ASPECTOS ANTROPOLÉGICOS DO ENVELHECIMENTO

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Elizabeth Mercadante
Aspectos Antropológicos do Envelhecimento
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INTRODUÇÃO
Abordar, da perspectiva antropológica, a questão do envelhecimento humano
recobre
um
grande
conjunto de
temas
complexo a ela
relacionados que estão sendo estudados pela Antropologia.
Neste texto, pretende-se analisar um desses temas, a saber: o conceito de
cultura. Assim, avaliar-se-á, primeiramente, a cultura como possibilitadora da
distinção e conseqüente compreensão da velhice como fenômeno biológico e/ou
cultural e, em segundo lugar, como este mesmo conceito — cultura — na
perspectiva aberta pela Antropologia Interpretativa, cria a possibilidade de
analisar e descobrir o conjunto de significados elaborados, pelos grupos
humanos e sociedades, sobre velho, velhice.
VELHICE: FENÔMENO NATURAL E/OU CULTURAL
A distinção entre o natural e o cultural ocupou e continua a ocupar um lugar
importante nas discussões antropológicas.
Essa distinção focalizou principalmente a idéia de o homem ter sido moldado
pela cultura e não pelo instinto.
O instinto está presente no comportamento animal, que é programado
geneticamente para, da mesma forma, desenvolver em qualquer tempo e lugar,
as mesmas respostas instintivas tendo em vista os mesmos estímulos.
O comportamento cultural, específico do homem, ao contrário, varia
culturalmente, tendo em vista os diversos momentos históricos e as diferentes
sociedades. Assim, o homem, diferentemente do animal, não possui organização
social, religião, arte, linguagem e pensamento que se desenvolva sem a
intervenção da cultura. Na verdade, o homem é o que é — homem — pela
cultura. Também, em outros termos, não se pode falar de cultura sem homens, e
nem de homens sem cultura.
A Antropologia pensada por Lévi-Strauss, etnólogo francês contemporâneo,
preocupado com a questão da natureza e da cultura, estabeleceu uma distinção
lógica entre as mesmas. Segundo ele: “A ausência de regra parece oferecer o
critério mais seguro que permite distinguir um processo natural de um processo
cultural.” E também Lévi-Strauss que em outro momento explica: “Em toda parte
onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da
cultura. Simetricamente, é fácil reconhecer no universal o critério da natureza.
Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa necessariamente ao
domínio dos costumes, das técnicas e das instituições pelas quais seus grupos
se diferenciam e se opõem. Na falta de análise real, os dois critérios, o da norma
e o da universalidade, oferecem o princípio de uma análise ideal, que pode
permitir — ao menos em certos casos e em certos limites — isolar os elementos
naturais dos elementos culturais que intervêm nas sínteses de ordem mais
complexa. Estabelecemos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende
da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto
está ligado a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e
do particular.”
Sintetizando, para Lévi-Strauss a existência da regra — regras de
comportamento, linguagem, magia, pensamento, arte, etc. — evidencia o
universo da cultura, o inverso do mundo da natureza.
Importa ainda aqui apontar, tendo em vista obter uma compreensão mais ampla
do pensamento de Lévi-Strauss, que este último preocupado com a passagem
lógica do estado de natureza para o estado da cultura, indica que a mesma se dá
pela regra universal do incesto. Assim, no dizer deste autor: “A proibição do
incesto apresenta, sem o menor equívoco e indissoluvelmente reunidos, os dois
caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditórios de duas ordens
exclusivas, isto é, constituem
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uma regra, mas uma regra que, única entre todas as regras sociais, possui ao
mesmo tempo caráter de universalidade”.
Assim o tabu do incesto apresenta “simultaneamente o caráter distintivo dos
fatos da natureza e o caráter distintivo — teoricamente contraditório do
precedente — dos fatos da cultura”. “A proibição do incesto possui ao mesmo
tempo a universalidade das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das
leis e das instituições.”
Tendo em vista a distinção feita — natureza e/ou cultura — recoloca-se aqui, de
maneira mais clara, a problemática da velhice como sendo um fato natural e/ou
cultural.
