1 HERMENÊUTICA COMO ARTE DE OUVIR Notas Sobre Direito E

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HERMENÊUTICA COMO ARTE DE OUVIR
Notas Sobre Direito E Estética
Hermeneutics As Art Of Listening
Notes About Law And Aesthetics
Mariana Pimentel Fischer Pacheco∗
Sumário: 1. Introdução: cultura jurídica e concretização do direito; 2. Hermenêutica e
escuta; 3. Estética em Gadamer: tempo e escuta; 4. Considerações finais: cultura
jurídica tecnicista e perda da capacidade de ouvir; 5. Referências bibliográficas.
RESUMO
Neste trabalho procuraremos, a partir da hermenêutica de Heidegger e Gadamer,
compreender o fenômeno jurídico tal como acontece na pós-modernidade.
Especificamente, investigaremos os limites e possibilidades de um direito que aparece
como técnica de decisão de conflitos e, nesse sentido, repetição; contrapondo-o a
exploração estética que, dentro da perspectiva hermenêutica, é o lugar do novo, de um
encontro originário com a verdade. Para uma compreensão profunda do fenômeno
jurídico é preciso aprender a reformular perguntas ao invés de repetir compulsivamente
padrões já, desde sempre, assimilados. A arte de fazer perguntas, legado de Platão,
envolve receptividade, sensibilidade para deixar as coisas se mostrarem a partir delas
mesmas. É preciso aprender a ouvir. E é na estética gadameriana que encontramos o
sentido mais autêntico de escuta, intrinsecamente conectada à negatividade da
experiência hermenêutica. A conformação artística está aí, como ela mesmo, rompendo
com projetos de construção e, por outro lado, com antecipações e projeções de sentido;
faz se mister voltar sempre e de modo renovado à conformação, este eterno retorno deve
ser compreendido como um ato permissivo, como “deixar a conformação falar”.
Impõem-se as questões: como se dá a escuta de textos jurídicos na era da técnica? O que
a tradição jurídica é incapaz de ouvir?
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Doutoranda pela UPE e bolsista da CAPES
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Palavras-chave: HERMENÊUTICA – ESCUTA – ESTÉTICA
ABSTRACT
This work seeks to understand, through Heidegger`s and Gadamer`s hermeneutcs, the
concretization of law on a postmodernist environment as a phenomenon with a
happening structure. It will investigate the limits and possibilities of the event of law as
a technique of decision and, in this mode, repetition; in contrast to a aesthetic
exploration that, agreeing with the hermeneutic view, is the place where what is
authentically new can emerge. For a deeper understand of the phenomenon is necessary
to learn how to reformulate questions instead of repeating compulsively patterns. The
art of formulating questions, taught by Plato, involves being receptive, sensitive to let
the things speak by themselves. We ought to learn how to listen. It is in Gadamer´s
aesthetics that we will find what is listening, in its most authentic sense, connected to
the negativity of the hermeneutic experience. The artistic conformation is there, as
itself, frustrating projetcts and anticipations of meaning; it is crucial to always came
back, in a renew mode, to the conformation, the return must be understood as an
permissive act, something that will let the “conformation speak”. Questions appear: on
the age of technique, how do we hear juridical texts? What the juridical tradition make
us incapable of hearing?
Keywords: HERMENEUTICS – LISTENING – AESTHETICS
1. Introdução: cultura jurídica e concretização do direito.
Este trabalho procura realizar uma crítica ao direito como acontece na
modernidade, ao direito-técnica, bem como especular, de maneira bastante
despretensiosa, sobre possíveis espaços (epistemológicos ou práticos) de conexão entre
direito e estética (falaremos em uma atividade artístico-estética na falta de uma única
palavra que una os aspectos produção e apreciação de uma obra). Nosso principal
referencial é a hermenêutica de Heidegger e Gadamer
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Como artifício didático, tentaremos, aqui, fazer um contraponto entre estética e
técnica; mas, com todas as ressalvas, pois estamos cientes da armadilha metafísica que
subjaz a toda oposição radical. Assim, optamos por, na maior parte das vezes, atribuir
ao verbo ser (com “s” minúsculo) um sentido metafórico
- fraco, se preferir –
(RICOEUR, 2000: 14) já que, desse modo, é possível fazer uso de definições da
linguagem natural sem que estas sejam delineadas com o rigor da ontologia clássica
(que pretendemos desconstruir). Tal estratégia nos permite desfazer dualismos radicais
dentro de uma linguagem que não se articula sem dissociações. Ademais, no que diz
respeito ao problema específico que enfrentamos, tentar operar uma oposição radical é
um equívoco ainda maior, pois técnica e estética tem uma origem grega comum: techne
(HEIDEGGER, 2001: 16-18).
