anais do x simpósio nacional de direito constitucional

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ANAIS DO X
SIMPÓSIO NACIONAL
DE DIREITO
CONSTITUCIONAL
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
4
ABDCONST
ACADEMIA BRASILEIRA DE DIREITO CONSTITUCIONAL
Publicação Oficial da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDCONST
Rua XV de Novembro, 964 – 2º andar
CEP: 80.060-000 – Curitiba – PR
Telefone: 41-3024.1167 / Fax: 41-3027.1167
E-mail: [email protected]
Ficha Catalográfica
Simpósio Nacional de Direito Constitucional da ABDConst ( 10. : 2012 : Curitiba, PR)
Anais do [Recurso eletrônico] X Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst. Curitiba, PR : ABDConst., 2013.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-65693-01-1
Modo de acesso: http://www.addconst.com.br
Direito constitucional – Brasil – Congressos.
I. Academia Brasileira de Direito Constitucional. II. Título.
CDD ( 22ª ed.)
342.81023.
Endereço para correspondência:
Editor responsável:
Ilton Norberto Robl Filho
E-mail: [email protected].
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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CONSELHO EDITORIAL
Editor Responsável
Ilton Norberto Robl Filho
Coordenador de Pesquisa e dos Grupos de Estudos Nacionais da Academia
Brasileira de Direito Constitucional, Professor Adjunto da UFPR e da UPF, VicePresidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR, Secretário Geral da
Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR, Doutor, Mestre e Bacharel em
Direito pela UFPR.
Editor Assistente
Rafael dos Santos-Pinto
Graduado em Direito pela UNESP, Mestrando pela UFPR.
Conselho Editorial
Marco Aurélio Marrafon
Doutor e Mestre em direito do estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Estudos doutorais na Università degli Studi di ROMA TRE - Itália. Professor da
disciplina de Direito e Pensamento Político na graduação, mestrado e doutorado em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Presidente da
Academia Brasileira de Direito Constitucional.
Sandro Marcelo Kozikoski
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre e Doutor em
Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor
Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (FND) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Coordenador da Pós-Graduação em Direito e Processo Civil da
Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
Francisco de Assis do Rego Monteiro Rocha Júnior
Doutor e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná Pós-graduação em direito penal e criminologia, em
convênio através do Instituto de Criminologia e Política Criminal. Professor do
magistério superior. Coordenador da Pós-Graduação em Direito e Processo Penal
da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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APRESENTAÇÃO
Em 24 a 26 de maio de 2012 a Academia Brasileira de Direito Constitucional
realizou a décima versão de seu Simpósio. O evento manteve padrões de excelência
e internacionalidade que vieram a se esperar do Simpósio. Consagra-se, assim, um
dos principais fóruns de discussão do Direito Constitucional e Direitos Fundamentais
no País.
No curso do evento foram expostos os trabalhos finais dos Grupos de
Estudos do ABDConst. Os Grupos de Estudos são comunidades de pesquisa
acadêmica que se filiam ao ABDConst e em parceria desenvolvem pesquisas de
ponta sobre o Direito Constitucional e Direitos Fundamentais.
Nestes anais do X Simpósio Publicamos os textos finais dos Grupos de
Estudos, apresentando uma madura e profunda pesquisa condizente às diretrizes do
Constitucionalismo contemporâneo e do Estado Constitucional de Direito.
Ilton Norberto Robl Filho
Coordenador dos Grupos de Estudos do ABDConst
Rafael dos Santos-Pinto
Assistente da Coordenação dos Grupos de Estudos do ABDConst
Programa
X SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
CONSTITUIÇÃO E AS NOVAS CODIFICAÇÕES
Dias: 24, 25 e 26 de maio de 2012
Local: Teatro Guaíra - Auditório Bento Munhoz da Rocha Netto
Endereço: Rua Conselheiro Laurindo, s/nº, na cidade de Curitiba - Paraná
24 de maio - QUINTA-FEIRA
07h30 Credenciamento
08h30 Cerimonia de Abertura e Posse da Nova Diretoria ABDConst - Gestão 2012/2016
09h00 às 10h00 - CONFERÊNCIA DE ABERTURA
Tema: Novas codificações: novas perspectivas para a efetividade da Constituição
DALMO DE ABREU DALLARI
Presidente de Honra da Academia Brasileira de Direito Constitucional
Prof. Titular Aposentado e Emérito USP
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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10h15 às 12h00 - PRIMEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Política de Combate à Corrupção
ELIANA CALMON
Corregedora Nacional de Justiça
Enfoque: Formas de Combate à Corrupção
PEDRO TAQUES
Senador PDT
Enfoque: Reforma Política e Combate à Corrupção
14h30 às 16h15 - SEGUNDA CONFERÊNCIA
Tema: Teoria da Constituição e Interpretação
EDGAR CORZO
Doctorado en Derecho Público en la Universidad Autónoma de Madrid;
Presidente del Instituto Iberoamericano de Direito Processual Constitucional
Enfoque: La reforma constitucional en un Estado Federal
LUÍS ROBERTO BARROSO
Professor Titular da UERJ; Membro Catedrático da ABDConst
Enfoque: Interpretação Constitucional, casos difíceis e criação Judicial do Direito
MARCO AURÉLIO MARRAFON
Doutor em Direito pela UFPR
Enfoque: Novas perspectivas para o federalismo brasileiro
16h30 às 18h15 - TERCEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Eficácia e efetividade dos Direitos Fundamentais
FLÁVIO PANSIERI
Mestre USP; PUC-PR e ABDConst; Presidente Executivo da ABDConst
Enfoque: Eficácia e Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais
ALVACIR ALFREDO NICZ
Prof. da UFPR e PUC-PR
Enfoque: O alcance da efetividade dos direitos fundamentais face as crises de
governabilidade
ZULMAR FACHIN
Doutor em Direito Constitucional - UFPR
Enfoque: Funções do Estado e Direitos Fundamentais no século XXI: o guardião
das promessas
18h30 às 20h15 - QUARTA CONFERÊNCIA
Tema: Perspectivas do Direito e do Processo Penal
JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO
Doutor Universidad Complutense de Madrid; Prof. Titular da UFPR;
Prof. e Membro Catedrático ABDConst
Enfoque: A Constituição e o Novo Código de Processo Penal: Desventuras do PLS 156/09
MARIA ELIZABETH TEIXEIRA ROCHA
Ministra do Superior Tribunal Militar
Enfoque: Os novos desafios de Direito Penal Militar
GERALDO PRADO
Doutor e Mestre Universidade Gama Filho
Enfoque: Interceptação das comunicações telefônicas: o controle de
constitucionalidade das medidas de execução
25 de maio - SEXTA-FEIRA
08h45 às 10h30 - QUINTA CONFÊRENCIA
Tema: Tributação e Crise Econômica
HELENO TAVEIRA TÔRRES
Doutor PUC-SP; Prof. Associado da USP
Enfoque: Constituição e Tratados Internacionais em Matéria Tributária: Princípio da não
discriminação e outras garantias
MORIS LEHNER
Pós-doutor pela Universidade de Munique
Enfoque: Can Taxation according to a concept of International Tax
Neutrality support Endeavours to solve the Global Financial Crisis?
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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(Pode a tributação de acordo com o conceito de neutralidade tributária internacional amparar
diligências para resolver a Crise Financeira Global?)
JAMES MARINS
Pós-Doutor em Direito Público pela Universidade de Barcelona (ES)
Enfoque: Crises e Impostos sob um Prisma Histórico
10h45 às 12h30 - SEXTA CONFERÊNCIA
Tema: O novo direito do trabalho brasileiro
ALDACY RACHID COUTINHO
Doutora UFPR; Prof. e Membro Catedrático ABDConst
Enfoque: O Universo da CLT, quando a matéria distorce o espaço e o tempo
CARLOS HENRIQUE BEZERRA LEITE
Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e Desembargador Federal do TRT/ES
Enfoque: O Direito do Trabalho na perspectiva dos Direito Humanos
BENTO HERCULANO DUARTE
Juiz do Trabalho do TRT da 21ª Região e Professor Honorário da ICA-PERU
Enfoque: Flexibilização, desregulamentação ou evolução: perspectiva de
reforma do sistema trabalhista à luz da Constituição Federal
14h30 às 16h15 - SÉTIMA CONFERÊNCIA
Tema: Desenvolvimento e Energia: uma Praxis Constitucional
JOAQUIM FALCÃO
Doutor pela Universidade de Genebra - Suiça
Enfoque: Regulação e Resolução de Conflitos na área de energia
LUIS ALBERTO BLANCHET
Professor Titular da PUC-PR e Membro Catedrático da ABDConst
Enfoque: Direito da Energia e Desenvolvimento
ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO
Doutor PUC-SP; Prof. Titular UFPR e Unibrasil; Membro Catedrático ABDConst
Enfoque: Soluções administrativas como mecanismo de desenvolvimento
16h30 às 18h15 - OITAVA CONFERÊNCIA
Tema: Processo Civil como instrumento da Democracia
BRUNO DANTAS
Membro do Conselho Nacional de Justiça
Enfoque:
ALEXANDRE FREITAS CÂMARA
Desembargador do TJRJ; Membro da International Association of Procedura Law
Enfoque: O Princípio Constitucional do contraditório como garantia de
participação na formação dos resultados do Processo Civil
CASSIO SCAPINELLA BUENO
Doutor e Livre Docente em Direito Processual Civil pela PUC-SP
Enfoque: O amicus curiae e o novo direito processual civil brasileiro
18h30 às 20h15 - NONA CONFERÊNCIA
Tema: Economia como elemento de garantia de Direitos
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE
Doutor PUC-SP; Titular UFPR e Unibrasil; Membro Catedrático ABDConst
Enfoque: Constituição, Direitos Fundamentais, Máquina Constitucional e
Direito Econômico
FÁBIO TOKARS
Doutor pela UFPR e advogado
Enfoque: Direito, Economia e Desenvolvimento
GUSTAVO BINENBOJM
Master of Laws (LL.M) pela Yale Law School (EUA); Professor Adjunto de
Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
Enfoque: Direito Constitucional Regulatório: a regulação da economia
entre Direito e Democracia
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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26 de maio - SÁBADO
08h45 às 10h30 – DÉCIMA CONFERÊNCIA
Tema: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais: uma adequada releitura
INGO WOLFGANG SARLET
Doutor e Pós-Doutor Universidade de Munique - Alemanha
Prof. PUC-RS; Juiz de Direito
Enfoque: Interlocução entre Direitos Humanos e Fundamentais
VLADIMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA
Doutor PUC-SP e Presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Direito (CONPEDI)
Enfoque: Os Direitos Humanos e a funcionalização dos direitos
FLÁVIA PIOVESAN
Profª. Doutora de Direito Constituição da PUC-SP
Enfoque: Constituição e o Direito Internacional dos Direitos Humanos:
A Emergência de um novo paradgma Jurídico
10h45 às 12h30 - DÉCIMA PRIMEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Liberdade de Expressão, Comunicação e Direitos Fundamentais
LUIS ALBERTO DAVID DE ARAÚJO
Prof. Titular da PUC-SP- ITE; Prof. e Membro Catedrático ABDConst
Enfoque: A Extensão do Dano a Imagem, a Intimidade e a Vida Privada:
Critérios de Determinação
DANIEL SARMENTO
Pós-Doutor na Yale Law Scool; Procurador Regional da República
Enfoque: Liberdade de Expressão, Democracia e a Constituição de 88
14h30 às 16h15 - DÉCIMA SEGUNDA CONFERÊNCIA
Tema: Direito Eleitoral
NÉVITON BATISTA GUEDES
Doutor Universidade de Coimbra, Professor da ABDConst
Enfoque: Os Juízes eleitorais e a judicialização da política
CLAUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO
Doutor em Direito – UERJ
Enfoque: A inconstitucionalidade do financiamento das campanhas por
empresas
LUIZ VIANA QUEIROZ
Presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral e Reforma Política
do Conselho Federal da OAB
Enfoque: Lei da Ficha Limpa: impossibilidade de violação da coisa
julgada mesmo após a posição do STF
16h30 às 18h15 - DÉCIMA TERCEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Relendo as Escrituras Constitucionais
GILMAR FERREIRA MENDES
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Enfoque: A Constituição Federal de 1988 e a necessidade de atualização
dos códigos
LENIO LUIZ STRECK
Pós-Doutor - Universidade de Lisboa; Prof. Titular da UNISINOS; Prof. e
Membro Catedrático da ABDConst
Enfoque: Precisamos falar sobre o direito...: Das ilusões perdidas a uma
Jurisdição sem qualidades (EIGENSCHAFTEN)
18h30 às 19h45 - CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO
Professor Catedrático da Universidade de Coimbra e Membro
Correspondente da ABDConst
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
10
SUMÁRIO
O DELITO DE ESTUPRO APÓS O ADVENTO DA LEI 12.015/09:
QUESTÕES CONTROVERTIDAS EM FACE DAS GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS
CRIME OF RAPE AFTER THE ADVENT OF LAW 12.015/09: CONTROVERSIAL
ISSUES VIS À VIS CONSTITUTIONAL GUARANTEES
José Renato Martins ....................................................................................... 13
EFEITO VINCULANTE E SEGURANÇA JURÍDICA: NOVOS RUMOS DA
JURISPRUDÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
STARE DECISIS, BINDING EFFECTS OF PRECEDENTS AND LEGAL
CERTAINTY – NEW DIRECTIONS OF JURISPRUDENCE IN THE BRAZILIAN
LEGAL SYSTEM
Edimara Sachet Risso / Tamara Paola Leite / Clarice Mendes Dal Bosco /
Dangley Alípio / Laura Gabriela Dalmarco Ghen / Nayani Valéria Magnani
Raul Bertani de Campos ................................................................................. 45
PODER DE DECIDIR X SEGURANÇA JURÍDICA: UM OLHAR FIRME
PARA O EXERCÍCIO JUDICANTE
POWER OF DECISION VS. LEGAL SECURITY: A FIRM LOOK TO THE JUDICIAL
PRACTICE
Rogério Montai de Lima .................................................................................. 85
NEOCONSTITUCIONALISMO, HERMENÊUTICA E PÓS-POSITIVISMO:
UMA CRÍTICA A PARTIR DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO
NEOCONSTITUTIONALISM, HERMENEUTICS AND POST-POSITIVISM: A
CRITIQUE FROM THE STRUCTURALIST THEORY OF LAW
Nestor Castilho Gomes / Aldo Jaison de Souza / Evelyn Gancheiro / Fernando
Tessari / Ivan Preuss / Kamilla S. Melim / Leandro Luís Piccolo ................... 111
UMA CRÍTICA À OBJEÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA AO CONTROLE
JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE
CRITIQUE TO THE CONTRAMAJORITARY OBJECTION TO THE JUDICIAL
CONTROLL OF CONSTITUTIONALITY
Luís Fernando Sgarbossa / Geziela Jensen / Alexandre Almeida Rocha / Igor
Sporch da Costa / Mariana Morsoletto Carmo / Bárbara Cristina Kruse /
Camila Salgueiro da Purificação Marques / Diego Ramires Bittencourt /
Gabriel Roman Souza / Hassan Paracat ....................................................... 132
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
11
BRASIL, O QUE SE ESPERA DO PRÉ-SAL? RETROSPECTIVA
CONSTITUCIONAL DO PETRÓLEO E ANÁLISE DO NOVO MARCO
LEGAL
BRAZIL, WHAT TO EXPECT OF THE “PRE-SALT”? CONSTITUTIONAL
RETROSPECTIVE OF THE OIL AND ANALYSIS OF THE NEW LEGAL
FRAMEWORK
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira ....................................................... 152
JUSTIÇA E DEMOCRACIA: UMA RETOMADA DO DEBATE ACERCA DO
CONTROLE DEMOCRÁTICO SOBRE AS DECISÕES JUDICIAIS
JUSTICE AND DEMOCRACY: A REVISTING OF THE DEBATE OVER THE
DEMOCRATIC CONTROL OVER JUDICIAL DECISIONS
Marcus Firmino Santiago / Pablo Malheiros da Cunha Frota / Rafael Freitas
Machado / Ramiro Freitas de Alencar Barroso .............................................. 164
O PODER NORMATIVO E REGULADOR DAS AGÊNCIAS
REGULADORAS FEDERAIS: ABRANGÊNCIA E LIMITES
NORMATIVE AND REGULATORY POWERS OF FEDERAL REGULATORY
AGENCIES: SCOPE AND LIMITATIONS
Elton Dias Xavier / Elizangela Santos de Almeida ........................................ 200
A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO MILITAR À LUZ
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
THE NECESSITY OF INTERPRETATION OF MILITARY LAW IN THE LIGHT OF
FUNDAMENTAL RIGHTS AND GUARANTEES
Jefferson Augusto de Paula / Carlos Eduardo O-Reilly Cabral Posada / Ranka
Diriángem Sandino da Gama / Robson Luiz Selleti / Eduardo Henrique Titão
Motta / Marinson Luiz Albuquerque ............................................................... 240
A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ENTRE A JUDICIALIZAÇÃO E O
ATIVISMO: PERCURSOS PARA UMA NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO
CONSTITUTIONAL JURISDICTION IN THE CROSSROADS OF JUDICIALIZATION
AND ACTIVISM: THE PATHS FOR A NECESSARY DISTINCTION
Rafael Tomaz de Oliveira / Bruno Costa de Faria / Cristiane Maria de Lima
Curtolo / Leandro Teodoro / Michele Seixas Veludo / Joaquim Eduardo
Pereira .......................................................................................................... 266
A COMPETÊNCIA AMBIENTAL DOS ENTES FEDERATIVOS PÓS LEI
COMPLEMENTAR 140/11 EM FACE DO ARTIGO 23 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL NO CASO DA USINA DE BELO MONTE
ENVIRONMENTAL COMPETENCE OF FEDERAL ENTITIES AFTER LC 140/11
ON ARTICLE 23 OF THE FEDERAL CONSTITUTION THE CASE OF THE
HIDROELETRIC OF BELO MONTE
Ana Cláudia da Silva Carvalho / Ellen Cristine Santos Ferreira / Eduardo
Biacchi Gomes ............................................................................................. 307
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
12
José Renato Martins
O DELITO DE ESTUPRO APÓS O
ADVENTO DA LEI 12.015/09:
QUESTÕES CONTROVERTIDAS
EM FACE DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
CRIME OF RAPE AFTER THE ADVENT OF LAW 12.015/09: CONTROVERSIAL
ISSUES VIS À VIS CONSTITUTIONAL GUARANTEES
José Renato Martins1
Resumo
Este trabalho foi realizado com o objetivo de apresentar e discutir a estrutura analítica
do delito de estupro contido no Código Penal brasileiro, datado de 1940,
particularmente, após a alteração legislativa ocorrida com o advento da Lei nº 12.015,
de 7 de agosto de 2009, partindo-se do registro de considerações preliminares sobre o
crime em questão, analisando-se sua evolução histórica no ordenamento jurídicopenal nacional e os elementos que o compõem, bem como as questões controvertidas
sobre o mesmo, sob a ótica das garantias constitucionais, concluindo-se, ao final,
reflexiva e criticamente sobre esse tema, de extrema importância para o direito penal.
