DESCARTES E HUME: REPOSTAS RACIONALISTA E CÉTICA AO

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PIBIC-UFU, CNPq & FAPEMIG
Universidade Federal de Uberlândia
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
DIRETORIA DE PESQUISA
DESCARTES E HUME: REPOSTAS RACIONALISTA E CÉTICA AO
PROBLEMA DA EXISTÊNCIA DO MUNDO EXTERNO
Vinícius França Freitas1
FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121- Bloco 1U; CEP 38400-902,Uberlândia MG.
e-mail: [email protected]
Marcos César Seneda2
FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121- Bloco 1U; CEP 38400-902,Uberlândia MG.
e-mail: [email protected]
Resumo: Enquanto Descartes consegue alcançar na metafísica um fundamento sólido para
a demonstração da existência do mundo externo, Hume aponta-nos a impossibilidade da defesa de
tal tese a partir destes obscuros pressupostos metafísicos. Para Descartes, com efeito, é Deus quem
assegura a existência do mundo dos objetos físicos, visto que seria contraditório, de acordo com
aquela idéia que temos do Ser perfeito, que Deus nos enganasse, fazendo-nos acreditar que esse
mundo é real quando de fato ele não existe. Contudo, para Hume, ser-nos-ia impossível, tal como o
fizera Descartes, responder a essa questão: “o mundo físico é real?”. A metafísica não pode servir
de apoio em um sistema de filosofia fundada na experiência. Para Hume, essa doutrina é, ao
contrário, deveras nociva ao pensamento filosófico, visto que a obscuridade de seus conceitos
(substância, existência, eu, Deus, por exemplo) apenas leva a filosofia a inúteis e intricados
debates. Muito embora seja impossível demonstrar a existência da realidade concreta, segundo
Hume, ainda assim os homens acreditam que esse mundo efetivamente existe. Portanto, a tarefa do
filósofo deve ser a de tentar explicar, a partir dos princípios do método experimental de raciocínio,
essa crença na existência do mundo externo.
Palavras-chave: Teoria do conhecimento. Descartes. David Hume. Mundo externo.
1. INTRODUÇÃO
O problema do estatuto da existência do mundo externo, da realidade do mundo dos objetos
físicos, é recorrente na filosofia moderna. Muitos foram os filósofos que pretenderam oferecer
respostas positivas à questão “o mundo físico é real?”, e estes o fizeram a partir de algum
fundamento que legitimasse a defesa dessa existência. Outros acreditaram, por outro lado, que uma
tal questão sequer poderia ser colocada, haja vista a impossibilidade de respondê-la. Dentre aqueles
que responderam positivamente a questão da existência da exterioridade está Descartes, para quem
a existência de Deus asseguraria a realidade do mundo das substâncias corpóreas. Dentre aqueles
1
2
Acadêmico do curso de Filosofia
Orientador
que afirmaram a impossibilidade de se chegar à certeza da existência deste mundo está David
Hume, que supõe a impossibilidade de respondermos tão obscura questão.
Posto isso, pretendemos, por meio deste estudo, realizar o confronto da posição de ambos os
filósofos acerca do problema da existência do mundo externo, de modo a apontar algumas
concordâncias e discordâncias destes dois sistemas de pensamento. É nosso intuito, sobretudo,
indicar os motivos que tornariam uma solução positiva do problema (isto é, a afirmação da
existência do mundo exterior) insustentável em um pensamento como o de Hume, em cujo
arcabouço essa solução não encontraria fundamento. De que meios faz uso Descartes para
demonstrar a existência de tal realidade, uma vez que, segundo Hume, ser-nos-ia mesmo impossível
responder a essa questão? Por que a solução cartesiana do problema não pode ser sustentada por
Hume? Estas e outras são algumas das perguntas que orientarão o desenvolvimento do presente
trabalho.
2. René Descartes e a posição racionalista sobre o problema do mundo externo
2.1. A dúvida metódica recai sobre o mundo externo
Uma pergunta faz-se presente em muitos dos escritos filosóficos modernos: há de fato um
mundo externo constituído por objetos físicos? Existe um mundo real para além de nós mesmos,
para além de nossas próprias percepções? A árvore que vi há poucos instantes continua a existir
agora que sua imagem me escapa à visão? A estas perguntas, pode-se ajuntar esta outra: se existe
um tal mundo, quais razões me fazem saber certamente de sua existência?
Com Descartes, segundo Romeo, que teria sido iniciada a “a perda do mundo externo para o
conhecimento racional” 3 (2004, p. 409, tradução nossa), isto é, o problema da existência do mundo
externo. O mesmo é afirmado por Martínez (1992, p. 415), para quem o filósofo francês teria sido o
primeiro a colocar em causa a realidade deste mundo. Por que acreditar, com efeito, que o
conhecimento do mundo externo, de seus objetos, é certo e não suscetível de questionamento? A
possibilidade de errar, a possibilidade de tomar por verdadeiro aquilo que é falso, a impossibilidade
de distinguir o verdadeiro do falso, faz-se preocupação premente do filósofo francês, pois, é certo,
tomamos muitas vezes o falso pelo verdadeiro (em decorrência de nossa vontade ilimitada que pode
ir muito além do que nosso intelecto permite afirmar).
Podemos concluir a partir do que foi dito que muitas daquelas opiniões que por muito tempo
aceitamos como verdadeiras podem na verdade ser falsas. Em virtude dessa possibilidade de
estarmos enganados, é necessário que “uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas
as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse
estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências” (DESCARTES, 2004, p. 21,
Med. I, § 1). É preciso, de imediato, demolir o “edifício” do saber atual, livrar-nos das opiniões que
nada valem para uma ciência sólida e certa, e começar por nós mesmos uma empresa que visa,
como nos sugere Alquié, a fundamentação de um saber, uma ciência total e unificada (1986, p. 63).
