CHAPEUZINHO VERMELHO, LENHADOR E SEUS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CAMPUS CURITIBA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PANORAMA INTERDISCIPLINAR DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
MAÍRA MARCHI GOMES
CHAPEUZINHO VERMELHO, LENHADOR E SEUS LOBOS:
Considerações psicanalíticas e criminológicas sobre o
adolescente com prática infracional análoga à crime sexual
CURITIBA
2
MAÍRA MARCHI GOMES
CHAPEUZINHO VERMELHO, LENHADOR E SEUS LOBOS:
Considerações psicanalíticas e criminológicas sobre o
adolescente com prática infracional análoga à crime sexual
Artigo de Conclusão de Curso apresentado ao
Curso
de
Pós-Graduação
em
Panorama
Interdisciplinar do Direito da Criança e do
Adolescente, da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, como requisito parcial à obtenção do
título de Especialista.
Orientadora: Prof. Msc. Ana Christina Brito Lopes
CURITIBA
2011
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MAÍRA MARCHI GOMES
CHAPEUZINHO VERMELHO, LENHADOR E SEUS LOBOS:
Considerações psicanalíticas e criminológicas sobre o
adolescente com prática infracional análoga à crime sexual
Artigo de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Panorama
Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente, da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista.
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof. Msc. Ana Christina Brito Lopes
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
_____________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa
Univali
Curitiba, 15 de dezembro de 2011.
4
Sexo verbal não faz meu estilo
Palavras são erros, e os erros são seus...
Não quero lembrar que eu erro também
Um dia pretendo tentar descobrir porque é mais forte quem sabe mentir
Não quero lembrar que eu minto também...
(...) Somos pássaro novo longe do ninho
(Renato Russo)
5
CHAPEUZINHO VERMELHO, LENHADOR E SEUS LOBOS:
Considerações psicanalíticas e criminológicas sobre o
adolescente com prática infracional análoga à crime sexual
Maíra Marchi Gomes1
Resumo:
O presente artigo pretende tecer algumas considerações a propósito dos efeitos da resposta
jurídica a atos infracionais semelhantes a crimes sexuais. Compreende-se, por meio de noções
criminológicas, que respostas jurídicas eminentemente repressivas a estes atos são as mais
freqüentes, e fundamentam-se em princípios subjetivos dos atores jurídicos, que, por sua vez,
reproduzem certas representações sociais. Tais princípios podem ser resumidos na noção de
que o ato infracional semelhante a crime sexual deve-se à consciência do autor, esta sendo
alterada por questões médicas ou morais. A partir de conceitos psicanalíticos a respeito dos
componentes sociais relacionados a atos infracionais análogos a crimes sexuais, questiona-se
se a resposta jurídica eminentemente repressiva não contribui, paradoxalmente, para que os
adolescentes em questão manejem sua sexualidade de forma violenta, bem como propõe-se
que a etiologia do ato infracional deve ser buscada no inconsciente dos adolescentes. Analisase um caso de ato infracional análogo a crime sexual, apurado pela Delegacia da Mulher,
Criança e Adolescente de Florianópolis, refletindo sobre a posição dos atores jurídicos,
adolescente-autor e vítimas conforme registros nos autos e sugerindo algumas condutas que
poderiam melhor atender as prerrogativas da legislação nacional e internacional que tratam da
prática infracional; particularmente daquela análoga a crime sexual.
Palavras-chave: Psicanálise. Criminologia. Adolescentes. Crimes sexuais.
1
Acadêmica do Curso de Panorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente, da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Campus Curitiba. E-mail: [email protected].
6
1 INTRODUÇÃO
Esta autora, Psicóloga Policial na Polícia Civil de Santa Catarina, exerce suas
atividades profissionais há dois anos na Delegacia da Mulher, Criança e Adolescente de
Florianópolis especificamente, no Setor de Atendimento Psicológico, existente naquela
unidade policial desde 2007. Desde seu ingresso, atua junto crianças e adolescentes vítimas
(ou supostamente) de crimes. No caso das crianças, seu atendimento origina um relatório, que
substitui a oitiva pelo Escrivão de Polícia, funcionando como prova antecipada na instrução
do Inquérito Policial ou Termo Circunstanciado. Em relação aos adolescentes vítimas, a
autora acompanha a tomada de suas declarações, e, nos casos em que a autoridade policial
tem dúvidas, quando do contato com o boletim de ocorrência, a respeito da tipicidade ou não
do fato, realiza um atendimento psicológico inicial, com fins de esclarecimento inicial dos
fatos. Neste caso, também é produzido um relatório.
Sempre foi-lhe curioso o fato de praticamente não se encontrar bibliografia a propósito
do psiquismo dos autores de crimes sexuais, bem como a carência de programas/políticas de
atendimento a autores de crimes sexuais, incluindo os adolescentes. A respeito da referida
carência de bibliografia, encontra-se que:
Muitos/as autores/as revelam que é comum que agressores adultos iniciem os episódios de
abuso sexual ainda quando adolescentes (Mora, 2002; Messerschmidt, 2000; Acosta e Barker,
2003; Save the Children, 2000; Grant, 2000). Dados encontrados em outras pesquisas
demonstram que muitas denúncias de abuso sexual têm como autor um adolescente (...).
Infelizmente, no entanto, não se possui dados dessa ordem publicados no Brasil. Tenho clareza
que experiências estrangeiras não necessariamente condizem com a nossa realidade, mas esses
dados são indicativos da extensão do problema (ARAÚJO, 2008, p.12).
Ao lado disto, analisando a bibliografia psiquiátrica/psicológica que trata de crimes
sexuais, quando se encontra algumas (e rápidas, diga-se de passagem) menções de teor mais
analítico a respeito dos autores, estas parecem resumir-se basicamente a uma concepção: a de
que são pessoas cujo psiquismo constitui-se (e até define-se) por uma “maldade”. Daí a
descrição de suas ações focarem-se no que elas apresentam de meio cruel, motivação torpe ou
fútil, insensibilidade/indiferença perante os efeitos causados na vítima, e a descrição da vítima
focar-se naquilo que teve de ingenuidade (em decorrência da ação premeditada pelo autor, na
qual utilizar-se-ia de sedução, “aproveitamento” da confiança da vítima, etc.).
Via de regra, reporta-se tais elementos agravantes de sua ação (e, por efeito, suas
características de personalidade) a uma patologia ou a uma “falha de caráter”. Ou seja, as
7
explicações são médicas ou morais, e sempre pressupõem que sua responsabilidade diz
respeito ao seu livre-arbítrio (pleno, quase pleno ou inexistente).
No caso dos autores serem adolescentes, há ainda um outro componente que corrobora
com estas interpretações de que o cometimento de crimes sexuais sustenta-se em uma
“maldade” (caracterizando ou não uma inimputabilidade): a concepção do senso-comum (e
não só dele!) de que adolescentes são “problemáticos”, no sentido de indiferentes, insensíveis,
inconseqüentes. Enfim, perigosos2.
Interessante, para começar a questionar este tipo de representação maniqueísta,
polarizada, das relações em que há um crime sexual, a conclusão de Araújo (2008, p.99) de
que, particularmente no caso de violência sexual cometida por adolescentes, quando o
Sistema Judicial baseia-se neste tipo de leitura, há um obstáculo à efetiva responsabilização
dos autores se dê. Ao falar do processo de sua pesquisa, ela conta:
Ambivalências e contradições se fizeram presentes em vários momentos deste percurso.
Ganham destaque as normas do sistema de controle, que propõem a proteção social ao intervir
sobre aqueles que ameaçam desestabilizar a ordem, mas não oferecem uma resposta adequada
às demandas sociais fomentando a mudança, nem provê condições para que os sujeitos possam
se afirmar enquanto tal, utilizando do encarceramento e da produção do desajustamento para
coibir ações indesejáveis. Num outro plano, aparece a inconsistência no reconhecimento da
responsabilidade dos sujeitos, na medida em que usam-se atenuantes que a deslocam, seja na
forma de patologias individuais ou na noção de maturidade e tomada de consciência, ao passo
que, ainda assim, devem responder por suas condutas e arcar com as conseqüências.
Pautam-se, ainda, numa aposta de recuperação por meio da intervenção judicial,
apesar de depositarem no sujeito a marca da violência, como pessoas que requerem um
monitoramento constante, pois a qualquer momento podem voltar a delinqüir, como algo que
lhes é inerente e intransponível.
A violência sexual, por sua vez, é vista como uma forma cruel de violência, um crime
hediondo que deve ser severamente punido, ao mesmo tempo em que é comumente banalizada,
especialmente quando praticada por adolescentes ou contra mulheres adultas, tomadas como
co-responsáveis (ARAÚJO, 2008, p.99).
Paradoxalmente, conforme a autora, a resposta repressiva não tem sido eficaz em
termos de responsabilização dos adolescentes com práticas semelhantes a crimes sexuais.
Poderíamos inclusive pensar, a partir de Rosa e Brito (2011, p.5-6), que a resposta jurídica a
estes casos tem sido muito eficiente, ainda que nada eficaz. A propósito dos interesses de
“Defesa Social” que norteiam movimentos neoconservadores, eles dizem:
Apesar do fascínio do discurso eficientista por anestesiar os crédulos de sempre, não se pode,
contudo, romper-se com as ‘regras do jogo’ democrático – fair play – em nome da
rapidez/eficiência, a qual não deve ser confundida com efetividade, porque com Direitos
Fundamentais não se transige, não se negocia, se defende, ensina a vida e uma dogmática
democrática de todos os tempos.
2
Conferir, neste sentido, Coimbra e Nascimento (2009), que analisam como se dá a produção histórico-política
da periculosidade de crianças e jovens no Ocidente e no Brasil, particularmente.
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O Direito Infracional, neste projeto, possui um papel estratégico na manutenção do
sistema, eis que mediante legitimação do uso da coerção, impõe a exclusão do mundo da vida
com sujeitos engajados no projeto sociojurídico naturalizado, sem que se dêem conta de seus
verdadeiros papéis sociais (grifo dos autores).
Pode-se, ainda, pressupor que a noção de que a melhor resposta jurídica a atos
infracionais análogos a crimes sexuais é a repressão é diretamente associada à conceção de
que a etiologia do ato deve ser buscada na consciência do autor. E, assim procedendo, o
Direito inevitavelmente recai em explicações como “imaturidade de consciência” ou
“patologia”. Se entendermos que sim, podemos ir adiante, questionando-nos se isto não
ocorre porque, neste tipo de abordagem, está-se negando o fator subjetivo fundamentalmente
envolvido no crime sexual: seu inconsciente. E, particularmente, está-se negando um aspecto
que é próprio ao inconsciente: o social.
Interessante também pensar que tal ideologia leva alguns operadores do Direito a
aplicarem medidas protetivas, no intuito de reprimir. Araújo (2008, p.100) inicia tal
discussão, ao analisar o entendimento jurídico sobre violência sexual cometida por
adolescentes. Inicialmente ela explica:
O envolvimento de crianças e adolescentes em atos sexuais tem um forte viés negativo, que se
centra nas possíveis conseqüências indesejáveis. Isso se sustenta pela noção de incapacidade e
imaturidade relacionadas a este momento da vida, e, portanto, na falta de discernimento e
condições para tomarem decisões e fazerem escolhas de forma autônoma. Daí decorre o
princípio legal da presunção da violência, um aparato jurídico que tem o intuito de proteger
esses jovens dos abusos e explorações sexuais, mas que, por sua vez, restringe suas vivências
da sexualidade. A incapacidade legal está também atrelada à condição de pessoas inimputáveis,
pois não são responsáveis por si próprios. Dessa forma, o adolescente que pratica uma
violência sexual deve responder por suas ações, pois cometeu uma infração, mas, não sob a
égide do Direito Penal, e sim do Estatuto da Criança e do Adolescente, com uma ótica de
garantia de direitos e promoção do bem-estar, que propõe o respeito à pessoa em condição
peculiar de desenvolvimento. Também por isso, atribui-se menor gravidade aos abusos por eles
praticados, pois, além de supostamente não terem consciência plena sobre seus atos, acredita-se
na possibilidade de recuperação, que não voltem a reincidir. Ainda, as noções de sexualidade e
abuso sexual aqui se misturam, ora ganhando feições de experimentação, ora com caráter de
violência, em especial quando o envolvimento é com crianças (ARAÚJO, 2008, p.100).
A autora inicia sua crítica sobre o ordenamento jurídico vigente na esfera da infância e
adolescente ao falar da confusão entre experimentação e violência; ou seja, a dificuldade dos
operadores do Direito em compreenderem a sexualidade adolescente (fundamental para que se
possa avaliar quando a mesma é violenta ou não). No entanto, ela continua, falando de como
as medidas protetivas, como têm sido aplicadas, apenas contribuem para que o adolescente
com prática infracional semelhante a crime sexual não modifique sua conduta:
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há que se considerar a ambigüidade legal ao trazer à tona as "medidas protetivas" que têm
como objetivo a garantia de direitos e promoção do bem estar. No caso dos adolescentes
supostamente autores de violência sexual, essas medidas têm por objetivo fornecer
acompanhamento psicossocial para que deixem de infligir a lei e se tornem aptos ao convívio
social. Protege-se quem, uma vez que essas medidas, ao serem imputadas, produzem o sujeito
violador? Ademais, ao acompanhar os procedimentos, pode-se verificar a longa duração dos
processos, a precariedade da estrutura dos serviços de acompanhamento, a insuficiência do
número de profissionais para atender a demanda, as poucas oportunidades que os adolescentes
têm de se expressar e serem ouvidos, e, portanto, de serem considerados de fato sujeitos de
direito nesse cenário
Pode-se entender que a autora diz que há uma tendência a criminalizar a sexualidade
na adolescência, posto que as respostas legais encontradas, ainda que permeadas por discurso
aparentemente garantista, não têm possibilitado que o adolescente que supostamente manejou
ilicitamente sua sexualidade passe a não mais fazê-lo, já que, na prática, as medidas sócioeducativas têm como único efeito a repressão.
Rosa e Lopes (2011, p.141) são bastante claros em suas reflexões a respeito da
resposta jurídica frente à atuação infracional. Ao analisar a estrutura dos Juízos da Infância e
Juventude brasileiros, os autores entendem que há, em nome de uma pretensão pedagógica,
uma padronização das medidas socioeducativas a ponto de o apego à normatização e
disciplina das medidas socioeducativas levar à desconsideração do sujeito e, ainda, da
demanda. Há imposição de tratamento, educação, disciplina, a alguém que aqui é tido como
objeto. Sobre esta “maternagem sem limites”, para usar a expressão dos autores, destes Juízos,
Rosa e Lopes (2011, p.140-141) falam:
Na maternagem ilimitada e, muitas vezes, perversa, ao se buscar imaginariamente o sujeito,
culmina-se com o afogamento de qualquer resto de sujeito que pretenda constituir. Assim é que
o estabelecimento de engajamento ao laço social exige, primeiro, que o sujeito enuncie seu
discurso, situação intolerada pelo modelo fascista aplicado no Brasil. Sabe-se, com efeito, que
qualquer postura democrática não pode pretender melhorar, piorar, modificar o sujeito, como
bem demonstra Ferrajoli. Caso contrário, ocupará sempre o lugar do Outro, do canalha.
Portanto, no Brasil, qualquer pretensão pedagógica-ortopédica será sempre charlatã, de boa ou
má fé.
Resta, assim, no limite do possível eticamente, contra o senso comum social, respeitar
o sujeito e com ele, se houver demanda, construir um caminho, sempre impondo sua
responsabilidade pelo ato e o relembrando, ou mesmo advertindo, de que existe algo de
impossível, algo que se não pode gozar. Nem os atores jurídicos, nem eles. A cruzada pela
salvação moral é estranha à democracia, como o inconsciente o é do orgulhoso sujeito da
Modernidade (grifo do autor).
Objetiva-se, portanto, com o presente trabalho, ouvir os próprios adolescentes autores
atos infracionais análogos a crimes sexuais a respeito de sua ação, ofertando outra perspectiva
de entendimento que não aquela trazida pelo discurso das vítimas e/ou operadores do Direito.
Assim, pretende-se avaliar se os adolescentes falam de outras responsabilidades envolvidas
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que não apenas a deles próprios, bem como o que falam do estatuto inconsciente de sua
própria responsabilidade.
