Lições chinesas Por Carlos Lessa 04/12/2013 O olhar macroeconômico sobre a China se arregala com as taxas de crescimento de dois dígitos que prevaleceram nos últimos 20 anos. Neste ano, a expansão do PIB será de 7%; a produção industrial se acelerou nos últimos meses e a inflação permanece sob controle. A globalização bem-sucedida das exportações chinesas saltou de 1% do comércio mundial para mais de 14% neste ano. A China, tendo superado a crise mundial, sabe que essa é estrutural, coisa que o governo brasileiro parece não suspeitar. O Brasil insiste em considerar que a globalização prosseguirá e favorecerá nosso país; continua endividando as famílias para manter a atividade econômica, convive com voos de galinha no crescimento e é complacente com a medíocre taxa de investimento. A primeira lição chinesa mostra que é necessário um projeto nacional de desenvolvimento das forças produtivas e sociais que seja ajustado às características geopolíticas e geoeconômicas. Na plenária de dezembro de 1978, Deng Xiaoping consolidou seu poder como reformista da Revolução Cultural e abriu caminho para o que hoje os chineses chamam de "economia socialista de mercado". Os chineses assimilaram as lições soviéticas: é possível, com planejamento hipercentralizado, instalar a indústria básica e mudar radicalmente a estrutura das forças produtivas e da organização social. Porém, uma vez dado esse grande salto, torna-se crescentemente difícil avançar. Uma economia planificada deve ter claro o projeto nacional e a evolução social, porém necessita do mercado como um elemento complementar de organização da atividade econômica e social. Ciência e tecnologia são a chave para o futuro e os chineses sabem que a revolução cultural estará ligada à inovação Ao invés de assumir os feitos econômicos e sociais chineses das últimas décadas em busca de lições profundas, os neoliberais do mundo (e obviamente seus epígonos brasileiros) festejam os anúncios de reformas na China como uma demonstração da "superioridade do mercado". Em recente relatório (festejado pelos neoliberais, antes considerado básico, passou a ser qualificado como decisivo), o presidente Xi Jinping afirma que dependerá menos de exportações e necessita ampliar o mercado interno de bens de consumo. O Partido Comunista comunicou que "é preciso que os agricultores participem de forma igualitária e desfrutem dos frutos da modernização" (eu agregaria os que permanecem direta e indiretamente na zona rural e os neourbanizados). Alguns neoliberais disseram que essas novas reformas representam, para a China, o equivalente à Revolução Industrial inglesa do século XVII e à arrancada do início do século XX que converteu os EUA em polo da economia mundial. Em vez do "socialismo de mercado", os neoliberais pensam que a China optou pelo "capitalismo de mercado". Ignoram a tradição chinesa de considerar que uma liderança unificada é capaz de conduzir a burocracia em seus diversos escalões a seguir suas vontades. Em 221 AC, surgiu o Estado centralizado na China, que assumiu, desde então, a indispensável regulação do uso das águas. O PC chinês sabe que a quebra do Estado centralizado se derivou de revoluções camponesas, desde a sucessão da dinastia Tang que, no século X foi sucedida por um período de fraturas, passando pelos Song, pelos Yuan, derrotados pela revolta camponesa que inaugura a Dinastia Ming, sucedida pela Ching, que, por sua vez, assistiu as revoluções camponesas dos Tai Ping e Boxers. O PC chinês sabe que conquistou o poder pelo apoio popular camponês. A pressão japonesa levou à organização do PC chinês: em 1931, o Japão ocupa a Manchúria e a vitória nacional camponesa contra o Japão sinaliza o PC como poder central e unificador; o mandarim é substituído pelo burocrata do PC (1949). Do multissecular controle das águas até a atual busca de liderança nas forças produtivas mundiais, no governo de partido único não há nenhuma possibilidade de contestação que não seja ampla rebelião popular. Creio ser preventiva ante a inquietação camponesa a concessão de autorização para mais filhos e deslocamentos da família camponesa com seu patrimônio (resultado da venda do lote rural) para as cidades. A criação do mercado de terras rurais abre caminho para uma nova transformação agrícola. A produção chinesa agrícola utiliza 115 milhões de hectares (50% irrigados) e 300 milhões de hectares de pastagens. Enquanto a produção industrial cresce exponencialmente, a agricultura chinesa tem aumentado sua produção em torno de 1%. É óbvio que o chinês rural quer melhorar de vida, pois recebe em média apenas um terço da renda do trabalhador urbano. É estimável o deslocamento de mais 350 milhões de chineses para a rede urbana. A lógica da prevenção colocará como "um exército industrial de reserva" esta enorme massa de ex-camponeses. É fácil imaginar que a mão de obra urbana barata continuará e que não prosperará a luta independente sindical. O ritmo dessa transição será um teste administrativo para o planejamento chinês, que sofrerá ajustes. Para a consagração do "socialismo de mercado", é preciso ter claro que os chineses não abriram nem abrirão mão das estatais nos setores de energia, transporte e comunicações. A indústria pesada, notadamente siderurgia e metalurgia, permanecerá estatal. É chave para o futuro o sistema de ciência e tecnologia, e os chineses sabem que a revolução cultural, no futuro, estará ligada à cultura da inovação. Até agora, seletivamente, puderam absorver muitas das dimensões do sucesso americano. As filiais americanas, atraídas pelas vantagens da força de trabalho chinesa, barata e disciplinada, permitiram ou estão permitindo que futuros "clones" ganhem total maturidade mediante o acesso ao gigantesco sistema estatal de ciência e tecnologia (a nossa Embraer já em seu clone chinês). Obviamente as filiais americanas na China inundaram o mercado mundial e, em especial, o americano. O déficit comercial da potência hegemônica caminhou associado à ampliação da dívida pública, enquanto a China se converteu na maior detentora (fora dos EUA) de títulos do Tesouro americano. Mantendo o yuan colado ao dólar, a China vai, progressivamente, desfrutando das vantagens da moeda-chave. O Brasil, com sua pretensão de ser "celeiro do mundo", cada vez mais exportador de alimentos e matérias-primas, assistindo passivamente a desnacionalização e o enfraquecimento das cadeias produtivas internas, torna-se cada vez mais periférico em relação ao eixo EUA-China. É óbvio que nenhum eixo é eterno e qualquer acordo só é bom "enquanto dure". A rapidez com que a China evolui para a autossuficiência tecnológica reforça seu poderio militar e passa a apostar suas cartas no seu próprio mercado interno urbano. Sabemos o que é ser periférico e a baixa fecundidade das lições americanas. Devemos estudar a China, não para copiá-la, mas sim para, conhecendo-a, não sermos reciclados com a ideologia neoliberal falida, que busca sua "revenda" com a "economia de mercado" chinesa. Todos os interesses brasileiros voltados para a primária exportação e afastados do desenvolvimento das forças produtivas nacionais estarão veiculando lições chinesas capengas. Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES; escreve mensalmente às quartas-feiras. [email protected]