Palavras-chave:
constitucionais.
Delito
de
estupro.
Questões
controvertidas.
Garantias
Abstract
This work was carried out with the aim of presenting and discussing the analytic
structure of the crime of rape typified in the brazilian Criminal Code of 1940, particularly
after the legislative amendment brought with the advent of Law nº 12.015 of August 7,
2009, initiating with preliminary considerations about the crime in question, and
analyzing its historical developments in legal and national criminal and the elements
that compose it, as well as the controversial issues about the topic, under the optics of
constitutional guarantees, the paper concludes, at the end, reflective and critically over
this theme, of utmost importance to criminal law.
Keywords: Crime of rape. Controversial issues. Constitutional guarantees.
1
Doutor em Direito Penal pela USP - Universidade de São Paulo/SP e Mestre em Direito
Constitucional pela UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Professor nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação da UNIMEP e da ABDConst. Coordenador do Curso de Direito do
Campus Taquaral (Piracicaba/SP) da UNIMEP. Membro do Conselho Editorial da Revista Juruá Curitiba/PR. Membro do Corpo Editorial da Revista da ABDConst - Curitiba/PR. Advogado e ExDelegado de Polícia de Carreira do Estado de São Paulo.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
13
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
Sumário: Introdução. 1. Apontamentos sobre a evolução histórica do delito de estupro no
ordenamento jurídico-penal brasileiro. 2. Estrutura típica atual do delito de estupro:
questões controvertidas sob a ótica das garantias constitucionais. Considerações
finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O tema proposto está relacionado diretamente com o Direito em sua
constante evolução, particularmente, com o direito penal, mas também, com a
própria sociedade.
A evolução do Direito não ocorre de maneira contemporânea às
transformações cotidianas da sociedade, na medida em que busca, exatamente, a
solução dos novos conflitos.
Assim, sem a pretensão de analisar as diversas concepções, conceitos e
fundamentos, poder-se-ia entender o Direito como o instrumento utilizado pelos
seres humanos para regular a vida em sociedade.
De fato, hodiernamente, predomina o entendimento entre aqueles que se
dedicam ao estudo das ciências jurídicas de que ubi societas ibi jus, isto é, não há
sociedade sem Direito, conclusão a que se pode chegar a partir da verificação de
que a função exercida pelo Direito na sociedade é ordenadora, isto é, “de
coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar
a cooperação entre pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre seus
membros”. (CINTRA et al., 2011, p. 25)
Conforme lecionam os professores Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada
Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2011, p. 25), o motivo para tal
conclusão está:
Na função que o Direito exerce na sociedade: a função ordenadora, isto é,
de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo
a organizar a cooperação entre pessoas e compor os conflitos que se
verificarem entre seus membros.
Miguel Reale (2009, p. 2), além de se posicionar nesse sentido, explica que
também não há como existir atividade social sem que ali esteja presente o Direito:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
14
José Renato Martins
Podemos, pois, dizer, sem maiores indagações, que o Direito corresponde à
exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois
nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção
e solidariedade. É a razão pela qual um grande jurista contemporâneo,
Santi Romano, cansado de ver o Direito concebido apenas como regra ou
comando, concebeu-o antes como “realização de convivência ordenada”.
De “experiência jurídica”, em verdade, só podemos falar onde e quando se
formam as relações entre os homens, por isso denominadas relações
intersubjetivas, por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí a sempre
nova lição de um antigo brocado: ubi societas, ibi jus (onde está a
sociedade, está o Direito). A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi
societas, não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de
forma e garantia jurídicas, nem qualquer regra jurídica que não se refira à
sociedade.
Concluindo que não existe sociedade sem Direito, tampouco Direito sem
sociedade, torna-se possível verificar que, nessa estreita correlação, os avanços em
qualquer um dos segmentos modificarão, por consequência, o outro.
Analisando a História da humanidade e, em especial, a do Direito, constatase que apenas uma classe seleta e mínima de pensadores que enxergaram à frente
de seu tempo, prevendo novas situações que poderiam surgir e necessitariam de
solução jurídica. Entre eles, destaca-se Emmanuel-Joseph Sieyès, pensador francês
que, já na primeira Assembleia Nacional Constituinte francesa, quando ainda se
discutia a sua primeira constituição escrita e cujo objetivo principal era limitar o então
poder absoluto do rei para constituir uma nova França, previa a necessidade da
criação de mecanismos para o controle das futuras modificações do texto
constitucional. (BARROS, 2012)
Porém, esses poucos seletos, assim como Sieyès, raramente conseguiam
ser ouvidos pela maioria de seus pares, tendo as suas importantes contribuições
sido reconhecidas, posteriormente, apenas por seus sucessores.
Isso confere razão à regra de que a modificação do Direito acontece após e
em função das transformações sociais. Tanto é assim que há previsão, na legislação
brasileira, como, por exemplo, na Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo
4º, de outros institutos jurídicos diversos da lei, visando a solução de conflitos, sem
previsão normativa, como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
As transformações percebidas na sociedade, sejam de seus costumes ou
conceitos, ou até mesmo aquelas impostas por fenômenos naturais, entre tantos
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
15
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
outros fatores que a modificam, são a mola propulsora da evolução do Direito, o
qual, na sua essência, deve ser compreendido como um processo de adaptação
social, como destaca Paulo Nader (2011, p. 19):
As instituições jurídicas são inventos humanos que sofrem variações no
tempo e no espaço. Como processo de adaptação social, o Direito deve
estar sempre se refazendo, em face da mobilidade social. A necessidade de
ordem, paz, segurança, justiça, que o Direito visa atender, exige
procedimentos sempre novos. Se o Direito se envelhece, deixa de ser um
processo de adaptação, pois passa a não exercer a função para a qual foi
criado. Não basta, portanto, o ser do Direito na sociedade, é indispensável o
ser atuante, o ser atualizado. Os processos de adaptação devem-se
renovar, pois somente assim o Direito será um instrumento eficaz na
garantia do equilíbrio e da harmonia social.
O ser humano, embora seja de sua natureza a curiosidade pelo
desconhecido, demonstra grande insegurança diante do novo, daquilo que não tem
o pleno domínio. No mundo jurídico não é diferente. No entanto, como visto, neste
as mudanças são inevitáveis, momento em que surge a necessidade de se adequar
as regras básicas para o convívio em sociedade, com as novas formas de
pensamento e entendimento. É por isso que temas que outrora tiveram grande
relevância, hoje já não mais o tem.
Por outro lado, nem sempre se está preparado para as alterações daquilo
que já se tem o pleno controle e conhecimento, porquanto a insegurança e a
incerteza não são dois dos adjetivos mais admirados pela sociedade, principalmente
em matéria jurídica.
Diante disso, um dos temas mais comentados na atualidade é justamente a
segurança jurídica, consagrada pela disposição constitucional que veda a alteração
da coisa julgada, isto é, fatos que já foram analisados pelo Poder Judiciário, em
regra, não mais comportam discussão.
Essa preocupação foi expressa claramente na Constituição da República do
Brasil, especificamente, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, ao afirmar que “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Analisando essa regra constitucional isoladamente, poder-se-ia ter a
impressão de que a edição de uma nova lei produziria efeitos jurídicos apenas aos
fatos futuros à sua publicação.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
16
José Renato Martins
Contudo, tratando-se de norma penal, assim está disposto na Constituição
Federal brasileira, em seu artigo 5º, inciso XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”.
Está, portanto, consagrado na Constituição Federal o princípio da
retroatividade da lei mais benéfica, também conhecido como favor rei, que prescreve
a extra-atividade da lex mitior, isto é, a aplicação da lei posterior àquela vigente no
momento da prática da infração penal quando esta tolha o caráter delituoso do fato
ou contenha dispositivos mais favoráveis ao agente.
Logo, em matéria penal uma simples modificação legislativa pode trazer
consequências e alterações em entendimentos doutrinário e jurisprudencial já
consolidados, promovendo a rediscussão de casos já decididos, nos quais, por
vezes, o próprio condenado já poderia ter cumprido parcial ou integramente uma
pena privativa de liberdade que lhe havia sido imposta.
A Lei Federal nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, trouxe profundas
modificações nas condutas tipificadas como crimes sexuais, particularmente, nos
delitos sexuais violentos, isto é, aqueles de conotação sexual cometidos mediante o
emprego de violência ou grave ameaça.
Anteriormente à publicação da citada lei, havia no ordenamento jurídicopenal brasileiro vigente dois delitos dessa natureza, cometidos mediante violência ou
grave ameaça: estupro e atentado violento ao pudor, previstos, respectivamente,
nos artigos 213 e 214 do Código Penal.
Após uma leitura preliminar e comparativa desses tipos penais com o novo
texto legal, ter-se-ia impressão de que o propósito do legislador brasileiro, ao editar
essa norma penal, seria conferir maior rigor à punição prevista em abstrato para os
delitos dessa espécie, principalmente pela análise das qualificadoras que agora
integram os parágrafos 1º e 2º do artigo 213 do Código Penal, com a redação que
lhes foi dada pela Lei nº 12.015/09. Contudo, pode não ter ocorrido realmente isso.
Ou, como se diz na expressão popular: “O tiro saiu pela culatra!”.
O legislador reformador unificou as condutas anteriormente tipificadas como
crimes de estupro e atentado violento ao pudor no único tipo legal previsto, agora,
no artigo 213 do Código Penal, denominado tão somente de estupro.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
17
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
A união dessas condutas no tipo penal único do artigo 213 do codex em
questão trouxe relevantes alterações no âmbito do direito penal, já que o novo delito
de estupro passou a ser classificado por muitos estudiosos dessa seara como crime
único.
As consequências dessas alterações são muitas e profundas, tanto em
relação aos casos que já haviam sido julgados em definitivo pelo Poder Judiciário,
como para as futuras práticas delituosas, conforme já mencionado.
Observa-se, desta feita, que a publicação de uma nova lei penal que
promove alterações substanciais no ordenamento jurídico respectivo traz grandes
incertezas quanto a sua adequada interpretação e aplicação, fazendo surgir muitas
controvérsias e divergências em matéria de Direito, dada a sua evidente
subjetividade. Diante disso, apontar tais dúvidas e divergências, bem como as
possíveis soluções para as mesmas, utilizando-se, para tanto, das regras e dos
princípios gerais do direito penal em vigência é de grande valia e relevância.
Nesse contexto, inobstante o estudo contemporâneo das novas normas
editadas, a análise histórica dos tipos penais é de extrema importância, pois a
revogação de uma lei, no âmbito do direito penal, não significa necessariamente a
sua exclusão imediata do ordenamento jurídico.
Com efeito, toda ciência jurídica, assim como qualquer outra, não é o
resultado do trabalho e da pesquisa isolados de uma geração. Ao contrário,
consubstancia-se num patrimônio científico, “pois corresponde à soma das
experiências vividas no passado e no presente. As conquistas científicas de hoje são
acréscimos ao trabalho de ontem”, (NADER, 2011, p. 13) seja criticando-o para a
formulação de uma nova teoria ou simplesmente buscando a evolução do
pensamento anterior.
Por isso, de fato “é impossível dissociar o Direito da História: ambos
caminham juntos, interligados, entrelaçados pelas mais variadas mutações da vida
em sociedade”. (ROLIM, 2010, p. 29)
Para se compreender uma norma jurídica, que representa a soma de todas
as suas precursoras e de todas as transformações da sociedade, mister o estudo da
evolução histórica, tanto da norma, como da sociedade.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
18
José Renato Martins
No Brasil, entretanto, como adverte Vladimir Passos de Freitas (2012), “a
história do Direito ainda é pouco estudada”, sendo raros “os congressos, as
dissertações de mestrado e as teses de doutorado na área”.
Na prática, também em especial no âmbito do direito penal, pouco se vê de
discussões proveitosas, ou seja, falta uma dialética jurídica para a unificação da
jurisprudência pátria. Os precedentes judiciários são utilizados caso interessem às
partes e pouco contestados, com exceção daqueles que se dedicam a tal no mundo
acadêmico. Com efeito, chama a atenção o dissenso em matéria penal no Superior
Tribunal de Justiça pátrio. Encontrar decisões similares entre as 5ª e 6ª Turmas, por
exemplo, torna-se um dos afazeres mais difíceis, pois o que impera é o
antagonismo. Não que isto não seja bom, já que também tem o seu lado positivo por
expressar os fundamentos da democracia e independência dos juízes. O que
incomoda na verdade é a percepção de que pouco se tem discutido e avançado
para unificar o entendimento jurisprudencial. A Acusação, valendo-se dos
precedentes da 5ª Turma do referido Tribunal Superior, limita-se apenas em neles
fundamentar os seus pedidos, ignorando os julgados da 6ª Turma. Já a Defesa, faz
exatamente o contrário. A sensação enfim é a de que não se fala de um Tribunal
Superior, mas sim, de dois.
Diante de tal situação, é imperioso verificar que muitos aqueles que
recorrem ao referido Tribunal Superior, seja pela Acusação, seja pela Defesa, já não
tem mais a preocupação de se emprenhar em discutir o Direito e fundamentar suas
teses, limitando-se, outrossim, a torcer pela distribuição a uma de suas Turmas.
Entretanto, urge destacar a necessidade e a importância de se proceder a
uma reanálise da racionalidade legislativa no ordenamento jurídico-penal brasileiro,
haja vista o direito penal ter assumido e acumulado, frente às diversas falências
sócio-jurídicas do Estado, relevantes funções sociais que até então não lhe eram
peculiares ou naturais, transmutando-se, desta forma, a função jurídica do Código
Penal em subterfúgio último para a manutenção e reafirmação da combalida moral
social; em suma, um verdadeiro "Código da Moral". (DÍEZ RIPOLLÉS, 2003, p. 14)
E, tamanha é a irracionalidade legislativa brasileira concernente à criação de
tipos penais que o Judiciário acaba tendo o ônus de interpretar sistematicamente as
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
19
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
normas dessa natureza, o que desemboca, muitas vezes, em visões diferentes
sobre um mesmo fato. Certamente, esse fato alimenta a existência do citado
antagonismo nas Turmas do citado Superior Tribunal de Justiça.
Nesse diapasão, tendo em vista o direito penal assumir tão relevante função
social no mundo fenomênico, fundamental é que ele retorne à sociedade
proporcional resposta ao que do mesmo se espera, mostrando-se, portanto,
imperiosa a necessidade de que esse ramo do direito reflita a própria racionalidade e
necessidade sociais por meio de leis, as quais, da mesma forma, sejam fruto de um
processo racional de construção.