Com certeza a velhice é um fenômeno biológico: o organismo do ser idoso
apresenta certas particularidades. Há no envelhecimento um sentido
relativamente claro da noção de decadência no plano biológico. O organismo
entra em declínio quando se reduzem suas probabilidades de subsistir. Simone
de Beauvoir explica: “O envelhecimento e, em seguida, a morte sobrevêm
quando um determinado programa de crescimento e de maturação chega a seu
termo.” A velhice é um processo comum a todos os seres vivos. Há uma série de
transformações que ocorrem no corpo do indivíduo que envelhece.
Ainda fundamentada no texto de Simone de Beauvoir, tem-se a descrição rica,
obtida por uma observação perspicaz desta autora sobre as transformações na
aparência física e também sobre a decadência biológica do organismo do
indivíduo que envelhece.
Assim, segundo Beauvoir: “Os cabelos embranquecem e tornam-se mais ralos,
também os pêlos embranquecem embora proliferem em certos lugares — como
por exemplo, no queixo das velhas. A pele se enruga em conseqüência da
desidratação e da perda de elasticidade do tecido dérmico subjacente. Caem os
dentes. A perda dos dentes provoca um encurtamento da parte inferior do rosto,
de tal maneira que o nariz — que se alonga vertícalmente por causa da atrofia
de seus tecidos elásticos — aproxima-se do queixo. A proliferação senil da pele
traz um engrossamento das pálpebras superiores, enquanto se formam papos
sob os olhos; o lábio superior mingua e o lóbulo da orelha aumenta. Também o
esqueleto se modifica. A atrofia muscular e a esclerose das articulações
acarretam problemas de locomoção. O esqueleto sofre processo de
osteoporose, isto é, a substância compacta do osso torna-se esponjosa e frágil,
sendo este o motivo por que a fratura do colo do fêmur, que suporta o peso do
corpo, é um acidente freqüente.” Em outro momento de seu texto, Beauvoir
explica: “Há involução dos rins, das glândulas digestivas e do fígado. Os órgãos
dos sentidos são atingidos. O poder de acomodação diminui. A presbiopia é um
fenômeno quase universal entre os velhos; e a vista ‘cansada’ faz com que a
capacidade de discriminação decline.
Também diminui a audição, chegando freqüentemente até a surdez. O tato, o
paladar e o olfato têm menos acuidade que outrora.”
Embora a morte possa ocorrer em qualquer fase da vida, ela freqüentemente
sucede à velhice. A morte é a finalização daqueles que atingiram a velhice, ou
seja, dos que ultrapassaram as fases de crescimento, desenvolvimento e
maturidade. Raramente, porém, a velhice por si só acarreta morte sem que uma
patologia intervenha. As chamadas mortes “naturais” — em oposição às mortes
por acidentes — realmente são provenientes de um processo de deterioração
orgânica.
Se a partir dos dados fornecidos pelas colocações precedentes explicita-se a
velhice como um fato biológico, portanto natural e universal, por outro lado,
somente este fato é insuficiente para definir a velhice.
Se a identidade de velho, não se quer aqui negar, se define como um fenômeno
biológico, define-se assim em parte e, com certeza, se cai em uma postura
equivocada ao se extrapolar essa parte, ou essa condição biológica, para
explicar a totalidade
— comportamentos, atitudes, pensamentos dos indivíduos. Em outros termos,
erra-se ao priorizar a condição biológica como sendo a conformadora do
comportamento psicossocial do indivíduo. Sempre se é velho em algum lugar e
num determinado tempo histórico.
Simone de Beauvoir complementa o que acima se colocou, quando explicita que
“a velhice, como todas as situações humanas, tem uma dimensão existencial:
modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o
mundo e com sua própria história”. “Por outro lado, o homem não vive nunca em
estado natural; na sua velhice, como em qualquer idade, seu estatuto lhe é
imposto pela sociedade a qual pertence.”
Diz ainda Simone de Beauvoir: “A sociedade destina ao velho seu lugar e seu
papel levando em conta sua idiossincrasia individual: sua impotência, sua
experiência; reciprocamente, o indivíduo é condicionado pela atitude prática e
ideológica da sociedade em relação a ele. Não basta, portanto, descrever de
maneira analítica os diversos aspectos da velhice: cada um deles reage sobre
todos os outros e é afetado por eles; é no movimento indefinido desta
circularídade que é preciso apreendê-la.”