Em outros termos, objetiva-se, diferentemente do que o Direito parece vir fazendo em
suas respostas a estes atos, tomá-los como sujeitos de seus atos (nos quais são, ao mesmo
tempo, vítimas e algozes), e, precisamente desta maneira, responsabilizá-los. Objetiva-se
garantir um direito (serem ouvidos), para então (porque é só a partir daí) inscrevê-los/tomálos na ordem do dever.
Como diz Barros (2003, p.xvii), a propósito da interlocução entre Direito e Psicanálise
a partir de atos infracionais: “O que a psicanálise pode nos informar neste contexto é que não
nos devemos deter na reinserção social; inserir o que foi excluído, e sim trabalhar no sentido
de uma retificação social; e esta significa a retificação da posição de todos os atores
envolvidos nesta cena, e estes somos todos nós, inclusivamente”.
Para tanto, inicialmente, 1) localizar-se-á, através de conceitos de Criminologia, a
importância resposta jurídica a atos infracionais semelhantes a crimes sexuais cometidos por
adolescentes
ser
predominantemente
garantidora.
Também
discorrer-se-á
sobre
a
subjetividade dos atores jurídicos no tratamento despendido pelo Sistema Judicial aos casos
de adolescentes com prática infracional análoga a crime sexual, reconhecendo-a como
responsável pela construção (jurídica) do fato que apura, com seus algozes e vítimas. A partir
precisamente desta necessidade de se destacar a subjetividade envolvida na apuração de atos
infracionais desta natureza, estabelecer-se-á uma perspectiva de diálogo entre a Criminologia
e a Psicanálise.
Posteriormente, 2) com um referencial psicanalítico, discutir-se-á a prática infracional,
e especificamente a atuação semelhante a crime sexual, para, tendo por norteador os aspectos
familiares e sociais que, para além da subjetividade do adolescente, encontram-se envolvidos
nestes casos, situar o adolescente com a prática infracional em outro lugar que não apenas o
de algoz.
Com a análise comparativa dos discursos a propósito do caso estudado, pretende-se
discutir se a resposta jurídica eminentemente repressiva tem possibilidade de contribuir para
uma mudança na forma com que um adolescente autuado por ato infracional semelhante a
crime sexual maneja sua sexualidade.
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2 (IM)POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO ENTRE A CRIMINOLOGIA E A
PSICANÁLISE A PARTIR DO ADOLESCENTE COM PRÁTICA ANÁLOGA A
CRIME SEXUAL
2.1 SER MAU NÃO É PRA QUEM QUER. É PRA QUEM PODE
O texto de Nogueira Neto (2009), ainda que tendo como foco o tema específico da
exploração sexual, será referenciado na presente seção, não apenas pela análise de aspectos
que transcendem o tipo jurídico dos fatos, mas também porque, em vários momentos, referese à temática da sexualidade, em sentido mais amplo.
Neste sentido, cabe dizer que em determinados pontos ele aproxima “exploração
sexual” e “agressão sexual”. Em outros, é fato, ele destaca justamente as diferenças
“exploração sexual” e “agressão sexual” 3. Porém, as idéias deste autor aqui utilizadas sê-lo-ão
de maneira tal que tais particularidades serão secundárias, e o que ficará em primeiro plano é
a característica de ilicitude, culpabilidade e anti-juridicidade de um ato de conotação sexual, o
que facilita se estabelecer considerações sobre a subjetividade do autor (fundamental a
qualquer consideração psicanalítica).
Em sua proposta de que a criminalização é apenas uma das possibilidades de respostas
do Estado à violação dos direitos sexuais, Nogueira Neto (2009) vai fundamentar que há um
discurso marcadamente vigente que entende por sinônimos “responsabilização” e
“criminalização-penalização”. Tal equívoco, segundo ele, mobilizaria o que ele denomina de
“volúpia punitiva”. E ele lembra, especificamente no caso do agressor sexual, que esta
criminalização-penalização não deveria ser necessariamente a única resposta estatal a tal
agressão.
constata-se ainda, na média da opinião pública, uma forte defesa monocórdica da
criminalização-penalização dos agressores sexuais e o repúdio passional a sua impunidade. E
esse entendimento média parte da idéia de que o sistema penal, em si mesmo, é “legítimo e
eficaz” e de que a impunidade ocorrente é disfuncional, a ser combatida com leis penais mais
draconianas e uma justiça mais efetiva em produzir condenações. E que, portanto, a
impunidade nasce apenas de fatores conjunturais, em nossos países, isto é, ou da insuficiência
da regulação legal ou do mau funcionamento das agências judiciais ou de ambas (NOGUEIRA
NETO, 2009, p.36).
No texto em questão, o autor ainda propõe, ao discutir esta falácia do Direito Penal
orientado por um discurso jurídico-penal tradicional retributivista a crimes sexuais, que há
3
A respeito destas diferenças, ele faz uma única e rápida menção, dizendo que o abuso sexual “tem uma
conotação mais individualista que a exploração sexual” (NOGUEIRA NETO, 2009, p.36).
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uma seletividade do sistema judicial. Tal seletividade dar-se-ia, dentre outros vieses (classista,
racista, machista), pela faixa etária do autor. Melhor dizendo, o autor fala que o jovem já é
mais visível ao Direito Penal (ele facilmente passaria, poderíamos pensar, de suspeito a autor)
e, além disto, que ele é um dos alvos preferenciais deste furor pela vingança. Em seus termos:
o poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos preferenciais à criminalização [...] e
desencadeia o processo de sua criminalização, submete-os a esse processo sob direção e
controle da agência judicial que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalização já
desencadeada pelo sistema de segurança pública e, por fim, a privação da liberdade de tal
“selecionado” pelo sistema penal. A seleção é feita em função da pessoa, o candidato é
escolhido a partir de um estereótipo – pobres, negros, indígenas, jovens, desempregados, por
exemplo (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).
Pode-se pensar, portanto, ainda que o autor não se refira a atos infracionais, se a
conduta tipificável como crime sexual praticada por adolescentes não seria uma das situações
em que melhor se vislumbraria algumas marcas do sistema penal das quais Nogueira Neto
(2009) fala4.
Por fim, as idéias deste autor parecem muito pertinentes ao presente artigo também em
outro aspecto, até agora referido rapidamente: seu entendimento de que a resposta penal não é
a única, nem a salvífica, nem a mais legítima. Ele vai discorrer, no questionamento do que
poderíamos traduzir por um “Direito Penal messiânico”, que a
possibilidade desse tipo de resposta penal e de sistema penal serem substituídos por um Direito
Penal de Garantia, um Direito Penal Mínimo e uma Justiça com resultados restaurativos pode
ser no momento uma estratégia, um caminho que leve a garantir uma mais eficiente e legítima
resposta estatal ao fenômeno dos delitos (no caso nosso aqui, dos crimes sexuais contra
crianças e adolescentes) - uma resposta estatal que neutralize (ou mascare pelo menos...), ao
máximo, essas características essenciais da resposta penal retributivista. Se atuarmos na
perspectiva dos Direitos Humanos – ao mesmo tempo em que se pune o delinqüente, também
se o reconhece como pessoa humana, com direitos fundamentais, com respeito mínimo a sua
dignidade. A demonização do delinqüente sexual só serve ao modelo de sociedade e de Estado
firmado na vingança, na “volúpia punitiva” alienadora da população e na reprodução da
violência em um ciclo macabro e incacabável (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).
No caso particular dos crimes sexuais, o autor denuncia a ação controladora higienista
deste discurso jurídico penal falseante, ideológico e deslegitimado (porque mais preocupado
4
A propósito, o autor elenca como características estruturais, e não conjunturais, do exercício de poder em todos
os sistemas penais:
A) A sua seletividade perversa e ideológica,
B) A reprodução interna no próprio sistema pena repressor da violência praticada pelo
criminoso contra ele próprio,
C) A criação de novas e melhores condições para a reincidência,
D) A corrupção intrínseca e institucionalizada do próprio sistema penal-penitenciário e
E) A destruição das relações comunitárias, por exemplo (NOGUEIRA NETO, 2009,
p.37).
13
em ser legalizado, poderíamos concluir) falando de como a reposta jurídica frente a tais atos
baseou-se em critérios pseudocientíficos, ou
perfis inconsistentes de natureza psicológica ou psiquiátrica, que buscam ver em todos os
criminosos sexuais contra crianças e adolescentes, por tudo, “pedófilos”, de maneira
generalizadora e alienadora, ignorando de má-fé ou por ignorância, o sentido mórbidocompulsivo e perverso dessa parafilia (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).
Percebe-se que o autor pouco detalha o que entende por pedofilia, compreendida como
uma parafilia. Apenas refere-se aos seus sentidos “mórbido-compulsivo” e “perverso”. No
entanto, desde já é possível deduzir que o autor fala, acima de tudo, da impertinência de se
entender como patológicas todas as situações de crimes sexuais contra crianças e
adolescentes.
É importante pensar que, assim como nem sempre os crimes sexuais sinalizam uma
patologia, elas também não resultam de um livre-arbítrio, o que facilmente leva as
representações de que são imorais, “monstros”. De fato, procurando entender crimes sexuais
como sempre orientados pela consciência/vontade, recai-se basicamente em duas explicações
para os mesmos: 1) em todas as ações desta natureza haveria um desconhecimento da ilicitude
do ato (psicose); 2) o autor destas ações seria aquele que opta por desconsiderar valores tão
estruturantes de nossa cultura como o tabu do sexo e da infância (o que não é o caso nem na
neurose5, sequer da perversão, posto que o sujeito, neste caso, ainda que não possa ser
inimputável, não pode se dirigir de acordo com o conhecimento da ilicitude da ação devido a
questões inconscientes).
A psicanálise compreende que o humano é movido essencialmente pelo inconsciente,
o que não leva, e isto é importante ressaltar, que o Direito não possa realizar sua análise a
propósito da responsabilidade do autor (que recai, basicamente, na noção de consciência). O
discurso jurídico, quando atravessado pelo psicanalítico, apenas possibilita que a análise da
responsabilidade por crimes não precise se orientar pelas noções de “loucura” ou
“monstruosidade”. A primeira, atravessada pelo discurso médico-higienista. A segunda, pelo
moral6.
No caso particular dos adolescentes que cometem ato infracional, o foco na
responsabilidade (aqui associada à consciência) mostra-se improdutivo, haja vista que, pelo
5
Que, para a psicanálise, é a estrutura de personalidade que mais se aproxima do que se compreender por
“normalidade”.
6
Como nos diz Martins (1997, p.242), ao discorrer sobre as relações entre traficante, usuário, juiz e governo, o
entrecruzamento de tais discursos permite perceber que “Ninguém é inocente, mas ninguém é totalmente
culpado”.
14
menos em uma concepção psicanalítica, ela é inexistente. Isto porque o ato surge justamente
para alguém que, por haver se deparado/estar se deparando com percalços em sua constituição
como sujeito, provoca uma resposta do outro (no caso, o limite da lei) para, constituindo-se
como sujeito, poder responder por si. Senão veja-se:
O móbil da delinqüência encontra-se, porém, na falta de reconhecimento simbólico do nome do
pai, cujo declínio, em nossas estruturas sociais, faz com que estas se tornem cada vez mais
reais, enquanto nossas trocas vão perdendo seu caráter simbólico em prol de uma pura
materialidade. Em grupos onde a palavra não tem mais valor, a luta pelo reconhecimento e a
instância da lei se fazem valer pela força bruta [...].
[...]. O delinqüente não se detém diante do que lhe faz obstáculo, ele é sempre pela
devastação, um ato em vão, pois o desaparecimento do sujeito o torna incapacitado de
responsabilizar-se por si mesmo, requerendo dos outros garantias de sua sustentação
(RODOVALHO, p.2000, 238-239).
Noção, aliás, seguida por outros psicanalistas, e que permeia as discussões a propósito
da função da lei para estes adolescentes: apresentar-se a um psiquismo em que (ou justamente
porque) a Lei, simbólica, foi precariamente inscrita (GOMES; GUIMARÃES; BENTO,
2007)7.
Porém, Carvalho (2008, p.125), até pelo foco de seu trabalho, ao alertar para os limites
de diálogo entre a Criminologia e a Psicanálise, refere-se justamente ao tema da
responsabilidade/culpa. Em seus termos:
em face de a teoria do delito trabalhar como fundamento da responsabilidade da conduta
humana consciente – mesmo no crime culposo (culpa consciente ou inconsciente) ou nas
hipóteses de erro, há pelo sujeito definição finalística, embora não necessariamente delitiva, do
seu agir –, a inclusão da idéia de inconsciente desestabiliza qualquer legitimidade de
intervenção penal.
[...] Assim, a teoria do delito, sustentada pela filosofia da consciência e presa aos
domínios da razão, é desestruturada pela construção psicanalítica do crime como produção
inconsciente do sentimento de culpa8.
A questão colocada demonstra a dificuldade de diálogo, sobretudo entre direito penal
e psicanálise, apontada desde o início por Jacinto Coutinho. Com isso não se está a afirmar sua
impossibilidade, apenas o imenso cuidado que se deve ter em sua aproximação. Sobretudo
porque a simples transposição de conceitos poderia, como visto, determinar a exclusão de uma
das disciplinas, resultado incompatível com a ética transdisciplinar. Por outro lado, os
problemas apontados parecem demonstrar a maior facilidade de diálogo da psicanálise com a
criminologia.
7
Lembrar que a idéia aqui é até oposta àquela vigente de que aos adolescentes com prática infracional “faltam
limites”. Entende-se, em um víeis psicanalítico, que a única lei inscrita é justamente a lei objetiva, concreta,
legal, repressiva. E a de qual carecem é a simbólica, libertadora, garantidora e que inscreve o sujeito em um
universo social.
8
Este autor, após referenciar-se nos textos do pai da Psicanálise que tratam da criminalidade como motivada por
um sentimento de culpa anterior ao ato, alerta que “Freud nega a universalização do sentimento de culpa como
a causa dos delitos ao reconhecer que existem pessoas que efetivamente praticam crimes sem sentimento de
culpa ou que atuam crendo justificado seu ato” (Carvalho, 2008, p.123). No entanto, posteriormente, refletirse-á que Freud, quando se refere a sujeitos que cometem crimes não mobilizados por sentimento de culpa e/ou
crendo justificado seu ato, está falando de perversos. Mas que, em uma linguagem winnicottiana, não há
diferenças subjetivas significativas na prática delinquencial entre o neurótico e o perverso.
15
Compreensível, portanto, a cautela da dogmática jurídico-penal e a predisposição da
criminologia nas aberturas à transdisciplinaridade, em face de o diálogo com saberes
alienígenas desestabilizar a primeira e reforçar a segunda (grifo do autor).
Pensando em contribuir com a Criminologia (crítica), até porque com o Direito Penal
parece difícil, talvez a Psicanálise possa ser uma saída para o alerta que nos faz Nogueira
Neto (2009, p.36):
é preciso construir outros parâmetros na forma desta sociedade reagir, superando a égide pura e
simples da justiça penal, punitiva e coercitiva, acrescentando a perspectiva multidisciplinar
para garantir a proteção integral. Existe ainda a necessidade de requalificar a noção de vítima,
recuperando as dimensões de sujeito e de sua integralidade
Sabe-se que a Psicanálise não lê as relações pela lente maniqueísta da polarização
vítima-algoz, posto entender todos os envolvidos como sempre encontrando-se na posição de
sujeitos, e não de objetos. Inclusive do Direito, cujo discurso tende a tomar como objetos não
apenas aqueles que contrariam a norma, mas também os próprios operadores do Direito.
Talvez o discurso psicanalítico contribua para, independente de ser ou não aplicada a
medida sócio-educativa (ou “protetiva”) ao adolescente que comete conduta análoga a crime
sexual, e independente do tipo de medida, tal decisão judicial não se pautar em “ecos
afetivos” que seu ato mobiliza nos agentes do Direito. Principalmente, que tal decisão não se
paute em um anseio pela vingança e punição. Em outros termos, que tal decisão vise outro
bem que não apenas o daqueles que se pretendem bons.
2.2 LOBO EM PELE DE LENHADOR
Rosa (2010) preocupa-se justamente com os “ruídos” que questões subjetivas dos
operadores do Direito podem trazer nas decisões sobre crimes nos quais crianças e
adolescentes figuram como vítimas ou testemunhas. Ele chega, inclusive, a trazer sua
concepção para os casos de crimes sexuais. Ainda que neste texto em que o autor propõe uma
reflexão crítica a propósito de projetos de oitiva especial de crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas, ele não se refira ao caso do adolescente com prática infracional, algumas de suas
idéias são aqui pertinentes.