Estas opiniões e preconceitos, construídas sobre falsos fundamentos, não são mais legítimas que os
fundamentos sobre os quais se ergueram, servindo apenas como ensejo a novos erros. Portanto,
devem ser suprimidas, assim como os fundamentos sobre os quais se erguem. Demolir o edifício do
conhecimento para em seguida reerguê-lo sobre novos fundamentos. Eis, em traços gerais, os
objetivos de Descartes.
Para tão notória empresa, Descartes vê-se obrigado, de início, a recorrer ao critério de
evidência: o verdadeiro é aquilo que se apresenta como evidente, e o evidente é tão-somente aquilo
que se faz claro e distinto. A evidência está naquilo que é apreendido de modo imediato, porque é
simples, não composto de partes que poderiam embaralhar nosso espírito. O simples não exige
verificação de partes, sua certeza é adquirida no ato da apreensão. Nos dizeres de Kujawski, mais
que um primeiro princípio, o critério de evidência constitui o postulado da filosofia cartesiana, na
3
No original: “la pérdida del mundo externo para el conocimiento racional”.
2
medida em que se faz presente ao longo de toda a investigação (1969, p. 61). A cada passo dado
rumo à verdade do conhecimento, este critério acompanhará Descartes.
Ao lado do critério de evidência, outro recurso do qual se valerá o filósofo é a dúvida. Seria
um tanto quanto difícil demonstrar a falsidade de cada uma de suas opiniões – tarefa talvez
impossível. Seria necessário despender muito tempo, caso fosse preciso evidenciar o que há de falso
em cada uma de nossas opiniões. Por isso, é suficiente que estas dêem apenas ensejo à suspeita de
falsidade para que sejam tomadas como falsas. Se elas não são reconhecidas imediatamente como
evidentes, se há algo de duvidoso em uma opinião que nos impede de tomá-la instantaneamente
como verdadeira (evidente), isto é, se ela é duvidosa, será rejeitada como completamente falsa.
As opiniões com as quais Descartes ocupa-se, de início, dizem respeito à existência. É
necessário examinar criticamente os juízos a respeito daquilo que supostamente é. O que existe de
fato? Posso, porventura, ter certeza da existência de meu “eu”, de minha alma? Há realmente um
corpo que possa ser chamado meu? O mundo externo e seus objetos de fato existem?
Descartes começa por colocar em dúvida todas as opiniões que ele recebeu em sua crença. Porém, o
que estas opiniões afirmam? Sem se exasperar para demarcá-lo, o filósofo dirige-se de modo
totalmente natural para aquelas que colocam em causa a existência. O que existe? Tal é a questão que
orienta seja as dúvidas da Primeira Meditação seja as certezas das seguintes 4 (GOUHIER, 1999, p.
267, tradução nossa).
O que interessa Descartes é saber com certeza aquilo que existe, e é por isso que se pode dizer que
“a dúvida é um aparelho para ‘detectar’ a existência” 5 (GOUHIER, 1999, p. 269). É por meio dela
que o filósofo pretende achar o existente.
De posse de um critério de avaliação do conhecimento e de um instrumento de investigação,
é necessário saber por onde começar? Seria impossível passar em revista uma a uma das antigas
opiniões. Considerá-las uma a uma isoladamente seria uma tarefa infindável. Em virtude desta
dificuldade, “não será preciso que as percorra uma por uma, tarefa infindável, mas porque, se os
fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo o que foi edificado sobre eles, atacarei de
imediato os próprios princípios em que se apoiava tudo aquilo em que outrora acreditei”
(DESCARTES, 2004, p. 23, Med. I, § 2). Assim, nosso filósofo concentra-se sobre aquilo que
sustenta estas opiniões, seus fundamentos. Não é verdade que os sentidos constituem a fonte de
grande parte daquelas opiniões que agora são postas em causa? Não é verdade que um sem número
de erros originaram-se a partir do que é recebido pelos sentidos? “Conhecendo que os nossos
sentidos com freqüência nos enganam, quis imaginar que nada existisse que correspondesse com
exatidão ao que nos fazem imaginar” (DESCARTES, 1975, p. 43, grifo nosso). É por isso que, “em
primeiro lugar, cumpre pôr em dúvida o que todos nós julgamos o modelo da verdade: os dados
sensíveis. Os sentidos nos enganam algumas vezes, portanto, nunca lhes devemos dar crédito”
(KUJAWSKI, 1969, p. 105). Se os sentidos já nos enganaram algumas vezes, se são duvidosos, é
necessário que os tomemos como aquilo que sempre poderá levar-nos ao erro.
Na tentativa de demolir os fundamentos do saber, no entanto, o filósofo depara-se com
alguns problemas. Em decorrência da similitude (todo o mundo mental das imagens parece de
algum modo fazer remissão a algo que está no mundo exterior), parece impossível que se possa
suprimir completamente o mundo externo, tomá-lo como algo inteiramente falso. Além disso, existe
algo que parece ser indubitável, a extensão. Como ampliar a dúvida de modo a torná-la total,
4
No original: Descartes entreprend de mettre en doute toutes les opinions qu’il a recues en sa créance. Mais
qu’est-ce que ces opinions affirment? Sans prendre la peine de le remarquer, le philosophe se dirige tout
naturallement vers celles qui mettent em cause l’existence. Qu’est-ce qui existe? Telle est la question qui
commande et les doutes de la Première Méditation et les certitudes des suivantes (GOUHIER, 1999, p. 267).