Sintetizando, a partir de todos os elementos até agora avaliados, a velhice para
ser compreendida em sua totalidade, tem que ser analisada não somente como
um fato biológico mas, também, como um fato cultural.
Falar de cultura, de fatos culturais, imediatamente revela a idéia de fatos que se
modificam. Assim, analisar a cultura implica simultaneamente analisá-la na sua
constante dinâmica.
No que se refere à velhice como um fenômeno biológico mas também cultural, é
importante chamar
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a atenção que “ser velho” é um fenômeno que se altera no tempo e no espaço.
Assim, se existir como velho hoje, na nossa sociedade, implica viver em uma
relativa situação de discriminação social, no futuro, esta situação poderá e
deverá ser modificada, na medida em que se a entenda como constituída
culturalmente e, por isso mesmo, mutável, dinâmica.
A CULTURA COMO ANÁLISE
DE SIGNIFICADOS
Fazer uma análise antropológica da cultura é interpretar os diversos significados
simbólicos criados pelos diferentes grupos humanos sobre vários temas. Neste
trabalho, os significados que se está querendo descobrir dizem respeito ao tema
velho, velhice.
O conceito de cultura que busca avaliar os significados é essencialmente
semiótico e é defendido pela perspectiva hermenêutica da Antropologia, que tem
como um dos seus maiores representantes o antropólogo Clifford Geertz. Este
autor propõe um conceito semiótico de cultura, pois acredita “como Max Weber,
que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumindo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto,
não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa à procura do significado”.
A proposta de Geertz é que o antropólogo deve fazer uma etnografia e esta, por
sua vez, implica a realização de uma descrição densa. Tudo isso, nos termos do
próprio autor, revela o seguinte: “O ponto a enfocar agora é somente que a
etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato
— a não ser quando está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar
dados — é uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas
sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas,
irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro
apreender e depois apresentar.—E isto é verdade em todos os níveis de
atividade no seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar
informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas
de propriedade, fazer o censo doméstico, escrever seu diário. Fazer a etnografia
é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito
estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e
comentários tendenciosos, escrito ou não com os sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios do comportamento modelado.”
Enfatiza Geertz, em outro momento de seu texto: “A cultura consiste em
estruturas de significados socialmente estabelecidas, nos termos das quais as
pessoas fazem certas coisas.”
Resumindo o pensamento de Geertz, tem-se que a cultura não é um poder,
alguma coisa à qual se possa atribuir os acontecimentos sociais, as instituições,
os comportamentos ou os processos. A cultura apresenta-se como sistemas
entrelaçados de signos interpretáveis. A cultura é um contexto, no qual os
acontecimentos, os comportamentos, as instituições e os processos podem ser
descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade.
A SIGNIFICAÇÃO CULTURAL DA VELHICE
Na nossa sociedade, ser velho significa na maioria das vezes estar excluído de
vários lugares sociais. Um desses lugares, densamente valorizado, é aquele
relativo ao sistema produtivo, o mundo do trabalho. Estar alijado do sistema
produtivo quase que inteiramente define o “ser velho”. O alijamento do mundo do
produtivo — extremamente valorizado, na nossa cultura — espalha-se, criando
barreiras impeditivas de participação do velho nas outras tantas e diversas
dimensões da vida social.
Assim, a partir da argumentação precedente, uma primeira avaliação do
significado de ser velho, na nossa cultura, deve, sem dúvida, levar em conta a
análise do mundo econômico, do trabalho, das idéias de
produtividade/improdutividade e como esses mesmos elementos são
simbolicamente constituídos para os sujeitos — velhos, não-velhos, homens,
mulheres, classes sociais, etc. — que vivem nesta sociedade.
É importante apontar que uma ampliação do significado de produtor está sendo
discutida e, cada vez mais, utilizada pelos profissionais, sejam os que
diretamente trabalham com o segmento idoso, sejam aqueles que são os
responsáveis pelo desenho de uma política social para este mesmo segmento.
Esta ampliação significa não mais somente medir a produtividade econômica e,
conseqüentemente definir o produtor a partir desse único critério, mas alargar o
significado de produtor na direção das outras esferas da vida social, passando
assim a classificar de modo a incluir o velho como “produtivo” e/ou “produtor
social”.