Inicialmente, ele nos diz de como o discurso da criança via de regra é apropriado
(pelos, ao que parece o autor referir-se, profissionais e instituições que compõem a rede
proteção à infância e juventude) de maneira ingênua, porque regida por questões outras que
não “técnicas”, mas subjetivas e políticas. Em seus termos:
16
A criança sempre diz a Verdade porque é pura, poderia ser outra tradução da crendice popular.
Esta ilusão é equivocada por diversos motivos, valendo destacar dois. O primeiro é o de se
acreditar que a criança não é um sujeito com desejo. O segundo, por seu turno, é o de que pode
expor tudo o que se passou sem que o inconsciente e sua fantasia fundamental atravessem o
Simbólico, ou seja, sem que haja uma confusão entre os registros (ROSA, 2010, p.157)9.
Uma discussão, associada a esta, é a respeito da noção de verdade com a qual se lida
no sistema judicial. Uma verdade que, se atravessada pelo conceito psicanalítico de “realidade
psíquica”, deve ser entendida por incompleta, ainda que a única acessível (inclusive na
instrução de um inquérito/processo). Nas palavras, mais uma vez, de Rosa (2010, p.158-159),
esta questão torna-se melhor compreensível. Para abordar a função de determinados manejos
desta relação entre “verdade objetiva” e “verdade subjetiva” na apuração de crimes contra
crianças e adolescentes particularmente, e a função que tem tido o discurso de crianças e
adolescentes “vítimas”, o autor fala que, para além da incapacidade de adultos articularem
lingüisticamente o enunciado infantil (perceber seu real sentido), deve-se preocupar com o
efeito que a tradução imaginária da enunciação pode trazer. E este é por ele assim descrito:
O sistema repressivo se pautou pela divisão de tarefas, blindando simbolicamente, por assim
dizer, a figura do julgador. As diversas atividades de reconstrução da verdade colocam em cena
protagonistas/assistentes enleados no estabelecimento dos regimes de verdade, no que Foucault
chamou de “Justiça Paralela”. Claro que não se pode acreditar em Verdade, mas somente na
verdade constituída no tempo e espaço de um processo em contraditório, porque a era da
Verdade Substância ficou no século passado, embora, tal qual “Jason”, ressurja na cabeça de
um inquisidor qualquer de todos os dias
De qualquer modo, como não nos deixa esquecer Carvalho (2008, p.129), ao discorrer
sobre os limites e possibilidades de diálogo entre a dogmática processual penal e as
disciplinas psi, há as diferenças de interpretação do caso, e de fins almejados. E, neste
aspecto, é explícito: “se o fator autoria é indiferente para a psicologia, será ‘a’ questão a ser
discutida no processo criminal” (grifo do autor). Logo, para o Direito a verdade “real” é a que
importa.
Uma discussão que também pode auxiliar a compreender a interferência das
subjetividades dos operadores do Direito na construção de uma decisão judicial é a de que a
decisão judicial sempre tem estrutura de ficção, na seguinte passagem:
9
Ainda que por outra direção, é pertinente lembrarmos, na mesma direção de se destacar os possíveis equívocos
na leitura jurídica jurídica da participação das partes envolvidas em um crime, do alerta realizado por Freud
(1906) da possibilidade de um neurótico agir como se tivesse cometido um crime, ainda que isto não seja “de
fato” verdade, devido ao sentimento de culpa preexistente, que o leva a apropriar-se de um fato do presente,
como se ele dissesse daquele evento, passado e inconsciente, do qual ele se culpa.
Portanto, não é apenas uma desatenção ao imaginário infantil da crinça-vítima que pode levar a
interpretações equivocadas, mas também a desatenção ao imaginário de sujeitos que cometem crimes.
17
há intersecção do inconsciente na produção probatória, uma vez que se vincula à subjetividade
dos atores envolvidos, das testemunhas, e o que ocorre numa sala de audiências, os chistes, os
atos falhos, os lapsos – onde surge a verdade, diz a psicanálise -, raramente ficam consignados,
mormente porque tudo, em regra, é ditado pelo juiz, modificando (in)conscientemente os
(con)textos. Mesmo no caso de “Imagens” produzidas, elas são articuladas somente depois, no
acontecer da decisão. Quem sabe um pouco de retórica, pode movimentar habilmente os
significantes para os postar de forma a serem úteis, depois, na decisão (Brum), mormente se as
posições de acusador e julgador se imbricam, bem como se a (impossível) ‘Verdade Real’
ainda move a produção probatória. Além disso, sabe-se, existe toda dimensão do ‘desejo’ de
quem pergunta e responde, acrescida, por outro lado, de um complexo processo de
‘transferência’ entre os enleados no processo (ROSA, 2010, p.165-166, grifo do autor).
Poder-se-ia pensar que, ainda que inevitável, a interferência da subjetividade dos
operadores do Direito talvez seja demasiada quando enviesada pelo anseio pela vingança e
punição). Neste caso, o Processo Penal, restrito ao verbalizado e não considerando o não-dito,
permite que a verdade que ali aparece como verdade processual seja, muito mais que a
pretensa “verdade dos fatos” ou a verdade singular dos envolvidos como vítima, testemunha e
autor, a verdade singular dos operadores do Direito.
Falando das especificidades envolvidas no caso de apuração de crime sexual contra
criança, Rosa (2010, p.170-172) permeia sua reflexão crítica sobre o Depoimento sem Dano
na já referida interferência da subjetividade (com todo seu viés político e moral) dos
operadores do Direito, que se dirige para, acima de tudo (e muito mais que proteger alguém),
vingar-se de alguém. Porém, ao elencar os sentidos de sua recusa ao Depoimento Sem Dano,
destaca os ecos que a temática “crimes sexuais contra crianças”, por si só, pode mobilizar:
1.
2.
3.
4.
[...]. O desgaste da transferência operado na pré-noção do estigma “vítima” ocupado a priori pela
criança, acrescido de uma contaminação temática (violência sexual), bem como uma postura
inquisitória, transforma o DSD num espetáculo do “Bem”. No caso do DSD não há afastamento
possível, pois se é coadjuvante de um instrumento inserido na trama ideológica das “almas belas”,
de quem não quer sujar a mão e ficar tranqüilo. Gente que se nega a posar de violento –
simbolicamente – escondendo-se por detrás de um espelho...Uma aparente ausência de violência, a
saber, “branda”, que todavia cobra o preço de forma diferida, uma vez que o sujeito (criança) não é
respeitado como categoria. A distinção que se coloca para sua proteção o transforma em objeto,
com todo o respeito. Um fantasma imaginário, junto com o agressor, a espreita do outro lado do
espelho, do vidro, da câmera...o que andam fazendo? O que querem de mim?
Uma pergunta ingênua deve ser posta: será que se está respeitando mesmo como sujeito da
enunciação ou se está colocando os enunciados, pelo saber técnico, na boca de um objeto, cuja
finalidade é a de validar os enunciados pré-dados, cuja finalidade (condenar) é apenas semidita.
Talvez se possa pensar, também, na compreensão de uma vítima irresponsável, transformando, na
pretensão de garantir seus direitos, a criança em um verdadeiro objeto, uma vez que a desconsidera
como sujeito de desejo [...].
[...] A construção fomentada e artificial de um estado de risco e de escalada de sexualização da vida
cotidiana faz com que o discurso se autorize, em face das ditas necessidades, a suspender o Estado
Democrático de Direito, promovendo uma incisão de emergência e total, em nome da certeza do
“Bem”.
Com efeito, na “fusão de horizontes” possível, com “hospitalidade”, pode fazer entender qual o
papel ético do saber técnico, evitando que se transformem em instrumentos em nome do “Bem”,
como, aliás, foi toda a história da Inquisição, reiterada na postura do DSD. A busca irrestrita de
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meios probatórios é estranha à democracia, como o inconsciente o é do orgulhoso cidadão da
Modernidade
Interessante pensar que o anseio pela vingança e punição faz com que,
paradoxalmente, os autores de crimes sexuais não sejam, no tratamento jurídico de sua ação,
tratados como responsáveis. Responsabilidade que, para a Psicanálise, é algo que transcende a
noção de “livre-arbítrio”, “escolha”. Mais interessante ainda é pensar que, sendo a única
subjetividade em foco a dos operadores do Direito e tanto vítimas como autores sendo
tratados como objetos, ao ser negado à vítima destes crimes sua responsabilidade pelo que lhe
aconteceu, está-se impedindo que seja o seu bem (mais amplamente, o seu desejo, naquilo que
tem de bom e mau) o motor da decisão judicial. O bem buscado pelos operadores do Direito
parece ser o deles próprios, e para isto negam o quão mau são. Principalmente com aqueles
que cometem crimes sexuais contra crianças. Os lenhadores contra o lobo mau!.
Nesta direção, a linguagem cinematográfica parece ser capaz de transmitir uma
mensagem que de nenhuma forma poderíamos ouvir tão bem. Sugere-se a análise do filme “O
lenhador”, para se pensar sobre como o lenhador pode, devido ao seu intuito de destruir o
lobo, não apenas não “domesticar a fera”, mas também deixá-la ainda mais raivosa e
irrefreada; portanto, mais perigosa. E, a partir da análise do filme “A garota da capa
vermelha”, sugere-se refletir sobre como o lobo pode ser o lenhador, e, ainda, sobre como este
lenhador-lobo pode fazer muito mais mal a Chapeuzinho Vermelho que o próprio lobo.
Talvez possa-se pensar que o lenhador é ainda mais perigoso quando o lobo é
adolescente. Que ele acredite que o lobo adolescente é mais mau que outros lobos. Melhor
dizendo: que seu animus vingador seja ainda maior quando quem comete crime sexual é
adolescente.
Para finalizar, tem-se, seguindo Carvalho (2008, p.119), que a Psicanálise e a
Criminologia funcionam como referencial externo ao saber dogmático do Direito Penal
(particularmente, ao sistema de culpabilizações) porque questionam a noção moderna, que
impregnou o Direito Penal de que o mal está no outro. E nada melhor, nesta cultura, que um
criminoso para se encontrar um outro. Em seus termos:
a psicanálise e a criminologia (crítica) podem ser harmonizadas na qualidade de discursos de
desconstrução da pureza do projeto civilizatório delineado na Modernidade. Em ambas há
radical ruptura com a figura angelical do humano civilizado a partir da contundente afirmação
da permanência latente do bárbaro. A importante conseqüência deste processo é a humanização
da figura do criminoso, visto apontar sua presença em todos nós (grifo do autor).
3. QUANDO O OUTRO É ADOLESCENTE
19
3.1 ASPECTOS SOCIAIS DE UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA DO ATO
INFRACIONAL
Nesta seção, não se referirá aos atos infracionais análogos a crimes sexuais, mas se
introduzirá a leitura psicanalítica da prática infracional, abordando-se a noção de que, para a
Psicanálise, que o que há de essencial na prática infracional é a violação da norma social.
Utilizar-se-á o termo “prática anti-social” pelo mesmo permitir integrar as concepções
winnicottianas a respeito da “tendência anti-social” e o conceito jurídico de “prática
infracional”. E, ao mesmo tempo, por demarcar sua distância em relação à noção de conduta
anti-social, própria a uma certa psiquiatria de contornos patologizantes.
Mostra-se pertinente, fundamentando a última justificativa pela opção pelo termo
“prática anti-social”, iniciar por definições psicanalíticas a propósito do que há de patológico
e normalidade na adolescência envolta em atos delinquenciais.
Osório (1982, p.79) propõe o conceito de “síndrome delinquencial”, ressaltando a
importância de, antes de considerar a delinqüência uma patologia, deve-se analisá-la como um
sintoma, que pode ser patológico ou não. O autor referencia-se à comparação de Blos do ato
infracional à febre, no sentido de que apenas este dado (febre ou ato infracional) não nos
permite delimitar uma causa específica, nem mesmo caracterizar uma determinada entidade
nosológica. Ele explica:
Entendemos a conduta impulsiva típica do adolescente como vinculada intrinsicamente às
vicissitudes de sua crise de identidade. Como sabemos, o processo puberal provoca uma
situação de caos intrapsíquico, transitório e reversível, mas que marca indelevelmente o
comportamento do indivíduo nesta fase do desenvolvimento. De um lado, o pressionam as
pulsões instintivas exacerbadas e, de outro, as exigências familiares quanto a um novo e
desconhecido posicionamento social, sem que ele conte ainda com um equipamento
cognoscitivo e um patrimônio afetivo capaz de ajudá-lo a absorver efetivamente essa dupla
tempestade endo e exopsíquica que o atormenta.
O adolescente, então, atua. E, atuando, delinqüe
Este autor compreende a delinqüência, por si, como uma tentativa de reconstrução do
mundo interno, quando o mesmo encontra-se ameaçado pelo caos psíquico. Ele vai dizer,
comparando o adolescente que comete atos delinqüentes com os psicóticos, que ele
tenta impedir a difusão de uma identidade ainda fluida e imprecisa através da atividade
delinquencial, de conteúdos igualmente maníacos. Apelam desta forma para os núcleos
narcisísticos mais primitivos para negar as limitações percebidas ou pressentidas, na esperança
de reinstalar onipotentemente a ordem intrapsíquica perdida.
Na delinqüência basicamente o que se busca é substituir o conflito entre o self e o
mundo externo. Como decorrência, o adolescente procura transformar o ambiente em lugar de
transformar-se (OSÓRIO, 1982, p.79, grifo do autor).
20
Osório (1982, p.80), portanto, é bastante rigoroso em sua definição do que seja
“síndrome delinquencial”. Esta seria:
um quadro polissintomático peculiar ao grupo etário adolescente e que se caracteriza por
perturbações na área comportamental (conduta), de tipo delitivo (ou seja, com transgressão das
normas de convívio social). Identifica-se clinicamente pela presença de algumas ou várias das
seguintes manifestações sintomáticas: antecedentes ou comemorativos atuais de mitomania e
cleptomania (geralmente associadas); piromania; hábito de gazear aulas; fugas de domicílio;
evasão de compromissos ou tarefas familiares compartidas; descumprimento de obrigações
escolares ou profissionais assumidas; conduta sexual promíscua ou perversa; aparente ou
manifesta ausência de qualquer sentido ético; agressividade impulsiva; uso esporádico ou
sistemático de drogas (tóxicos); predação à natureza e/ou à propriedade alheia; desrespeito a
qualquer forma de autoridade que não seja a emanada dos líderes de seu grupo de iguais
As concepções deste mesmo autor também merecem ser citadas agora em um outro
aspecto, que também complementará discussões realizadas em outras seções; por exemplo, a
de que a vingança/repressão ao sujeito não é eficaz. Isto porque, como se verá a partir de
agora, as respostas sociais têm uma influência no desenvolvimento da tendência delinquencial
em adolescentes. Assim, não seria apenas no sujeito que se encontraria a explicação para a
atuação infracional. Neste sentido, Osório (1982, p.81) compreende que os fatores sóciofamiliares seriam os mais relacionados à duração e intensidade do quadro. Em suas palavras:
a duração e intensidade dos sintomas estão inúmeras vezes menos relacionadas com a
predisposição constitucional do que com fatores meramente circunstanciais. Assim, a maior ou
menor gravidade do quadro dependerá muitas vezes de como o ambiente sócio-familiar sirva
de continente para os distúrbios de conduta que apresente o adolescente (grifo do autor).
Levisky (2000, p.21-22), por sua vez, é bastante didático ao fundamentar porque a
compreensão da adolescência demanda a análise de aspectos sociais, e, portanto, porque a
prática delinquencial só pode ser entendida a partir de algumas características de nossa cultura
contemporânea. Em seus termos:
a sociedade contemporânea, com suas conquistas tecnológicas e de maior liberdade social, é
também facilitadora de situações que levam a prolongar a adolescência como estado da mente,
até mesmo perpetuá-la, favorecendo a ambivalência, as cisões, a tendência à passagem ao ato e
baixos teores de responsabilidade.
Em outros termos, aquilo que é tolerável durante a adolescência normal, tem se
hipertrofiado no próprio adolescente, mas não só nele, e está se transformando num padrão de
comportamento social, caracterizado por um estado de conformismo, apatia, impotência,
rebeldia, desfaçatez, indiferença, chegando às raias do radicalismo.