A dogmática, tal como acontece na modernidade, não é apenas o que aparece:
fixação de respostas no texto da norma. Oculta, de outro lado, a fixação um modo de ser
e se relacionar com o fenômeno jurídico que conforma respostas e rechaça determinadas
perguntas. Em contraposição ao metodologismo e a cultura dogmática, Gadamer prefere
dar primazia à pergunta, que é propulsão para o aberto.
Não há método que ensine a arte de perguntar, o que se deve fazer é levar a sério
as perguntas que simplesmente surgem, impõem-se. Para Gadamer, a arte da dialética é
a arte não suprimir o outro, mas verdadeiramente o ouvir e é também a arte de manter
perguntas (GADAMER, 2002:474-480). O enrijecimento de opiniões já, desde sempre,
postas nos impede de perguntar; infantiliza, por não desafiar a autoridade anônima da
tradição e não deixar ver o novo. A experiência hermenêutica é movimento, é o fluxo de
uma conversação com o texto, o bom intérprete deve se colocar numa posição submissa
e permitir que o texto se imponha, e assim realmente o diga algo: o texto deve colocar
perguntas, que devem desfazer o intérprete de suas opiniões prévias e o empurrar para o
aberto.
“A negatividade da experiência implica a pergunta. Na verdade, o que nos move
a fazer experiências é o impulso daquilo que não se submete às opiniões préestabelecidas. É por isso que o próprio perguntar consiste mais num sofrer que num
agir. A pergunta se impõe; chega um momento em que não podemos mais fugir delas,
nem permanecer aferrados à opinião corrente” (GADAMER, 2002: 478).
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Eis o razão do desprezo platônico à doxa e o potencial liberado pela
hermenêutica para ir além da tradição.
Ao invés de persistir presos a compulsão de responder perguntas já sempre
formuladas, antes de ir adiante nas construções que forjam o labirinto do discurso
jurídico, é preciso voltar ao início e relembrar o que foi esquecido. Para a hermenêutica
um discurso que não põe em jogo a questão do ser, ainda que referendado pelo
procedimento, flutua no vácuo da mera articulação do consenso.
É como se os cortes epistemológicos modernos (notadamente da estratégia de
purificação kelseniana), demandados e recursivamente corroborados pela cultura
tecnicista, tivessem destituído o intérprete do direito de perguntar; assim, a clausura no
método e na técnica leva à ocultação de questões sobre o próprio intérprete e sobre sua
relação com a tradição.
Gadamer mostra que a compreensão, interpretação e, ainda, aplicação
conformam um processo unitário (2002a: 407) do qual participa um intérprete que sofre
os efeitos da história e que impreterivelmente trará o texto para a situação atual, da qual
não pode se esquivar; o que põe em xeque por um lado o normativismo e por outro,
também, o decisionismo. O desvelamento da força da tradição, sempre presente no ato
de compreensão, abre uma clareira que nos permite enxergar o modo de ser do jurista
(operador ou estudioso) e a atmosfera em que está imerso. Vem à tona o papel da
doutrina – que teve sua importância encoberta, sobretudo, pelo formalismo jurídico - na
tarefa de concretização do direito, marcada pela cultura (e contracultura) jurídica que
fala através de cada estudioso. Abandonamos a estratégia normativista de redução do
direito a norma, por percebermos a importância de mostrar a produção do direito como
realidade histórica intimamente conectada a constituição ontológica temporal do
Dasein. Só ultrapassaremos tradição quando pudermos observá-la.
2. Hermenêutica e escuta.
“Pois o homem só se torna livre num envio, fazendo-se ouvinte e não escravo do
destino” (HEIDEGGER, 2001: 28).
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A hermenêutica propõe um abandono do subjetivismo e um retorno à questão do
ser, o referencial não pode mais ser aquilo que surge na consciência, é preciso abrir-se à
coisa ela mesma. Heidegger fala em um fazer que leva ao conhecimento na medida em
que é capaz de dar ouvidos a uma mensagem (MAZA, 2005: 130).A tarefa do
hermeneuta envolve sensibilidade e a arte de escutar, deixar-se afetar pela coisa, que
tem brilho próprio. Para romper com o padrão da filosofia de um sujeito encerrado na
consciência, Gadamer usa a estética:
“Em lugar disso, não perguntamos à experiência da arte o que ela mesma
acredita ser, mas o que ela é na verdade e o que é sua verdade, ainda que não saiba o
que é e não possa dizer o que sabe; da mesma forma como Heidegger perguntou pelo
que é metafísica, em contraposição ao que ela pensa de si mesma. Na experiência da
arte vemos uma genuína experiência, que não deixa inalterado aquele que a faz, e
perguntamos pelo modo de ser daquilo que é assim experimentado. Assim, podemos ter
esperança de compreender melhor qual é a verdade que nos vem ao encontro ali”
(2002a: 153).