Outros significados aparecem ligados à idéia de velho quando se estuda a
identidade social desses sujeitos. Com certeza, a análise da construção das
identidades sociais é um campo vasto e rico de possibilidades de
desvendamento de significados criados pela nossa sociedade, ou setores da
mesma, para explicar o que é, ou quem é o velho.
Na construção da identidade de velho evidencia-se a existência de um jogo de
contrastes de identidades sociais, que aponta para o conjunto das mesmas —
identidades — formando um sistema e criando uma estratégia de diferenças.
Partindo dessa concepção se tem clara a idéia de que a identidade do “eu” é
construída pela oposição à identidade do “outro”.
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Assim, na nossa sociedade, a identidade de idosos se constrói pela
contraposição à identidade de jovem e, como conseqüência, se tem também a
contraposição das qualidades: atividade, força, memória, beleza, potência e
produtividade como características típicas e geralmente imputadas aos jovens e
as qualidades opostas a estas últimas, presentes nos idosos.
Esses significados levantados sobre “velho” na nossa sociedade representam
uma pequena amostra de um número muito maior de outros significados
elaborados a respeito dos sujeitos idosos.
Não é objetivo deste texto esgotar os significados, mas mostrar as possibilidades
que os pesquisadores possuem ao trabalhar com um conceito interpretativo de
cultura para poder descobrir outros e mais outros significados. Vale lembrar que
a Antropologia Interpretativa da Cultura, como proposta por Geertz, tem entre as
suas características aquela de ser incompleta. Assim, segundo Geertz, “a análise
cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda,
menos completa”.
Para concluir este capítulo, gostaria de pedir desculpas ao leitor que ao ver o
título “Aspectos Antropológicos do Envelhecimento”. Pensou em um estudo de
Antropologia mais tradicional. Pensou em uma ou mais descrições afirmativas,
também, talvez, em um exaustivo levantamento de características pitorescas,
exóticas de existir como velho nas difetentes sociedades primitivas. Sem dúvida,
isto é o que, via de regra, se espera e se encontra em um texto antropológico,
mas este propositadamente fugiu à regra. Ao fazer isso, trabalhou com o
conceito de cultura e, como se pode, com o mesmo, apreendendo- o como uma
categoria interpretativa, desvendar os significados culturais sobre “velho”,
“velhice”, que os “outros” — os não-velhos — atribuem aos velhos e também
descobrir outros significados, provavelmente diferentes, atualmente ainda
desconhecidos, que os velhos possuem a seu próprio respeito.
Se esta última possibilidade vier a ocorrer, creio que o objetivo proposto por
Geertz tome-se realidade quando diz: “Na abordagem semiótica da cultura o
grande objetivo, ou o ponto global, é auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo
conceitual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido
um tanto mais amplo, conversar com eles.”
Certamente que esta colocação do autor indica para o estabelecimento de
diálogos de significados, que no presente caso remete aos “velhos”, “velhice”,
elaborados pelos não-velhos e pelos que se situam na categoria de velhos.
Sem dúvida alguma, as qualidades negativas que neste texto já foram
anteriormente apontadas, e que são imputadas aos idosos, eles próprios as
conhecem e sabem como, a partir delas, eles são classificados, porém
individualmente não aceitam essa classificação. Em outras palavras, se por um
lado os idosos partilham da ideologia geral da sua sociedade sobre a velhice, por
outro pessoalmente não se incluem nesse modelo, mas o conhecimento da sua
existência implica o acionamento do mecanismo característico da construção da
identidade social de que o velho não sou “eu” mas é o “outro”. Quando este
mecanismo é acionado as diferenças pessoais surgem e imediatamente se
contrapõem à categoria genérica de velho.
O fato de não se sentir incluído no modelo ideológico de velhice, por parte dos
velhos, indica que uma parte do longo caminho começou a ser trilhada pelos
indivíduos idosos. Percorrer toda a estrada para mudar a concepção negativa de
velhice, supõe-se como fundamental, mais do que diálogos, mais do que a troca
de significados, tanto os guardados, quanto as novas concepções simbólicas,
elaboradas pelos velhos sobre si mesmos, criem a possibilidade de o velho,
concretamente, tornar-se sujeito do seu próprio destino.
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