O vandalismo, a delinqüência, a prostituição, a perda de respeito pelo privativo, pelos
bens comuns da sociedade, a má qualidade das relações humanas, tornam-se modelos de autoafirmação e de contestação, conseqüentes de um lado à incorporação de objetos caóticos de
identificação, e de outro, num grito de desespero, numa tentativa inconsciente de recuperar
algo que foi perdido ou não adquirido durante o processo evolutivo, e que necessita, na
adolescência, ser resgatado, se não pela família, através da sociedade
21
O autor faz, inclusive, algumas considerações histórico-culturais bastante diretas ao
caso brasileiro, exemplificando como, em nosso país, apresentam-se algumas características
sociais lesivas particularmente aos adolescentes. Em suas palavras:
Na cultura brasileira está institucionalizada a “Lei de Gerson”, de levar vantagem, do jeitinho,
com o aniquilamento do sentido de existência do próximo. A cultura moderna tem favorecido a
liberação de impulsos agressivos e sexuais de maneira direta e nem sempre sublimada.
Caminha-se da conquista da individuação para o individualismo. Os limites entre o privativo e
o público estão esmaecidos, confusos.
[...] a sociedade brasileira tem vivido um tipo de violência passiva, fruto da repressão,
da submissão e da castração cujas origens datam de épocas coloniais [...].
Esta violência passiva se expressa pela negligência, pela desfaçatez, pela corrupção,
pela indiferença, pelo fenômeno de fazer vista grossa que são reveladores de um clima de
conivência refletora de uma violência estrutural de nossa organização social e psicológica, com
profunda desvalorização das relações humanas, do ser e do viver (LEVISKY, 2000, p.26-28).
Em seguida, e complementando esta análise, este autor elenca os elementos da herança
do que denomina caráter nacional, que teriam sido herdados com a vinda da Corte para o
Brasil. Tais elementos seriam: “despreparo, comodismo, egocentrismo, improvisação, quebragalho, conluios patológicos, submissão e subserviência, interesses imediatos e fraqueza de
espírito” (LEVISKY, 2000, p.28).
Nos momentos em que Levisky (2000, p.30-31) refere-se mais diretamente aos efeitos
destas características da cultura nacional sobre a adolescência, encontra-se, por exemplo,
menção explícita à influência sobre atos violentos:
A falta de perspectivas que campeia a vida de muitos adolescentes é outro ingrediente para o
incremento da violência como reação a um estado frustrante e contraditório insuportáveis.
Preparam-se durante anos para encontrar um caminho na vida adulta, respeitar e preservar uma
série de valores, mas deparam-se com elevadas doses de desesperanças (falta de emprego,
salários aviltados, dificuldades para constituir e assumir uma família). Essa situação gera o
prolongamento da condição adolescente, que adquire um caráter de mecanismo defensivo.
Hoje é necessário desenvolver um número maior de recursos pessoais para alcançar um grau
significativo de autonomia. Seu futuro é pouco promissor quanto às possibilidades de
realizações consistentes e duradouras. As gratificações tendem a ser imediatas e efêmeras
dificultando os processos de sublimação de seus desejos agressivos e sexuais.
[...] Através da violência existente no ato delinquencial, o jovem ou o grupo ao qual
ele pertence pode buscar se diferenciar do “stablishment” usando elementos similares aos
utilizados pelos representantes do poder (político, econômico, artístico), que por serem
públicos, tornam-se modelos de identificação
Em obra anterior organizada pelo autor (LEVISKY, 1998), o ponto em comum entre
os artigos que a compõem é justamente discorrer a respeito de aspectos históricos, culturais e
sociais relacionados com algumas manifestações da adolescência contemporânea no Brasil.
Portanto, esta obra sustenta-se na noção de que não há como se falar de uma manifestação
adolescente se não a contextualizarmos espaço-temporalmente. E é precisamente o
22
organizador do livro que começa falando disto, quando diz da seguinte maneira sobre a
violência apresentada por adolescentes:
Vigor, sexualidade, potência, destemor, violência, impulsividade, prepotência, desafio são
qualidades psicossociais do adolescente do presente e do passado. São inerentes ao complexo
de perdas, de desinvestimentos e novos investimentos em relação ao próprio corpo, à autoimagem e na relação com os pais da infância. Vive o conflito entre construir e se integrar à
nova identidade resultante de experimentos e descobertas de suas potencialidades afetivas,
intelectuais, sociais e físicas. Paralelamente, deseja preservar os privilégios da vida infantil.
Há nesse processo uma violência construtiva que abre canais através dos quais o
adolescente dá vazão e expressão a sua criatividade e inserção social. Quando a sociedade lhe
oferece meios socialmente adequados para suas manifestações de auto-afirmação, o processo,
apesar de turbulento, pleno de paixões, edifica a personalidade e a auto-estima.
Porém, numa sociedade vazia de valores, de solidariedade, de espírito de amizade, que
fomenta excessos de violência, banaliza o sexo e a agressão, o que podemos esperar de nossos
jovens? Que eles retomem a revolução cultural? Quem pratica atos de vandalismo, rachas,
pichações, usa drogas, despreza os bens comuns, representa, pelo menos em parte, os
instrumentos disponíveis substitutivos das armas de outros tempos (LEVISKY, 1998, p.25).
Conte (1997, p.254), na mesma direção, vai dizer a propósito dos efeitos de alguns
aspectos nacionais sobre o psiquismo de adolescentes:
O convite à delinqüência se encontra no discurso da impunidade, do “jeitinho”, do paraíso
fiscal, da má distribuição de renda, das chacinas, do narcotráfico governamental, dos aplausos
ao Pareja, da incompetência do Sistema Penal, entre outros. São discursos que “fazem curva” à
castração, colocando cada um de nós na possibilidade de sermos exceção à lei e, portanto, de
fazermos exceção à tradição que nos fundou, sem devermos nada a ninguém.
Em inúmeros indicadores sociais, os adolescentes aparecem como protagonistas, tais
como nos índices de suicídios, de soropositividade pelo HIV, no uso de drogas, nas overdoses,
nas mortes por tráfico de crack, na exploração sexual, entre outros.
Através desses fenômenos sociais, os adolescentes nos dizem que, para agüentar a
pretensão à exceção e para serem reconhecidos como diferentes, precisam apelar para um agir
cada vez mais real, de alto risco. Perguntar-nos-íamos por que eles precisariam ir tão longe.
Penso que eles só reconheceriam que não precisariam ir tão longe se não percebessem no fundo
do olhar do espectador e na mudez dos adultos o fascínio que esse agir provoca (grifo da
autora).
É pertinente discorrer ainda mais sobre o posicionamento de Conte (1997, p.252),
posto que, como já se vislumbra na passagem acima, ela não apenas segue a mesma linha dos
autores supra-citados em termos de reconhecer como fundamental a análise de aspectos
sociais envolvidos no cometimento por adolescentes de atos delinqüentes, como compreende
que o adolescente é submetido a um mandato social para que aja desta maneira. Ela chega a
falar em “convite”, mas há o momento em que é mais direta e menos polida. Senão vejamos:
Os fenômenos da toxicomania e da delinqüência podem ser considerados psicopatologias
dominantes, porque são respostas diretas aos apelos implícitos no discurso social, que
transformam os nossos ideais sociais em mandatos imperativos que devem ser obedecidos a
qualquer custo.
Uma das questões que surge é: se a exceção é o ideal, que maneiras o adolescente está
encontrando para fazer-se exceção?
23
É na adolescência, momento de construção e luto, que as condições subjetivas
encontram-se frágeis para responder aos apelos dos ideais sociais, de tudo o que concerne ao
lugar do adolescente na família, no mercado de trabalho, quanto a sua identidade sexual, seus
desejos futuros, seu estilo, entre outros.
Tornar-se grande, na nossa cultura, ocorre sem ritualização e é esperado da autonomia
do sujeito. É uma empreitada na qual o adolescente se vê desamparado e solitário, convidado a
dar um salto no escuro. Terá que fazer o esforço de sustentar um nome e de se fazer reconhecer
pela via dos objetos a consumir. A particularidade da sociedade de consumo é que, cada vez,
mais buscamos nos significar através dos objetos. Eu sou o que consumo e me identifico com
aquelas pessoas que usam as mesmas marcas
Na continuidade, a autora explica muito bem, e/talvez porque em poucas palavras,
como o apelo à exceção, para alguém (o adolescente) que está se estruturando como sujeito,
leva ao encontro da insígnia que via de regra é a única presente: a do delinqüente. Ela diz que
“o delinqüente responde ao imperativo FAÇA-SE” (CONTE, 1997, p.253), e, em seguida, que
“O delinqüente é seu ato” (CONTE, 1997, p.253).
Pode-se também pensar, ainda seguindo as idéias desta autora, que tal concepção faz
com que caia por terra aquela associação da adolescência à transgressão, rebeldia. Ela propõe
que a transgressão é, apenas em alguns casos, dependendo principalmente do ambiente, um
referencial para a estruturação psíquica de adolescentes.
Sair do senso comum sobre a adolescência contestadora e que escolhe sempre o
contrário daquilo que os pais querem é reconhecer que os adolescentes estão norteados pela
pergunta: “o que os pais querem para mim?” No entanto, se eles lêem preferencialmente o que
está nas entrelinhas, podemos dizer que os adolescentes são obedientes e acolhem a mensagem
implícita.
[...] Sabemos que, para se ter uma imagem de si, é necessário sempre supor um olhar
no Outro. Uma característica própria do sujeito adolescente moderno é que, para ele, o olhar
que encontra refletido no Outro está esvaecido, vazio, o que não lhe situa um lugar (CONTE,
1997, p.256).
Levisky (1998, p.30-31) terá suas noções retomadas agora por um ponto. Ele inclui,
em termos de influência sobre o psiquismo do adolescente, a família e o contexto social maior
em uma série (assim como outros autores acima referidos). Porém, em sua abordagem da
etiologia da delinquência, ele não apenas integra aspectos que poderíamos chamar de micro e
macro sociais, mas ressalta o componente social (ou macro-social, se quisermos ser mais
didáticos), entendendo que, perante uma subjetividade já precariamente constituída, o
ambiente social pode ser a única alternativa. Alternativa que pode minimizar ou maximizar os
danos já existentes advindos de outros fatores (basicamente, familiares).
Os conceitos psicológicos de moral e democracia vêm do berço. Isto é, vêm da qualidade das
primeiras relações afetivas entre o bebê e seus pais, associadas a condições dignas de vida. A
qualidade dos vínculos iniciais é fundamental na formação das primeiras identidades e do
superego. Mas, se a este processo afluem patologias que deturpam estas relações como estados
de miséria, violência, perda de continuidade, transformações bruscas dos valores éticos e
24
morais, o indivíduo organiza seu eu de forma insegura, carência do sentimento de confiança
básica. A delinqüência é, em muitos casos, o sintoma de resgate de algo que foi perdido na
tenra infância (Levisky, 1997a; Winnicott, 1956). Um grito de socorro à sociedade como um
último apelo antes da desagregação total. Mas, é preciso que haja uma sociedade que queira
ouvir estes apelos e promover recursos para a reintegração interna e social dos indivíduos.
Existem alguns, infelizmente, irrecuperáveis que necessitam ser retirados da sociedade. Outros
necessitam responder por suas transgressões e muitos se cristalizam nos seus desvios por falta
de oportunidades, e pelo desejo inconsciente que a sociedade tem, de que esses jovens
problemáticos morram. É uma forma de se livrar dos problemas, da culpa e da reelaboração
existencial
Como se percebe, os componentes micro e macro-social são significativamente
presentes na etiologia da delinqüência; e o componente macro-social sê-lo-ia ainda mais, no
que tange as perspectivas de recuperação. Talvez porque o contato destes sujeitos com o
universo social mais amplo já seja buscado em uma via de reparação; num primeiro momento,
daquilo que falhou no ambiente micro-social. Deduz-se daí a importância das respostas
jurídicas a estes atos.
A importância atribuía por este autor ao componente social (macro-social,
particularmente) da violência cometida por adolescentes é tão significativa a ponto de o
mesmo estar presente na própria definição de “violência cometida por adolescentes” em que
se sustenta a obra que organizou. Ele fala, na passagem abaixo, que ele e os demais autores
daquela obra compreendem por violência cometida por adolescentes aquela cujo significado é
o de pedido de ajuda perante um desamparo e, o que é ainda mais importante ressaltar, como
uma forma de construção do eu proposta pela sociedade àqueles que se encontram em uma
fase de desenvolvimento peculiarmente influenciável.
Enfocamos, não a violência salutar do adolescente, revelada pela rebeldia inovadora e criativa,
mas aquela cujos limites muitas vezes se confundem com uma violência desagregadora, grito
de socorro, fruto do desamparo ou mesmo uma forma de auto-afirmação proposta pela cultura
vigente.
Ênfase maior foi dada á adolescência por ser esta uma fase da vida altamente
influenciável, possuidora de inestimável potencial, porém menos cuidada pela sociedade, fato
que já representa uma violência (LEVISKY, 1998, p.32-33).
Figueiredo (1998, p.62-63), ao discorrer sobre como é próprio à cultura brasileira as
contradições entre discurso e prática, entre legal e legítimo, propõe que o adolescente
funciona como um porta-voz de ambivalências no campo da ética, transmitindo e
potencializando a violência social.
[...] gostaria de retomar alguns pensamentos de Donald Winnicott. Em particular, gostaria de
tomar pé na sua consideração do valor da imaturidade tanto para o indivíduo em crescimento –
o que sempre envolve alguma agressividade – como para a coletividade que deve ser capaz de
preservar um espaço de tolerância e de confronto com a imaturidade e seus rebentos, ou seja,
25
que deve ser capaz de conter e valorizar seus opositores internos como uma fonte salutar de
energia e criatividade.
[...] poderíamos imaginar quanto é difícil para o mundo adulto marcado pelas
impropriedades responder de forma continente, estável e segura aos desafios que o adolescente
lhe endereça. O enfrentamento da imaturidade adolescente é sempre problemático em qualquer
sociedade. Como as dificuldades devem crescer quando toda a cultura, quando o regime de
sociabilidade dominante está ele mesmo às voltas com suas próprias impropriedades,
dilacerado pelas múltiplas violências [...]. Poderíamos daí extrair a hipótese de que há um
sofrimento adolescente no Brasil, maior do que seria o esperado em culturas menos cindidas e
constitutivas de subjetividades menos dissociadas (grifo do autor).
Outro autor que bem descreve o processo adolescente é Ranna (1998). Ele também
destaca, como outros autores já citados, os percalços nesta fase de desenvolvimento que
levam a comportamentos violentos, bem como os aspectos ambientais envolvidos nestes
percalços. Ou seja, dos aspectos que transcendem o intrapsíquico.
a adolescência pode ser considerada um trauma, na medida em que o amadurecimento
psicossexual vai colocar em questão toda “organização pulsional” adquirida até então. As
mudanças biopsíquicas da puberdade criam uma nova situação subjetiva para os adolescentes,
deslocando toda estrutura representativa existente até então. Pelo menos três processos
psíquicos podem ser identificados: 1) mudanças nas representações; 2) novas demandas
pulsionais; 3) desafio e revivência de falhas na estrutura constituída ao longo dos anos
anteriores [...].
Os adolescentes de risco para somatizações, drogadicções, comportamentos
impulsivos e violentos têm antecedentes de perdas e instabilidades nas relações objetais,
durante os primeiros anos, e apresentam várias doenças, tais como: infecções recorrentes, asma
e distúrbios alimentares. Apresentam comportamento hiperativo, distúrbios de sono (pesadelos,
sonambulismos). Revelam deficiência no processo de simbolização, com facilidade para sofrer
acidentes, e com freqüência envolvem-se em conflitos violentos. Nesse sentido, a adolescência
assemelha-se ao 1º ano de vida, quando existe grande vulnerabilidade para somatizações, pois
o bebê associa sensibilidade, dependência e falta de recursos mentais para absorver e
representar a violência instintiva ou ambiental. O infante é o que não fala e por não falar
somatiza de forma mortífera.
O adolescente funciona da mesma forma, e o que encontramos, ou reencontramos, são
os antigos bebês hiperativos, insones, agressivos e doentes nos ambulatórios com os mesmos
problemas, após um tempo de calma pulsional da latência (RANNA, 1998, p.69-70).
Em momento seguinte, o mesmo autor vai tocar em componentes que podem ser
entendidos como macro-sociais, posto não dizerem respeito a questões familiares. Tratando a
adolescência na contemporaneidade, ele demonstra como a delinqüência não se pode explicar
a partir da carência objetiva. Para ele, o que está em jogo é essencialmente a impossibilidade
de ser criativo; e para isto pode-se partir de um ambiente que não apresenta faltas, ou de
outro, que não apresenta perspectiva de superá-la por qualquer via. Em suas palavras:
Hoje vemos uma certa báscula das formações psicopatológicas para as somatizações,
comportamentos de risco, condutas agressivas e violentas, psicopatias e drogadicções, todos
apontando para uma pobreza imaginária e distúrbios em etapas pré-edipianas e primitivas da
constituição do sujeito.