Todavia, insta frisar que não se trata de uma crítica pura e simples, já que
em um Estado Social e Democrático de Direito, o antagonismo de ideias e
pensamentos é natural, especialmente no universo jurídico. Trata-se, pois, de uma
constatação realizada para fundamentar a necessidade do estudo histórico e da
evolução dos tipos penais no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de que se possa
chegar a um resultado possível de ser considerado satisfatório, mas à luz dos
direitos que fundamentam esse mesmo Estado de Direito.
Diante disso, para uma melhor interpretação da norma penal, visando-se
alcançar aquele resultado, vale registrar a lição de René Ariel Dotti (2011, p. 252),
para quem “o ‘elemento histórico’ permite conhecer melhor a norma em função das
condições e das circunstâncias que, no passado, determinaram a sua elaboração”.
1
APONTAMENTOS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DELITO DE
ESTUPRO NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO
O direito penal antigo antes da promulgação do Código Criminal do Império,
de 1830, isto é, durante o período colonial brasileiro, consubstanciava-se na
aplicação efetiva da legislação estrangeira,2 imperante no território nacional até
então. Tratavam-se dos 143 Títulos do Livro V das Ordenações Filipinas, também
denominadas de Código Filipino.
2
Conforme explica José Salgado Martins (1967, p. 94-95), as Ordenações Filipinas não são
portuguesas e nem brasileiras. Foram promulgadas por um monarca espanhol em 11 de janeiro de
1603 (Filipe III, na Espanha, ou Filipe II, quando rei em Portugal) e, aqui, no Brasil, vigoraram até
16 de dezembro de 1830.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
20
José Renato Martins
Embora nas Ordenações Filipinas não tivesse sido utilizada a rubrica
“estupro”, já havia previsão legal para a conduta delitiva de praticar conjunção carnal
“per força”, a qual era punida com a pena de morte, ainda q ue o autor se casasse
com a vítima.
A propósito, assim descrevia o Título XVIII, do Livro V, do Código Filipino:
Do que dorme per força com qualquer mulher, ou trava della, ou a leva per
sua vontade.
Todo homem, de qualquer stado e condição que seja, que forçosamente
dormir com qualquer mulher postoque ganhe dinheiro per seu corpo, ou seja
scrava, morra por ello.
(...)
1. E postoque o forçador depois do malefício feito case com a mulher
forçada, e aindaque o casamento seja feito per vontade della, não será
relevado da dita pena, mas morrerá, assi como se com ella não houvesse
casado. (Apud PIERANGELLI, 1980, p. 29). Ortografia original
Registra Nélson Hungria, que “desde os mais antigos tempos e entre quase
todos os povos, a conjunção carnal violenta foi penalmente reprimida como grave
malefício”. (HOFFBAUER; LACERDA, 1959, p. 114). Na primeira lei penal
efetivamente aplicada no Brasil – as Ordenações Filipinas –, conforme se pode
observar pela transcrição do Título XVIII, do Livro V, não era diferente. Na punição
do crime de conjunção carnal violenta, que posteriormente veio a ser conhecido pela
denominação de estupro, existia grande rigor, o qual se refletia na sua pena, que era
a capital, subsistindo mesmo no caso de casamento entre autor e vítima. No entanto,
tamanha severidade com o crime de estupro não era estranha para a época; na
verdade, esse era o tratamento punitivo normal para quase todos os delicta carnis,3
o qual se estendia, na verdade, a vários outros crimes4.
3
Cf. nesse sentido: Títulos XIII (Dos que commettem peccado de sodomia, e com alimárias), XIV
(Do Infiel, que dorme com alguma Christã, e do Christão, que dorme com Infiel), XV (Do que entra
em Mosteiro, ou tira Freira, ou dorme com ella, ou a recolhe em casa), XVI (Do que dorme com a
mulher, que anda no Paço, ou entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem,
ou viuva honesta, ou scrava branca de guarda) e XVII (Das que dormem com suas parentas e
affins). (PIERANGELI, 1980, p. 26-28). Ortografia original.
4
Acerca dessa questão, observa Heleno Cláudio Fragoso (2003, p. 70): “A legislação penal do Livro
V era realmente terrível, o que não constitui privilégio seu, pois era assim toda a legislação penal
de sua época. A morte era a pena comum e se aplicava a grande número de delitos, sendo
executada muitas vezes com requintes de crueldade”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
21
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
Com a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808 e a abertura
dos portos brasileiros às nações amigas, segundo previu a Carta Régia de 28 de
janeiro de 1808, nenhuma mudança substancial se verificou na legislação penal em
vigência à época. Na verdade, surgiram pontuais alterações após o retorno de D.
João VI a Portugal, ocasião em que o Príncipe Regente, D. Pedro, legislou sobre a
prisão de criminosos (Decreto de 23 de maio de 1821) e o julgamento de abusos da
liberdade de imprensa (Decreto de 18 de junho de 1822). Tais mudanças, contudo,
refletiram claramente no direito processual penal daquele momento histórico, e não
no penal. (PIERANGELI, 1980, p. 8)
Com a proclamação da Independência e depois do advento da Constituição
do Império do Brasil, mudanças significativas se avistaram para o direito penal da
época, valendo destacar que o artigo 179, inciso XVIII, da Constituição de 1824
determinou a urgente e necessária elaboração de um Código Criminal “fundado nas
solidas bases da Justiça, e Equidade”5.
Vigente a partir de 1830, o Código Criminal do Império do Brasil foi o
primeiro diploma a utilizar a rubrica “estupro” para denominar um crime, muito
embora a mesma não representasse tão somente esse crime em si, isto é,
conjunção carnal forçada, mas sim, outros vários delitos de conotação sexual, o que
fez a doutrina da época repudiar a técnica redacional utilizada6.
O Título II, Capítulo II, Secção I, do Código Criminal brasileiro de 1830
previa, sob a mesma rubrica de “estupro”, os seguintes delitos:
a) defloramento de mulher virgem e menor de 16 anos (artigo 219);
b) defloramento de mulher virgem e menor de 16 anos por quem a tem sob
seu poder ou guarda (artigo 220);
c) defloramento de mulher virgem e menor de 16 anos por pessoa a ela
relacionada por grau de parentesco que não admita dispensa para casamento
(artigo 221);
5
Ortografia original. No que diz respeito ao referido dispositivo constitucional, importante a
observação de Joaquim Augusto de Camargo (2005, p. 139): ”De fato, o art. 179 da mesma
Constituição é um manancial abundantíssimo dos princípios de justiça e equidade, reconhecidos
pelo direito moderno como os únicos que devem servir de apoio às boas leis”.
6
Cf. nesse sentido: Ramos Junior (1875, p. 177); Sidou, (1960, p. 94); Prado (2008, p. 637).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
22
José Renato Martins
d) cópula carnal por meio de violência ou ameaça com mulher honesta
(artigo 222);
e) ofensa pessoa a mulher para fim libidinoso, causando-lhe dor ou mal
corpóreo, sem que se verifique a cópula carnal (artigo 223); e
f) sedução de mulher honesta e menor de 17 anos, praticando com ela
conjunção carnal (artigo 224).
Todavia, a tipificação do estupro propriamente dito, dentre esses crimes, era
a seguinte:
Art. 222. Ter cópula carnal por meio de violencia ou ameaças, com qualquer
mulher honesta.
Penas – de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.
Se a violentada fôr prostituta.
Penas – de prisão por um mez a dous annos. (Apud PIERANGELLI, 1980,
p. 243) Ortografia original.
Interessante também notar, que além de ter abrandado a pena de forma
considerada em relação às Ordenações Filipinas, o Código Criminal do Império
previu ainda a possibilidade de extinção da pena do estupro caso a ofendida se
casasse com o ofensor, conforme o artigo 2257.
A derrubada da Monarquia brasileira, com o consequente nascimento da
República, demandava com urgência um novo Código Penal, eis que os novos
ideais republicanos já não se ajustavam a algumas disposições da época imperial.
Ainda durante o Governo provisório, presidido pelo Marechal Deodoro da
Fonseca, o então Ministro da Justiça Campos Salles incumbiu a João Batista
Pereira, que antes mesmo da proclamação da República já vinha trabalhando em
um novo Projeto de Código Penal, a tarefa de elaborá-lo (Apud PIERANGELLI,
1980, p. 10). Contudo, este diploma legal seria cunhado por Aníbal Bruno (2005, p.
104) de “menos feliz que o seu antecessor”, tamanha “a pressa com que foi
concluído”.
7
“Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos que casarem com as
offendidas”. Apud Pierangelli (1980, p. 244). Ortografia original.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
23
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
A despeito das críticas que lhe foram feitas à época, imperioso é reconhecer
que, quanto ao crime de estupro, o Código Penal de 1890 representou um grande
marco no âmbito do direito penal brasileiro. Com efeito, sob sua égide a
denominação “estupro” foi consagrada e restrita à prática da conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça.
O codex em questão dispunha sobre o crime de estupro no Título VIII,
Capítulo I, da seguinte forma:
Da violencia carnal.
(...)
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena – de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1.º Se a estuprada fôr mulher publica ou prostituta:
Pena – de prisão cellular por seis meses a dois annos.
§ 2.º Se o crime fôr praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a
pena será augmentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa, com violencia,
de uma mulher, seja virgem ou não. Por violencia entende-se não só o
emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas
faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se,
como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e, em geral, os
anesthesicos e narcoticos. (Apud PIERANGELLI, 1980, p. 299). Ortografia
original.
Nota-se, portanto, que o Código Penal de 1890 restringiu à tipificação de
estupro apenas a violência (abuso) carnal contra mulher, esclarecendo no tipo penal
explicativo contido no artigo 269 os conceitos de estupro e violência para fins desse
delito8.
Além disso, insta destacar que o Código Republicano, seguindo a tendência
da evolução do direito penal, tal como já havia ocorrido com as Ordenações Filipinas
8
Relativamente a esses tipos penais explicativos, Chrysolito de Gusmão (2001, p. 88 e 103)
registra suas críticas sobre a atitude que o legislador teve no sentido de não apenas descrever os
elementos componentes do crime de estupro, mas de ir além, para definir o que entendia por
violência. Tal atitude, para o autor, limitou a atuação da doutrina e da jurisprudência para a
construção da técnica e exegese do texto, além do que o legislador o fez “da forma mais
desastrosa, a mais imperfeita, revelando (...) ou um descaso absoluto ou um pasmoso
desconhecimento da tecnologia jurídica, sendo levado (...) a fechar as portas de saída do círculo
fechado em que encerrou o delito e dando (...) lugar às terríveis dificuldades que seremos
forçados a patentear (...). Nosso legislador, que após prefigurar e punir o crime de estupro no art.
268, foi (...) mais além, tendo no art. 269 afastado toda e qualquer veleidade do exegeta para, não
só definir, formal e expressamente, o que considerava crime de estupro, como, outrossim, na
segunda parte do mesmo art. 269 definiu o que compreendia por violência”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
24
José Renato Martins
em relação ao Código Criminal do Império, cominou pena mais branda que os
diplomas anteriores, isto é, previu uma punição com prisão celular, de um a seis
anos.
Em razão dos defeitos e das críticas feitas ao Código Penal da República do
Brasil de 1890, conforme já mencionado, surgiram vários projetos para substituí-lo.
Contudo, o código em questão não foi substituído na íntegra com o passar dos anos,
mas sim, profundamente alterado e acrescido de várias leis penais extravagantes,
com o objetivo de completá-lo. Foi este o motivo da Consolidação das Leis Penais
de 1932, de acordo com René Ariel Dotti (2011, p. 196):
A natural profusão de leis durante o período republicano e as tendências
muito vivas no sentido de se rever o CP de 1890 levaram o Governo a
promover uma consolidação das leis existentes. Havia dificuldades não
somente de aplicação das leis extravagantes, como também de seu próprio
conhecimento.
Na Exposição de Motivos do Decreto nº 22.213, de 14.12.1932, o Chefe do
Governo Provisório admitia o malogro das várias tentativas de reforma do
Código Penal brasileiro “que ora se empreende e ainda tardará em ser
convertida em lei, não obstante a dedicação e competência da respectiva
Subcomissão Legislativa”.
O trabalho de consolidação foi realizado pelo Desembargador Vicente
Piragibe e continha 410 artigos. Nos termos do decreto de promulgação, o
diploma aprovado não revogava dispositivo da lei em vigor no caso de
incompatibilidade entre os textos respectivos (art. 1º, parágrafo único).
Quanto ao delito de estupro, nenhuma alteração foi feita entre o Código
Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais de 1932. Com efeito, sequer a
numeração do artigo foi alterada, sendo que a única diferença verificável entre esses
dois diplomas se resume a algumas pequenas atualizações ortográficas feitas na
redação da Consolidação, conforme se verifica pelo seu teor:
Da violencia carnal.
(...)
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena – de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1.º Si a estuprada fôr mulher publica ou prostituta:
Pena – de prisão cellular por seis mezes a dois annos.
§ 2.º Si o crime fôr praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a
pena será augmentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia
de uma mulher, seja virgem ou não. Por violencia entende-se não só o
emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas
faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
25
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e, em geral, os
anesthesicos e narcóticos. (PIERANGELI, 1980, p. 373)
Dentre os projetos de reforma penal que foram propostos após o Código
Penal de 1890, o primeiro estatuto repressivo da República, o Projeto do Código
Criminal brasileiro, de autoria do Professor Alcântara Machado e precursor do
Código Penal de 1940, constitui, sem prejuízo de visão contrária, o principal deles,
em razão, da sua linguagem, originalidade, técnica e estrutura9.
O papel exercido por Alcântara Machado no cenário político do País,
acompanhado de acontecimentos marcantes em nível nacional, foi decisivo para
apontar o rumo a ser seguido pela legislação penal pátria. Dono de linguajar e
escrita impecáveis, ele apresentou à comissão que o havia designado para a tarefa
um projeto que identificava pontos de semelhança com o até então Código Penal de
1890, devendo-se ao fato de ambos terem se inspirado nos modelos italiano e suíço.
Porém, seu projeto possuía mais originalidade e técnica mais apurada. Mas, como
observa Basileu Garcia (1973, p. 127), apesar de notável a “larga e preciosa
contribuição do Professor Alcântara Machado” são reconhecidas muitas mudanças
substanciais feitas pela comissão revisora, a ponto de Galdino Siqueira (1947, p. 80)
qualificá-lo não apenas como uma revisão, mas um “outro projeto”.
O projeto final, segundo Nélson Hungria – a quem costumeiramente é
atribuída a autoria do Código Penal –, também utilizou pontos específicos dos
códigos penais suíço, dinamarquês e polonês, além do projeto anteriormente
ofertado por Virgílio de Sá Pereira, em 1927. (HOFFBAUER, 1954)
Esse projeto – então definitivo – foi entregue pela comissão revisora em 4 de
novembro de 1940 e sancionado em 7 de dezembro do mesmo ano, pelo Decreto-lei
nº 2.848, mas entrou em vigência somente no dia 1 de janeiro de 1942.
O delito de estupro, no Código Penal de 1940, surgiu inserido no Título VI,
Capítulo I, contendo a seguinte redação original: “Art. 213. Constranger mulher à
9
É provável que a escolha de Machado se deu por ser ele um intelectual tradicional originário da
região do Brasil de maior desenvolvimento econômico e incomensurável peso político, que poderia
transformá-lo em excelente auxiliar do governo, no âmbito da mais respeitada corporação jurídica
do País – Faculdade de Direito da USP. Nesse sentido: Alves, 1989, p. 6.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
26
José Renato Martins
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de três a
oito anos”.
Com a elaboração do Código Penal de 1969, pelo mesmo Nélson Hungria, a
previsão do delito de estupro se manteve no Título VI, Capítulo I, com idêntica
redação e mesma quantidade de pena privativa de liberdade, a saber: “Art. 238.
Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena
– reclusão, de três a oito anos”. No entanto, este código nunca chegou a entrar em
vigência no território brasileiro, tendo sido definitivamente revogado pela Lei nº
6.578, de 11 de Outubro de 1978.
Mantida a vigência do Código Penal de 1940, a primeira alteração realizada
no tipo penal do estupro aconteceu em 13 de julho de 1990 e foi promovida pela Lei
Federal nº 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, que inseriu
um parágrafo único no artigo 213, com esta redação: “Art. 213. (...) Parágrafo único.
Se a ofendida é menor de catorze anos: Pena – reclusão, de quatro a dez anos”.
Em seguida, a Lei Federal nº 8.072, de 25 de julho de 1990, conhecida como
Lei dos Crimes Hediondos, alterou o preceito secundário do caput do artigo 213,
com a nova redação: “Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante
violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de seis a dez anos”.