5
No original: “le doute est um appareil à ‘détecter’ l’existence”.
3
destruindo assim todo o conjunto de opiniões que constituem nosso saber, inclusive aquelas que
dizem respeito à realidade do mundo externo? Será possível elevar a dúvida ao seu mais alto grau,
haja vista estas dificuldades, e, deste modo, prosseguir com o intento de fundar um novo saber? O
filósofo lança mão, então, da engenhosa hipótese do gênio maligno, com vistas a prosseguir com
sua empresa de destruir todo o conhecimento dúbio e fundar um saber verdadeiro:
entretanto, fixa em minha mente, tenho uma certa velha opinião de que há um Deus, que pode todas as
coisas e pelo qual fui criado tal qual existo. Mas, de onde sei que ele não tenha feito que não haja de
todo terra alguma, céu algum, coisa extensa alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar algum e
que não obstante eu sinta todas essas coisas e que, no entanto, todas elas não me pareçam existir
diferentemente de como me aparecem agora? (DESCARTES, 2004, p. 29, Med. I, § 9).
Apesar de estarmos deveras certos acerca de que um triângulo possui três lados, pode ser que de
fato enganemo-nos ao operar até mesmo com essas coisas simples. Não poderia existir, porventura,
um Deus que pudesse embaralhar nossas operações todas as vezes em que pensamos em coisas tão
certas? Se ele é verdadeiramente onipotente, nada o impediria de fazê-lo. Talvez este gênio
maligno, este Deus enganador, esteja a enganar-nos todo o tempo, fazendo com que acreditemos
que há um mundo exterior de objetos quando na verdade este não existe, que um triângulo possui
três lados quando na verdade não possui, pois ele “pode ter atuado de maneira a que eu tenha a
sensação de que as coisas existem sem por isso as ter criado, e pode querer que eu me engane nas
minhas operações intelectuais mais simples [...]” (ALQUIÉ, 1986, p. 70).
É por meio desta hipótese de um gênio maligno que Descartes alcança o ápice da dúvida
metódica. Nenhuma certeza, com efeito, é capaz de opor-se à mera possibilidade da existência de
um tal Ser. Nem a certeza do mundo externo, nem tampouco a da extensão, podem permanecer
inabaláveis diante da dúvida imposta pelo gênio maligno:
o papel do gênio maligno é exaltar a dúvida ao grau hiperbólico, graças ao seu absoluto arbítrio sobre
nossa inteligência. Empregando toda sua atividade em me enganar, o gênio maligno seria o
responsável pelo cortejo de ilusões e miragens no qual eu penso ver o céu, a Terra, as cores, as figuras,
os sons e todas as coisas exteriores (KUJAWSKI, 1969, p. 106-107, grifo nosso).
O mundo exterior é finalmente posto em causa, assim como as verdades das matemáticas.
Nenhuma certeza pôde manter-se inabalável, não houve operação matemática sequer nem objeto
exterior que tenha resistido ao exame crítico cartesiano. O primeiro objetivo do projeto cartesiano,
destruir os fundamentos do saber, foi cumprido.
2.2. Do cogito à existência de Deus
A dúvida metódica, elevada ao seu mais alto grau, envolve Descartes por completo,
deixando-o inteiramente isolado. Todas suas antigas opiniões foram postas em questão: o mundo
exterior não mais existe; tampouco se pode afirmar algo sobre os outros homens; negamos o nosso
próprio corpo. O filósofo então recua para dentro de si; adentra o mundo de seu interior, já que nada
mais é certo, e descobre que é possível duvidar de todos os pensamentos, exceto de um único: “eu,
eu sou, eu, eu existo, isto é certo” (DESCARTES, 2004, p. 49, Med. II, § 7). Dentre todas as coisas
que uma vez supomos nos pertencer, como, por exemplo, um corpo, os membros ou o sentir, apenas
o pensamento não pode ser separado de nós. Enquanto pensamos, existimos; nem sequer podemos
duvidar desta primeira certeza:
a afirmação da existência do meu próprio pensamento não pode, com efeito, ser suspensa pela dúvida,
do mesmo modo que as afirmações de existência que incidem sobre os objetos [...] a dúvida põe-nos
diante do pensamento que duvida, como de uma realidade que não pode ser eliminada; e a
impossibilidade da eliminação dessa realidade provém da situação, absolutamente única, que o
pensamento ocupa em relação à dúvida, visto que é a própria dúvida (ALQUIÉ, 1986, p. 72).
4
Como pode a dúvida insinuar-se e manter-se efetivamente, se o pensamento que deveria ser
questionado é a própria dúvida? Para duvidar é preciso existir, ao menos enquanto pensante.
Não obstante esta descoberta, o conhecimento das coisas do mundo externo ainda carece de
fundamento: “o eu pensante está só, ignora se há coisas, se existe um mundo exterior a ele e
diferente dele. A dúvida, prolongada e mantida, detém e contraria sua tendência natural para visar
ao objeto, e suspende assim todo o seu conhecimento” (ALQUIÉ, 1986, p. 83). Ainda não
encontramos, com efeito, um meio de garantir o acesso aos objetos físicos do mundo externo de
modo certo e indubitável. É na figura de Deus que Descartes encontrará um ponto de apoio para
restabelecer a realidade do mundo externo: o Ser sumamente perfeito desempenhará o papel de
suporte ontológico para a realidade concreta. É Deus, com efeito, que restituirá ao mundo físico seu
estatuto de verdade, e deste modo, certificará a veracidade de nossas idéias que parecem indicar a
existência de um tal mundo: “o eu exige um ser exterior a si, e tem necessidade desse ser, visto que
todas as idéias, de que é agora único suporte ontológico, são remissões para a exterioridade”
(ALQUIÉ, 1986, p. 83).