Associado a esse quadro vemos a ploriferação de uma estética realista, marcada pela
excitação violenta e concreta. Na produção científica, uma hegemonia dos métodos cartesianos.
26
O imaginário e o simbólico causam estranheza. Existe uma certa desmentalização em todos
esses campos. Hoje vivemos uma hegemonia da ação sobre a reflexão e a velocidade das
satisfações eliminaram a vivência da falta.
Parece que estamos vivendo uma regressão de estruturas neuróticas para estruturas
psicossomáticas, por conta de um empobrecimento da subjetividade imaginária e das
realizações alucinatórias, frutos da falta, da ausência, da castração. A realidade social, com
uma enorme, profunda e perversa desigualdade econômica deve fazer pano de fundo para tudo
isso, sendo que temos duas situações: a dos sujeitos que vivem a falta da falta: tudo se tem,
tudo se pode, nada é preciso desejar alucinatoriamente; e a dos sujeitos onde a falta é radical.
Os meios de comunicação mostram um mundo onde se tem tudo e na realidade o sujeito não
tem nada (RANNA, 1998, p.72-73)
Pode-se entender que o autor bem desmistifica a noção “senso-comum” de que a
violência cometida por adolescentes têm, por etiologia, um componente intra-psíquico
(quando muito, micro social; qual seja: familiar). E, principalmente, de que este componente
etiológico seria sempre “falta de limites”. Ranna (1998), além de destacar aspectos macrosociais, coloca, ao lado da precária inscrição da falta, a inscrição exagerada (porque
massacrante, inibidora, violenta) da falta.
Birman (2011, p.25-26) também auxilia a compreender a adolescência contemporânea,
resgatando historicamente a função social do adolescente. No intuito de compreender como a
condição jovem caracteriza-se por uma suspensão no espaço social, independente da cultura
(porque diz respeito a um certo tempo do desenvolvimento), ele lembra:
a possibilidade de experimentação foi o que passou a caracterizar a condição da adolescência
no Ocidente, desde o final do século 18, quando as idades da vida foram construídas em
conjunção com a família nuclear burguesa, em decorrência da emergência histórica da
biopolítica.
Nesse contexto, a adolescência foi delimitada como o tempo de passagem entre a
infância e a idade adulta, na qual o jovem podia empreender experiências nos registros do amor
e das escolhas profissionais, até que pudesse se inserir no mercado de trabalho e se casar, para
reproduzir efetivamente as linhas de força da família nuclear burguesa.
[...]. Desde os anos 1980, no entanto, essa figuração da adolescência entrou em franco
processo de desconstrução, por diversas razões. Antes de mais nada, pela revolução feminista
dos anos 1960 e 70, com a qual as mulheres foram em busca de outras formas sociais de
existência, além da condição materna.
[...] Em seguida, porque o deslocamento das mulheres da posição exclusivamente
materna foi o primeiro combate decisivo contra o patriarcado, que forjou nossa tradição desde
a Antiguidade. Os posteriores movimentos gay e transexual vieram nos rastros do movimento
feminista, inscrevendo-se nas linhas de fuga da crítica do patriarcado.
[...] Finalmente, a construção do modelo neoliberal da economia internacional, em
conjunção com seu processo de globalização, teve o poder de incidir preferencialmente em dois
segmentos da população, no que tange ao mercado de trabalho. De fato, foram os jovens e os
trabalhadores da faixa etária dos 50 anos os segmentos sociais mais afetados pela voragem
neoliberal.
Com isso, se os primeiros passaram a se inserir mais tardiamente no dito mercado, os
segundos passaram a ser descartados para ser substituídos por trabalhadores jovens e mais
baratos, pela precariedade que foi então estabelecida no mercado de trabalho
27
Como se percebe, o autor desnaturaliza a adolescência, entendendo-a, antes de tudo,
como uma produção social. Uma produção que, justamente por ser de ordem eminentemente
social, estrutura os sujeitos, posto incidir justamente no que os constitui em essência: seu
inconsciente. No caso da violência adolescente, a produção não é diferente. Daí ele dizer:
graças à ausência de inserção no mercado de trabalho, a juventude foi destituída de
reconhecimento social e simbólico, prolongando-se efetivamente, não tendo mais qualquer
limite tangível para seu término.
Despossuídos que foram de qualquer reconhecimento social e simbólico, aos jovens
restaram apenas o corpo e a força física. É por essa trilha que podemos interpretar devidamente
a emergência e multiplicação das formas de violência entre os jovens na contemporaneidade.
Esse processo ocorre não apenas no Brasil e na América Latina, mas também em
escala internacional. Pode-se depreender aqui a constituição de uma cultura agonística na
juventude de hoje.
Contudo, essa cultura de combate é apenas a face de uma problemática mais
abrangente, na qual o verso é a presença aterrorizante do desamparo, que marca o campo da
juventude na contemporaneidade, em que o medo do futuro e a insegurança do existir se
perfilam efetivamente como espectros.
[...]. Vale dizer que, em conseqüência das novas condições precárias do mercado de
trabalho, regulado pelo ideário neoliberal, as classes médias e as elites passaram a se defrontar
com os mesmos impasses, nos registros do reconhecimento social e simbólico, que marcaram
outrora apenas as classes populares.
Assim, a violência juvenil transformou-se em delinqüência, inserindo-se efetivamente
no registro da criminalidade (BIRMAN, 2011, p.26, grifo do autor).
Interessante demarcar que o componente social na delinqüência é aqui analisado pelo
autor de forma a explicar como a passagem da violência juvenil à delinqüência propriamente
dita tem-se dado de forma mais presente em classes médias e altas. Diferente, segundo ele, de
outras épocas, quando apenas os jovens de classes populares deparavam-se tão marcadamente
com os impasses do acesso ao mercado de trabalho.
3.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MUNDO INTERNO DO ADOLESCENTE QUE ATUA
DELINQUENCIALMENTE
Seguindo até o momento uma abordagem winnicottiana, nada mais pertinente
explicitar as concepções deste autor a respeito da violência na adolescência. Ou, já em sua
linguagem, da tendência anti-social. É o que se fará a partir deste momento, tratando
justamente de uma discussão que continuará aquela que finalizou a seção anterior: a
influencia da condição sócio-econômica cultural do adolescente com prática infracional.
Outeiral (1998) faz um resumo da noção winnicottiana de “tendência anti-social” para
aplicá-la aos casos dos adolescentes por ele chamados de excluídos, que, para ele, seriam os
não pertencentes da categoria social, econômica e cultural daqueles que pretendem estudá-los:
28



Três são, então, os aspectos básicos da “tendência anti-social” para Donald Winnicott:
ele relaciona a tendência anti-social “a uma falha ambiental precoce, principalmente a uma falha na
função materna”;
distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas: (a) quando a privação ocorre depois de ter
havido uma função materna “suficientemente boa” e por um período de tempo suportável, a criança
poderá desenvolver a “tendência anti-social” (deprivation); (b) se a privação (privation), ou a falha
na função materna, ocorrer desde o início da vida, poderá se desenvolver uma doença mental ou
uma psicose;
Donald Winnicott considera que a “tendência anti-social” comporta um sentimento de esperança
(OUTEIRAL, 1998, p.78, grifo do autor).
Outeiral (1998, p.79-80) considera necessário reportar-se a outro autor, para continuar
sua discussão a propósito deste adolescentes.
Masud Khan utiliza o conceito de “trauma acumulativo” para descrever situações que, penso,
se aplicam a esses adolescentes com freqüência. Ele parte da concepção de Freud sobre a
função da mãe como escudo protetor [...].
[...]. Para ele o que leva a mãe a desenvolver o papel de escudo protetor é o que
Winnicott chama de preocupação materna primária, em que a mãe suficientemente boa, através
de suas funções de holding, handling e apresentação de objeto interage com seu bebê. O
conceito de intrusão (impingment) também é fundamental (grifo do autor)10.
Masud Khan (apud OUTEIRAL, 1998), orientando-se por uma abordagem
winnicottiana, propõe que o trauma cumulativo decorreria de rupturas, quebras, fendas, do
psiquismo do bebê quando aquele que exerce a função materna não funciona suficientemente
como ego auxiliar. O ego auxiliar é, como já dito, um conceito freudiano, que diz respeito, por
exemplo, à função da “mãe” de interpretar a realidade em uma fase de desenvolvimento em
que o aparelho psíquico precisa de um “apoio” em seus ensaios de contato com a realidade.
É imprescindível demarcar que Masud Khan (apud OUTEIRAL, 1998) não nega
aspectos físicos e psíquicos, ainda que ressalte os ambientais. Fala, de fato, de um interjogo
patogênico de variáveis destas três naturezas. Porém, Outeiral (1998), até pelo foco do texto
(adolescentes excluídos sócio, econômica e culturalmente), ressalta os aspectos ambientais;
ou, poderíamos melhor especificar, macro-sociais (que são nada mais que continuidades dos
aspectos micro-sociais – familiares).
10
Aqui faz-se igualmente necessária um retorno a conceitos fundamentais da obra de Winnicott, para que o leitor
não familiarizado com a terminologia em questão, possa acompanhar as reflexões seguintes. “Holding” e
“handling” são termos mantidos, nas edições brasileiras, na versão original; qual seja, em inglês. Isto se deve,
primordialmente, ao fato de que nossa língua não apresenta um sinônimo a sua altura. Poderíamos
compreender “holding” como “segurar”, “conter”, “acolher” (física e emocionalmente) e “handling” como
“manusear”, “interagir” (aqui, tratando-se dos cuidados fundamentais à sobrevivência).
Poder-se-ia incluir aqui a noção de continuidade ao self, além de também melhor definir o que vem a
ser “apresentação de objeto”. Nesta teoria, o termo remete à função exercida pela mãe (melhor dizendo: quem
cuida da criança) de adaptar-se às necessidades da criança e, simultaneamente, frustrá-la gradativamente.
29
É nestes adolescentes que ele encontra de forma premente algumas características.
Dentre elas, a da atuação ou agir como meio por excelência de comunicação e evitação (como
defesa maníaca) das ansiedades confusionais, paranóides e depressivas na adolescência. “Nos
adolescentes a que estou me referindo, pelos seus precários meios de estruturação psíquica,
este modelo de funcionamento mental – o atuar como comunicação e como defesa maníaca –
será mais intenso” (OUTEIRAL, 1998, p.81). Outra característica frequentemente encontrada
seria um determinado modelo operacional de pensamento, assim descrito:
A adolescência se constitui de movimentos (flutuações) progressivos e regressivos. Nas
flutuações progressivas predomina o processo secundário, o pensamento abstrato e os modelos
verbais de comunicação. Nas flutuações regressivas, tão comuns nos adolescentes a que estou
me referindo, predomina o processo primário, o pensamento concreto e o “agir” como modelo
comunicacional operante (OUTEIRAL, 1998, p.81).
Para melhor explicar a tese de Winnicott sobre a tendência anti-social, é pertinente
ainda trazer outros conceitos deste autor. Particularmente, o de privação.
A privação se estabelecia quando uma criança havia tido contato com um ambiente bom mas
que, rapidamente, foi perdido por um tempo longo demais para que ela tivesse a possibilidade
de manter uma experiência boa. Essa condição abria a possibilidade de uma tentativa de
recuperação da experiência boa, paradoxalmente, através de um ato anti-social. Winnicott
usava a palavra “despojamento” para designar o fracasso total do atendimento precoce do bebê,
o que só podia resultar em apatia e desinteresse (HOFFMAN, 2001, p.56).
Outeiral (2000, p.123) complementa esta discussão, explicando que Winnicott, em sua
teoria sobre a tendência anti-social,
distingue dois tipos de privação: (1) (deprivation) perda do “bom objeto” e a perda do marco
confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da criança se sente segura (estado no
qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) (privation) um estado no qual jamais se teve algo e
que resulta em doença mental ou no domínio de uma psicose. Deste modo mostrou que a
tendência anti-social se articula em um ponto com as psicoses e em outro com as neuroses.
Estabeleceu especialmente a experiência de privação com a impossibilidade de alcançar a
posição depressiva e um sentido de responsabilidade social dentro do indivíduo.
Para DWW os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos psicopatas mostram “sinais de
esperança” [...].
O conceito de privação envolve um fracasso ambiental na etapa de dependência
relativa. A privação, assim, se refere a um ambiente suficientemente bom vivenciado e perdido,
quando o bebê já é capaz de perceber a relação de dependência, isto é, quando sua evolução
tornou possível perceber a natureza do “desajuste ambiental”
Outra noção fundamental para se compreender a referida tese é a de “primeira mamada
teórica”, que seria a soma das experiências iniciais de muitas mamadas. Melhor dizendo:
O bebê, invadido pelas reivindicações da pulsão, está num estado mental excitado. Há uma
expectativa, e, podemos dizer, esse bebê está pronto para criar.
30
Se a mãe, ou substituto, está atenta ao bebê e é capaz de se preocupar com ele, é
possível que ela possa aproveitar essa prontidão do bebê e oferecer o seio – metáfora do objeto
real externo – de um modo tal, tão bem adaptado, que dá ao bebê a ilusão de ter criado esse
objeto externo.
É importante frisar que não basta atender o bebê em suas necessidades biológicas.
Estas são também o apoio para podermos atender à necessidade de “criar” do bebê, pois é a
partir dela que se desenvolverá a capacidade de obter satisfações nas relações com os objetos e
as pessoas do mundo real-social.
Tal coincidência entre o objeto criado pelo bebê e o objeto do mundo real-social
oferecido pela mãe produz uma articulação entre o mundo pulsional e os objetos do real, de
modo a se desenvolver na mente do bebê a ilusão/função de que ele é capaz de criar objetos
para sua pulsão. Esta é a origem da função mental capacidade de usufruir do mundo, a
capacidade de obter satisfações da vida real e social (HOFFMAN, 2001, p.56-57, grifo do
autor).
O autor continua, agora discorrendo sobre como se dá tal processo na adolescência:
De um lado – movida agora pela capacidade de criar -, estará a vida privada, íntima, com uma
maior ou menor capacidade de satisfação. De outro, vai de desenvolvendo o falso self, baseado
na adaptação às exigências do mundo externo de modo submisso e passivo.
Na adolescência, essa última faceta pode se apresentar como uma aparente adequação
que atende às expectativas do meio familiar e social.
[...] a aquiescência revela o tédio e o desinteresse e que, por trás de sua face
inofensiva, surgirá a desesperança e a infelicidade.
Winnicott sugere então que é desse fracasso no estabelecimento de uma relação
criativa entre a pulsão e o mundo, desse núcleo de insatisfação, pois ele não encontra um modo
de se articular com o mundo à sua volta, que surgirá o ato anti-social [...].
Muitas vezes, o ato delinquencial é, para essas mentes desesperadas, a última tentativa
de se curar de um quadro depressivo (HOFFMAN, 2001, p.58-59).
Um questionamento plausível é que saídas teria um adolescente, já depressivo por
falhas familiares, envolto em um apelo social de nunca se satisfazer com objeto algum?. Ou
em uma conjuntura social na qual não encontrará objeto algum para se satisfazer,
obstaculizando qualquer elaboração da castração?. Talvez o ato infracional análogo a crime
sexual seja uma resposta.
3.3 PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE SEXO...
Certas palavras sobre desenvolvimento da sexualidade na adolescência fazem-se
pertinentes para iniciar a discussão específica do ato infracional semelhante ao crime sexual:
O Complexo de Édipo da infância se reedita com intensidade na adolescência, com as
peculiaridades anteriores agora somadas a um novo fator: o desenvolvimento puberal
(biológico) torna as fantasias sexuais possíveis de serem realizadas. Isto produz ansiedade e
atitudes que envolvem profundamente o “existir” e “o ser” do adolescente. Uma coisa é um
menino de três anos fantasiar e dizer a todos – produzindo encanto e graça nos adultos – que
quer “casar com a mamãe”. É diferente se um adolescente de treze anos fantasiar um conteúdo
sexual com a mãe: esta fantasia poderá ficar inconsciente ou emergir num sonho, produzir um
comportamento impulsivo para descarregar a tensão sexual com alguma outra pessoa ou
31
conduzir a um “embotamento” das emoções ou a interesses culturais e/ou esportivos, resultado
da sublimação dos impulsos e fantasias sexuais originalmente dirigidas à mãe.