Finalmente, a Lei Federal nº 9.281, de 4 de junho de 1996, revogou
expressamente o parágrafo único do artigo 213, que ficou com a redação a seguir:
“Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça: Pena – reclusão, de seis a dez anos”.
Com isso, distinguia-se claramente no referido diploma repressivo os delitos
de estupro e atentado violento ao pudor, ambos considerados crimes contra os
costumes,
particularmente,
crimes
contra
a
liberdade
sexual,
dispostos,
respectivamente, nos artigos 213 e 214. Além, havia previsão legal de duas
qualificadoras: violência com resultado lesão corporal de natureza grave e violência
com resultado morte (artigo 223, caput e parágrafo único) e da chamada presunção
de violência nesses delitos sexuais, contida no artigo 224 do Código Penal. Assim
permaneceu o regramento penal do delito de estupro, até o advento da Lei nº
12.015, de 7 de agosto de 2009.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
2
ESTRUTURA TÍPICA ATUAL DO DELITO DE ESTUPRO: QUESTÕES
CONTROVERTIDAS SOB A ÓTICA DAS GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS
A Lei 12.015/09 promoveu importantes alterações no Código Penal
brasileiro, datado de 1940, naquilo que diz respeito aos delitos sexuais, a começar
pela própria nomenclatura desses delitos. A partir de então, as condutas tipificadas
no Título VI do citado Código não configuram mais “crimes contra os costumes”;
constituem, outrossim, “crimes contra a dignidade sexual”, espécies do gênero
“dignidade da pessoa humana”, compreendida esta, por sua vez, como um conjunto
de garantias positivas e negativas10.
Divergem opiniões entre os estudiosos do direito penal quanto à opção
terminológica utilizada, identificando como bem jurídico-penal tutelado a dignidade
sexual do ser humano. Guilherme de Souza Nucci defende a nova nomenclatura,
entendendo que a anterior se achava inadequada, porquanto lastreada em modelos
de observação comportamental da sexualidade na sociedade em geral, ocasião em
que os costumes representavam visão vetusta dos hábitos medianos e até mesmo
puritanos da moral vigente, inexistindo critérios a estabelecer parâmetros comuns e
denominadores abrangentes para nortear o foco dos costumes na sociedade
brasileira. (NUCCI, 2009, p. 16-18)
Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 37) registra que o antigo título era
impróprio, na medida em que não correspondia aos bens jurídicos que o mesmo
pretendia tutelar, ao passo que Julio Fabbrini Mirabete (2011, p. 384) frisa que o
legislador de 2009 eliminou anacronismos existentes até então, oriundos de
preconceitos e moralismos arraigados na sociedade à época da elaboração do
Código Penal ora vigente. Rogério Greco (2011, p. 449) arremata, enfim, que com a
modificação legislativa, percebeu-se que o foco de proteção já não era mais a forma
10
Nesse sentido, Antonio Enrique Pérez Luño (2005, p. 324): “La dignidad humana constituye no
sólo la garantía negativa de que la persona no va a ser objeto de ofensas o humillaciones, sino
que entraña también la afirmación positiva del pleno desarrollo de la personalidad de cada
individuo. El pleno desarrollo de la personalidad supone, a su vez, de un lado, el reconocimiento
de la total autodisponibilidad, sin interferencias o impedimentos externos, de las posibilidades de
actuación proprias de cada hombre; de otro, la autodeterminación (Selbstbestimmung des
Menschen) que surge de la libre proyección histórica de la razón humana, antes que de una
predeterminación dada por la naturaleza”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
28
José Renato Martins
como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do
século XXI, mas sim a tutela da sua dignidade sexual.
Por outro lado, ao fazer seus comentários acerca do título referente aos
“crimes contra os costumes”, Alberto Silva Franco (1997, p. 1.018-1.019) demonstra
sua contrariedade à (atual) expressão “crimes contra a dignidade sexual”. Assevera
o seguinte:
Em matéria de sexualidade enquanto componente inafastável do ser
humano, não se cuida de sexo digno ou indigno, mas tão-somente de sexo
realizado com liberdade ou sexo posto em prática mediante violência ou
coação, ou seja, com um nível maior ou menor de ofensa à
autodeterminação sexual do parceiro. Destarte, toda lesão à liberdade
sexual da pessoa humana encontra seu núcleo na falta de consensualidade.
Fora daí não há conduta sexual que deva ser objeto de consideração na
área penal.
No direito positivo brasileiro a dignidade ocupa posição de destaque. A
Constituição de 1988 aponta a dignidade do ser humano como sendo fundamento
do próprio Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), que se proclama “destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”.
Logo, o constituinte pátrio considera a dignidade humana como valor dos valores,
em torno do qual gravitam todos os demais, que devem operar em função do
mesmo.
Se, por um lado, a alteração do nomen iuris do Título VI do Código Penal
brasileiro vem ao encontro do referido fundamento estatal, de outro, identifica de
forma ampla a tutela jurídico-penal pretendida, ou seja, o desenvolvimento da
personalidade sob o aspecto sexual, respeitando-se a autodisciplina e a
autodeterminação humanas. Muito embora determinadas violações sexuais
tipificadas em seus dispositivos representem, ainda, uma afronta aos costumes, na
medida em que se consubstanciam em hábitos socialmente inaceitáveis, 11 a
alteração é positiva, pois com a opção terminológica de conteúdo semântico
abrangente (crimes contra a dignidade sexual) é possível se extrair do mesmo o
11
Cf. nesse sentido: Marcão; Gentil, 2011, p. 35.
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significado de outros bens jurídicos, como, por exemplo, a liberdade sexual, a
intimidade sexual e o desenvolvimento sexual do indivíduo12.
Inserido no Título VI e classificado como “crime contra a dignidade sexual”, o
delito de estupro permaneceu tipificado no artigo 213, no Capítulo I, sob a mesma
nomenclatura anterior, isto é, considerado um “crime contra a liberdade sexual”.
Inobstante essa observação, a Lei nº 12.015/09 revogou o artigo 214 do
Código Penal,13 que tipificava a conduta do atentado violento ao pudor, o qual,
embora fosse considerado do mesmo gênero que o crime de estupro, diferenciavase na espécie, na medida em que implicava na prática ativa ou omissiva de qualquer
ato libidinoso diverso da conjunção carnal, em virtude de esta última já ter sido
descrita anteriormente no artigo 213.
Outra alteração promovida pela novel lei penal consistiu na supressão do
artigo 224 do Código Penal,14 sob cuja redação se presumia a violência da conduta
do agente, consubstanciada aquela em um dos elementos necessários para sua
subsunção ao tipo do estupro, diante de certas circunstâncias em que se encontrava
o sujeito passivo quando da prática libidinosa, em particular, quando a vítima não
era maior de 14 (catorze) anos.
Embora a pena privativa de liberdade da modalidade básica do delito tenha
sido mantida a mesma, ou seja, de 6 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão, houve fusão
daquelas duas condutas até então previstas em dispositivos penais distintos –
estupro e atentado violento ao pudor – em uma única, contida no artigo 213, com a
nomenclatura de estupro, ao mesmo tempo em que o sujeito ativo passou a ser
comum também para o caso de conjunção carnal forçada.
Quanto à idade da vítima do crime contra a liberdade sexual em testilha, o
parágrafo 1º do artigo 213, in fine, previu uma modalidade circunstancial qualificada,
com pena privativa de liberdade de 8 (oito) a 12 (doze) anos, se ela for maior de 14
12
Cf. nesse sentido: Greco, 2010, p. 63.
13
“Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que
com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10
(dez) anos”.
14
“Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos; b) é alienada
ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa,
oferecer resistência”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
30
José Renato Martins
(catorze)15 e16 menor de 18 (dezoito) anos, ao passo que, com a referida alteração
legislativa, criou-se um tipo penal autônomo, contido no artigo 217-A, com pena
privativa de liberdade de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, na hipótese de a vítima não ser
maior de 14 (catorze)17 na data da prática do ato libidinoso.
Diante do panorama do direito penal sexual brasileiro atual, nos termos
retratados até o presente momento, a despeito da providencial e quiçá provocante
oportunidade de se promover um estudo técnico-jurídico sobre questões importantes
dessa temática, tais como, o concurso e o conflito envolvendo os referidos tipos
penais, a aplicação da lei penal no tempo, entre outras, o que ora se pretende na
verdade é levar a efeito uma análise do delito de estupro, tanto na forma básica
como na modalidade especial – estupro de vulnerável –, no tocante aos elementos
que os compõem, relativamente a algumas questões que geram controvérsia
doutrinária e jurisprudencial referentes à matéria, e, sobretudo, sob a ótica de um
direito penal constitucional.
Nessa toada, o estudo passa a ter sua origem na redação vigente do delito
de estupro, nas formas comum e especial, respectivamente. Nos termos do Código
Penal, tem-se o seguinte:
Artigo 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
(...)
Artigo 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
15
Ou tiver idade igual a 14 (catorze) anos. De fato, se a vítima é violentada no dia de seu 14º
aniversário, pode ser aplicada a qualificadora em comento. Não se pode concordar com a tese de
que, em tal hipótese, não é possível ser aplicada essa qualificadora, porque a vítima ainda não é
maior de 14 (catorze) anos (Cf. nesse sentido: Gomes; Cunha; Mazzuoli, 2009, p. 37). Ocorre que
o Código Penal, em várias passagens, vale-se de expressão semelhante, a exemplo do que
ocorre nos artigos 61, II, g [maior de 60 (sessenta) anos] e 65, I [maior de 70 (setenta) anos], etc.
No sentido favorável à aplicação dessa qualificadora quando a vítima tem 14 (catorze) anos de
idade, entre outros: Greco, 2011 p. 467; Estefam, 2009, p. 43; Mirabete, 2011, p. 393.
16
Na verdade, consta do tipo penal em questão a conjunção alternativa “ou” e não a conjunção
opositiva “e”. Claro erro redacional cometido pelo legislador pátrio, o que não prejudica, de forma
alguma, a aplicação da norma.
17
São válidas, aqui, as mesmas observações feitas na nota nº 14.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
31
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
O delito de estupro na modalidade básica identifica, na primeira parte do
tipo, a conduta do agente dirigida contra uma mulher, no sentido de penetrar-lhe o
pênis na vagina. Logo, tem-se por sujeitos ativo e passivo, respectiva e
necessariamente, o homem e a mulher. Essa conjunção carnal ocorre mediante
dissenso da vítima, constrangida por meio de violência ou grave ameaça.
Já, na sua segunda parte, surge a conduta – anteriormente denominada
atentado violento ao pudor – (ativa) de praticar ou (passiva) permitir que se pratique
outro ato libidinoso contra a vítima, a qual, no caso em testilha, pode ser tanto o
homem como a mulher, situação que alcança, igualmente, o sujeito ativo. Tal ato
deve ser levado a efeito mediante dissenso do sujeito passivo ou com emprego de
violência ou grave ameaça.
Praticamente todos os doutrinadores vislumbram na expressão “outro ato
libidinoso”, os atos de natureza sexual que não a conjunção carnal, com o fim de
satisfação da libido do agente.
Todavia, a controvérsia séria que se instala é quanto à espécie de ato
libidinoso que pode ou deve ser compreendida no âmbito de alcance do tipo penal
em questão, na sua segunda parte.
Isso se deve ao fato de a redação imposta pela Lei n° 12.015/09 ter alargado
as condutas subsumíveis ao delito de estupro, de maneira a equiparar a
reprovabilidade penal imputada à conjunção carnal a qualquer outro ato libidinoso,
este, inclusive, por vezes, podendo ostentar reprovabilidade social sensivelmente
inferior ao da conjunção carnal, irracionalidade legislativa que, além de ferir o
princípio penal constitucional da legalidade (particularmente, na sua vertente da
taxatividade
ou
determinação
taxativa),
ofende
também
o
princípio
da
proporcionalidade.
Na verdade, o legislador reformador desperdiçou ótima oportunidade para
resolver – ou ao menos amenizar – a questão problemática relativa à tipicidade do
delito de estupro, já que esse nó górdio existia antes mesmo do advento da Lei de
Reforma dos Crimes Sexuais em questão. Ou, ainda melhor (ou pior), persistia
desde a entrada em vigor do próprio Código Penal de 1940.
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32
José Renato Martins
Quando se voltam os olhos à Carta Magna e ao Estatuto Repressivo, devese verificar e sentir, particularmente in casu, a presença da segurança jurídica e da
proporcionalidade. Aquela, teoricamente promovida pela tipicidade fechada; esta,
percebida no quantum da pena privativa de liberdade presente no tipo penal, em seu
preceito secundário, nos limites mínimo e máximo.
Inadmissível, portanto, a manutenção do tipo de estupro da forma como está
construído, já que estão contidos na sua tipicidade elementos normativos imprecisos
que o tornam aberto18 e postulam uma valoração singularmente especial por parte
do magistrado ao analisar a situação em particular, afastando, destarte, toda e
qualquer segurança jurídica.
Da mesma maneira, inaceitável a previsão abstrata da mesma pena privativa
de liberdade para fatos diversos que podem surgir no caso concreto, os quais, a
despeito de serem direcionados à mesma tipicidade formal, substancialmente,
apresentam valoração jurídica e reprovação social diametralmente opostas,
relegando, pois, a segundo plano, a proporcionalidade.
Tem-se, assim, que a (contínua) admissibilidade dessa espécie de crime
sexual propicia julgamentos contraditórios e, em grande parte, injustos, ao
conspurcar contra os princípios penais constitucionais ora referidos, perceptíveis há
bastante tempo no Direito estrangeiro19.
Tratando-se de Direito estrangeiro, seguindo trilha em sentido contrário à
irracionalidade legislativa do direito penal brasileiro ora apontada, importa destacar a
redação típica contida no Código Penal espanhol, que também visando à tutela da
18
A propósito, frisa Renato de Mello Jorge Silveira (2008, p. 308): “A aceitação de certo grau de
indeterminação no conteúdo do tipo pode até ser imprescindível em certos casos, mas nunca no
sexual”. (grifou-se).
19
Código Penal francês (Napoleônico) já previa, de forma autônoma, a existência do crime de
“atentado violento ao pudor”, distinto do “estupro”, ocasião em que o mesmo se configurava desde
os gestos “exercidos com violência contra uma pessoa com a intenção de ofender seu pudor”, de
maneira que “uma pluralidade de ofensas” podiam ser agrupadas nesse tipo penal. Já à época,
notou-se o perigo: “os limites do atentado ao pudor não começam aqui com os toques (...) mas
criam-se palavras, diferenciam-se limiares, autorizando a transformar em crime aquilo que não o
era, abrindo para um novo território de penalidade”. (VIGARELLO, 1998, p. 121-125).
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O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
liberdade sexual da pessoa nos artigos 17820 e 17921, delineia a incidência da lei
penal sobre a conduta delitiva de forma a respeitar ambos os princípios (taxatividade
e proporcionalidade), dicotomizando a tutela penal diante das divergentes faces da
violência sexual, que, para o legislador brasileiro, apresentam-se unificadas.
Com efeito, observado o artigo 178 daquele Codex, percebe-se que a tutela
penal contida no mesmo reverbera junto à agressão sexual perpetrada mediante
violência ou grave ameaça contra a liberdade sexual do indivíduo em seu sentido
lato, culminando com a imposição de pena privativa de liberdade, variável de um a
quatro anos. De outra banda, seu artigo 179 implica na tutela dirigida à agressão
sexual (emprego de violência ou grave ameaça) consistente no acesso carnal por via
vaginal, anal ou oral, ou na introdução de objetos ou membros corporais por uma
das duas primeiras vias citadas, culminando este tipo penal com uma imposição de
pena privativa de liberdade notoriamente mais severa, variando de seis a doze anos.
Dessa forma, desnecessário se faz que o exegeta depreenda grande esforço
intelectual para verificar que, contrariamente à irracionalidade legislativa contida no
artigo 213 do Código Penal brasileiro, o legislador espanhol – ressalte-se –, em
verdadeiro
respeito
aos
mencionados
princípios
da
taxatividade
e
da
proporcionalidade, ao prever a existência de uma gradação de pena entre as
condutas que atingem a liberdade sexual do indivíduo em sentido lato e aquelas
outras que atingem a sua liberdade sexual sob a forma de agressões objetivamente
descritas na lei, focando, especialmente, aquelas denominadas, nesta oportunidade,
de “condutas invasivas”, proporcionou ares racionais às normas legais que tem por
escopo reprimir os delitos contra a liberdade sexual naquele país, afastando-se
sobremaneira da insegurança forjada pela expressão “outro ato libidinoso” que o
legislador brasileiro insiste em manter como elemento do tipo, o qual conduz o
intérprete à perigosa conclusão que aí estão contidos todos os atos de natureza
sexual.
