get_appDownload

Propaganda
GEOLOGIA
AMBIENTAL
Cem
A falta de medidas de proteção
ambiental no sepultamento
de corpos humanos em covas
abertas no solo, ao longo
dos últimos séculos,
fez com que a área de muitos
cemitérios fosse contaminada
por diversas substâncias, orgânicas
e inorgânicas, e por micro-organismos
patogênicos. Essa contaminação
ocorre quando os cemitérios
são implantados em locais
que apresentam condições
ambientais desfavoráveis.
No Brasil, ainda não existe
uma política eficiente de
planejamento e de gestão
ambiental dos cemitérios,
principalmente os públicos.
Robson Willians da Costa Silva
e Walter Malagutti Filho
Departamento de Geologia Aplicada,
Universidade Estadual Paulista (Rio Claro, SP)
2 4 • CiênCia Hoje • vol . 4 4 • nº 263
mitérios
GEOLOGIA
AMBIENTAL
Fontes potenciais
de contaminação
Foto cícero rodrigues
Desde a pré-história, de acordo com registros arqueológicos,
existe o hábito de enterrar os mortos, ou cobri-los
com pedras. Há evidências de que comunidades
neandertais enterravam seus mortos. Entretanto,
os cemitérios – terrenos destinados apenas ao sepultamento dos mortos – teriam sido implantados
pelos primeiros cristãos. As palavras ‘cemitério’ e
‘necrópole’ têm origem grega. A primeira vem de
koumetèrian (que significa ‘dormitório’), enquanto
necrópole deriva de necrópolis (‘cidade da morte’
ou ‘cidade dos mortos’). Já a palavra ‘cadáver’, que
faz parte do mesmo contexto, tem origem latina e
significa ‘carne dada aos vermes’, o que traduz o
destino dessa matéria orgânica.
O costume de enterrar os cristãos mortos nas
igrejas ou em suas imediações começou durante
a Idade Média. Essa prática significou uma aproximação entre os cadáveres, muitos vitimados por
doenças contagiosas, e os vivos, o que aumentou
significativamente a disseminação dos agentes
patogênicos em epidemias como as de tifo, peste
bubônica e outras. Na época, o tipo de sepultamento
predominante era a inumação, processo simplificado com simples recobrimento dos corpos com terra
em profundidades que variavam de 1 m a 2 m.
Embora algumas civilizações, como a romana,
já determinassem que os mortos deviam ser enterrados fora dos limites da cidade, foi a partir do
século 18 que a palavra cemitério começou a ter
o sentido atual, quando por razões de saúde pública foi proibido o sepultamento nos locais habituais (em terras da família ou em igrejas). Na
França, já em 1737, uma comissão de médicos,
formada pelo Parlamento de Paris, recomendou
mais cuidado nas sepulturas e decência na manutenção dos locais onde os mortos eram enterrados.
Na mesma época, em 1743, o abade francês
Charles-Gabriel Porée publicou um texto condenando os enterros em igrejas e propondo a criação
de cemitérios fora das cidades. Autoridades de
países e cidades da Europa, a partir daí, passam a
proibir sepultamentos nas igrejas e a promover a
instalação de cemitérios, para que os enterros
ocorressem ao ar livre e longe do perímetro urbano. Em Portugal, em 1801, o príncipe regente D.
João VI proibiu os sepultamentos em igrejas (inclusive em suas colônias, como o Brasil).
As decisões sobre a implantação de cemitérios
fora das cidades eram baseadas no mau cheiro dos
cadáveres e em ‘emanações’ tidas como perigosas
setembro de 20 0 9 • CiênCia Hoje • 2 5

GEOLOGIA
AMBIENTAL
para a saúde, mas a preocupação com os problemas
ecológicos causados pelos corpos sepultados é bem
mais recente. Só em 1998 a Organização Mundial da
Saúde (OMS) publicou um relatório afirmando que
os cemitérios poderiam causar impactos ao ambiente, com a liberação de substâncias orgânicas e inorgânicas e de micro-organismos patogênicos para o
solo e os lençóis freáticos.
Um problema ambiental
Figura 1. Muitos cemitérios
brasileiros foram implantados
quando não existiam leis ambientais
específicas e terão que
se adaptar as novas normas
2 6 • Ciência Hoje • vol . 4 4 • nº 263
Legislação específica no país
O Brasil não tinha qualquer dispositivo legal federal
sobre cemitérios até 28 de maio de 2003, quando foi
promulgada a Resolução nº 335, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que dispõe sobre o licenciamento ambiental de cemitérios horizontais e verticais. A resolução estabeleceu critérios
Foto cícero rodrigues
O sepultamento de cadáveres gera fontes de poluição
para o meio físico, e por isso deve ser considerado
como atividade causadora de impacto ambiental. No
entanto, apesar da existência de alguns relatos em
Berlim (Alemanha) e Paris, na década de 1970, apontando o posicionamento dos cemitérios em relação
a fontes de água, como lençóis freáticos e nascentes,
como uma das causas de epidemias de febre tifóide,
esses locais nunca foram incluídos entre as fontes
tradicionais de contaminação ambiental.