Os “rituais de iniciação” da adolescência visam exatamente submeter o adolescente às
“leis” de sua cultura, em especial, estabelecer a interdição do incesto. Na verdade, os vários
tabus comuns a quase todas as culturas são os referentes ao incesto e ao parricídio
(OUTEIRAL, 1994, p.22-23).
Outeiral (1994, p.23-24), na continuidade de sua discussão a propósito do
desenvolvimento esperado da sexualidade na adolescência, ressalta a importância de que o
objeto seja reconhecido como faltante, e, mesmo assim (e justamente por isto), seja desejado.
Na adolescência média é que habitualmente se dá a passagem da bissexualidade para a
heterossexualidade. Podemos imaginar a ferida narcísica que representa reconhecer que somos
“incompletos” e que necessitamos “do outro” para uma vida sexual adulta. “O outro” pode ou
não nos querer, ou seja, progressivamente a realidade vai nos impondo suas condições [...].
Existem pessoas, entretanto, que seguem perseguindo a idealização e deixando de
desfrutar o que a realidade lhes oferece. Estão sempre aguardando um parceiro idealizado, o
príncipe ou a princesa, que algum dia virá para encontrá-las. Elas irão buscá-lo: o “idealizado”
virá algum dia até elas. Também não farão nada: apenas aguardarão. Este príncipe ou princesa
não é nada mais que uma projeção narcisista do próprio indivíduo. Ninguém, na verdade, é tão
bom que possa merecê-lo
Lesourd (2004, p.264-265) analisa os aspectos sociais relativos à persistência desta
expectativa de que o objeto não falte. Suas idéias poderiam ser resumidas no entendimento de
que há uma precariedade do erotismo, ao lado de um elogio à vulgaridade. Este autor ainda
analisa os efeitos deste tratamento social despendido à sexualidade sobre o psiquismo
adolescente, exemplificando-os, aliás, com uma situação de estupro.
A dificuldade atual da geração dita “beur” reside no afastamento entre idealização e
sublimação, tornando aleatória a construção de uma ética do sexual.
Na verdade, a idealização se refere, no que diz respeito ao sexual, à realização
desejante em ato. O modelo ideal do sexual veiculado pelo laço social é a pornografia, a
objetalização do outro no ato sexual, enquanto a sublimação conserva os vestígios da divisão
dos sexos entre íntimo e exterior, proveniente da lógica da honra, e que apresenta o sujeito
como responsável pelo seu objeto de desejo. Existe assim um conflito entre duas éticas do
sexual, uma proveniente da tradição, na qual o sujeito é marcado, alienado ao seu objeto
sexual, que ele deve pois proteger; outra proveniente do discurso capitalista, em que o sujeito
usa do seu objeto sexual como de um objeto externo de completude e de gozo. Essas duas
gramáticas conflitantes da lógica sexual criam um impasse na realização do ato no tempo
adolescente, se compreendermos o ato como aquilo que representa o sujeito desejante.
Intimado a defender essas duas lógicas, o sujeito só pode responder pela clivagem. De um lado,
defenderá a lógica da honra em suas posturas de desafio, nas quais pede ao outro que responda
em termos de reconhecimento do desejo, para proteger a face oculta, íntima da relação, a do
sexual em ato sempre velada; por outro lado, ele se inscreverá na lógica do gozo do objeto, que
implica as passagens ao ato tanto delinqüentes como de dependência de drogas, atualizando
assim uma gramática do gozo pleno. O fenômeno da “rodada”, - que se deveria distinguir do
estupro coletivo por um ponto, o fato de que inicialmente a mulher, objeto da “rodada”,
consente o ato com um dos membros do grupo, o que os aproxima das gangues dos filmes
pornográficos – é certamente o fenômeno mais explícito dessa gramática moderna do gozo
pleno do sexual
32
A partir desta discussão, o autor reflete a propósito da dificuldade do adolescente,
nestes tempos, em desenvolver uma sexualidade que poderíamos entender por mais saudável a
si e a terceiros. Em seus termos:
A ética sexual da honra foi recalcada pelos genitores da geração beur, em benefício de uma
ética do gozo pleno: lembremos o “gozar sem obstáculos” dos anos 70. O desafio adolescente
aos adultos deve então, em nossos dias, ser entendido como um vestígio em retorno da lógica
da honra, ou seja, como um retorno de uma lógica da sublimação, contraditória com a
idealização moderna do objeto, tomado como objeto de gozo. Nisso, o desafio adolescente
deveria ser compreendido como um vestígio, atualizado, do “sagrado” da diferença sexual
(LESOURD, 2004, p.266, grifo do autor).
Ainda falando sobre como alguns elementos sociais produzem determinadas
manifestações adolescentes da sexualidade, Outeiral (1998, p.84) fala, a respeito dos
adolescentes excluídos (já definidos acima):
Pouco sabemos de sua sexualidade, mas podemos inferir que as experiências, assim como a
própria adolescência, acontecerão mais cedo.
Pela desestruturação familiar estarão mais expostos a situações traumáticas nestas
etapas. A negligência e o abuso, embora evidentemente não específicos dessas categorias
sociais, estarão mais presentes por vários motivos: a relação da transmissão transgeracional da
negligência e do abuso (em que uma mãe que foi negligenciada ou abusada em sua infância ou
adolescência tem um risco maior de repetir isso com seus filhos); as situações materiais
expondo-os a presenciar a intimidade de outros; a busca de conquistar afeto através da relação
genital (em que um pênis terá mais a representação de um seio que o genital masculino); a
utilização da promiscuidade sexual para criar um sentido de pertencer a um grupo; a utilização
do sexo para a sobrevivência; a promiscuidade sexual como um ataque ao corpo e uma atuação
homicida, etc. e inúmeros outros aspectos
Quando ele diz “inúmeros outros aspectos”, convida-nos a pensar, por exemplo, no
uso da sexualidade como modo de violentar o outro, o que poderia levar a crimes sexuais.
. Levisky (1998, p.35-36) traz algumas contribuições nesta direção, e não parece se
referir apenas aos adolescentes excluídos sócio, econômica e culturalmente. Ele trata dos
danos sobre a sexualidade adolescente trazidos pela maneira com que a sociedade
contemporânea aborda a sexualidade. Para ele, em uma fase em que está justamente
construindo uma identidade (logo, demarcando-se, constituindo um “eu” e um “não-eu”), é
drástico o efeito de uma sociedade em que os limites são borrados.
O complexo processo de redefinição das identidades anatômicas e de gênero sofre
transformações na busca de novos objetos de investimento amoroso. Os jovens passam por um
processo de perda da própria imagem e corpo infantis e da relação com os pais da infância.
Reestruturam seus aspectos narcísicos e a organização egóica, efetivando a ruptura entre partes
discriminadas e não discriminadas de sua personalidade.
Na realização deste trabalho angustiante e apaixonado, oscilante entre excitações,
desafios e depressões, experienciam seu corpo, reelaboram fantasias homo e heterossexuais, e
vão descobrindo seus espaços na sociedade. Necessitam se experimentar em sua alma, em seu
corpo, em sua sexualidade. “Ficar”, “transar”. Pouco a pouco vão nomeando seus sentimentos:
33
amizade, namorado, levar um papo. Numa sociedade com limites pouco nítidos abusa e é
abusado sexualmente. Sofre pressões do grupo, da mídia apeladora e da sociedade conivente
em seu silêncio. A prostituição infanto-juvenil está às soltas, acobertada até mesmo pelas
próprias famílias e pela sociedade.
Há uma grande confusão, esperada entre os adolescentes e fomentada pela cultura,
entre a liberdade de experimentar, de se descobrir, de buscar o prazer, fazendo-o de forma
dissociada das repercussões afetivas, sentimentais e do reconhecimento dos próprios limites
O autor aqui ressalta o abuso que o adolescente sofre quando a sexualidade passa a
não ser um veículo para se conhecer, mas passa a ser um modo de não se conhecer.
Lembrando do mito edípico, poderíamos pensar que o autor se refere especialmente as
situações em que a sexualidade passa a ser a trilha que leva pra longe da esfinge.
3.3.1 Quem tem medo do lobo mau?
É pertinente, agora, discorrer a propósito de como as noções “psi” a propósito de
crimes sexuais foram apropriadas pelo Direito. Hachet (2005) nos fala de um risco de
normalização, que se inscreve em um duplo movimento de mutação histórica e sociocultural
(um deles cobrindo o campo penal e o outro, clínico, o das perversões sexuais). Esta autora
entende que o percurso desses dois campos dirige-se a um "ideal" ou "ilusão de normalidade",
e até mesmo de "normalização". Melhor explicando:
O primeiro movimento diz respeito à maneira como o sistema penal se transformou sob o
impulso do que Foucault (1975) chama dispositivos de normalização", a saber, a medicina, a
psicologia, a educação, a assistência e o trabalho social [...]. Impelidos pelo desejo furioso de
apreciar, diagnosticar, distinguir o normal do anormal, de curar ou de readaptar, os juízes
acabaram perdendo suas verdadeiras funções — controlar, julgar e sancionar — e, por isso
mesmo, seu poder. Este último, regido pelas leis, funciona fundamentalmente como um poder
normativo. Foucault (1975), nesse sentido, considera que é em nome da "economia do poder"
que os juízes formulam veredictos "terapêuticos" e decidem sobre prisões "readaptativas" [...].
Foi graças a esses outros dispositivos "carcerários", os quais, embora aparentemente muito
distintos — já que destinados a aliviar, curar e socorrer —, tendem, tal como a prisão, a exercer
um poder de normalização, que esta última não mais ocupa uma posição central [...].
O segundo movimento concerne à maneira de apreender as perversões sexuais no
plano clínico, notadamente em termos de tratamentos, uma vez que "tratar", nesse caso preciso,
comporta o risco de "normalizar", podendo até mesmo confundir-se com isso. Para melhor
apreender sua ambigüidade, façamos uma pergunta em sentido contrário: como se efetua a
passagem da sexualidade perversa para uma sexualidade normal ou normativa? (grifo da
autora).
Analisando mais detalhadamente o histórico da compreensão das ciências “psi” a
propósito dos crimes sexuais, a autora parece nos dizer que, pelo menos inicialmente, havia
uma preocupação dos operadores do Direito em encontrar em um saber outro uma
compreensão destes crimes de forma a possibilitar que sua autoria associasse-se a uma
34
patologia, uma anormalidade. Daí a pretensão de se encontrar em todos os casos um
componente cerebral ou mental que explicasse a perda do livre-arbítrio do autor.
a missão da qual os psiquiatras estão investidos pelo sistema judiciário, vis-à-vis dos autores de
agressões sexuais: regular, e até mesmo regularizar, sua energia libidinal extraviada. Nessa
ótica [...], os psiquiatras propõem responder com a ajuda de uma "química interposta [...],
moléculas, peptídeos [...] ou outros meios", segundo as demandas e os limites morais, sociais
ou legais. Nesse exemplo preciso, uma vez que ele está engolfado ali onde a lógica da neurose
o chama, os tratamentos se resumem a duas funções: favorecer o recalque e fazer consistir o
"Grande Outro" deficiente, regulador da energia. No que concerne ao recalque, segundo Létuvé
(1994), uma evidência é negada: os traços ditos de "perversão" são comuns. Além disso,
preenchendo a função de um "Grande Outro deficiente", a "ciência" tende a abolir os "limites"
entre a saúde e a doença ocultando, assim, as "mil pequenas perversões que agitam o que se
nomeia "normalidade". Disso é testemunha o procedimento de classificação dos "pedófilos"
que os reduz a um tipo de atos, inclinações e escolhas objetais, escamoteando sua dimensão
subjetiva e sua abordagem estrutural.
Arviller (1998) mostra que a elaboração de um saber médico-psiquiátrico em matéria
de perversão sexual, em especial a pedofilia, foi muito fortemente determinada não por uma
demanda de saúde, mas por "uma petição judicial e social de fornecimento de normas, visando
a uma regulação das condutas sexuais desviantes". Essa demanda foi justificada pela
necessidade de uma caução exterior científica destinada a permitir ao parceiro judiciário
desempenhar o papel que lhe era atribuído pelo corpo social. Esse saber, tomando como forma
a expertise psiquiátrica, deve ser relacionado com a freqüência dos abusos sexuais em crianças
no decorrer do século XIX. Assiste-se então a um paradoxo: a conduta se torna a manifestação
de uma organização cerebral ou mental, a única reconhecida como decisiva; e ali onde o
magistrado "ganha, do lado da caução científica dada às suas decisões, ele perde do lado da
legitimidade em julgar um ato cuja determinação última escapa ao seu conhecimento e não
mais se arrima a um livre arbítrio do acusado" (HACHET, 2005, grifo da autora).
A perversão sexual, como indica a autora, não se apresenta apenas em estruturas
perversas. Mas também em estruturas ditas “normais”: as neuroses. Além disto, é importante
lembrar, como já dito neste trabalho, que mesmo na estrutura perversa não há perda ou
prejuízo da consciência (o que, para o Direito, caracterizaria a doença). De qualquer modo,
para complicar mais um pouco, sabe-se que nenhuma estrutura psíquica goza de total livre
arbítrio. Assim, em termos “psi”, como hoje se sabe, não se pode dizer que o perverso ou
neurótico optaram por agir como agiram. Vê-se, daí, os enigmas colocados no diálogo entre
Direito e ciências “psi” na contemporaneidade.
A mesma autora fala, de alguma forma, da dificuldade do Direito em abordar o tema
da perversão, quando fala de sua resistência nas seguintes palavras:
Cobrindo um campo mais vasto do que o da neurose ou da psicose, o termo perversão,
sejam quais forem suas formas clínicas — caráteres, comportamentos, práticas ou fantasias —
só pode ser apreendido em relação a uma norma social, ela própria induzindo a uma norma
jurídica. Nesse sentido, Bonnet (1994) estima que a hostilidade defensiva para com esse
conceito obstaculiza um aprofundamento teórico e uma abordagem clínica do comportamento
perverso [...]. Para esse psicanalista, a verdadeira razão desse recuo [...] reside na
impossibilidade de admitir ou de se representar a presença de uma patologia que escapa
totalmente ao recalque, e em uma organização psíquica fundada em uma exigência de acesso
imediato e brutal a uma forma de gozo imediato, a despeito da lei (HACHET, 2005).
35
Hachet (2005) não é explícita neste sentido, mas poderíamos nos questionar se já não
seria esta resistência o fundamento das noções “patologizantes” (desresponsabilizantes) da
perversão. Refiro-me as concepções de que a conduta a-moral só poderia se dar em alguém
cuja consciência encontra-se perdida ou, no mínimo, abalada. Parece ser demasiado
inexplicável, para aqueles que negam que o humano (neuróticos, inclusive) dirige-se por algo
mais que a consciência, que se possa agir de maneira cruel, sarcástica, sem ter prejuízo da
consciência.
Interessante, por fim, pensar se os operadores do Direito, quando não encontram sinais
de patologia nos autores de crimes sexuais, não “escorregam” para noções que não encontram,
mais ainda que as anteriores, respaldo “técnico-científico”: a de que são monstros. A saída
seria ser médico ou domador de autores de crimes sexuais?.
A Psicanálise talvez mostre outra saída, questionando não apenas o Direito, mas
também o saber que as ciências “psi” tem apresentado aos operadores do Direito. Como já foi
dito: ninguém é inocente; nem o Direito e nem uma certa Psicologia e Psiquiatria!.