20
“Art. 178. El que atentare contra la libertad sexual de otra persona, con violencia o intimidación,
será castigado como responsable de agresión sexual con la pena de prisión de uno a cuatro
años”.
21
“Art. 179. Cuando la agresión sexual consista en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o
introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, el responsable
será castigado como reo de violación con la pena de prisión de seis a 12 años”.
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34
José Renato Martins
Infelizmente, a técnica legislativa adotada no Código Penal brasileiro para a
construção do referido tipo penal, tal como já foi apontado, remete ao Judiciário o
exercício de racionalidade concernente na definição daquilo que pode e deve ser
entendido como "outro ato libidinoso".
Verificadas tais inconsistências legais em relação ao delito de estupro do
artigo 213 do Código Penal, urge fazer uma análise jurídica voltada ao crime de
estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A desse diploma repressivo, aqui
denominado de “estupro na forma especial”.
O tipo penal consistente no estupro de vulnerável identifica, na sua primeira
parte, a mesma conduta prevista na forma básica do delito, ou seja, aquela em que
o agente introduz seu pênis na vagina da mulher. No entanto, essa conjunção carnal
pode ocorrer sem o consentimento da vítima22 ou mesmo com a sua anuência,
ciente o autor da sua idade (não maior de 14 anos)23.
Na segunda parte da referida norma penal, tipifica-se a conduta de praticar
com a vítima outro ato libidinoso. Igualmente, exige-se nesse caso que o sujeito
ativo tenha conhecimento de que ela não apresenta, na data do fato, idade superior
a 14 anos.
Duas questões importantes – e preocupantes – eclodem da interpretação
técnico-jurídica do artigo 217-A, a saber: primeiro, se o elemento “outro ato
libidinoso” engloba toda e qualquer prática de natureza sexual com o propósito de
satisfação da libido do agente; segundo, se a idade da vítima deve ser analisada
objetivamente, sem o questionamento acerca das suas atitudes e dos seus
conhecimentos de natureza sexual. Em outras palavras, qual o sentido que se deve
atribuir à ideia de “vulnerabilidade”, particularmente quanto à questão da idade da
vítima.
22
Não é demais registrar, que na hipótese em que vier a ocorrer o estupro de vulnerável com
violência real ou grave ameaça, ainda que do ato resulte na vítima lesões corporais de natureza
leve, a adequação típica será a mesma (artigo 217-A), devendo o meio executório servir,
outrossim, para a dosimetria da pena a ser cominada ao agente, nos termos do artigo 59 do
Código Penal, pois não há até o momento um tipo penal específico para essa situação fática.
23
Evidentemente, o estudo da vulnerabilidade nesta medida do trabalho não afasta a análise que se
poderia realizar acerca da incidência do chamado “erro de tipo”, relativamente à idade da vítima do
delito.
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O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
Para se alcançar o significado de vulnerabilidade em relação à idade da
vítima, pode-se afirmar, de maneira sumária, que tal compreende todas as pessoas
vítimas do delito de estupro que não tenham mais de 14 anos, com supedâneo no
disposto no artigo 217-A. Esta pode ser a melhor conclusão, mas existem outras
disposições normativas fundamentadoras.
Ou, ao contrário, o sentido de vulnerabilidade somente poderia vir com a
constatação do caso concreto, reforçando-se assim a afirmação de Claus Roxin
(1997, p. 538), para quem a capacidade de compreensão – para consentir – é
matéria de fato, e, portanto, independe de limite de idade.
Esses posicionamentos traduzem – e repetem –, na verdade, as discussões
travadas pela doutrina e jurisprudência nacionais anteriormente à Lei 12.015/09,
com base nas ideias de que haveria presunção absoluta ou relativa de violência nos
casos de vítimas com idade até 14 anos.
Nesse passo, tem-se, por exemplo, entendimentos recentes e que traduzem
concepções e julgados anteriores à Lei 12.015/09, com decisões no sentido de que
a presunção de violência a que se referia o revogado artigo 224 do Código Penal no
crime de estupro tem caráter relativo e em certos casos, deve ser afastada,
atentando-se para a realidade concreta dos fatos24.
Ora, decisum desse naipe proporciona a discussão acerca da tipicidade do
fato descrito pelo novel artigo 217-A do Código Penal, com a redação que lhe foi
dada pela Lei 12.015/09, na medida em que surge um aparente conflito desse
julgado com o texto legal em vigor.
Tal discussão pode ser levada a efeito, igualmente, a partir de uma recente
decisão da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que
absolveu um réu acusado de praticar estupro de vulnerável contra uma adolescente
de doze anos de idade.
Segundo a argumentação desenvolvida no acórdão, relatado pela
Desembargadora Naele Ochoa Piazzeta, confirmando a sentença que já absolvera o
24
No caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, o réu era acusado de ter praticado estupro
contra três menores, todas com 12 anos de idade, no entanto, o magistrado e o Tribunal de
Justiça local o inocentaram, sob o argumento de que as meninas eram garotas de programa e “já
se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”.
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José Renato Martins
réu, a vulnerabilidade não deve ser entendida como um critério absoluto, mas
precisa ser medida de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Na hipótese
em testilha, as informações consideradas pela relatora são no sentido de que aquele
fato foi cometido sem violência e que havia plena concordância da suposta vítima, a
qual se tratava, ademais, de pessoa já versada em contatos sexuais, a despeito da
pouca idade. (GENTIL, 2012)
Ocorre, porém, que melhor interpretação pode ser feita sobre a ideia de
vulnerabilidade contida no artigo 217-A, tanto sob o prisma legal como, sobretudo, a
partir da ótica das garantias constitucionais. E, com respeito ao primeiro, deve-se
vislumbrar, primeiramente, a redação típica do citado dispositivo penal: punem-se as
condutas de “ter” (conjunção carnal) ou “praticar” (ato libidinoso) com pessoa menor
de 14 anos, diferentemente daquelas previstas no tipo fundamental do artigo 213,
cuja subsunção de dá com o ato de “constranger” alguém (à prática de conjunção
carnal ou outro ato libidinoso). Em virtude disso, correta a afirmativa de que “é
praticamente impossível encontrar uma saída para afirmar que ter ou praticar são
condutas que admitem alguma valoração da vontade do sujeito passivo quanto ao
resultado da conduta”. (GENTIL, 2012)
Em que pese essa avaliação, existem outras disposições normativas que
podem legitimar a compreensão de que a prática da conjunção carnal ou outro ato
libidinoso com pessoa não maior de 14 anos configura o citado tipo penal,
entendendo-se, pois, a vítima como vulnerável.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, no artigo 227, caput, que é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar a toda criança e a todo adolescente,
direitos fundamentais, bem como, que eles são obrigados a “colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão”. E, no parágrafo 4º, acrescenta que: “A lei punirá severamente o abuso, a
violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
Nesse sentido, inicialmente é possível afirmar que os fatos, penais ou não,
que envolvam crianças e adolescentes exigem tratamento especial em função dessa
garantia constitucional. Logo, as condutas praticadas em relação a eles,
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O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
notadamente aquelas de conotação penal, ganham o contexto singular diante do
qual surge a necessidade de se lhes conferir maior proteção jurídica.
Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) confere
às pessoas em questão as mesmas garantias constitucionais (artigo 3º) e proteção
integral (artigo 1º). E, nos termos do artigo 2º, entende-se como criança o indivíduo
cuja idade não ultrapassa os 12 anos, de modo que é considerado adolescente
aquele com idade entre 12 anos completos e 18 incompletos.
Desta feita, pode-se concluir, conseguintemente, que “ter” conjunção carnal
ou então “praticar” ato libidinoso com criança (menor de 12 anos) implica em abuso
sexual, tipificando-se o artigo 217-A, independentemente de seu eventual
consentimento, o qual, se ocorreu, há que ser desconsiderado, na medida em que
ela não apresenta capacidade de compreensão para tanto25.
Tratando-se de adolescente, muito embora ele possa ter discernimento no
caso concreto, concernentemente à prática do ato sexual, diante da sua relativa
capacidade de compreensão26, à luz da garantia constitucional do artigo 227 da
Carta Magna é absolutamente legal e legítimo que o legislador penal opte por indicar
um limite mínimo de idade a partir do qual esse adolescente é capaz de entender e
de querer, mesmo que tal limite seja distinto daquele especificado pela norma que
define quem deve ser considerado criança ou adolescente.
Acrescente-se a isso, que a Lei de Reforma dos Delitos Sexuais é posterior
ao Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo que, tratando-se de
discernimento para a prática de ato de natureza sexual inexiste capacidade de
25
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, tratando-se de ato infracional, ou seja, a
conduta descrita como crime ou contravenção penal, é preciso verificar a idade do adolescente à
data do fato, de modo que as disposições da lei em questão somente são aplicáveis aos
inimputáveis (menores de 18 anos) e, as medidas sócio-educativas (que se referem às práticas
infracionais), unicamente àqueles, e não às crianças, sujeitas apenas às medidas específicas de
proteção (artigos 103-105). Logo, como as crianças não apresentam capacidade de entendimento
e autodeterminação para a prática infracional, também lhes falta a capacidade de consentimento
para o ato de natureza sexual.
26
A afirmativa parte do mesmo raciocínio levado a efeito quando da análise do Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei 8.069/90), nos exatos termos registrados na nota anterior.
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38
José Renato Martins
entendimento e autodeterminação relativamente à pessoa não maior de 14 anos,
configurando-se abuso e, portanto, crime de estupro de vulnerável27.
Em função disso, deve-se refutar a tese de presunção relativa de violência
fundamentada no fato de que o(a) adolescente exercia anteriormente a prostituição
como meio de vida, ou então, de que houve consentimento da vítima (não maior de
14 anos). Argumentação nesse sentido não deve excluir a tipificação do delito,
porque o bem juridicamente tutelado é a formação moral da criança ou do
adolescente, visando proteger a peculiar condição da pessoa em desenvolvimento28.
Por derradeiro, retorna à baila a seguinte questão: o elemento “outro ato
libidinoso”, ora contido no artigo 217-A, engloba toda e qualquer prática de natureza
sexual com o propósito de satisfação da libido do agente?
Neste ponto, deve-se trabalhar com dois parâmetros, a saber: o respeito aos
princípios da proporcionalidade e da taxatividade, e a observância do princípio da
proteção integral à criança e ao adolescente, propugnados tanto pela Constituição
Federal como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tarefa essa, por sinal,
muito delicada.
De toda sorte, a conciliação desses princípios viria com a tipificação das já
denominadas “condutas invasivas” tidas com a pessoa não maior de 14 anos no
delito de estupro de vulnerável, do artigo 217-A, afastando-se as possíveis ilações
acerca de seu conhecimento, autodeterminação ou consentimento, relativos aos
atos de natureza sexual.
Concomitantemente a tal raciocínio, a prática dos demais atos libidinosos
levados a cabo com essa pessoa, também sem qualquer possibilidade de se invocar
27
É de se notar, ainda, no tocante ao artigo 217-A, que o legislador penal não utilizou a expressão
“criança”, mas sim “menor de 14 anos”, razão também pela qual há de ser afastada a relativização
com fundamento no Estatuto da Criança e do Adolescente.
28
Objetivando-se a tutela penal em questão, pode-se concluir que o tipo penal também visa que as
práticas sexuais com as pessoas não maiores de 14 anos sejam pura e simplesmente evitadas.
Nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “1. A violência presumida, prevista
no art. 224, alínea a, do Código Penal, tem caráter absoluto, afigurando-se como instrumento legal
de proteção à liberdade sexual do menor de 14 (catorze) anos, em razão de sua incapacidade
volitiva. 2. O consentimento do menor de 14 (catorze) anos é irrelevante para a formação do tipo
penal do estupro ou atentado violento ao pudor, pois a proibição legal é no sentido de coibir
qualquer prática sexual com pessoa nessa faixa etária” (grifou-se).
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O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
uma presunção relativa em face da sua conduta sexual, restaria afastada da
subsunção típica ao artigo 217-A, pelo fato de o mesmo apresentar uma
característica aberta, reveladora de imprecisão e insegurança jurídicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O delito de estupro tanto na modalidade simples como na forma especial foi
e continuará sendo objeto de acirradas discussões nos âmbitos da doutrinária e da
jurisprudência, ao menos até que o legislador resolva promover nova alteração típica
respeitando os princípios da taxatividade e da proporcionalidade, com observância
das garantias constitucionais e legais concernentes à pessoa vulnerável,
particularmente em relação à sua idade (vítima não maior de 14 anos).
Há necessidade de que o legislador infraconstitucional construa os tipos
penais de forma racional, a ponto de conferir segurança jurídica aos indivíduos da
sociedade. Para tanto, ele deve se afastar da utilização da normativa aberta e
graduar as espécies de ofensa à dignidade sexual da pessoa humana, buscando
quantificar o mínimo e o máximo da pena privativa de liberdade a ser aplicada
nesses casos conforme o tipo de agressão e a qualidade da vítima.
Nesse sentido, o presente trabalho propõe determinadas alterações
legislativas do crime de estupro, com suas respectivas justificativas, de maneira que
se respeite os citados princípios penais constitucionais e a partir da valoração
concreta da ofensa realizada.
O elemento normativo que confere o colorido aberto ao delito de estupro,
percebido na expressão “outro ato libidinoso”, deve ser retirado do tipo penal,
substituindo-o por determinados elementos que identifiquem uma violação à
dignidade sexual da vítima equiparável à conjunção carnal, mas que não se
confundam com a mesma, isto é, as chamadas “condutas invasivas”, que podem ser
verificadas no acesso vaginal, anal ou bucal, ou ainda, na introdução de membros
corporais ou objetos por uma das duas primeiras vias (vaginal ou anal), com a
presença sempre necessária na conduta do agente do fim libidinoso, ou seja, a
finalidade de prazer sexual.
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40
José Renato Martins
As demais práticas libidinosas distintas das retrocitadas (v.g.: carícias nas
partes íntimas da pessoa; beijos lascivos; etc.), por sua vez, devem vir tipificadas
como delito próprio no Código Penal e como exceções às condutas relacionadas no
crime de estupro, de maneira a configurarem ofensas secundárias à dignidade
sexual da pessoa humana. Desta feita, aqueles atos deixariam de configurar tão
somente uma contravenção penal (importunação ofensiva ao pudor – artigo 61, ou
perturbação da tranquilidade – artigo 65, ambos do Dec.-lei 3.688/41) ou mesmo fato
atípico e com reprimenda equidistante de ambas as tipificações (crime e
contravenção).
Tratando-se do delito de estupro na modalidade simples (artigo 213), devem
permanecer como meios de execução a violência ou a grave ameaça para sua
tipificação.
Já, no que diz respeito ao delito de estupro na modalidade especial (artigo
217-A), vale dizer, o estupro de vulnerável, a manutenção da redação legal
prevendo a subsunção da conduta do agente ao tipo em questão quando a vítima
não é maior de 14 anos deve ser mantida, além do que, a interpretação literal há de
prevalecer, fazendo-se valer a vulnerabilidade da criança ou do adolescente nessa
condição como forma de garantia da proteção integral, independentemente da
existência de seu eventual consentimento, admitindo-se apenas o afastamento típico
tão somente na hipótese de erro inevitável, compreendido este quando o agente é
induzido a erro em relação à idade da vítima pelo fato de ela apresentar compleição
física precocemente desenvolvida.
O novo dispositivo em questão tutela a proteção integral do ser humano
ainda criança ou do adolescente não maior de 14 anos, cuja integridade sexual
necessita ser penalmente garantida contra os atos libidinosos inerentes ao tipo
fundamental – conjunção carnal e condutas invasivas, não cabendo quaisquer
discussões sobre a inocência desse indivíduo em assuntos sexuais.
Nesse ponto, duas observações são importantes: primeiro, práticas
libidinosas distintas da conjunção carnal e das condutas invasivas devem ser
tipificadas de maneira autônoma, porém com um acréscimo da reprimenda no
próprio tipo devido à idade da vítima; segundo, violência ou grave ameaça, se
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
41
O delito de estupro após o advento da Lei 12.015/09...
empregadas contra a vítima nessas condições particulares, demandam aumento da
pena privativa de liberdade ainda maior, diante do dissenso na prática do ato sexual.
Acredita-se que a ratio legis desse tipo penal foi a de tutelar integralmente a
criança e o adolescente até 14 anos, os quais se acham em processo de formação,
seja no plano biológico, moral ou psicológico, circunstâncias essas que configuram o
caráter de vulnerabilidade a que tais indivíduos estão expostos, especialmente na
seara sexual, fator que legitima o legislador penal a criminalizar com maior rigor o
delito de estupro contra as pessoas com a referida idade.