As pesquisas sobre esse tema são recentes. Em
1995, o hidrogeólogo Boyd Dent, da Universidade
Tec­nológica de Sidney (Austrália), constatou, em es­
tudo no cemitério da cidade australiana de Botany,
aumento da condutividade elétrica e da concentração
de sais minerais em águas subterrâneas próximas de
sepultamentos recentes. No Brasil também há estudos
sobre contaminação de cemitérios. Desde o final da
década de 1980, o hidrogeólogo Alberto Pacheco, da
Universidade de São Paulo, realiza estudos sobre a
contaminação nos cemitérios paulistas de Vila Nova
Cachoeirinha e Vila Formosa. Em um cemitério de
Santos (SP), a água subterrânea próxima a sepul­
tamentos recentes apresentava alta
con­dutividade elétrica e íons de
cloreto e nitrato, além de bactérias e vírus.
Outro pesquisador brasileiro, o geólogo Leziro
Marques Silva, da Universidade de São Judas Tadeu,
em São Paulo, investigou a situação de 600 cemi­térios do país (75% municipais e 25% particula­res)
e constatou que de 15% a 20% deles apresentam
contaminação do subsolo pelo necrochorume, líquido formado quando os corpos se decompõem.
Cerca de 60% dos casos foram observados em cemitérios municipais. A contaminação é detectada por
análises físicas, químicas e bacteriológicas de amostras de água do lençol freático sob os cemitérios ou
em suas proximidades.
No Cemitério de Vila Rezende, em Piracicaba (SP),
uma pesquisa realizada pelo primeiro autor deste artigo (em seu mestrado, orientado pelo segundo autor)
mostrou que as condições do solo desfavorecem a
filtração do necrochorume e facilitam a inundação
das covas. Foram localizadas duas ‘plumas’ de contaminação, como são chamados os contaminantes
dissolvidos no solo, uma delas estendendo-se para
fora dos limites do cemitério. O estudo constatou
que a contaminação tem ligação com a profundidade
do nível freático e com o tempo de sepultamento,
e sugeriu ao administrador do cemitério (a Prefeitura de Piracicaba) a instalação de seis poços de
monitoramento para o controle da contaminação. O
segundo autor também coordena estudo semelhante
no Cemitério São João Batista, em Rio Claro (SP).
GEOLOGIA
mínimos para a implantação de futuros cemitérios,
visando garantir a decomposição normal dos corpos
e proteger os lençóis freáticos da infiltração do necrochorume, e deu prazo de 180 dias para que os
cemitérios já existentes se adequassem às novas normas (figura 1).
Em 28 de março de 2006, na Resolução nº 368, o
Conama alterou alguns dispositivos da resolução
anterior, proibindo a instalação de cemitérios em
Áreas de Preservação Permanente (APPs) ou em
outras que exijam desmatamento da mata atlântica,
em estágio médio ou avançado de regeneração, em
terrenos onde existem cavernas, sumidouros ou rios
subterrâneos e em áreas onde o lençol freático, medido no final da estação chuvosa, fique a menos de
1,5 m da base das sepulturas.
A partir da entrada em vigor dessa resolução, os
órgãos ambientais estaduais e municipais passaram
a ter a obrigação de licenciar e fiscalizar a implantação de novos cemitérios. O prazo de adequação dos
cemitérios antigos, porém, foi eliminado por nova
resolução do Conama (nº 402, de 17 de novembro
de 2008). Essa norma deu aos órgãos estaduais e
municipais de meio ambiente prazo até dezembro de
2010 para “estabelecer critérios para a adequação dos
cemitérios existentes antes de 2003”. O descumprimento dessas disposições implicará sanções penais
e administrativas.
Foto Alberto Pacheco e Bolívar Antunes Matos (2000)
A transformação dos cadáveres
Os corpos, mesmo em caixões, podem sofrer, sob
certas condições ambientais, fenômenos transfor­
mativos destrutivos, como autólise e putrefação, ou
conservativos, como saponificação. A autólise é
iniciada logo que cessa a vida: as células deixam
de receber oxigênio e de trocar nutrientes, e pas­sam a ser dissolvidas por enzimas do próprio corpo.
Em seguida vem a putrefação, ou seja, a decom­
posição de tecidos e órgãos por bactérias e outros
mi­cro-or­ganismos.