Ao examinar a idéia de pedra, por exemplo, concluímos que nada há nesta idéia que impeça
o próprio eu pensante de tê-la causado. “Tenho em mim – reflete Descartes – as idéias dos corpos,
das coisas exteriores, como céu, a terra, a luz, o calor e mil outras. Nada impede que eu arranque de
minha própria natureza semelhantes idéias [...]” (KUJAWSKI, 1969, p. 125). Nosso próprio ser, o
próprio eu pensante, por conseguinte, pode ser a causa da realidade dessas idéias das coisas
exteriores, das idéias adventícias, como aponta Descartes (2004, p. 75-77). Se examinamos a idéia
de Deus, entretanto, idéia “pela qual entendo um certo Deus supremo, eterno, infinito, imutável,
onisciente, onipotente, criador de todas as coisas que estão fora dele [...]”, percebemos que o
mesmo não lhe ocorre (DESCARTES, 2004, p. 81, Med. III, § 16): a realidade objetiva desta idéia
ultrapassa a realidade formal do eu pensante. É por isso que nós mesmos não podemos ser a causa
da idéia de Deus: “[...] é evidente, segundo o princípio de causalidade, que não pode haver mais
realidade no efeito do que na sua causa. Porque uma realidade suplementar, presente no efeito e
ausente na causa, não seria causada por nada, teria por causa o nada, o que é o próprio absurdo”
(ALQUIÉ, 1986, p. 85, grifo nosso). Pode haver, é verdade, mais realidade na causa da idéia do que
na própria idéia, mas não pode haver menos. Por isso, somente Deus ele próprio pode ser causa
desta idéia que possuo. Ao afirmar a existência deste Ser sumamente perfeito, Descartes encontra,
enfim, algo em que fundamentar todo o edifício do conhecimento.
2.3. As coisas do mundo exterior existem
Descartes acabou por encontrar outra realidade, além do cogito, à qual poderá ligar suas
idéias de sorte a conferir-lhes existência real: Deus. A fim de estabelecer a verdade do
conhecimento, é preciso, primeiramente, colocá-lo em relação a algo que está para além de nosso
ser. É a Deus que Descartes refere suas idéias, é Ele, com efeito, que assegurará o valor das idéias
claras e da razão. De que modo? Se Deus é verdadeiramente perfeito, não Lhe caberia a qualidade
de enganador. Certamente o atributo divino da perfeição não combina com o atributo de logrador,
de mentiroso. Por isso mesmo, a razão que Deus nos dera, não pode de modo algum nos enganar
quando prestamos assentimento àquelas coisas claras e distintas. O critério de evidência descoberto
no princípio do itinerário meditativo cartesiano é válido apenas na medida em que Deus,
sumamente bom e não enganador, existe para mantê-lo como fundamento da distinção entre o
verdadeiro e o falso: “na ausência do conhecimento de Deus, toda evidência pode, precisamente, ser
posta em dúvida, e portanto deixar de se impor, e há que concluir que a veracidade divina é
necessária para garantir toda idéia [...]” (ALQUIÉ, 1986, p. 98).
A idéia que é percebida clara e distintamente é real, existe, e não pode ser de outro modo,
pois que Deus não nos ludibriaria. O mundo dos objetos físicos, perdido em razão da dúvida
metódica, é recuperado por meio do ser sumamente poderoso. Como diz Kujawski, de modo a
sustentar essa última afirmação:
5
para libertar-se do ergástulo da consciência e partir ao encontro da realidade, Descartes mergulha mais
fundo em si próprio, até encontrar em seu íntimo a idéia de Deus. O ser divino, cuja existência é
demonstrada por provas metafísicas, serve de ponte entre o eu solitário de Descartes e o mundo [...]
Em Deus a razão opera sua transcendência, volta ao contato com o real: o eu cartesiano, radicalmente
insulado em si, recupera o mundo (KUJAWSKI, 1969, p. 141-142, grifo nosso).
Deus passa a desempenhar o papel de mediador, o papel daquele que une o pensamento àquilo que a
ele é exterior, as substâncias corpóreas. Mediador esse sem o qual jamais se poderia ter acesso ao
mundo dos objetos físicos.
Vê-se que Descartes não deixa a ciência da natureza destituída de um ponto sobre o qual se
apoiar: ele se esforça intensamente para provar a existência dos corpos materiais, de modo a
fundamentar o conhecimento dessa ciência. Se é possível aperceber-se de algo como claro e
distinto, isso não pode de modo algum ser enganoso, pois é claro e distinto, é um pensamento
evidente, e, como tal, é assegurado pelo Deus Não-enganador.