À guisa de conclusão, infere-se que o artigo 4º da Lei 12.015/2009 deu nova
redação ao artigo 1º, incisos V e VI, da Lei 8.072/90, com o que são considerados
crimes hediondos os estupros simples (artigo 213, caput) e de vulnerável (artigo 217A). Em razão disso, o condenado pelo delito de estupro (simples ou de vulnerável)
não poderá ser beneficiado com graça, anistia, indulto ou fiança, e cumprirá a pena
aplicada em regime inicialmente fechado, só podendo obter a progressão de regime
prisional após cumprir 2/5 da pena privativa de liberdade, se for primário, ou 3/5, se
for reincidente, além do fato de ele apresentar bom comportamento carcerário.
Diante da violação ao bem jurídico dignidade sexual, tão caro à pessoa
humana, acha-se justificada a hediondez, mas desde a perspectiva das alterações
legislativas ora propostas.
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44
Edimara Sachet Risso e outros
EFEITO VINCULANTE E SEGURANÇA JURÍDICA: NOVOS
RUMOS DA JURISPRUDÊNCIA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO1
STARE DECISIS, BINDING EFFECTS OF PRECEDENTS AND LEGAL CERTAINTY – NEW
DIRECTIONS OF JURISPRUDENCE IN THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM
Edimara Sachet Risso2
Tamara Paola Leite3
Clarice Mendes Dal Bosco
Dangley Alípio
Laura Gabriela Dalmarco Ghen
Nayani Valéria Magnani
Raul Bertani de Campos
Resumo
A presente pesquisa tem por objeto a inovação trazida ao sistema jurídico brasileiro
pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004, que introduziu o § 2º ao artigo 102 da
Constituição Federal, prevendo a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal
editar súmula com efeito vinculante, em caso de reiteradas decisões em matéria
constitucional. Investigou-se, em especial, a real necessidade de se inserir tal
modificação no sistema de jurisprudência, suas causas e os naturais
questionamentos acerca da sua validade e da sua eficácia. Com fundamento na
teoria sistêmica, procurou-se demonstrar que a segurança jurídica trazida pelo novo
instituto contribuirá para o prestígio do Poder Judiciário e do sistema jurídico, por
consequência. A partir da ideia de que a segurança jurídica assegura o próprio
Direito, é que nasce a necessidade de se ampliar e de delimitar o efeito vinculante
das decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Logo, a pesquisa
empreendida buscou demonstrar o impacto da adoção de formas de controle
administrativo e político pela atuação do Judiciário, notadamente no que se refere a
inovações técnico-legais como a súmula com efeito vinculante.
Palavras-chave: Súmula. Efeito vinculante. Ordenamento jurídico brasileiro. EC
45/2004.
1
Trabalho resultante da pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos da Academia Brasileira de
Direito Constitucional no ano de 2011, na cidade de Francisco Beltrão/PR.
2
Mestra em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP, especialista em
Direito Processual Civil pelo INPG/Universidade Católica Dom Bosco/MS, graduada em Direito
pela Universidade de Passo Fundo/RS. Professora de Direito Processual Civil na Faculdade de
Direito de Francisco Beltrão/PR, mantida pelo CESUL – Centro Sulamericano de Ensino Superior.
Advogada. E-mail: <[email protected]>.
3
Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão, mantida pelo
CESUL – Centro Sulamericano de Ensino Superior.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
45
Efeito vinculante e segurança jurídica
Abstract
This research aims at the innovation brought to the Brazilian legal system by
Constitutional Amendment. 45 of 2004, which introduced § 2 of Article 102 of the
Constitution, providing for the possibility of the Supreme Court docket edit with
binding effect, in case of repeated decisions in constitutional matters. We
investigated, in particular, the real need to insert such a change in the system of
jurisprudence, its causes and the natural questions about its validity and its
effectiveness. Based on systems theory, sought to demonstrate that legal certainty
brought by new institute will contribute to the prestige of the judiciary and the legal
system, accordingly. From the idea that ensures legal security law itself, which is
born of the need to expand and define the binding effect of the decisions of the
Supreme Court of Brazil. Therefore, the research undertaken sought to demonstrate
the impact of the adoption of forms of administrative control and political action by
the judiciary, particularly with regard to technical and legal innovations like the
scoresheet with binding effect.
Key-words: Stare decisis. Binding
Constitutional Amendment n. 45/2004.
precedentes.
Brazilian
Legal
System.
Sumário: Introdução. 1. Poder judiciário, democracia e insegurança jurídica. 2. Judiciário e
a procedimentalização do direito. 3. A produção do judiciário e o princípio da
segurança jurídica. 4. Segurança jurídica e a função do direito. 5. A súmula com
efeito vinculante como concretização da segurança jurídica. 6. O ingresso da
súmula com efeito vinculante no sistema jurídico brasileiro. 7. O papel da
jurisprudência a partir do efeito vinculante. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Em 2004, o efeito das decisões emanadas pelo Supremo Tribunal Federal, a
corte constitucional brasileira, sofreu relevante alteração, com a introdução do § 2º
do artigo 102 da Constituição Federal, prevendo a possibilidade de o Supremo
Tribunal Federal editar súmula com efeito vinculante, em caso de reiteradas
decisões em matéria constitucional.
Estava
criado,
assim,
o
efeito
vinculante
no
controle
difuso
de
constitucionalidade.
O efeito vinculante é instituto inspirado em similares existentes em outros
sistemas constitucionais, notadamente no controle concentrado do modelo
germânico e no controle difuso do Common Law.
Tem-se questionado, a partir especialmente da Emenda Constitucional n.
45/2004, se o Poder Judiciário, mais especificamente, o Supremo Tribunal Federal
(STF) dispõe de legitimidade para a edição de súmulas com efeito vinculante no
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
46
Edimara Sachet Risso e outros
controle difuso de constitucionalidade, já que não obedece aos procedimentos de
concretização da soberania popular previstos na Constituição Federal. Ou seja,
tendo em vista que os membros do Poder Judiciário não se submeteram à eleição
pelo povo, não são seus legítimos representantes no exercício do poder de editar
normas vinculantes, mas, sim, seus agentes, no sentido de que devem fazer atuar a
vontade do povo.
Da mesma forma, tem sido alvo de críticas o fato de que o princípio da
separação dos poderes, também concretizador da democracia, estaria sendo
afrontado, uma vez que, no estado democrático, cada uma das três principais
funções (legislar, executar e julgar) deve ser exercida por um “poder”, no sentido de
organização, especializada em sua função.
Por outro lado, o princípio da segurança jurídica encontra-se intrinsecamente
relacionado ao Estado Democrático de Direito, ao passo que lhe promove a base da
estabilidade democrática. E, com efeito, a segurança jurídica depende da aplicação
ou, melhor, da obrigatoriedade do Direito no Estado Democrático.
Miguel Reale (2007), discorrendo acerca da vigência do Direito, afirma que
a idéia de justiça liga-se intimamente à idéia de ordem. No próprio conceito
de justiça é inerente uma ordem, que não pode deixar de ser reconhecida
como valor mais urgente, o que está na raiz da escala axiológica, mas é
degrau indispensável a qualquer aperfeiçoamento ético.
Assim é que se vislumbra que a obrigatoriedade do Direito compõe a
segurança jurídica, estando vinculada ao valor de justiça de cada sociedade. Em
razão disso, faz-se necessária a edição de uma norma jurídica que declare, em
última instância, quais são os limites dos atos sociais, para que, assim, haja plena
segurança.
Ademais, a segurança jurídica não encontra razão de existir apenas na
segurança contra violações jurídicas e sim na segurança do próprio Direito,
lançando-se com o objetivo da própria ordem jurídica4.
4
Segundo Radbruch (2010, p. 59), “Toda ordem jurídica tem por fim, simultaneamente, três
objetivos: garantir a justiça, fomentar o bem comum e criar segurança jurídica. As ordens jurídicas
se distinguem entre si por meio da medida na busca desses fins.”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
47
Efeito vinculante e segurança jurídica
A concretização da segurança jurídica dá-se por muitos meios, como o
consagrado instituto da coisa julgada. Pois bem, dentre eles e ainda na busca da
segurança jurídica, veio pairar no ordenamento jurídico brasileiro, a súmula
vinculante.
Nesse contexto, qual seja, a partir da ideia de que a segurança jurídica
assegura o próprio Direito, é que nasce a necessidade de se ampliar e de delimitar o
efeito vinculante das decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Logo, o presente trabalho visa à investigação dos contornos teóricos e
práticos que envolvem o efeito vinculante das decisões emanadas da cúpula do
Judiciário brasileiro, especialmente a sua validade e a sua eficácia no sentido de
garantir a segurança jurídica em sua totalidade, como eficácia do próprio direito.
Se, por um lado, entende-se que o efeito vinculante traria aos cidadãos
brasileiros a plena segurança jurídica, ao passo que faria garantir a eficácia do
próprio Direito, por outro, a sua validade e a sua legitimidade são indiscutivelmente
confusas.
Indaga-se se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão
ou se abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem,
ou ainda, se vincula a própria Corte constitucional, deixando o direito estático e não
estável.
No plano da eficácia, os que advogam em favor da súmula vinculante
acreditam que a sua adoção pelo ordenamento jurídico tornará possível, em breve
espaço de tempo, a diminuição dessa carga excessiva de processos levados às
instâncias superiores, sendo que os mesmos são, em sua grande maioria, processos
que tratam de temas idênticos, substancialmente.
Além do mais, o Estado Democrático de Direito, apesar das inequívocas
vantagens da adoção do controle de constitucionalidade, parece afirmar-se e
conformar-se melhor com a descentralização e democratização do processo, o que
implica dizer que cada juiz de direito e cada tribunal possa continuar exercendo a
jurisdição constitucional.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
48
Edimara Sachet Risso e outros
1
PODER JUDICIÁRIO, DEMOCRACIA E INSEGURANÇA JURÍDICA
O Poder Judiciário adquiriu um papel de destaque no Estado moderno
especialmente após a Segunda Guerra Mundial, cujas atrocidades marcaram a
desconfiança na força formal da lei.
Segundo Perelman (1998, p. 185), desde então ao juiz é confiada “a missão
de buscar, para cada litígio particular, uma solução equitativa e razoável, pedindolhe ao mesmo tempo que permaneça, para consegui-lo, dentro dos limites
autorizados por seu sistema de direito”.
Antes disso, na França pós-Revolução, o temor de um gouvernement des
judges nos moldes do período imediatamente anterior fez surgir o dogma da
separação completa dos poderes, cada um com sua função. À época, chegou-se a
querer negar aos juízes a possibilidade de interpretação das normas, devendo
limitarem-se a sua aplicação.
Desde o surgimento do estado tripartite, então, a imagem negativa tem
acompanhado o Poder Judiciário. Contudo, não se pode atribuir tão somente a esse
apontamento histórico o desgaste da imagem do Judiciário. Prado (2003, p. 41)
informa que, no Brasil de hoje, “o juiz é coletivamente percebido como um
personagem um tanto anacrônico, que trabalha sem a presteza esperada pelas
partes, um ser distante, instalado em pomposos locais de trabalho”.
Não se pode negar, também, que, embora o presente trabalho não tenha por
objetivo passar a limpo a imagem do Poder Judiciário, essa consciência coletiva tem
recebido influência dos meios de comunicação de massa.
Da mesma forma, decisões contrárias aos interesses econômicos e políticos,
assim como a natural insatisfação daqueles que submetem seu litígio à apreciação
de um terceiro – e na mais comum das vezes veem suas pretensões rejeitadas –
contribuem para a reação natural e instintiva de rejeição ao Judiciário.
De todos os fatores que contribuem para o descrédito do Poder Judiciário,
há um que tem ocupado, não sem razão, a pauta constitucionalista nos últimos
tempos: o fato de o Poder Judiciário ser o único poder da República que não se
submete a nenhum critério de legitimação pelo sufrágio eleitoral.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
49
Efeito vinculante e segurança jurídica
Comparato (2004, p. 07) indica que o ponto de encontro entre o Poder
Judiciário e o princípio democrático efetivamente não reside na forma de escolha
dos integrantes do Poder Judiciário. Para o autor, a compatibilidade entre o juiz e a
democracia reside no prestígio público de que deve gozar.
No Brasil, contudo, o Poder Judiciário tem sofrido, nas últimas três décadas,
além das tradicionais ranhuras na sua imagem, de uma sobrecarga de trabalho, em
razão do franqueamento do acesso à justiça. E isso tem causado um danoso
descompasso entre a procura e a oferta dos serviços judiciários, gerando um
crescente e assustador saldo remanescente de demandas não julgadas no tempo
adequado.
Por outro lado, a desaxiologização das relações humanas, a facilidade de
acesso a bens e serviços, com a globalização, trouxeram como consequência
inúmeros contratempos que a sociedade não deu conta de naturalmente solucionar,
desaguando no Poder Judiciário a litigiosidade decorrente.
Assim é que a crise institucional tem como base inúmeras causas, não se
podendo atribuir o aumento da demanda a um único fator. Nesse sentido, há certo
consenso na doutrina de que a Constituição Federal de 1988 aproximou a justiça
dos cidadãos, de que o novo modelo econômico exige estabilidade nos negócios e,
portanto, decisões eficazes, rápidas. A tudo isso, some-se o esmorecimento do
Estado intervencionista, exigindo do Poder Judiciário que se substitua no papel da
administração pública na efetivação dos direitos fundamentais.
Deve-se, ainda, levar em consideração que a diversidade de tribunais e a
amplitude continental do País são características próprias do Brasil e que podem
conduzir a decisões díspares para casos idênticos apresentados para apreciação do
Poder Judiciário.
As duas situações – demora na prestação jurisdicional e decisões
conflitantes
–
têm
culminado
no
descrédito
do
Poder
Judiciário
e,
consequentemente, do Estado, como instituição apta à administração da justiça.
A insegurança jurídica causada por esse caos é flagrante. Segurança remete
ao sentimento de ordem, justamente de oposição ao caos. E a ordem é o objetivo do
Estado.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
50
Edimara Sachet Risso e outros
Ora, a segurança de um ordenamento jurídico depende de fatores
intrínsecos de uma sociedade para que, durante certo tempo, as normas vigentes
permaneçam vigentes.
Os sintomas descritos são evidentes, tal qual descreve Nunes (2010, p. 7),
invocando Hannah Arendt:
Não resta dúvida de que vivemos hoje uma situação de crise. Uma crise, no
entanto, nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas, novas
ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamentos diretos. Uma crise só se
torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados isto
é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise, como
nos priva da experiência da realidade e da oportunidade que ela
proporciona a reflexão.
A ineficiência tem sido o alvo dos tribunais na formulação de sua política
interna, que criam estratégias de desobstrução de pautas e aceleração dos
julgamentos, a exemplo dos chamados “mutirões” e da implantação de sistemas de
gestão que incluem a informatização, dentre outras medidas administrativas.
Ao mesmo tempo, com o intuito de tornar o Judiciário mais eficiente,
propiciando uma tempestiva prestação jurisdicional, mas também com o intuito de
objetivar as demandas, diversas alterações legislativas têm sido feitas desde a
década de 80, especialmente nas normas de Direito Processual Civil, todas visando
à desburocratização de procedimentos, o que inclui a padronização e a ampliação
do efeito vinculante das decisões em controle concentrado de constitucionalidade
para aquelas oriundas do controle difuso.
A chamada “Reforma do Poder Judiciário”, introduzida pela Emenda
Constitucional n. 45/2004 teve foco direcionado e estratégia a ser alcançada,
destacando-se três principais pontos: dar acesso ao Judiciário à população carente,
ampliar a defesa dos interesses coletivos em juízo e, ainda, o cuidado com o
respeito aos que recorrem ao Judiciário, por meio de prestações céleres e, portanto,
eficazes.
Com isso, ter-se-ia uma redução drástica do número de recursos interpostos
com institutos meramente protelatórios. (FARIA, 2008, p. 8)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
51
Efeito vinculante e segurança jurídica
Nas palavras de Nunes (2010, p. 160), a controvérsia atual tem de possuir o
efeito multiplicador sobre eventuais litígios, no sentido de que a incerteza sobre o
agir dos órgãos judiciários estimula os jurisdicionados a propor um cada vez
crescente número de ações com o mesmo objeto. A edição da súmula, pondo um pá
de cal sobre o tema, é capaz de refrear esse impulso, estabilizando as posições de
determinada relações jurídicas.
2
JUDICIÁRIO E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO DIREITO
Ao mesmo tempo em que possibilitou o amplo acesso à Justiça, a
Constituição Federal de 1988 delineou a democracia na República Federativa no
Brasil na forma de princípios, instituições e procedimentos. Os primeiros servem de
fundamento
ao
regime
democrático,
enquanto
que
as
instituições
e
os
procedimentos cuidam da sua concretização.