Quando a umidade no solo é alta, pode acontecer
a saponificação, processo em que a ‘quebra’ das
gorduras corporais libera ácidos graxos, cuja acidez
inibe a ação das bactérias putrefativas, atrasando a
decomposição. O fenômeno ocorre em ambientes
quentes e úmidos, com baixos níveis de oxigênio,
em geral em solos argilosos, com baixa permeabilidade (que retêm água) e alta capacidade de troca de
cátions (capacidade de reter íons positivos de certos
elementos e liberar outros). A saponificação é comum
nos cemitérios brasileiros, em decorrência do clima
quente e úmido e da invasão das sepulturas por águas
superficiais e subterrâneas.
AMBIENTAL
A ocorrência desses fenômenos depende de fatores intrínsecos e extrínsecos. Os primeiros estão
associados ao próprio cadáver: idade, constituição
física e causa da morte. Os segundos, ao ambiente de
sepultamento: temperatura, umidade, aeração, constituição mineral do solo, permeabilidade e outros.
Fontes de poluição ambiental
O necrochorume é o principal responsável pela poluição ambiental causada pelos cemitérios (figura 2).
É um líquido viscoso, de cor castanho-acinzentada,
com 60% de água, 30% de sais minerais e 10% de
substâncias orgânicas degradáveis. Apresenta variado grau de patogenicidade, por causa da presença
de vírus, bactérias e outros agentes causadores de
doenças. Cada quilo de massa corpórea do cadáver
gera 0,6 litro de necrochorume.
Na putrefação são liberados gás sulfídrico (H2S),
dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), amônia
(NH3) e mercaptanas (compostos que contêm enxofre, como a cadaverina e a putrescina, responsáveis
pelo cheiro de carne podre), além da fosfina (PH3),
um hidrato de fósforo incolor e inflamável. O ne­
crochorume contém quantidades elevadas de diferentes bactérias, como as causadoras de tétano
(Clostridium tetani), gangrena gasosa (Clostridium
perfringes), febre tifóide (Salmonella typhi), febre
parasitóide (Salmonella paratyphi), disenteria (Shigella dysenteriae) e outras, além de muitos tipos de
vírus (como os da hepatite).

Figura 2.
Vazamento de
necrochorume
no cemitério
Vila Nova
Cachoeirinha (SP)
setembro de 20 0 9 • Ciência Hoje • 2 7
GEOLOGIA
AMBIENTAL
Estão presentes ainda no necrochorume metais
pesados, provenientes dos adereços dos caixões,
além de formaldeído e metanol, utilizados na
embalsamação dos corpos. O uso, comum atualmente, da tanatopraxia – técnica de maquiar par­tes do falecido com cosméticos, corantes, enrije­
ce­dores e outros produtos – também é fonte de
substâncias para o necrochorume, que pode ainda
conter resíduos de tratamentos químicos hospi­
talares (de medicamentos, por exemplo).
Os compostos orgânicos degradáveis liberados
no processo de decomposição dos corpos esti­
mulam a atividade microbiana no solo sob áreas
de se­pultamentos. Também aumentam, no solo, o
teor de compostos de nitrogênio e fósforo e o de
sais (o que eleva a condutividade elétrica) e o índice de acidez.
A contaminação do subsolo
O necrochorume proveniente dos cemitérios po­
de contaminar o subsolo se o meio físico local for
vul­nerável, o que dependerá de suas características
geológicas e hidrogeológicas. O solo pode ser divi­
di­do, de modo simplificado, em duas zonas (figura
3). A zona não saturada (ou de aeração) é compos­ta de partículas sólidas e de espaços vazios, ocu­
pados por porções variáveis de ar e água. Já a zona
saturada é aquela em que a água ocupa todos os es­
paços. O limite entre essas zonas é definido pelo nível do lençol freático. O movimento da água ten­de a
ser vertical na primeira e horizontal na segunda.
A zona não saturada atua como um filtro, por
apresentar um ambiente (solo, ar e água) favorável
à modificação de compostos orgânicos e inorgâni-
cos e à retenção e eliminação de bactérias e vírus.
A eficácia na retenção de micro-organismos depende de fatores como tipo de solo, aeração, baixa
umidade, teor de nutrientes e outros. Para reter
organismos maiores, como as bactérias, o mecanismo mais importante é o de filtração, relacionado à permeabilidade do solo. Para reter vírus, bem
menores, e evitar que atinjam o lençol freático, é
mais relevante a adsorção (adesão de moléculas
de um fluido a uma superfície sólida), que depende da capacidade de troca iônica da argila e da
matéria orgânica do solo.
Nos terrenos destinados à implantação de cemitérios, a espessura da zona não saturada e o tipo
de material geológico são fatores determinantes
para a filtragem do necrochorume (figura 4). A
proporção de argila no solo deve ficar entre 20%
e 40%, para favorecer os processos de decompo­
sição (que dependem da presença de ar) e as con­
dições de drenagem do necrochorume.