3. David Hume e a posição cética sobre o problema do mundo externo
3.1. A filosofia experimental e o mundo externo
Para Hume, as percepções da mente, como dados fundamentais sobre os quais a filosofia
deve ser erguida, constituem o ponto de partida da investigação filosófica. Tal como o próprio
filósofo sugere, ele pretende acompanhar os passos de uma filosofia experimental, isto é, de uma
filosofia fundada sobre aquilo que nos fornece experiência. Podemos conhecer do mundo, ele
afirma, somente aquilo que pode ser derivado da experiência, que se resume, no pensamento
humeano, ao conjunto das percepções da mente. Hume define o conceito de percepção nos
seguintes termos: “é tudo que pode estar presente à mente, seja quando utilizamos nossos sentidos,
seja quando somos movidos pelas paixões, ou quando exercitamos nosso pensamento e reflexão”
(HUME, 2001, p. 685). Todo o conhecimento humano, toda aquela matéria a partir da qual o
pensamento se constitui, resume-se, deste modo, às percepções, que podem ser de duas espécies
distintas: as impressões e idéias.
De acordo como o filósofo, o que distingue esse dois tipos de percepção é a força e
vivacidade com que atingem a mente: “a primeira circunstância que me chama a atenção é a grande
semelhança entre nossas impressões e idéias em todos os pontos, exceto em seus graus de força e
vividez” (HUME, 2001, p. 26). As impressões são aquelas percepções em sua primeira aparição,
mais fortes e vivas. São experiências sensoriais como as sensações, as paixões e as emoções quando
despertadas em seu mais alto grau de intensidade em nossa mente. As idéias, por sua vez, seriam
como imagens enfraquecidas dessas primeiras percepções. São experiências introspectivas, as
sensações, as paixões e as emoções quando retomadas em momento posterior. Pensamos desde já
ser importante chamar a atenção para um dos princípios fundamentais do empirismo de Hume, que
orientará toda a investigação filosófica e se tornará critério de legitimação das idéias e conceitos:
para toda e qualquer idéia da mente haveria uma impressão correspondente. As idéias originam-se
das impressões, como se aquelas fossem imagens destas, pelo que não pode sequer haver idéias que
não tenham existido antes como impressões. Daí a enunciação do princípio de que “toda idéia
simples tem uma impressão simples que a ela se assemelha; e toda impressão simples, uma idéia
correspondente” (HUME, 2001, p. 27).
Posto isso, é preciso que falemos ainda de outros dois princípios da investigação humeana,
fundamentais para o método experimental, princípios os quais dizem respeito à necessidade da
experiência e da observação para o progresso da investigação. O avanço da inquirição filosófica
está intimamente ligado à experimentação e à observação dos dados oferecidos na experiência, que,
como vimos, constituem o ponto de partida da filosofia de Hume e são o único material de que é
constituído o pensamento. Para avançar é preciso experimentar e observar aquilo que é dado na
experiência, logo, é necessário que as impressões e idéias da mente, únicos conteúdos a que
podemos ter acesso, sejam elas mesmas experienciadas. São estabelecidos assim os fundamentos (as
6
impressões e idéias), o procedimento (a observação e experimentação) e os limites (o conjunto das
percepções) da investigação filosófica.
É o próprio método observado por Hume, podemos dizer, que delimita a fronteira além da
qual a investigação filosófica jamais poderá avançar. Uma filosofia fundada na experiência não
pode ir, com efeito, além disso que é oferecido na experiência, pelo que não parece possível
perguntarmo-nos por aquilo que não é dado imediatamente por essas percepções. As idéias referemse às impressões, segundo aquele importante princípio da filosofia humeana, mas estas percepções
mais vivas da mente, as impressões, não podem ser consideradas como referentes do mundo
concreto, imagens mentais dos objetos do mundo físico. A idéia corresponde, em último caso, a
uma impressão da qual se faz cópia, e é impossível dizer algo mais a respeito de sua origem. Não
podemos sustentar que as idéia são indícios dos objetos externos, visto não nos ser dado, pois,
observar e experimentar uma existência que ultrapasse a realidade das percepções (observamos e
experimentamos as impressões e idéias tão-somente, e esse é o limite). De acordo com os
pressupostos seguidos pelo filósofo, é ilegítimo que se faça filosofia sobre uma hipótese de que
aquilo que se apresenta à mente refere-se ao mundo real. Isso, decerto, contraria esses princípios da
filosofia experimental:
pois colocando a hipótese de existência dos corpos, para além das percepções da mente, nós estamos
prestes a ultrapassar novamente a fronteira da experiência. O pensamento pretende, procedendo desta
maneira, decidir sobre aquilo que está para além do que lhe é dado na impressão. Uma tal existência
não deriva de uma evidência de fato, da mesma maneira que aquela que nos impõe a impressão, ela é
uma crença6 (CHIRPAZ, 1989, p. 81, tradução nossa).
O fundamento que Hume oferece à filosofia experimental é o conjunto das percepções mentais, a
própria experiência, logo, seria deveras injustificável que se tentasse ultrapassar esse limite.
Negligenciar a experiência seria contraditório.
3.2. A impossibilidade da metafísica como fundamento de uma filosofia experimental
Para Hume não há meios para verificar a verdade ou a falsidade da realidade de fato. Não
existe um fundamento sólido para o juízo “as coisas do mundo objetivo existem”, nem tampouco
para a afirmação de que as coisas do mundo objetivo não existem. O conjunto das percepções
constitui uma fronteira intransponível, de modo a inviabilizar até mesmo uma resposta, seja ela
positiva ou negativa, acerca do problema da existência do mundo concreto. Seguindo novamente as
palavras de Chirpaz: “a mente humana sendo isto que ela é não pode de modo algum conhecer
aquilo que não se lhe oferece em uma impressão e tudo que, de uma maneira ou de outra, escapa à
esfera das impressões não pode ser reconhecido como realidade7” (1989, p. 83, tradução nossa).
Não podemos responder, se partimos dos princípios da filosofia experimental, acerca da realidade
concreta, pois os objetos físicos, se eles existem, escapam àquilo que é encontrado na experiência.