A ideia de democracia embasa-se essencialmente em dois princípios: o da
igualdade de todos os componentes da sociedade e o da soberania popular,
também chamado de autonomia coletiva.
Assim é que são estabelecidas regras que determinam os procedimentos
pelos quais a democracia materializa-se em instituições e autoridades às quais é
delegado o poder de governar. Aos legítimos representantes do povo, no caso das
democracias representativas, como a brasileira, cabe o papel de tomar as decisões
que vinculam toda a sociedade, por meio de procedimentos que garantam a
democracia mínima ou procedimentalista (referida por BOBBIO, 2004).
Para além dos procedimentos de natureza técnica estão os valores aceitos e
eleitos pela sociedade como orientadores de sua conduta. Como principais valores
da democracia têm-se os princípios da igualdade e da soberania popular.
O princípio da soberania popular encontra lócus na Constituição Federal já
no art. 1º, que qualifica o Estado brasileiro como democrático. Ainda no art. 1º, o
parágrafo 1º, numa redundância explicada pelo reforço que se quis dar à força
normativa do princípio, dispõe que o poder emana do povo que o exerce direta ou
indiretamente, por meio de representantes. Forma-se, assim, a ideia não só que o
poder pertence ao povo, mas que por ele também é exercido.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
52
Edimara Sachet Risso e outros
Segundo Rocha (2009, p. 71), a Constituição Federal, com isso, “opera
transformação de grande relevância nesse princípio. É que, originariamente, ou seja,
fora do ordenamento jurídico, se trata de um princípio político, ou filosófico, ou moral,
como queira”. E, ao adentrar ao ordenamento jurídico, continua, “se transforma em
princípio jurídico, porque objeto de uma norma jurídica” (...) “passando a exercer
uma dupla função: serve de fundamento de validade de toda a legalidade produzida
no interior do Estado e, ao mesmo tempo, assegura a legitimidade da legislação que
vai sendo produzida pelos órgãos institucionais”.
Essa produção legislativa, por óbvio, ao ser aplicada no caso concreto, gera
tensões e uma complexidade que necessita ser tratada pelo sistema jurídico, por
meio do Poder Judiciário.
Com o enfoque da teoria sistêmica, tem-se que Luhmann (1990, 1993)
aponta para a dependência que há entre Legislativo e Judiciário, quando se
estabelece, como no art. 97 da Constituição alemã, que, verbis, "os juízes são
independentes e estão sujeitos apenas à lei", o que, se de um lado, lhes retiraria a
atribuição política de fornecer as pautas de conduta na sociedade, de outro lado,
tem-se que, por não poderem ser responsabilizados politicamente por suas
decisões, tornam-se livres para operar com o Direito, a partir do próprio Direito,
transformando, pela interpretação, os institutos em que se assentam as bases
sociais: propriedade, contrato, família, por exemplo.
A mencionada autonomia do sistema jurídico não há de ser entendida no
sentido de um isolamento deste frente aos demais sistemas sociais, o da moral, o da
religião, o da economia, o da política, o da ciência, dentre outros, funcionalmente
diferenciados, em sociedades complexas como as que se tem na atualidade.
Essa autonomia significa, na verdade, que o sistema jurídico funciona com
um código próprio, sem necessidade de recorrer a critérios fornecidos por algum
daqueles outros sistemas, aos quais, no entanto, o sistema jurídico se acopla, pelos
procedimentos desenvolvidos em seu seio, de reprodução jurídica, de natureza
legislativa, administrativa, contratual e, principalmente, judicial. (GUERRA FILHO,
1997, p. 195)
A tese da "procedimentalização do Direito" deve-se ao jusfilósofo
frankfurtiano Rudolf Wiethõlter, partindo da constatação de que, nas sociedades
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
53
Efeito vinculante e segurança jurídica
pós-industriais, o direito de natureza formal, com predomínio de normas gerais e
abstratas, descrito por Max Weber como sendo aquele das sociedades modernas,
não se mostra adequado para garantir a concretização de objetivos e interesses
coletivos, tal como se mostrou eficaz na proteção de liberdades civis dos indivíduos,
frente ao Estado e pelo Estado. Diante da complexidade do mundo pós-moderno, as
soluções melhores dos problemas que lhe são peculiares hão de surgir do confronto
entre opiniões divergentes, desde que se parta de um consenso básico.
Pode-se assim dizer com Canotilho (1991, p. 4), que “o procedimento
adquiria, no mundo jurídico-constitucional, uma narratividade emancipatória em
plena consonância com os movimentos sociais, culturais e econômicos de finais da
década de 60”.
Vê-se como efetivamente se pode sustentar a tese que interessa defender
no momento: a de que o Judiciário deve assumir, na atualidade, a posição mais
destacada, dentre os demais Poderes estatais, na produção do Direito.
As decisões a respeito de problemas envolvendo conflitos sociais sobre
interesses coletivos realmente encontram uma regulamentação insuficiente, mas
também, por sua novidade, não seria de se ver aí algo de muito inconveniente, pois
é melhor mesmo que eles sejam inicialmente tratados e resolvidos no âmbito de
procedimentos judiciais. Esses procedimentos devem ser estruturados de forma a
permitir a mais ampla participação daqueles “sujeitos coletivos” (SOUZA JUNIOR,
1991, p. 131 e ss.), com a integração do maior número possível de pontos de vista
sobre a questão a ser decidida, havendo ainda de se prever a possibilidade de a
decisão se tornar, a um só tempo, vinculante para casos futuros semelhantes e
passível de ser modificada, diante da experiência adquirida em sua aplicação.
Note-se, aí, que os procedimentos judiciais, tal como se apresentam
tradicionalmente estruturados, para dar soluções efetivas a conflitos que não são
apenas interindividuais, hão de sofrer profundas alterações em institutos basilares,
como o da legitimidade de agir e da coisa julgada, para dar conta satisfatoriamente
da solução de conflitos sociais.
Assim é que se pode chegar a ter um texto constitucional que efetivamente
forneça a pauta de todo debate político, em um verdadeiro Estado Democrático de
Direito (LUHMANN, 1993, p. 478 e ss.).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
54
Edimara Sachet Risso e outros
Essas circunstâncias fazem do Judiciário a unidade do sistema legal que,
por definição, opera de forma recursiva (ou seja, numa relação autorreferencial)
somente com elementos desse sistema, o que o torna um sistema "funcional
diferenciado". Embora hajam elementos a serem encontrados nesse ambiente que
também pertençam a outros – da moral, da economia, da política –, enquanto eles
são usados pelo Judiciário para justificar decisões, como por um "toque de Midas"
eles são convertidos em elementos do sistema jurídico: o sistema é fechado com e
não para o meio (GUERRA FILHO, 1989, p. 82).
E é porque esse fechamento operacional é postulado que o Judiciário ocupa
o centro mesmo de sistemas jurídicos que são autônomos, ou autoprodutivos,
enquanto o Legislativo, juntamente com outras unidades, são periféricas. No sistema
político, ao contrário, o Legislativo ocupa o centro, enquanto o Judiciário aparece na
periferia.
Teubner (1983, p. 279) formulou exemplarmente:
quanto mais os sistemas jurídicos se especializam em sua função de criar
expectativas na regulamentação de conflitos, tanto mais desenvolvem
normas e formas mais refinadas de procedimentos, os quais podem ser
usados para um controle de comportamento orientado para o futuro. Isso
somente pode ser formulado nos seguintes termos paradoxais: o Direito,
posto como autônomo em sua função – formalidade –, torna-se
progressivamente dependente das demandas para desempenho em seu
meio social - materialidade.
Autonomia, nesse contexto, significa apenas que o sistema jurídico funciona
com o seu próprio código, ou seja, que na determinação do que seria lícito e
juridicamente adequado ou ilícito e juridicamente inadequado não há necessidade
de se importar critérios de outros sistemas, mesmo estando eles conectados ao
sistema jurídico, por procedimentos de várias espécies, que são de fundamental
importância para as operações dentro dos sistemas da autorreprodução jurídica.
3
A PRODUÇÃO DO JUDICIÁRIO E O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA
JURÍDICA
Em princípio, cabia ao ordenamento jurídico manter a organização social.
Nesse sentido, a confiabilidade era depositada no governante. Com o surgimento do
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
55
Efeito vinculante e segurança jurídica
Estado de Direito, com o reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais e
com regras que se destinam também aos governantes, somente se pode falar em
estabilidade do ordenamento.
O ser humano necessita de segurança para conduzir, para planejar e para
conformar sua vida. É nesse sentido que o princípio da segurança jurídica é
considerado como elemento constitutivo do Estado de direito (CANOTILHO, 2002, p.
257).
Segundo Souza (1996, p. 128), a segurança está implícita no valor justiça,
sendo um a priori jurídico. O doutrinador afirma ainda que se a lei é garantia de
estabilidade das relações jurídicas, a segurança se destina a estas e às pessoas em
relação; é um conceito objetivo, a priori, conceito finalístico da lei.
Há de se reconhecer que o comando desse princípio, mesmo que abstrato,
não está voltado apenas para a regulação das condutas humanas e dos agentes
públicos, mas, igualmente, para a elaboração das normas que darão a sustentação
legal necessária a amparar as condutas.
A segurança jurídica é, pois, um direito fundamental dos cidadãos, que se
materializa pelos princípios da legalidade, da igualdade, da irretroatividade, da coisa
julgada, do direito à propriedade, e todas as outras garantias asseguradas pelo
artigo 5º do texto constitucional.
A ordem jurídica, para gerar confiança a seus destinatários, necessita de
uma estabilidade, já que a falta de parcimônia na mudança de regras faz com que a
sociedade deixe de confiar no ordenamento.
Para Aristóteles (2002, p. 54):
É, pois, evidente que há certas leis a mudar, em épocas determinadas.
Todavia, se considerarmos esta questão sob outro aspecto, ela parece
exigir bastante prudência. Porque quando a melhoria é de pouco vulto, e
sendo perigoso habituar os cidadãos a mudar facilmente de leis, é claro que
vale mais deixar subsistirem alguns erros dos legisladores e dos
magistrados. Haverá menor vantagem em trocar de leis que perigo em
fornecer ensejo a que os magistrados sejam desobedecidos.
Isso significa dizer que a confiabilidade do ordenamento pode ficar
prejudicada.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
56
Edimara Sachet Risso e outros
Conclui-se, por ora, com Gusmão (2007, p. 76), que “Segurança Jurídica é a
relativa estabilidade da ordem jurídica, garantidora, por um período razoável, do
conteúdo das normas que a compõem”. Logo, há uma dependência de permanência
das normas no ordenamento jurídico, por meio da segurança contida no próprio
ordenamento.
Para o ordenamento jurídico, essa estabilidade chama-se segurança e faz
parte de sua estrutura. O ordenamento é estruturado para ser ‘seguro’ e
como tal ele cobra, dos cidadãos condutas certas, segundo o Direito, como
se dissesse ‘não abale meu equilíbrio e não desequilibrarei sua segurança’
(SOUZA, 1996, p. 77).
A segurança jurídica não vem discriminada como regra explícita nos
ordenamentos jurídicos, mas esses lhe fazem referência, bem como a alguns de
seus aspectos. No Brasil, o princípio é consagrado no Preâmbulo e no caput e inciso
XXXVI do artigo 5° da Constituição.
O Preâmbulo da Constituição Federal dispõe como finalidade da
Constituição Federal "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça". O
caput do artigo 5°, por seu turno, garante a "inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Já o inciso XXXVI, desse
mesmo artigo constitucional, estabelece a proteção ao "direito adquirido", ao "ato
jurídico perfeito" e à "coisa julgada". Como dito acima, dentre essas disposições, a
garantia à coisa julgada é a manifestação positiva do princípio da segurança jurídica
que atrairá todas as atenções nos Capítulos subsequentes.
Uma primeira finalidade do princípio da segurança jurídica destina-se aos
fatos futuros, ou seja, conhecendo de antemão as regras a serem aplicadas, os
indivíduos poderão pautar suas condutas sob o crivo da legalidade, sabendo dos
efeitos jurídicos delas pelas normas vigentes à época dos fatos.
Segundo Carvalho (2002, p. 91), cabe à segurança jurídica “coordenar o
fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade
social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da
conduta.”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
57
Efeito vinculante e segurança jurídica
Outra finalidade é a de tranquilizar os indivíduos quanto aos fatos pretéritos,
respeitando-se o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a força da coisa julgada.
Para Barroso (2009, p. 50-51),
No seu desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, a expressão
segurança jurídica passou a designar um conjunto abrangente de idéias e
conteúdos, que incluem:
1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim
como sujeitas ao princípio da legalidade;
2. a confiança nos atos do Poder Público, que deverão reger-se pela boa-fé
e pela razoabilidade;
3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das
normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais
incidem e na conservação de direitos em face da lei nova;
4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos
como os que devem ser suportados;
5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas para
situações idênticas ou próximas.
Para Gustav Radbruch a segurança jurídica requer quatro condições: que
haja ordenamento estatuído em leis; que este esteja baseado em fatos e que não se
remeta a juízos de valor do juiz em tomo do caso concreto, mediante critérios
genéricos como o da boa fé e o dos bons costumes; que os fatos em que se baseia
o ordenamento possam estabelecer-se com a menor margem possível de erro,
sendo praticáveis; e que o ordenamento não seja exposto a modificações
frequentes.
A segurança é o princípio que forma intelectivamente nos destinatários a
certeza do direito. A segurança jurídica dá aos indivíduos a certeza de agir conforme
o direito (SOUZA, 1996, p. 25-28). E, ainda, “Segurança é fato, é o direito como
factum visível, concreto, que se vê”.
Fala-se em certeza do direito quando o sistema tende a abolir lacunas da lei,
obscuridades, complicação dos dispositivos legais, excesso de legislação, a demora
nos julgamentos, o direito livre como forma de instabilidade, a mutabilidade ou a
multiplicidade indiscriminada das leis.
A segurança e a certeza do direito são necessárias para que haja justiça
porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o
cumprimento de obrigações.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
58
Edimara Sachet Risso e outros
4
SEGURANÇA JURÍDICA E A FUNÇÃO DO DIREITO
Ora, todo poder emana do povo5, que age através de seus representantes
eleitos para atingir o fim maior do Estado Democrático de Direito, qual seja, o bem
comum.
Assim, tem-se que a atividade legiferante cabe somente àqueles que estão
investidos legitimamente em cargos eletivos, possuindo, portanto, o múnus
legislativo, como bem observa Diniz (1997, p. 292) quando afirma que é “certo que,
tanto na França como no Brasil, o juiz não tem o poder de legislar, ora, o costume é
oriundo do povo, e este, salvo exceção, como nos casos de plebiscito, não possui
também o múnus legislativo”.
Tal afirmativa comprova que o legislador deverá procurar atender aos
anseios sociais no momento da elaboração das leis, pois estas compõem e guiam o
ordenamento jurídico.
Porém, como bem observado por Bonavides (1996, p. 203),
democracia moderna oferece problemas capitais, ligados às contradições
internas do elemento político sobre que se apóia (as massas) e à hipótese
de um desvirtuamento do poder, por parte dos governantes, pelo fato de
possuírem estes o controle da função social e ficarem sujeitos à tentação,
daí decorrente, de o utilizarem a favor próprio (caminho da corrupção e da
plutocracia) ou no interesse do avassalamento do indivíduo (estrada do
totalitarismo).
Corroborando esse entendimento, Souza (1996) afirma que o legislador,
quando legisla, está mais vinculado ao Estado, em cuja direção costuma se orientar,
por meio de vínculos partidários e de poder. De fato, nas democracias
contemporâneas, o Legislativo está fortemente ligado (senão subordinado), ao
Executivo.
Pode-se dizer, com Reale (1998, p. 171), que a lei vai variando de sentindo
em função de múltiplos fatores sendo um deles quando se altera a tábua dos valores
de aferição da realidade social.
5
Constituição Federal, Artigo 1º, parágrafo único.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
59
Efeito vinculante e segurança jurídica
A jurisprudência, por sua vez, como fonte do Direito6, traduz-se em uma
exigência de uma série de julgados que guardem, entre si, uma linha essencial de
continuidade e coerência (REALE, 1998, p. 168). Logo, jurisprudência possui uma
função reveladora do Direito que produz uma norma que vem a completar o seu
sistema objetivo.
Segundo Diniz (1997, p. 294 e 295), a importância normativa da
jurisprudência é a criação das súmulas que se revestem no enunciado que se
resume
uma
tendência
sobre
determinada
matéria,
decidida
contínua
e
reiteradamente pelo tribunal, constitui uma forma de expressão jurídica, por dar
certeza a certa maneira de decidir.