Solos com média permeabilidade e nível freático profundo são ideais para sepultamentos, pois
favorecem a putrefação e a filtragem do necrochorume, o que significa baixa vulnerabilidade de
contaminação. Se o material geológico tem pouca
permeabilidade e o nível freático é quase aflorante, o solo é extremamente vulnerável à contaminação, pois favorece fenômenos como a saponificação. Também podem ocorrer diversas situações
intermediárias: se, por exemplo, a permeabilidade
do solo for alta e o nível freático pouco profundo,
a vulnerabilidade à contaminação será alta.
Risco para a água superficial
Adaptado de Braga, 2006
Em cemitérios em que o terreno está impermea­
bilizado pelos túmulos e pela pavimentação das
ruas em torno, e onde o sistema de drenagem das
águas das chuvas é deficiente, estas podem escoar
superficialmente e inundar os túmulos mais vulneráveis. Após atravessarem a área dos cemitérios,
essas águas são em geral lançadas na rede pluvial
urbana e canalizadas para os corpos d’água, contaminando-os com substâncias trazidas do interior
do cemitério.
Para minimizar esse problema, a Resolução
nº 355 do Conama estabelece que a área de sepultamento deve ter um recuo mínimo de 5 m em
relação ao perímetro do cemitério. Esse recuo deve
Figura 3. A distribuição das águas no solo produz
duas zonas distintas, a zona não saturada (ou de aeração),
onde o ar penetra nos espaços existentes, e a zona saturada,
onde os espaços são preenchidos apenas pela água
2 8 • Ciência Hoje • vol . 4 4 • nº 263
GEOLOGIA
AMBIENTAL
Adaptados de Pacheco, 1986
Figura 4. A vulnerabilidade das áreas dos cemitérios à
contaminação ambiental depende da estrutura e dos materiais
do solo e da posição das covas em relação ao nível freático
Figura 5. O risco de contaminação de águas subterrâneas pelo
necrochorume formado pela decomposição dos corpos também
está associado às características do solo e à distância das covas para o lençol freático.
Em casos de alto risco, o sepultamento deve ser feito acima do nível natural do terreno
ser ampliado se as características do solo da área
forem desfavoráveis, como permeabilidade reduzida, distância inadequada em relação ao nível do
lençol freático e outras.
Risco para a água subterrânea
Implantar cemitérios em locais onde as características geológicas favorecem os fenômenos conservativos dos corpos ou reduzem a retenção do contaminante na camada superficial, e onde o lençol
freático é pouco profundo, pode contaminar as
águas subterrâneas. Túmulos em ruínas ou com
rachaduras, problemas causados principalmente
pela compactação do solo, por raízes de árvores e
pela negligência dos proprietários, também favorecem a contaminação dessas águas.
Ao estabelecer que o lençol freático deve estar,
no mínimo, a 1,5 m do fundo das sepulturas, a
resolução do Conama ainda prevê que, se não for
possível manter essa distância ou se as condições
do solo não forem apropriadas, os sepultamentos
devem ser feitos acima do nível natural do terreno,
para reduzir o risco de contaminação. A posição
do lençol freático, as características do solo e outros aspectos (entre eles as rachaduras nas sepulturas) influenciam (figura 5) os riscos de contaminação das águas subterrâneas.
Quando o solo apresenta média permeabilidade
e alta capacidade de adsorção e retenção do material argiloso, associada à grande distância até o
lençol freático, o necrochorume move-se lentamente e as substâncias do contaminante são interceptadas na zona não saturada. Essa situação é classificada como de médio risco de contaminação de
águas subterrâneas. Se a sepultura estiver abaixo
do nível freático, pode ser inundada, gerando uma
situação de extremo risco, já que, em geral, os
caixões não são impermeáveis. Quando o solo tem
elevada permeabilidade, o que permite a infiltração
profunda do necrochorume, ou a distância para o
lençol freático é inadequada, a situação é de alto
risco, porque os contaminantes chegam facilmente às águas subterrâneas. Nesses casos, para diminuir a possibilidade de contaminação do aquífero,
o sepultamento deve ocorrer acima do nível natural do terreno. 
Sugestões
para leitura
FÁVERO, F.
Medicina legal.
Belo Horizonte,
Vila Rica Editoras
Reunidas,
1991.
MANOEL FILHO, J.
Hidrogeologia:
conceitos
e aplicações.
Fortaleza,
CPRM, 1997.
MIGLIORINI, R. B.
Cemitérios
contaminam o
meio ambiente?
Um estudo
de caso.
Cuiabá,
Editora da UFMT,
2002.
SILVA, L. M.
Os cemitérios
na problemática
ambiental.
São Paulo,
Sincesp
& Acembra,
1995.
setembro de 20 0 9 • Ciência Hoje • 29
Download