A estética é o ponto inicial que vai conduzir a explicação ontológica
gadameriana. Um contato inautêntico com uma obra de arte, um texto ou até mesmo a
opinião de um amigo não se deixar afetar: depois de uma operação de seleção por
interesse e relevância encaixa-se o novo dentro de um modelo prévio. Daí, atitudes do
tipo, “já sei onde se quer chegar” ou
“não vou dar muita atenção, pois não me
interessa”. O falante preso a esse modo de ser comumente não está consciente da
própria surdez, pode, inclusive, colocar-se numa situação comunicativa que se aproxima
da ideal nos termos habermasianos e, ainda assim, não se deixar afetar verdadeiramente
pelo outro. A autêntica escuta não pode ser garantida pelo método, pois participantes
enclausurados na mesmice (ou em um modo de ser inautêntico), por mais “bem
intencionado” que possam estar, não se aproximam.
A verdadeira abertura ao outro é arte. Implica abandono dos referenciais internos
da consciência e admissão de algo que não se pode não compreender, um outro
irredutível, radicalmente diferente. É “experimentar o tu realmente como um tu” nas
relações humanas e daí o autêntico encontro e a permissão que alguém realmente nos
diga algo. E impulso para sair do Mesmo:
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“Abertura para o outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar
disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja outro que o faça
valer contra mim” (GADAMER, 2002a: 471-472).
De maneira bastante simplória, eis a diferença entre a “inclusão do outro”
habermasiana e a “experiência do tu” que exige Gadamer.
Grande obstáculo à escuta é a arrogância. Segundo Heidegger a cura para o
dogmatismo arrogante é ter presente a própria finitude, a morte; Gadamer, por sua vez,
prefere realçar a finiturde da consciência que jamais alcançará um saber absoluto. A
admissão dos próprios limites leva a autêntica abertura, em que se confere dignidade ao
outro: opiniões diferentes importam quando se sabe da impossibilidade de alcançar a
verdade última.
Mas não só o dogmatismo dos metafísicos, também o tecnicismo torna o ser
inaudível. Onde impera a técnica não se discute fins, apenas meios, a preocupação é
qual estratégia usar para melhor atingir objetivos pré-determinados. O sujeito-tecnocrata
está mergulhado no senso comum e só compreende em termos do familiar, repete por
compulsão clichês, brocardos e frases feitas. É, assim, incluído, porém suprimido pela
cultura de consumo. A autenticidade só é alcançada pela decisão de fazer presente o
fim, carregar, a todo instante, a própria mortalidade.
Para Heidegger o excesso e informações e a agilidade que demanda a sociedade de
consumo e da técnica são obstáculos ao pensamento; Heidegger enxerga aí um Dasein
decaído, perdido em meio ao falatório, a ambigüidade, curiosidade; na incessante
procura por novos produtos e informações é dominado pelo tecnicismo (HEIDEGGER,
2000:227-242). Quanto mais familiar nos é uma linguagem, mais incapazes somos de
ouvir suas palavras (RORTY, 1999: 50-53) e incapacidade de ouvir e pensar as próprias
palavras significa a impossibilidade de projetar alternativas para si: a hermenêutica
pretende tornar audíveis as palavras mais elementares.
“A tarefa é aprender a ouvir o que quer falar na arte e teremos que nos
confessar que aprender a ouvir quer dizer antes de tudo elevar se acima de todo mal
ouvir e ver mal , massificantes, que uma civilização mais poderosa em encantos se
dispõe a divulgar”( GADAMER, 1985:57).
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Uma conversa, a leitura de um texto, de um modo geral, uma experiência é mais
interessante quando é capaz de afetar de tal maneira que desestabiliza, provoca vertigem
e um potencial rompimento com o referencial anterior. Daí a hermenêutica da finitude
colocar ênfase nas experiências negativas, que são aquelas que frustram, mostram a
insuficiência do pensamento: tarefa constante e sem termo é a de adequar o pensamento
às experiências. O apego aos resultados universalizados de acontecimentos sempre
únicos e particulares faz com que esqueçamos do autêntico processo de experiência, que
é, segundo Gadamer, essencialmente negativo. Não tem sua consumação na formação
de universalidades é sim o eterno movimento de negação e destipificação de universais
(GADAMER, 2002a: 461-464).