Resta, deste modo, tão-somente a incerteza quanto à realidade do mundo concreto e a necessidade
de restringir a inquirição filosófica ao mundo mental.
Mas talvez seja legítimo que nos perguntemos porque não recorrer a algum princípio
metafísico, como o fez Descartes, para demonstrar a existência do mundo concreto e justificar as
idéias como conhecimento desse mundo. Se Hume não se apóia sobre a metafísica, assim procede
em razão de a filosofia experimental recusar estabelecer-se sobre princípios metafísicos, não
fundados sobre a experiência. Hume não aceita construir, com efeito, um sistema filosófico sobre
6
No original: “car en posant, l’hypothèse de l’existence de corps, hors de la perception de l’esprit, nous
sommes en train de franchir une nouvelle fois la frontière de l’experience. La pensée pretend, ce faisant,
décider de ce qui est hors de ce qui lui est simplement donné dans l’impression. Une telle existence ne rèleve
pas d’une évidence de fait, au même titre que celle qui nous impose l’impression, elle est une croyance”.
7
No original: “l’ésprit humain étant ce qu’il est ne peut rien connaître de ce qui ne se donne pas à lui dans
une impressione et tout qui, d’une façon ou d’une autre, échappe à la sphère des impressions ne peut se voir
reconnaître de realité”.
7
noções como, por exemplo, substância, existência, eu e Deus, que, para ele, são completamente
destituídas de qualquer significação. No Tratado, o filósofo procura decompor muitos desses
conceitos comumente utilizados no debate filosófico, tal como nos comenta Michaud acerca disso:
na obra referida, “a empresa antimetafísica tem livre curso, banindo ficções de todo tipo e
destruindo quimeras e construções verbais8” (1999, p. 226, tradução nossa). Essas noções
metafísicas por certo não resistirão ao exame crítico humeano, que visa demonstrar a nulidade do
debate filosófico quando articulado sobre esses conceitos. Esses, argumenta Hume, não encontram
nenhum apoio na experiência para que possam ser legitimamente utilizados em nossas discussões. É
em virtude do pensamento ter algum sentido tão-somente na medida em que se vincula à
experiência, enquanto que fundado sobre o conjunto das percepções, que a noção de Deus, por
exemplo, não possui nenhum significado dentro de um sistema como o de Hume.
Os conceitos da metafísica não são edificados sobre nenhuma das percepções da mente, não
se referem à experiência, e, portanto, não podem ser legitimamente utilizados. São apenas palavras
vazias que obscurecem a discussão filosófica. Por isso, esses conceitos, que muitas das vezes são
utilizados sem essas considerações críticas prévias, podem e devem ser verificados de modo a
tornar o pensamento filosófico inteligível, retirando-o dos intricados e inúteis debates que o
assolam. E o suporte teórico a partir do qual Hume opera a negação destes termos é o critério de
legitimação das idéias, aquele princípio que nos diz que toda idéia corresponde a uma impressão da
qual se origina: uma espécie de “pauta metodológica para saber quando se está fazendo uso legítimo
ou ilegítimo de uma idéia” 9 (MARTÍNEZ, 1992, p. 417, tradução nossa). Para toda e qualquer
idéia da mente, de fato, há uma impressão correspondente. Logo, como aponta Hume: “quando
suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou idéia – o
que é muito freqüente – devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta
idéia?” (HUME, 1992, p. 71). Se porventura suspeitamos que um determinado conceito filosófico é
vazio quanto a seu significado, isto é, não possui o devido apoio empírico que lhe confere um
sentido, é suficiente que nos perguntemos pela impressão de que deriva sua idéia. Caso não seja
possível indicar tal percepção, o conceito deve ser considerado como vazio, totalmente destituído de
idéia e, portanto, tem de ser eliminado do debate. Se por acaso é contraditório operarmos com uma
noção tal como a de substância, por exemplo, isso se dá em razão de não termos uma tal impressão
de que sua idéia pudesse derivar: “assim sendo, não temos nenhuma idéia de substância que seja
distinta da idéia de uma coleção de qualidades particulares [...]” (HUME, 2001, p. 40). Não há, com
efeito, uma impressão de substância da qual essa suposta idéia pudesse provir: “a idéia de
substância, bem como a de um modo, não passa de uma coleção de idéias simples [...]” (HUME,
2001, p. 40). Pelo que não devemos utilizar, a bem da filosofia, tal conceito em nossos debates.
O mesmo pode ser dito sobre o exame de outro termo filosófico como Deus, eliminado de
nosso debate a partir daquele mesmo princípio fundamental. Não é possível apontar uma impressão
da qual pudesse provir a idéia de um ser dotado de poder infinito, tal qual a idéia de Deus. “A idéia
de Deus, diz o filósofo, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão
sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de
bondade e sabedoria” (HUME, 1992, p. 70). Não há, por conseguinte, uma percepção mais viva da
mente da qual pudesse se originar a idéia de Deus.
3.3. A crença nos objetos do mundo exterior
Pensamos ser necessário um pequeno esclarecimento sobre o sentido em que chamamos a
posição humeana (acerca do problema da realidade do mundo objetivo) de cética, visto que essa
classificação gera muitos debates entre os comentadores das obras do filósofo. É verdade que
Hume, em diversas passagens, declara-se como um filósofo cético. Contudo, concordamos com
8
No original: “l’entreprise anti-métaphysique se donne libre cours, débusquant les fictions de toute sorte et
détruisant les chimères et constructions verbales”.