4 FALE MAIS SOBRE AQUILO
Inicialmente, é pertinente apresentar algumas considerações psicanalíticas sobre o
discurso do adolescente que comete ato delinqüente. Rodrigues (1995, p.73), ao falar da
expectativa, rigorosamente atendida, dos profissionais que trabalham junto a adolescentes que
cometem atos delinqüentes, de que os mesmos verbalizem o “discurso do regenerado”,
constata:
O trabalho que tem sido realizado na escuta da delinqüência não se caracteriza por permitir a
constituição de um lugar para a violência cometida pelos sujeitos dos atos delinqüentes. Não é
de se estranhar que isso seja assim, pois para o neurótico não delinqüente, respeitador da lei,
não é compreensível (às vezes nem mesmo admissível) que um sujeito seja capaz de cometer
um ato violento, que infrinja a lei, e que esse mesmo sujeito não atribua sentido e nem mesmo
sinta-se culpado por tal violência. Assim, tem-se geralmente uma escuta que não prioriza ouvir
o que o sujeito tem a dizer, procurando, ao contrário, identificar na fala um discurso
supostamente desejável, tentando conscientizar o sujeito da gravidade de seu ato
A autora continua sua discussão, dizendo que de fato, se nos ativéssemos ao que há de
mais legítimo no discurso destes adolescentes, a maioria sequer mencionaria o fato em
questão. Dentre aqueles que se refeririam ao mesmo, haveria menos três vias, conforme
Rodrigues (1995, p.74):
36
A primeira seria aquela em que os delinqüentes não se admitem autores do delito pelo qual
foram condenados. É imprescindível ressaltar que se entra aqui num campo delicado, pois é
certo que há a condenação de inocentes, mas ainda assim é possível identificar uma forma
particular do sujeito de lidar com a condenação que se dá pela via de negar seu ato, ou de pelo
menos tentar amenizá-lo [...]. Nos casos de estupro essa característica é bastante forte e
freqüente [...].
A segunda via seria tomada pelo sujeito que fala do seu ato, situando quem o escuta
numa posição de testemunha, o que de certo modo reedita a cena do delito, o ato, nesses casos,
é narrado com riqueza de detalhes, sem que o narrador se exima de qualquer responsabilidade
sobre o mesmo [...]. Na constituição do outro como testemunho poderia haver uma tentativa de
simbolização, mas antes parece tratar-se do gozo que o sujeito tem nessa narrativa, em
presença do outro.
Uma terceira via - e vale notar que é a menos freqüente – é a do sujeito que fala sobre
o ato, tratando-se nesse caso de uma fala desencadeada por uma queixa. Ele diz não ser capaz
de compreender o que fez, e não saber quais os motivos que o levaram a cometer o delito [...].
O que fica privilegiado nesse discurso é o esforço de inscrever o ato na história, contextualizálo, numa busca de lhe conferir algum lugar com sentido. É interessante que nesses casos é a
condenação que parece algo à parte, e não o delito. A condenação é insuficiente enquanto
instância que daria nome ao ocorrido, o sofrimento do sujeito não advém dela, nem do tempo
perdido no cárcere, mas da necessidade de reconhecer-se como autor do ato criminoso, embora
esse ato lhe pareça, com freqüência, de autoria irreconhecível
A autora não diz explicitamente, mas suas observações parecem se referir aos
profissionais que acompanham adolescentes com prática infracional. O foco do presente
trabalho não apenas refere-se ao discurso apresentado em um contexto focal e em um único
encontro (declarações a Polícia), mas também à maneira com que a Polícia retratou o caso.
O Boletim de Ocorrência11, registrado por Marta, mãe de duas crianças: “Relata a
comunicante que na sexta feira dia 15/07/2009, descobriu que o adolescente Guilherme que é
amigo de seus filhos chupou o pênis de seu filho Marcelo e este falou que o adolescente
Gilberto pegou no pênis do irmão Antônio, que a mais ou menos um mês o filho Marcelo
reclamou de dores na região do ânus, não sabendo se houve violência sexual por parte do
adolescente”.
O primeiro despacho da autoridade policial foi para o Setor de Atendimento
Psicológico – Criança e Adolescente, que, após o atendimento na mesma data do registro,
produziu um relatório, além de coletar informações como filiação e idade das crianças
(Antônio – 10 anos, e Guilherme – 7 anos). As informações contidas neste documento, que
merecem ser aqui reproduzidas, são as seguintes:
Após serem indagados a propósito da rotina e da estrutura familiar, questionou-se quem era
Guilherme. Responderam que era um amigo, e que ele morava próximo de sua residência.
Indagados a respeito do que fazem juntos, responderam que o adolescente ficava em sua casa
jogando vídeo-game com eles quando a mãe precisava sair. Indagou-se se eles têm se visto, e
a resposta foi que não, “desde que aconteceu as coisas” (sic).
11
Manter-se-á a grafia das peças policiais a partir deste momento citadas, com alterações de datas. Os locais e
nomes dos envolvidos serão fictícios.
37
Pediu-se que relatassem o que ocorreu. Explicam, então, que Marcelo “tocava punheta” (sic)
nas ocasiões em que ficava com Guilherme e que na terceira ou quarta vez em que jogaram
vídeo-game na casa das crianças Guilherme “chupou o pinto” (sic) de Marcelo. Antônio diz,
em tom de defesa, que ele só “bateu punheta” uma única vez, quando, também na terceira ou
quarta vez em que Guilherme permanecia na casa deles, Antônio juntou-se a Marcelo e
Guilherme.
Indagou-se a Marcelo se Guilherme “chupou seu pau” outra vez ou apenas nesta ocasião, e a
resposta foi de que ele “chupou seu pau” duas vezes. Perguntou-se a Marcelo quantas vezes
ele “bateu punheta” na presença de Guilherme, e a resposta foi de que “perdeu a conta” (sic).
Fez-se a mesma pergunta a Antônio, e ele respondeu que “umas dez vezes” (sic).
Questionou-se se Guilherme “bateu punheta”, e responderam que em uma única ocasião; qual
seja: aquela mesma em que Guilherme encontrava-se no local dos fatos pela terceira ou quarta
vez. Relatam que Marcelo e Antônio masturbavam-se, quando disseram a Guilherme que ele
também poderia fazer aquilo. Antes de afirmarem que ambos permitiram que Guilherme se
masturbasse, ambos afirmaram que havia sido o irmão quem havia permitido o gesto de
Guilherme. Sempre foram unânimes, de qualquer modo, em dizerem que Guilherme
“brincou”, frente ao convite das crianças de que se masturbasse, dizendo “só se meu
advogado deixar”12.
Indagou-se se Guilherme “tocou punheta” para eles (se ele os masturbou, na verdade), e a
resposta de Marcelo foi de que em uma única ocasião.
Questionou-se a Marcelo se ocorreu alguma outra coisa, a quê respondeu que brincavam de
carrinho. Questionou-se especificamente se Guilherme tocou ou quis tocar em seu ânus, e a
resposta foi negativa.
A respeito de como os fatos chegaram ao conhecimento da mãe, Marcelo explica que
encontrou uma folha de caderno na rua e que, não sabendo ler a não ser algumas palavras
(Antônio afirma que ele nada lê), levou a sua mãe. Alega desconhecer o que estava escrito.
Quanto à reação dos genitores, contam que a mãe tem-lhes proibido de sair de casa e de
assistirem desenho por um mês. O pai, por sua vez, disse que “se fosse com mulher até ia!”
(sic), e afirmou que “pegará mais pesado” (sic) com eles caso isto volte a ocorrer. Foi pedido
que falassem o que seria este “pegar pesado” e disseram que desde já (na presente data, mais
precisamente, porque hoje os pegará para visita) ele começará a pegar mais pesado.
Foi indagado, em toda a investigação a respeito das masturbações, de quem era a iniciativa.
Relataram que sempre foi deles.
A mãe foi atendida individualmente, por meio da mesma técnica, logo em seguida. Relatou,
quando indagada sobre possíveis alterações comportamentais dos filhos, que Marcelo tem
procurado maior proximidade física.
O pai foi atendido na presente data. Relatou que Guilherme cuida de várias crianças. Foi
orientado quanto a condutas que podem re-vitimizar os filhos.
Impressões e Encaminhamentos: Há indícios de que os atos sexuais cometidos por
Guilherme não tenham se caracterizado por violência e, principalmente, que o adolescente
não tenha tido condições de avaliar possíveis danos as crianças (ou seja, não tinha dolo),
principalmente porque a iniciativa partia delas.
De qualquer modo, devido à malícia com que agiu com as crianças (a fala, após o convite de
Antônio e Marcelo de que se masturbasse, de que “só se meus advogados deixarem”), sugerese a investigação de alterações comportamentais porventura apresentadas por Guilherme nos
âmbitos familiar, escolar e junto aos responsáveis pelas crianças que ele “cuida”, bem como
que seja, independentemente dos dados coletados, instaurado procedimento policial, haja vista
a provável função terapêutica de ter uma resposta penal perante suas transgressões.
12
A propósito, explicam que Gilberto os chamava de “advogados”, inclusive publicamente. Quando alguém lhe
perguntava algo, ele dizia que precisaria consultar seus advogados (Marcelo e Antônio).
38
Não se encaminhou Marcelo a acompanhamento psicoterapêutico, ainda que tal medida
mostrasse-se pertinente, haja vista o fato de que as crianças já participam de um projeto no
qual há psicólogos. Conforme a mãe, já há inclusive consulta agendada com a profissional
deste projeto”.
Quanto as declarações prestadas por Guilherme (12 anos), cabe trazer:
[...] diz que é primo de Marcelo e Antônio, e que o declarante ficava na casa de sua tia Talita,
vizinha destes; Que informa o declarante que freqüentemente era chamado por Marcelo e
Antônio para que jogassem vídeo-game, Que informa que nem sempre a genitora de tais
meninos estava presente; Que informa ainda que em determinado momento, quando a mãe de
Antônio e Marcelo saiam, estes abaixavam as causas e começavam a “bater punheta” na
frente do declarante; Que diante de tal situação o declarante não fazia nada, Que informa que
em certa ocasião cuja a data não se recorda, o declarante “chupou o pau” de Marcelo, Que
esclarece que não sabe os motivos que o levou a tomar tal atitude, informando ainda que tal
situação não foi presenciada por Antônio, esclarecendo também que tal fato acorreu somente
uma vez; Que informa que freqüentava a residência a pedido da genitora das crianças, pois
segundo o declarante esta teria dito a sua mãe que tais crianças eram solitárias; Que informa o
declarante que todo o dia o Antônio “enchia seu saco” para que o declarante “o comesse” ,
isto é praticasse sexo anal com este, Que informa o declarante que realizou sexo anal com
Antônio, mas tal fato não foi presenciado por Marcelo, Que o tais fatos ocorreram em
momentos diferentes, Que com relação ao bilhete encontrado por Marcelo o declarante diz
desconhecer, informando que não escreveu nada a respeito dos fatos; Que informa que faz
cerca de um (01) ano que não tem contato com Marcelo, Antônio ou Marta; Que o declarante
faz acompanhamento psicológico (CAPSI) desde outubro do ano passado. Que o declarante
informa que já foi abusado sexualmente pelo seu padrasto Pedro, que tal fato está sendo
apurado pela 54ª DP de Matança; Que informa ainda que não praticou nenhum ato com outras
crianças a não ser seus primos (Marcelo e Antônio)”.
A instrução do procedimento policial talvez pudesse, no intuito de melhor esclarecer
sobre a personalidade do adolescente e motivos da ação, remeter-se ao Inquérito que apurou o
caso em que Guilherme foi vítima. No entanto, isto não foi feito. À autoridade policial não é
sequer obrigatório o relatório nos Autos de Apuração de Ato Infracional. Procurando o
Inquérito referido, encontra-se as seguintes peças, iniciando pelo Boletim de Ocorrência,
registrado por Gabriela, mãe de Guilherme, registrado quinze meses antes do B.O. já citado:
QUE convive maritalmente com Pedro acerca de nove anos. QUE tem dois filhos com Pedro,
sendo Hélio de 7 anos e Pâmela de 6 anos. QUE a declarante informa que já possui outro filho
fora do relacionamento Guilherme de 11 anos. QUE esclarece que Pedro há cerca de dois dias
deixou a residência da declarante, passando a dormir na residência da irmã da declarante.
QUE na data de ontem, por volta das 06h e 50min, Pedro chegou em casa e pediu para dormir,
momento em que a declarante deixava a residência para ir ao seu trabalho. QUE os três filhos
da declarante permaneceram em casa, acompanhados de Pedro. QUE ao retornar do serviço,
por volta das 21h e 30min, Pedro ainda se encontrava em casa, tendo deixado a residência
para ir dormir na residência de sua irmã. QUE o amigo de seu filho Guilherme, de nome Allan
39
de 11 anos, indagou se Pâmela estava vestida com calcinha, meia-calça e calça jeans, tendo a
declarante respondido afirmativamente. QUE naquele momento, a declarante ficou apavorada
com a informação do menino que havia visto Pedro e Pâmela pelados na cama. QUE a
declarante indagou ao filho Guilherme se havia visto alguma coisa, tendo o mesmo com muito
medo contado que havia visto a irmã e Pedro pelados, tendo Pedro ordenado que o mesmo
retornasse para cama. QUE a declarante informa que Pâmela estava dormindo na casa de sua
irmã, sendo que pela manhã, ao buscar a menina, Pâmela contou o pai mandou eu chupar o
pinto dele e colocou na minha perereca, em troca a mesma não deveria contar para a mãe e
ganharia dinheiro. QUE Pâmela ainda reclama para a mãe que está com a vagina doendo.
QUE Pâmela contou que já viu os irmãos chupando o pinto do pai. QUE a declarante
informa que vive em constantes ameaças, pois Pedro disse que vai matar a declarante, pois
sabe que tem um BO registrado, sabendo que vai para a cadeia e saíra logo por bom
comportamento. QUE na data de ontem, Pedro esteve na Padaria Bread onde a declarante
trabalha e fez gestos de cortar o pescoço da declarante e ainda disse vou te matar.
No termo de declarações de Gabriela consta, dentre outras coisas que, para o objetivo
do presente trabalho, não precisam ser citadas:
Que, a declarante conviveu maritalmente com Pedro durante (09) nove anos
aproximadamente; Que, a declarante relata que Pedro é etilista, e quando bebia se tornava
bastante agressivo com a declarante e com as crianças; Que, a declarante relata que somente
relatou a violência doméstica sofrida há aproximadamente uma semana13, quando tomou
coragem de fazê-lo; Que, registrou ocorrência na 54ª Delegacia de Matança; Que, a declarante
sempre acreditou que o comportamento alterado de Pedro se dava devido ao consumo de
bebida alcoólica, sendo que apenas descobriu que este fazia uso de cocaína há
aproximadamente um ano; Que, viu de relance em uma festa, que havia um pote sujo com a
droga dentro do banheiro onde estava Pedro e mais dois amigos; Que, ele negou dizendo que
quem havia usado eram os dois outros dois amigos dele; Que, a declarante ficou muito
desconfiada; Que, há aproximadamente três meses Pedro consumiu R$ 2.000,00 (dois mil
reais) em droga, dinheiro este que havia recebido de uma empreitada na qual ele havia
trabalhado de pedreiro; Que, então ele confessou ter pago bebida e droga para um amigo mas
que não tinha usado; Que, então o casal se separou; Que, inconformado com a separação
Pedro passou a ameaçar a declarante; Que, Pedro foi morar na casa da irmã da declarante para
evitar que as crianças presenciassem as brigas do casal; Que, todos os dias quando Pedro
chegava do serviço este ficava com as crianças até a declarante chegar do trabalho, isto por
volta de 21:30h; Que, a declarante nunca desconfiou de nenhuma atitude de Pedro em relação
as crianças; Que, estas nunca comentaram nada a respeito; Que, a declarante informa que
Pedro aparentemente se comportava como “um pai normal”; Que, na data de ontem perto da
hora da declarante ir trabalhar, 07:00h, Pedro chegou na casa desta e pediu para ficar lá com
as crianças; Que, a declarante deixou, e foi trabalhar; Que, a declarante foi em casa ao meiodia almoçou com as crianças; Que, Pedro já havia ido embora; Que, por volta de três horas,
quando a declarante estava novamente retornando para o serviço Pedro voltou para a casa
desta e pediu para ficar com as crianças; Que, a declarante chegou em casa após o serviço
21:30h, e Pedro estava lá, sendo que ele disse que só estava esperando a declarante para ir
embora; Que, quando ele foi embora, o filho da declarante Guilherme e seu amigo Allan
perguntaram se a declarante havia deixado Pámela com ou sem roupa; Que, Allan perguntou
13
Referindo-se a Boletim de Ocorrência registrado dias antes do outro por ela também comunicado.