Emerich Coreth ensina que “a compreensão no diálogo somente se fará se
olharmos juntos para a coisa” (1973: 103). Há uma unidade original entre os elementos
apenas, figurativamente separados, pois não se pode falar em separação entre sujeito e
mundo; “Olhar juntos” é remissão a intersubjetividade e ao papel da tradição; já o não
perder de vista “a coisa” é a marca diferenciadora da hermenêutica no ambiente pósmoderno (a expressão “coisa mesma” é herdada da fenomenologia de Hursserl). Formase um círculo, ou melhor, um espiral: cada conteúdo novamente apreendido ou
experiência incorporada, acaba por modificar o todo (o mundo para o sujeito), constituise, então, uma nova pré-compreensão que determinará a próxima compreensão1
CORETH, 1973: 102). A relação entre pré-compreensão e compreensão é circular e
dinâmica, um elemento pressupõe o outro e, ao mesmo tempo, impulsiona a progressão.
Não há como fugir da “pré”, no entanto, a compreensão pode abrir-se à coisa submeterse à sua alteridade, para tanto é preciso entrar no círculo de maneira adequada: com
consciência da força que a história exerce.
3. Estética em Gadamer: tempo e escuta.
A hermenêutica mostra-se como jogo cujo movimento envolve, leva os
jogadores; projetos subjetivos sucumbem à dinâmica peculiar do jogar que tem
resultados imprevisíveis. No ato da compreensão de um lado há o hermeneuta que sofre
os efeitos da história, e do outro, a coisa fala por si própria e precisa ser escutada. A
riqueza do processo está no seu desenrolar, quando o intérprete se vê obrigado a
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perguntar-se sobre os próprios preconceitos. A história efetiva sempre condiciona a
compreensão, mas de outro lado, o compreendido tem também luz própria
impulsionando a criação de novas convicções: a compreensão precisa ser um “fazer da
própria coisa, um fazer que o pensamento padece” (GADAMER, 2002a: 621).
“O importante é, portanto, isso: deixar ser o que é. Mas deixar ser não quer
dizer: repetir apenas o que já se sabe. Não na forma de uma vivência da repetição. Mas
determinado pelo próprio encontro, deixar-se ser o eu foi para aquele que se é”
(GADAMER,1985: 75).
Mas por que, então, falar em estética? E o qual a relação entre estética e
hermenêutica?
Gadamer usa a estética para conduzir a ruptura com a filosofia centrada no sujeito e na
consciência, sem, no entanto negar a herança que carrega de Hegel e do idealismo
alemão: Hegel mostra a orientação de sentido que há em toda experiência da arte bem
como a concilia com a consciência histórica. A cisão surge, sobretudo, em função da
tentativa idealista de ultrapassar a facticidade da experiência estética, ascendendo ao
campo da teoria. Para Gadamer o erro está na abstração das peculiaridades da
experiência e na sua decorrente redução a uma “pura integração de sentido” (1998: 81 e
1985: 40). A hermenêutica não se permite passar por cima da resistência da
conformação artística.
A filosofia é posta pelo idealismo em uma posição mais elevada que a arte, já
para a hermenêutica da finitude a experiência artística conduz a um encontro original
com a verdade, tem primazia, portanto, em relação à idéia alcançada por seu intermédio.
Gadamer, enxerga o enclausuramento em universais, como conceitos e projetos préestabelecidos, como um obstáculo à sensibilidade estética: estabilizar o sentido dessa
maneira é um ato de violência, uma imposição que não permite a autêntica escuta.
A representação artística não corresponde a uma construção planificada pela
consciência intencional, alcança sua formação a partir de dentro - por esse motivo
Gadamer considera mais apropriada a expressão “conformação” (traduzida também
como figura ou configuração) artística, ao invés de “obra” de arte. A conformação está
aí, como ela mesmo, rompendo com projetos de construção e, por outro lado, com
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antecipações e projeções de sentido. É preciso sempre voltar mais uma vez e de modo
renovado à conformação, este eterno retorno deve ser compreendido como um ato
permissivo, de deixar-se afetar, deixar a configuração falar (GADAMER, 1998:84). Em
contraposição a tese idealista de que o belo artístico é aparência sensória da idéia,
Gadamer propõe que a conformação artística não é um mero suporte de sentido ou
veículo que pode ser substituído e tende a desaparecer após realizada sua tarefa de
transmissão: é um mundo que carrega uma riqueza inesgotável.