9
No original: “una pauta metodológica para saber cuándo se está haciendo uso legítimo o ilegítimo de una
idea”.
8
Duarte quando afirma “Hume não pode ser colocado entre os céticos, pelo menos no sentido
corrente que tem esse termo” (2003, p. 214). Pois é verdade que, em face das duas posições, a
dogmática e a cética, Hume não adere a nenhuma delas: “a solução que ele propõe, então, é não
escolher entre os dois termos da alternativa, mas varrê-los juntos” (DUARTE, 2003, p. 215). O
pensamento do filósofo de Edimburgo, deste modo, não é dogmático nem tampouco cético (no
sentido de um ceticismo extremado). Não é dogmático na medida em que, tal qual nos diz Quinton
(falando de um dos propósitos do sistema de Hume), ele opõe-se ao dogmatismo, pretendendo
aniquilar o pensamento dogmático no âmbito das possibilidades do conhecimento (2000, p. 39).
Hume é contrário ao dogmatismo quando nega a possibilidade de demonstrarmos a existência ou
inexistência do mundo dos objetos físicos por meio de raciocínios filosóficos, a partir da razão. É
em decorrência dessa impossibilidade que chamamos seu pensamento de cético. Mas é preciso
salientar que não se trata de um ceticismo radical, genuíno, haja vista Hume apontar uma certa
inclinação da natureza humana a acreditar no mundo objetivo.
É certo que o ceticismo professado pelo filósofo de Edimburgo não é radical a ponto de
fazer com que deixemos de acreditar no mundo objetivo. Há, pois, um remédio que nos impediria
de ceder a uma descrença total nessa realidade: a crença. A despeito de nossos raciocínios
filosóficos mostrarem a impossibilidade de se sustentar uma posição tal como a cartesiana, que
afirma categoricamente a existência real do mundo objetivo, existe uma alternativa a essa posição
dita racional, fundada nesse sentimento que desempenhará papel decisivo no momento de dizer sim
ou não ao mundo externo. É a crença, com efeito, que nos salvaguardará de um ceticismo radical ao
qual nos conduz a razão. Pelo que, em virtude de uma inclinação própria de nossa natureza, “não
parece que seja pertinente propor questão alguma sobre o mundo externo, já que, tenhamos ou não a
presença imediata de muitos, poucos ou nenhuns dos elementos deste mundo, damos por suposto
que este mundo existe” 10 (MARTINEZ, 1992, p. 403-404, tradução nossa). É como nos diz Hume:
“a natureza não deixou isso à sua [do filósofo] escolha; sem dúvida, avaliou que se tratava de uma
questão demasiadamente importante para ser confiada a nossos raciocínios e especulações incertos”
(HUME, 2001, p. 220). Por mais corretos e exatos que sejam os raciocínios céticos, uma inclinação
natural sempre nos levará a crer que existe um objeto para além das percepções da mente. Hume,
nesse sentido, é um cético moderado, se assim podemos chamá-lo, pois aponta a crença (em
oposição àquele ceticismo extremado) como supremo árbitro de nossos juízos, crença “que acima
da razão, nos ensina sobre o que, correntemente, chamamos verdade”, impelindo-nos a abandonar
naturalmente o ceticismo (DUARTE, 2003, p. 216).
4. Conclusão
A partir do que foi exposto nas páginas acima, pensamos, agora, poder contrapor o
pensamento de Descartes e Hume no tocante à existência do mundo concreto, apontando alguns
pontos que revelam a impossibilidade de uma resposta à maneira cartesiana no pensamento
humeano. Constatamos que existe uma diferença fundamental na solução da questão acerca da
existência do mundo externo. Chamamos essa diferença de fundamental na medida em que é o
próprio ponto de partida a partir do qual os filósofos iniciam a filosofia que lhes permite chegar a
tais conclusões. Descartes, com efeito, apóia-se na metafísica, ao passo que Hume alicerça seu
sistema sobre as percepções da mente. Enquanto Descartes consegue demonstrar a existência do
mundo objetivo e a correspondência das idéias da mente com esse mundo mediante a afirmação da
realidade divina, Hume não consegue encontrar, em contrapartida, nenhum fundamento sólido para
legitimação de tal existência (o método experimental de raciocínio não lhe permite ultrapassar
aquilo que oferece a experiência, isto é , as percepções da mente). Detêm-se, portanto, em examinar
um sentimento, a saber, a crença nesta realidade. A solução cartesiana do problema do mundo
10
No original: “no parece que sea pertinente plantear cuestión alguna sobre el mundo externo, ya que,
tengamos o no la presencía inmediata de muchos, pocos o ninguno de los elementos de ese mundo, damos
por descontado que dicho mundo existe”.
9
externo e a legitimação da correspondência entre objeto e idéias não podem de modo algum serem
aceitas pelo filósofo de Edimburgo, como bem nos aponta Noxon: “Hume rejeitará esta solução por
considerá-la uma manobra fraudulenta”11 (1987, p. 18, tradução nossa). Antes de empreender a
discussão da realidade do mundo externo, o filósofo de Edimburgo já se ocupara em banir do
debate, como vimos, aquelas noções filosóficas que são muito relevantes para o pensamento de
Descartes (substância, existência, eu, Deus).