40
para declarante “ô Gabi tu deixou a Pâmela de calcinha, meia-calça e calça jeans?” sendo que
a declarante perguntou: “deixei porquê?”; Que, então Guilherme e Allan se olharam e Allan
disse “eu conto ou tu contas?”, sendo que a declarante relata que suas pernas amoleceram
neste momento e perguntou as crianças “o que gente?”; Que, Allan começou a contar que
Guilherme havia pego Pámela sem a parte debaixo da roupa e Pedro, pelado de manhã cedo
por volta de 07:00h; Que, Guilherme então contou que acordou para ir ao banheiro, e pegou o
“pai”(referindo-se a Pedro), sem a parte de baixo da roupa e Pámela também; Que, Guilherme
disse “o “pai” perguntou onde eu ia, sendo que eu respondi que iria ao banheiro, então ele
mandou que eu fosse e voltasse rápido, virasse pro canto e dormisse”; Que, Guilherme
obedeceu o “pai”; Que, a declarante informa que a família dormia toda no mesmo cômodo, as
crianças em um colchão e o casal no outro; Que, Pámela nada comentou com a declarante mas
aparentava estar muito assustada; Que, hoje pela manhã Pedro apareceu novamente na casa da
declarante dizendo que havia ido tomar café com as crianças; Que, a declarante falou que iria
levar Pámela no médico por causa de um problema que a criança está no couro cabeludo;
Que, a declarante saiu com a menina e disse que iria em um local no qual ela deveria contar
tudo que aconteceu com ela, sendo que a menina mordeu a manga da camisa mostrando-se
nervosa; Que, a declarante indagou se o pai havia feito algo com ela, sendo que a criança
passou a morder mais forte a camisa, então a declarante disse “conta filha não precisa ter
medo a mãe não vai brigar com você”, então a criança contou “o pai me acordou e tirou a
minha calça, depois pediu para eu chupar o pinto dele, e depois ele colocou o pinto na minha
perereca”; Que, a criança disse que não era a primeira vez, e que com essa, era a segunda vez;
Que, Pámela disse que (03) três dias viu Guilherme e Hélio “chupar o pinto do pai”; Que,
Paola disse que o pai disse para ela não contar nada para ninguém e que se ela não contasse
“ele iria dar dinheiro e comprar coisas para ela”; Que, a declarante informa “aos prantos” que
também já foi vítima de violência sexual por parte do pai e do padrasto, dos (07) sete aos (11)
onze anos de idade, e sofreu muito por ser desacreditada pela família, e que se soubesse o que
Pedro fez, já o teria denunciado na mesma hora; Que, relata que não sabia que tinha “um
monstro” dentro de casa; Que, a declarante relata que foi ao 54º DP de Matança, com Pámela
e a criança relatou todo o acontecido para Delegada e para a Escrivã; Que, foi acionado o
Conselho Tutelar, e quando a declarante estava indo para casa de sua amiga com o Conselho
Tutelar e Pâmela encontrou Pedro no caminho; Que, conversaram e após a declarante dizer
que havia levado a criança no médico e este ter constatado que “ele havia feito mal para
criança” Pedro começou a chorar e passou a se questionar sobre o que devia fazer se entregar
ou sumir; Que, ele acabou decidindo se entregar e pagar pelo que fez; Que, a Polícia Militar
foi acionada e Pedro foi levado até a Central de Polícia e após conduzido à esta Delegacia
Especializada para os procedimentos cabíveis; Que, a declarante relata que Pámela está com a
região anal “roxa” e a região genital “vermelha”; Que, a criança foi levada ao IML para
exames assim como os outros dois filhos da declarante; Que, a declarante informa ainda que
ontem pela manhã por volta 09:30h, possivelmente após cometer o ato, Pedro apareceu na
padaria onde a declarante trabalha acompanhado de Pâmela e fez um gesto de “cortar o
pescoço”; Que, a declarante perguntou se ele iria matá-la e ele respondeu que sim; Que, a
declarante relata que desde dezembro Pedro “cismou que a declarante tem amante” e que vai
matá-la por causa disto; Que, a declarante relata que Pedro a cada mês, “arruma” um amante
diferente para ela, “cisma com uma pessoa de cada vez”, chegando a agredi-la fisicamente,
sendo que ela acha que estas cismas dele são por causa do uso freqüente da droga.
Em se tratando do interrogatório de Pedro, constam as seguintes passagens:
41
Que, o interrogado informa que é usuário de cocaína e etilista; Que, o relacionamento do casal
sempre foi muito turbulento devido ao vício do interrogado; Que, o interrogado informa que
por diversas vezes sua ex-companheira pediu para que este se internasse para tratamento da
dependência química, porém este nunca quis, pois, achava que podia “sair dessa sozinho”;
Que, informa que agora está num estágio que não consegue mais largar o vício; Que, o
interrogado informa que quando está sob o efeito da droga e do álcool fica transtornado não se
recordando do que faz; Que, o interrogado relata que está separado de sua ex-companheira há
aproximadamente (03) três meses; Que, o interrogado está morando na casa da irmã de sua
esposa; Que, o interrogado trabalha das 07:30h à 18:00h; Que, a ex-companheira do
interrogado trabalha até às 21:30h; Que, o interrogado cuida das crianças à noite até esta
chegar do serviço; Que, o interrogado alega que sua ex-companheira desconfiava que este
usava droga mas não tinha certeza; Que, um dia o flagrou consumindo a referida substância,
sendo este o motivo da separação; Que, o interrogado alega nunca ter consumido a droga
diante dos filhos; Que, novamente indagado, o interrogado afirma que “não recorda de muita
coisa quando está drogado”; Que, o interrogado informa que na quarta-feira à noite saiu e
quando retornou por volta de 07:00h de quinta-feira, para casa da irmã de sua ex-companheira
esta já estava cadeada e não conseguiu entrar; Que, então o interrogado se dirigiu a casa de
sua ex-companheira que estava indo trabalhar naquele horário 07:10h; Que, o interrogado
pediu para ficar na casa, sendo que sua ex-companheira permitiu, e em seguida ela foi
trabalhar; Que, o interrogado ficou em casa sozinho com as crianças e logo após sua esposa
ter ido para o trabalho, acordou sua filha Pâmela (06) seis anos de idade, tirou a roupa da
criança “que pedia para este parar”, praticou sexo vaginal nela, sem uso de preservativo, mas
diz que não chegou a ejacular; Que, o interrogado fez com que sua filha praticasse sexo oral
nele; Que, após cometer o ato, o interrogado relata que “caiu em desespero e pediu desculpas
a sua filha”; Que, indagado o interrogado afirma não se lembrar se chegou a praticar sexo anal
com a criança; Que, indagado o interrogado não recorda se alguma vez já cometeu atentado
violento ao pudor contra seus filhos e nem de ter pedido que estes praticassem sexo oral nele;
Que, o interrogado contou, na data de hoje, o acontecido para sua ex-companheira que
registrou Boletim de Ocorrência na 54ª Delegacia de Matança; Que, questionado, o
interrogado diz não se recordar de ter pedido para que a criança não contasse nada para
ninguém ou ter oferecido dinheiro para esta; Que, indagado quanto à ameaça de morte feita a
sua ex-companheira o interrogado afirma que fez o gesto relatado no Boletim de Ocorrência,
porém para ele mesmo pelo ato que praticou, sendo que afirma que foi mal interpretado por
ela; Que, o interrogado neste momento relata estar imensamente arrependido do ato cometido;
Que, o interrogado após conversar com sua ex-companheira achou melhor se entregar então a
PM foi acionada e após ser levado ao 54º Delegacia de Matança, foi encaminhado a esta
Delegacia Especializada visto que os fatos ocorreram nesta Cidade de Florianópolis.
Não há nenhuma menção a encaminhamento para tratamento de dependência química
de Pedro, ou tratamento psicoterapêutico a Guilherme no procedimento em que figura como
autor. Ou seja, ao autor, adulto ou adolescente, responde-se apenas com a produção de provas
que possam incriminá-lo, e não com uma intervenção que possa, garantindo seus direitos,
auxiliá-lo. É interessante, ainda nesta direção, apontar que o sofrimento psíquico de
Guilherme parece ser, pelo menos até o momento, maior que o de Antônio e Marcelo; porém,
nem o encaminhamento ao Serviço de Atendimento Psicológico é feito, quando o adolescente
é autor.
42
Nesta direção, pode-se trazer, em complemento a esta análise sobre a prática policial, a
precária ênfase que a própria legislação traz para a possibilidade de que medidas protetivas
sejam aplicadas ao adolescente, em resposta a sua conduta. Senão veja-se os seguintes artigos
do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 98 – As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos
reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III – em razão de sua conduta (grifo meu).
Talvez ao adolescente com prática infracional pudesse ser aplicadas as seguintes
medidas sócio-educativas, sendo que a autoridade policial poderia solicitar ao Conselho
Tutelar e/ou magistrado a aplicação das mesmas. Afinal, quem é autoridade competente para
aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente?.
Art. 101 – Verificada qualquer das hipóteses previstas no Art. 98, a autoridade competente poderá
determinar, entre outras, as seguintes medidas:
[...] II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
[...] IV – inclusão em programa comunitário ou oficial, de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou
ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e
toxicômanos
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança14 também é categórica neste
aspecto; especialmente, no Art.40, que trata da infração de leis penais. O texto:
3 – Os Estados Partes buscarão promover o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e
instituições específicas para as crianças de quem se alegue ter infringido as leis penais ou que sejam
acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido, e em particular:
[...] b) a adoção, sempre que conveniente e desejável, de medidas para tratar dessas crianças sem
recorrer a procedimentos judiciais, contanto que sejam respeitados plenamente os direitos humanos e as
garantias legais.
4 – Diversas medidas, tais como ordens de guarda, orientação e supervisão, aconselhamento, liberdade
vigiada, colocação em lares de adoção, programas de educação e formação profissional, bem como
alternativas à internação em instituições, deverão estar disponíveis para garantir que as crianças sejam
tratadas de modo apropriado ao seu bem-estar e de forma proporcional às circunstâncias e ao tipo de
delito.
Ainda que se encontre possibilidade, no próprio texto da lei, de outros tratamentos que
não o repressivo para o adolescente com prática infracional, é perceptível que a própria
legislação normatiza de forma mais explícita as situações em que a criança e adolescente são
vítimas de violência sexual, pouco dizendo dos casos em que os adolescentes a cometem.
14
Aqui compreendida como todo sujeito menor de dezoito anos.
43
Neste sentido, vê-se o que fala a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança sobre
o assunto:
Art.19
1 – Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais
apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou
tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob
a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2 – Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a
elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às
pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação,
notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos
casos acima mencionados a maus-tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária.
Art. 34
Os Estados Partes comprometem-se a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso
sexual. Nesse sentido, os Estados Partes tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional,
bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir:
a) o incentivo ou a coação para que uma criança dedique-se a qualquer atividade sexual ilegal;
b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais;
c) a exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos.
Por outro lado, é pertinente pensar que Guilherme e seus irmãos não foram ouvidos no
procedimento em que figuram como vítimas, o que fere preceituações do Código de Processo
Penal e Estatuto da Criança e do Adolescente. Talvez tenha havido uma contaminação pelas
representações da Polícia, que talvez assim tenha procedido para não correr o risco de se
deparar com algum dado que confronte as representações maniqueístas da relação entre Pedro
e as mesmas. Pode-se, ainda, pressupor que o fato de não haverem sido ouvidos talvez tenha
tido relação com sua dificuldade em elaborar a violência sofrida. Às vezes é a obrigatoriedade
do silêncio, imposta por representantes da lei, que re-vitimiza.
Parece que a Chapeuzinho Vermelho às vezes torna-se lobo, dependendo, dentre
outras coisas, de como o lenhador-operador de Segurança Pública e Justiça fala com ela.
Dependendo, principalmente, se a boca dele não é muito grande e se seu ouvido não é muito
pequeno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discutiu-se que a criminalização dos crimes sexuais tem sido a regra nas respostas
jurídicas a estes casos. Apontou-se que, mesmo assim, o Direito faz uma seletividade
daqueles que lhe serão mais visíveis, sendo que tal seletividade faz, dentre outras coisas, que
os jovens sejam alvo por excelência de repostas repressivas. Assim, deduziu-se que aos
44
adolescentes com prática infracional análoga a crime sexual o Direito reage de forma
eminentemente repressiva.
Compreendeu-se que uma das formas com que se deram as respostas jurídicas de teor
essencialmente repressiva, no caso dos crimes sexuais, foi a criação de perfis psicológicos e
psiquiátricos que generalizam todos estes casos, entendendo-os todos como sendo de ordem
patológica.
Entendeu-se que uma resposta legal mais eficiente, porque com menos probabilidade
de contribuir para a perpetuação de um ciclo de violência, seria de outra ordem: uma
apropriação garantidora dos conflitos que chegam à esfera jurídica. Propôs-se que isto poderia
se dar, por exemplo, a partir de considerações sobre o inconsciente de seus autores, que
permitiria sair da polaridade patologia-monstruosidade.
Utilizando-se
de
conceitos
psicanalíticos,
discorreu-se
que
a
noção
de
“responsabilidade”, para a Psicanálise, não existe no delinqüente, posto que, com seu ato, ele
procura justamente constituir-se como sujeito. Logo, quando ele atua, ele ainda não poderia
responder por si.
E foi justamente a propósito da noção de “responsabilidade” que se encontrou um
ponto de diálogo entre a Criminologia e a Psicanálise: a responsabilidade de todos os
envolvidos, inclusive os operadores do Direito, em responderem da posição de sujeitos, para
que a atuação delinqüente possa ser re-significada pelo adolescente.
Para falar dos sujeitos operadores do Direito, demarcou-se algumas representações
que, somadas à pretensão de encontrar a “verdade real”, levam a equivocadas traduções
imaginárias dos discursos das partes envolvidas na apuração de um fato. Concluiu-se que não
escutar o não-dito dos discursos presentes na esfera jurídica pode fazer com que a única
verdade que conste nos autos seja a dos operadores do Direito, sedentos de vingança e de
proteção daqueles representados como “naturalmente puros”. Uma verdade que impede, e isto
é fundamental destacar, que a verdade inclusive da própria vítima apareça.
Com fundamento em noções psicanalíticas, fundamentou-se a noção, citada
anteriormente, de que a delinqüência não diz necessariamente de uma patologia.
Compreendeu-se que a delinqüência é, em alguns casos, inclusive uma saída saudável frente a
ambientes devastadores.
A partir dos mesmos conceitos, também se falou que a explicação dos casos em que a
violência juvenil dá lugar à delinqüência propriamente dita deve ser buscada não apenas nos
adolescentes, mas também em aspectos familiares e sociais, destacando-se algumas
características da cultura brasileira contemporânea. Abordou-se que os aspectos sociais
45
chegam a ser até mais influentes, posto que é próprio da adolescência buscar no universo
social maior a possibilidade de elaboração de perdas existentes no âmbito familiar. Logo,
estes teriam um papel fundamental no resgate ou não do adolescente de sua história familiar.
Quanto a estes aspectos sociais, definiu-se como sendo, basicamente, tanto privações
radicais como rechaços à falta. Em ambos os casos, haveria uma dificuldade do adolescente
que já sofre carências no ambiente familiar elaborar as limitações próprias ao humano, e,
portanto, desenvolver-se psiquicamente.
Por fim, tecendo considerações sobre como historicamente o Direito apropriou-se de
noções “psi” a respeito dos crimes sexuais, refletiu-se que algumas concepções moralizantes,
maniqueístas, destes crimes podem ter decorrido da constatação de que nem todos os casos
refletem uma perda ou alteração da consciência. Propôs-se que a Psicanálise poderia
contribuir, dizendo que o humano, mesmo não doente, não precisa abdicar de sua humanidade
para cometer maldades.
A partir do estudo de caso, constatou-se que a Polícia, na instrução de Autos de
Apuração de Ato Infracional, pouco fala dos antecedentes pessoais dos autores. Quanto à
personalidade, antecedentes policiais/judiciais e motivos da infracional e conduta da vítima,
parecem só ser analisados quando permitem corroborar os princípios de que o adolescente é
periculoso, age por motivo torpe (maldade) e a conduta da vítima (via de regra criança) foi
plenamente passiva.
Refletiu-se que a precária “oitiva” das crianças pode, inclusive, ser um fator revitimizador, podendo, aliás, colaborar para que à sucessão de traumas esta criança responda,
quando adolescente, com práticas infracionais análogas a crimes sexuais.
Após apontar a precariedade com que a própria legislação nacional e internacional
prevê a aplicação de medidas protetivas a estes casos, sugeriu-se que a autoridade policial
contribua para que a resposta judicial seja outra que não a repressão, salientando outros vieses
na instrução do Auto de Apuração de Ato Infracional que não aquele que corrobora as
asssociações adolescente-algoz e criança-vítima, e que encaminhe os autores e suas famílias a
atendimentos interdisciplinares.
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