A crítica se dirige a violência da redução a idéia, mas, por outra via, quer
escapar do risco de se perder na pura imediatez. A continuidade no tempo faz parte da
experiência estética, tratá-la como descontinuidade também exige um ato de abstração.
A obra de arte não pode ser compreendida como veículo, é, no entanto,
representação. A pergunta que se segue é: qual a natureza de tal representação, se esta
não se reduz a transmissão e se não há distinção entre representante e representado?
Gadamer traz, então, a discussão sobre a natureza do símbolo, remetendo-nos ao
banquete de Platão e ao discurso de Aristófanes, para quem o amor é como a união de
duas metades antes separadas, cuja unidade será reconstituída no reencontro (PLATO,
1995: 22). A metáfora auxilia a explicação sobre a natureza do simbólico,
compreendido como complemento, acréscimo de ser: “O simbólico não apenas remete
para a significação, mas torna-a presente: ele representa significação” (GADAMER,
1985: 54-55). É a tese da indissociabilidade entre representado e representado: não se
trata de substituição ou transmissão, o representado ele próprio se apresenta na obra de
arte, como sua encarnação. Mais tarde Gadamer mostrará que fato do ser da obra se dar
na representação não é uma peculiaridade da arte, mas todo ente é uno com sua
representação, é linguagem que enuncia um sentido ( 2002a: 615).
A autêntica escuta da obra pressupõe tempo. È necessário se permitir inundar
pela experiência, deixar-se envolver por sua alteridade e fazê-lo de um modo, cada vez,
diferente, na medida em que a dinâmica do jogo se impõe. Incapacidade para escuta tem
a ver com pressa, com não se dar tempo para o encontro, correria típica da cultura da
técnica em que respostas pré-fabricadas já estão dadas - curiosidade, falatório e
ambigüidade impõem-se como modo de ser do Dasein decaído. Não há um tempo ou
um modo de relacionar-se com a obra já estabelecidos, é preciso que da experiência da
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arte nasça uma forma e um tempo peculiar de permanecermos nela. Para Gadamer esse
“demorar-se na experiência” se caracteriza por não se tornar monótono. “A essência da
experiência do tempo da arte é que aprendemos a deter-nos. Esta é talvez a
correspondência finita a nossa medida, do que se chama eternidade” (GADAMER,
1985: 67- 71).
Ao demorar-se na obra vem a negatividade da experiência da arte, negatividade
que remete ao volume inesgotável da configuração, a riqueza de dimensões e
referências sutis que surgem de maneira diversa em cada encontro. O volume não pode
ser compreendido como mero adereço, fungível, acessório em relação ao sentido da
obra, deve ser tomado como uma dimensão experiencial da compreensão estética
(GADAMER, 1998: 89 e GADAMER, 2002b: 405-418). No jogo e na estética há um
movimento para além das próprias antecipações, que segue em direção ao imprevisível
e à novidade. Tal impulso para fora, permite a autêntica escuta do outro - a partir de
seus próprios referenciais - ao invés de obediência aos ditames da consciência: a
hermenêutica exige submissão à alteridade.
5. Conclusão: cultura jurídica tecnicista e perda da capacidade de ouvir.
Tanto a teologia como o direito chamam a atenção de Gadamer como exemplos
paradigmáticos da tradição hermenêutica que evoca o retorno ao texto: para sanar mal
entendidos ou perplexidades a recomendação é voltar ao documento escrito e procurar o
seu sentido. A questão é: como se dá a escuta de textos jurídicos na modernidade?
A pergunta nos leva a enxergar o direito como acontecimento compreensivo e
temporal, põe em jogo o papel do intérprete e da tradição que fala através dele. Ao
explicitar a unidade do processo de compreensão, interpretação e aplicação, a
hermenêutica abre uma clareira sobre o pano de fundo metafísico que subjaz a
pressuposição da neutralidade do intérprete bem como da purificação do objeto jurídico,
fazendo emergir em sua radicalidade o problema da conformação da cultura jurídica.