Diferentemente do que ocorre no pensamento cartesiano, Hume não pode afirmar a
existência do cogito como ponto de passagem, como aquilo que poderia nos conduzir àquele Ser
sumamente poderoso. Nem tampouco Deus, nessa perspectiva, pode ser tido por fundamento da
correspondência das percepções com o mundo exterior. Se porventura Descartes demonstrou
filosoficamente a existência do mundo objetivo, fê-lo somente enquanto pôde recorrer a uma
metafísica centrada na figura Deus como fundamento do conhecimento humano. Sabemos, no
entanto, que Hume não pode edificar sua filosofia sobre tais noções da metafísica. Sobre esse ponto,
nos diz Martinez:
compreender-se-á com facilidade que uma solução ao modo cartesiano dificilmente podia manter-se
em uma filosofia como a de Hume, na qual os pressupostos da metafísica racionalista são destruídos,
pois o que nesta se oferece como solução, naquela se converte em problema, em questões há serem
resolvidas [...] e, assim, enquanto em Descartes conceitos tais como os de substância, eu, existência e
Deus cooperam na resolução dos problemas que motivam a incerteza inicial sobre o mundo externo,
em Hume são recursos que perderam toda sua vigência 12 (MARTÍNEZ, 1992, p. 416, tradução nossa).
O que nos interessa ressaltar, sobretudo, é a necessidade cartesiana de se recorrer à metafísica para
escapar a uma resposta à maneira humeana do problema do mundo externo, isto é, cética (ainda que
naquele sentido moderado em que entendemos o termo). Ambos os filósofos principiam a
investigação filosófica pela negação do mundo externo, em virtude da dubiedade (no caso de
Descartes) e da impossibilidade de verificação de sua existência (no caso de Hume). Contudo, em
virtude do ponto de apoio metafísico que Descartes supõe encontrar, a filosofia racionalista
encontra meios de escapar de uma conclusão cética acerca do mundo objetivo. Podemos identificar
certa semelhança na abordagem do problema por ambos os filósofos: a inquirição cartesiana, em um
certo sentido, possuía um aspecto “humeano” (cético) que foi eliminado com a postulação do cogito
e de Deus.
5. AGRADECIMENTOS
CNPQ, PROPP-UFU.
6. REFERÊNCIAS
ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes. Tradução de M. Rodrigues Martins. Lisboa: Editorial
Presença, 1986.
CHIRPAZ, F. Hume et le procès de la métaphysique. Paris: Beauchesne Éditeur, 1989.
DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. Edição bilíngüe. Tradução de Fausto
Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
11
No original: “Hume rechazará esta solución por considerarla una maniobra fraudulenta [...]”.
No original: “se comprenderá con facilidad que una solución al modo cartesiano difícilmente podia
mantenerse en una filosofía, como la de Hume, em la que los supuestos de la metafísica racionalista se
resquebrajan, pues lo que en ésta se ofrece como solución, em aquélla se convierte en problema, en
cuestiones que resolver [...] y, así, mientras en Descartes conceptos tales como los de sustancia, yo,
existencia y Dios coadyuvan a la resolución de los problemas que motiva la incertidumbre ínicial sobre el
mundo externo, en Hume son recursos que han perdido toda su vigencia”.
12
10
______________. Discurso sobre o Método. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo:
Hemus, 1975.
DUARTE, L. J. C. A natureza da inteligência no tomismo e na filosofia de Hume. Tradução de
Antônio Carlos Mangueira Viana. Aracaju-Sergipe: J. Andrade, 2003.
GOUHIER, H. La pensée métaphysique de Descartes. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin,
1999.
HUME, D. Tratado da natureza humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Edtiora
UNESP, 2001.
________. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo:
Nova Cultural, 1992.
KUJAWSKI, G. de Mello. Descartes existencial. São Paulo: Editora Universidade de São
Paulo, 1969.
NOXON, J. La evolución de la filosofia de Hume. Madrid: Alianza Universidad, 1987.
MARTINEZ, J. A. El problema del mundo externo en Hume. In: Pensamiento. Madrid, vol. 48,
n°. 192, p. 403-423, 1992.
QUINTON, A. Hume. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp,
2000.
ROMEO, S. Rábade. El empirismo. David Hume. Madrid: Editorial Trotta, 2004. v. 2.
DESCARTES AND HUME: RATIONALIST AND SKEPTICAL ANSWERS
TO THE PROBLEM OF EXTERNAL WORLD EXISTENCE
Abstract: While Descartes gets to achieve in metaphysic a solid base to demonstrate the external
world existence, Hume points out the impossibility of the defense of that thesis starting from those
obscure metaphcisycal presuppositions. To Descartes, actually, it is God who assures the existence
from the world of physical objects, since it would be contradictory, according to the idea we have
about the perfect Being, that God would deceive us, making us believe this world is real when in
fact it does not exist. However, to Hume, it would be impossible to us, such as Descartes had done,
answer this question: “is the physical world real?” Metaphysic cannot support a philosophic
system based on experience. On the other hand, to Hume, this doctrine is really noxious to the
philosofic thought, since the dark of their concepts (Substance, existence, self, God, for example),
just leads the philosophy to useless and intricates debates. Althoug it is impossible to demonstrate
the the concret reality existence, according to Hume, still men believe this world actually exists.
Therefore, the assignment of the philosopher must be to try to explain, starting from the principles
of the experimental method of reasoning, this belief in the existence of the external world.
Keywords: Theory of knowledge. Descartes. David Hume. External world.
Vinícius França Freitas
FAFCS-UFU, João Naves de Ávila Avenue, 2121- 1U Building; ZIP Code 38400-902,Uberlândia - MG.
e-mail: [email protected]
Marcos César Seneda
FAFCS-UFU, João Naves de Ávila Avenue, 2121- 1U Building; ZIP Code 38400-902,Uberlândia - MG.
e-mail: [email protected]
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