a normalidade. Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o ‘caos’ da politização generalizada. (...) Em resumo, a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência” (ZIZEK 2005: 128) O problema que propomos não se reduz a uma questão de polícia. Trata-se de uma busca incessante por algo irrealizável: a segurança contra a contingência. Tudo que pode vir a nos ameaça de forma mais opressiva, porém invisível, intangível e abstratamente. Procurando conter a fantasia onipresente de uma finitude abrupta, construímos um sistema de poder que seleciona formas de representação social. Tal processo seletivo permite classificar e segregar em um conjunto populacional específico, práticas sociais que são mantidas por dispositivos de controle e disciplina. Não se trata apenas de uma política pública entre as demais ou de uma instituição social permanente. Trata-se de um modo de organizar e reificar relações sociais orientadas a configurar sua própria conservação, previsão e repetição. Esta percepção coloca nosso problema no campo da teoria política, pois se trata de pensar os elementos substantivos que dão viabilidade da vida pública e de como organizamos esta vida através da construção de projetos políticos institucionais, o que transcende a perspectiva instrumental-utilitarista adotada pela formação de políticas públicas.