Denuncia, assim, o fetiche normativista de redução do direito a norma (e esquecimento
de sua temporalidade) como resultado da tradição tecnicista conformadora de intérpretes
incapazes de fazer as perguntas corretas e atuar fora do círculo de standards, clichês e
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brocardos jurídicos. Ao final, a hermenêutica exige mais do que a redefinição do objeto
da investigação, determina uma renovação do próprio conceito de objeto como algo
separado do sujeito e do mundo.
A estratégia formalista de abstração da concretude do fenômeno jurídico e
reconstrução de problemas em termos normativos - reduzindo as soluções às que podem
ser deduzidas a partir desse referencial – surge de mitos da modernos e, recursivamente,
os alimenta. Por sobre esse misto de metafísica e técnica que está na base da tradição
jurídica soergue-se um intérprete sem consciência do “pré” e que, portanto, entra no
círculo hermenêutico de maneira equivocada. Diferentemente de Heidegger, Gadamer
não almeja abandonar a tradição, mas aponta para a necessidade de ir além: para não se
estagnar na articulação do consenso, é preciso entrar no círculo de maneira adequada, o
intérprete precisa não só olhar sua própria constituição temporal, para a finitude, mas
fazer presente, ser-para-a-morte.
Levar à sério o papel da tradição e a cultura jurídica nos faz ver também que o
problema não pode ser reduzido à inclusão dos excluídos (como se repete no jargão
político), é preciso modificar o modo de ser do indivíduo que é incluído, mas suprimido
pela cultura de consumo e da técnica. O risco para o qual alertamos é que mesmo o
debate honesto e informado (legitimado pela teoria da ação comunicativa) não consiga
romper com o padrão de discurso tecnicista (evidente que Habermas responderia que o
combate ao tecnicismo deve se dar pelo discurso, crendo ele na libertação pela
linguagem). O sujeito-tecnocrata está tão emaranhado em meio a consensos, a
expectativas, que passa a expressar nada mais que isso, torna-se um mero reprodutor e
consumidor de produtos e idéias descartáveis; não está aberto para ouvir o texto e ouvir
o problema concreto. A inclusão como inserção em uma tradição não é suficiente, é
preciso abertura ao novo, ao que ultrapassa consenso e tradição.
A cultura jurídica em prol do valor segurança tem escolhido sistemas morais
vinculados ao tecnicismo e procedimentalismo, imunizando-se contra à estética:
legítima é a decisão fria que obedece rituais e standards. O operador do direito, na maior
parte do tempo, trabalha no modo reconhecimento, procura encaixar novas experiências
em modelos pré-fixados e quanto mais bem sucedida for essa tarefa, mais célere e bem
fundamentadas serão as decisões.
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Tais observações parecem nos conduzir à conclusão de que é preciso banir
procedimentos do direito e deixar o juiz praticar livremente a sua arte. Mas não é aí
onde queremos chegar. Falar em escuta e em estética ao contrário de liberar o operador
do direito do vínculo normativo, abre possibilidades e põe em questão a sensibilidade
do intérprete em relação ao texto. O sentido normativo é dinâmico e conformado
contextualmente, deixar-se afetar pelo texto significa ir de encontro a modelos préestabelecidos que enrijecem seu sentido. De outro lado, é preciso também deixar que o
problema concreto imprima sua marca, ao contrário de deter sua expressividade,
enquadrando-o rapidamente e irrefletidamente num molde abstrato já, desde sempre,
delineado. O jurista preso em demasia a manipulação de conceitos perde o ânimo e a
vivacidade do investigador e, passa a ser repetidor, torna-se burocrata.
6. Referências Bibliográficas
Livros
CORETH, Emerich: Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1973.
GADAMER, Hans-Georg: A Atualidade do Belo – A arte como jogo símbolo e festa.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
___: En Conversación com Hans-Georg Gadamer – Hermenéutica, Estética, Filosofia
Práctica. Madrid: Editorial Tecnos, 1998.
___: Verdade e Método I - Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica .
Petrópoles: Vozes, 2002(a).
___: Verdade e Método II – Complementos e Índice. Petrópoles: Vozes, 2002(b).
HEIDEGGER, Martin: Ser e Tempo - Parte I. Petrópolis: Vozes, 2000.
____: Ensaios e Conferências.Petrópolis, Vozes, 2001.
Plato: Symposium. Oxford: Oxford University Press (Digital Classics), 1995.
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RORTY, Richard: Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1999.
RICOEUR, Paul: A metáfora viva. São Paulo, Loyola: 2000.
Artigo
MAZA, Luis Mariano de la: Fundamentos de la filosofia Hermenêutica: Heidegger e
Gadamer. Teologia y Vida, Vol. XLVI (2005), p 130.
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