Com base no referencial teórico utilizado nesse trabalho, o princípio da
segurança jurídica pode ser compreendido como uma metacomunicação do sistema
jurídico que visa a assegurar a estabilização das expectativas normativas em torno
das comunicações que o integram.
É por isso um conceito reflexivo, pois, ao tempo em que se refere a todas as
comunicações normativas do sistema, refere-se a si próprio, institucionalizando a
expectativa de que vige no direito um princípio que imprime segurança aos seus
fluxos comunicativos. Portanto, uma vez selecionada determinada expectativa pelo
direito, o princípio da segurança jurídica obsta que essa expectativa venha a ser
alterada pelo próprio direito, o que desacreditaria suas estruturas.
Trata-se de um reforço à redundância do sistema, o que não impede,
contudo, a sua variação, por meio de decisões políticas ou mesmo pela alteração
nas circunstâncias sociais vigentes à época da decisão. Fora dessas situações bem
específicas de irritação do sistema – em torno das quais, inclusive, se estabilizam
expectativas de variação (segurança jurídica) –, o direito deve garantir a
permanência contrafática das comunicações que institucionalizou.
6
Miguel Reale afirma que toda fonte de direito implica uma estrutura normativa de poder, podendo
ser considerado quatro tipos de fontes, quais sejam, o processo legislativo, a jurisdição, os usos e
costumes jurídicos e a fonte negocial. Vale frisar que o juiz, muitas vezes, atualiza o sentido
possível da lei, ajustando-a às circunstâncias e contigências do momento, caracterizando a
jurisprudência como fonte de direito.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
60
Edimara Sachet Risso e outros
A segurança jurídica é o critério de diferenciação funcional do direito. Basta
observar que, para Luhmann, o direito autonomiza-se na contemporaneidade com a
função de generalizar expectativas normativas. As expectativas normativas são
aquelas que não aprendem com a crítica, subsistindo às divergências, aos conflitos,
às opiniões contrárias e até mesmo à desconformidade factual. Nesse sentido, são
expectativas muito mais seguras que as expectativas cognitivas.
Ao promover a generalização dessas expectativas nas dimensões temporal,
material e social, com a resultante produção da comunicação normativa, o direito
acrescenta à segurança inerente a toda expectativa normativa o atributo jurídico. Na
prática isso representa um enorme reforço à noção de segurança já presente nas
expectativas normativas.
O consenso presumido criado em torno da decisão tomada em
procedimentos jurídicos atua no plano das expectativas de expectativas, fazendo
com que todos esperem que todos aceitem a vinculação à expectativa selecionada.
Agora esta não precisa mais ser defendida individualmente, com o forte risco das
frustrações, mas conta com o apoio da instituição, que para a sua proteção se vale
inclusive da força física, em forma de sanção.
A extrema complexidade das condições sob as quais opera o sistema social
impede que haja equivalentes funcionais entre os sistemas parciais. Isso quer dizer
que cada sistema deve desempenhar uma função que lhe é exclusiva. Nessa
medida, a tarefa de se relacionar com a sociedade e com cada subsistema em
situações particulares, outorgando-lhes a certeza acerca da estabilidade de
determinados fluxos comunicativos, é tarefa inalienável do direito. Somente a ele
cabe reduzir a complexidade presente no fato social, determinando o que é lícito e o
que é ilícito (ou, mais especificamente, nos termos do presente trabalho, o que é
constitucional ou inconstitucional e vinculante).
A relação intrínseca do direito com o princípio da segurança jurídica decorre
também da natureza condicional dos programas que esse sistema utiliza. Ao
estruturar a comunicação normativa segundo um juízo de implicação jurídica, o
direito faz com que suas decisões dependam da verificação de fatos ocorridos no
passado, independentemente da avaliação das variáveis que um futuro incerto pode
trazer.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
61
Efeito vinculante e segurança jurídica
Os programas condicionais possibilitam que a comunicação jurídica seja
estruturada com vistas a fazer prevalecer determinada consequência sempre que
ocorrer um dado fato. Com isso, eles conferem a segurança de que essa
consequência pode e deve ser esperada normativamente.
Por outro lado, a aplicação dos programas finalísticos desloca o foco do
problema da segurança para o risco, da estabilidade para a eficácia, da certeza para
o sucesso.
Mas, em que pese decidir com base em pressupostos, a função de
generalizar expectativas normativas coloca o direito também diante do desafio de
estabilizar fluxos comunicativos no futuro. Sem esse tipo de vínculo, o direito
dificilmente teria capacidade operacional para exercer sua função numa sociedade
tão complexa. Assim o sistema jurídico se compromete sem se comprometer. Para o
cumprimento dessa finalidade, o direito constrói indicações gerais que se mantêm
estáveis ou aguçam sensibilidades específicas, em diferentes circunstâncias. Essa
relação com o futuro explica a necessidade de o sistema construir simbolizações e,
de uma maneira bastante especial, de construir a simbologia da segurança jurídica.
A importância dessa simbologia no direito contemporâneo é realmente muito
grande. Assim concebida, a norma jurídica tem uma íntima e indissociável relação
com o símbolo da segurança jurídica, a ponto de ser possível afirmar que uma
determinada comunicação somente se caracteriza como normativa quando atinge
um grau de institucionalização suficiente para conferir segurança jurídica às
expectativas que representa.
Com essa roupagem, o conceito da segurança jurídica é fruto da
constituição autorreferencial do direito, no âmbito de suas operações de autoobservação. Para Tercio Sampaio Ferraz Junior, o conceito de segurança jurídica
repousa no aspecto intuitivo de que onde o direito é claro e delimitado ele cria
condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de
seus próprios atos e dos atos dos outros. E como acuradamente observa, a
segurança jurídica exige positividade do direito: se não se pode fixar o que é justo,
ao menos que se determine o que é jurídico. Para que se tenha segurança jurídica,
a norma deve valer para todos, o que faz da igualdade outro atributo da segurança.
Igualdade aqui entendida, pode-se acrescentar, como o tratamento jurídico que
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
62
Edimara Sachet Risso e outros
guarda correlação lógica com a situação factual considerada para a aplicação da
norma, nos exatos termos da já clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello.
Como diz Luhmann, o horizonte do que passa a ser possível em termos de
experimentação e de ação na sociedade complexa se amplia e coloca o direito
natural, por princípio imutável, diante de múltiplas e novas possibilidades. Aquilo que
se supunha ser constante e corresponder a uma espécie de ordem natural passa a
ser reconhecido como uma escolha, isto é, como uma opção dentre muitas. Essa
mudança estrutural faz da decisão o elemento fundamental do direito, que assim
passa a ser concebido como direito positivo.
Assim é que, no estágio do direito positivo, o estabelecimento do direito por
meio da decisão é a tônica do sistema jurídico. O sistema vige não em razão de
orientações superiores, mas porque sua seletividade é capaz de generalizar
expectativas normativas por meio de decisões. E essas decisões, embora excluam
outras possibilidades, não as elimina do horizonte de experimentação do direito,
podendo elas sempre vir a ser reintroduzidas como modificações no direito vigente.
Nesse estágio do sistema, torna-se totalmente inadequado serem invocadas
bases invariáveis ou valores absolutos ou mesmo um conjunto de normas éticas
como fundamento de validade das orientações jurídicas. A certeza que os valores
parecem conferir é totalmente ilusória e traz um nível de insegurança que não é
compatível com a necessidade de fortalecimento das decisões jurídicas.
Campilongo (2002, p. 118-119) adverte que "a magistratura tem o
fundamento da sua legitimidade não no processo político e eleitoral, mas na
processualidade a que estão submetidas suas decisões". Pretender-se menosprezar
essa processualidade pelo recurso a juízos políticos que buscam ver na decisão
passada em julgado uma violação a valores como a isonomia, a moralidade ou a
justiça, é atropelar "regras elementares da democracia, como o respeito à oposição,
às garantias do contraditório e do devido processo legal e, enfim, a manutenção de
altas taxas de contingência e complexidade inerentes às sociedades modernas".
Dessa maneira, continua, ou os tribunais
operam em consonância com as exigências de especificação, autonomia e
profissionalização que lhe impõe o sistema jurídico, ou caminham para um
voluntarismo autoritário que tenderá, a curto prazo, a solapar as condições
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
63
Efeito vinculante e segurança jurídica
ainda titubeantes de afirmação de uma verdadeira independência judicial
entre nós.
Há que se acrescentar, também que a ideia de tempo é ínsita à ideia de
segurança. A identificação dos conceitos é tão grande que chega a passar
despercebida. Não há segurança nem no futuro nem no passado. A segurança se
constrói no presente, com o auxílio da ideia abstrata do tempo.
Portanto, a segurança representa a garantia no presente de como será o
futuro do sistema jurídico, futuro esse que será construído em outros presentes.
Tudo isso traz a ideia de estabilidade e renovação, vale dizer, renovação de
comunicações jurídicas que implementem aquela mesma estabilidade em outros
momentos do sistema.
5
A SÚMULA COM EFEITO VINCULANTE COMO CONCRETIZAÇÃO DA
SEGURANÇA JURÍDICA
A premissa de um Poder Judiciário mais ativo, capaz de dar respostas de
forma a reduzir a complexidade, vem trilhando seu caminho. A adoção da súmula
vinculante vem no sentido de dar igualdade a casos que merecem o mesmo
prestígio, promovendo a desburocratização e apostando devolver ao Judiciário sua
confiança.
Nascem, então, a jurisprudência e os precedentes vinculantes.
No mundo ocidental, vigoram essencialmente dois grandes sistemas
jurídicos: o da Common Law e o da Civil Law. Este último, Civil Law, iniciou sua
formação na Europa Ocidental tendo seu ápice no século XVI d.C. quando o
Imperador Europeu da época, Justiniano, lançou uma obra composta de quatro
livros, Institutas, Pandectas, Digesta e Codex, a qual fora chamada e conhecida
como Corpus Juris Civilis, feita por uma comissão de juristas a serviço do Império
Romano. As Institutas foram direcionadas para ser material didático acessível ao
estudante de direito de conteúdo histórico romano e suas leis.
Como ensinam Maciel e Aguiar (2008, p. 108), o Corpus Juris Civilis
apresentava várias vantagens em relação às centenas de direitos locais existentes
na Europa durante a Idade Média, já que era um direito escrito, enquanto os direitos
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
64
Edimara Sachet Risso e outros
das diferentes regiões da Europa Medieval eram de base essencialmente
consuetudinária. Além disso, era muito mais completo do que os direitos locais,
compreendendo numerosas instituições que a sociedade feudal não conhecia.
Surgia como o direito necessário ao progresso econômico e social em oposição às
instituições tradicionais da Idade Média. Tanto era necessário que em vários países
foi o direito romano reconhecido como direito supletivo aplicado nos casos em que
os direitos locais não tinham previsão legal. Foi o Corpus Juris Civilis obra-prima do
direito romano. Com sua redescoberta e consequente utilização pelos europeus,
acabou por ser a base principal do atual sistema jurídico brasileiro, que faz parte dos
chamados “direitos romanistas”, presentes na Europa continental e também nas
suas ex-colônias.
De acordo com Wolkmer (2007, p. 128), o direito romano continua vivo em
várias instituições liberais individualistas contemporâneas, principalmente naquelas
instituições jurídicas concernentes ao direito de propriedade no seu prisma civilista e
ao direito das obrigações, norteando o caráter privatístico do Código Civil.
Já o Common Law é um direito jurisprudencial, elaborado pelos juízes e
mantido graças à autoridade reconhecida aos precedentes judiciais. Com exceção
do período de sua formação, a lei não desempenha qualquer papel na evolução
desse sistema jurídico. É, portanto, muito diferente do sentido da expressão ius
commune (direito comum), utilizada nos outros principais países da Europa,
localizados no continente, para designar, especialmente a partir do século XVI, o
direito erudito, elaborado com base no direito romano e servindo de subsídio ás leis
e costumes de cada país. Common Law, portanto, é o nome que se dá ao sistema
jurídico elaborado na Inglaterra a partir do século XII, embasado nas decisões das
jurisdições reais. Inicialmente chamado de comune ley pelos normandos, que na
época dominavam aquele país, passou a ser utilizado no século XIII para designar o
direito comum da Inglaterra, o direito que valia para todo reino, em oposição aos
costumes locais, próprios de cada região do país.
Destaca-se que, a jurisprudência é a fonte primeira do direito da Common
Law, ou seja, cota-se previamente a decisão de um caso antecedente para a
solução futura. Averiguam-se todos os casos semelhantes, para então chegar ao
precedente que mais se acomoda ao caso concreto.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
65
Efeito vinculante e segurança jurídica
Nos países onde vige o sistema da Common Law – Reino Unido (Inglaterra,
Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales), a maior parte dos Estados Unidos e do
Canadá, e as ex-colônias do Império Britânico –, acima da legislação e de qualquer
outra fonte de direito está o caso julgado pelas cortes de justiça, as quais instituem
os precedentes vinculantes (stare decisis), que é o direito baseado na cultura e na
experiência daquele país.
Por ser um direito judiciário, sofreu pouca influência do direito romano, já
que era adotado como direito supletivo, preenchendo as lacunas legislativas dos
sistemas europeus da época. Como o Common Law não era baseado em leis, ficou
praticamente impossível a utilização do direito romano na sua complementação
(MACIEL e AGUIAR, 2008, p. 114).
Nunes (2010, p. 125) ensina que, assim como na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal existe a súmula da jurisprudência dominante, de caráter meramente
persuasório, e, após a edição da Emenda Constitucional n. 45, a súmula de natureza
vinculante, também no direito de common law existe o precedente vinculante, o
binding precedent, e o precedente de natureza meramente persuasória, persuasive
precedent.
Tem-se um binding precedent, isto é, precedente de aplicação obrigatória,
quando proferido por órgão da jurisdição hierarquicamente superior àquele que vai
julgar o caso futuro e que dele não se poderá afastar. Tem-se um precedente de
natureza meramente persuasiva, persuasive authorithy, quando (a) não se tratar de
decisão de última instância a que esteja vinculada a corte que vai aplicá-lo; ou (b)
quando se tratar de decisão de corte de outro sistema judiciário, tal como a corte de
última instância estadual de um Estado dos Estados Unidos diferente daquele em
que tramita o processo no qual se quer utilizar o precedente (NUNES, 2010, p. 125).
Por estímulo da globalização, a qual facilitou as comunicações, passou a se
observar uma influência recíproca entre as famílias romano-germânicas, Civil Law, e
da Common Law, e uma passa a coexistir intensamente na outra, nascendo uma
circulação de propostas entre elas.
Pode essa ideia ser percebida a partir da constatação de como a
jurisprudência vem tomando proporções e importância, ou seja, há na comunidade
jurídica brasileira um prestigiamento da função criadora do juiz.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Edimara Sachet Risso e outros
Ensinam Maciel e Aguiar (2008, p. 118) que, atualmente, o divórcio é
crescente entre o tradicional Common Law, de espírito liberal, e a legislação cada
vez mais abundante de inspiração social, tendente a assegurar a intervenção do
Estado nos domínios econômicos e sociais. O resultado é a aproximação cada vez
maior entre os dois grandes sistemas jurídicos do ocidente: o Common Law valoriza
cada vez mais as leis (statutes) e o Civil Law valoriza cada vez mais a
jurisprudência. Caminha-se para a formação de um sistema misto, e a concretização
desse fato não demora.
Um princípio norteador chamado stare decisis7, que representa, em linhas
gerais, a possibilidade jurídica de que o juízo declare-se vinculado a decisão
anterior, em consequência da identidade de casos, nasceu na doutrina do Commom
Law, o qual se encontra diretamente ligado à formação do direito inglês. Na
ausência de norma escrita, os juízes precisam formular a decisão para o caso
concreto, a regra é, então, dar uma medida de previsibilidade da maneira pela qual
uma dada controvérsia pode ser resolvida.
Nunes (2010, p. 122) assim se manifesta a respeito desse instituto:
A doutrina do stare decisis repousa no princípio de que um Tribunal é uma
instituição requisitada a aplicar um corpo de leis, e não um grupo de juízes
proferindo decisões isoladas nos casos a eles submetidos. Assim sendo, as
regras de direito não devem mudar caso a caso ou de juiz a juiz. Tal
doutrina manifesta o reconhecimento de que aqueles que se encontram
engajados em transações baseadas nas regras de direito que estão
prevalecendo podem confiar em tal estabilidade. Em suma, o stare decisis
promove um imparcial, previsível e consistente desenvolvimento dos
princípios legais, fomenta confiança nas decisões judiciais; e contribui para
a real integridade do processo judicial.
Observa-se que os precedentes vinculantes vêm criando forças e se
ramificando no Civil Law, o que caracteriza essa proposta de integração de sistemas
jurídicos. É que o sistema romano-germânico é composto por elementos formais, leis
escritas, transparecendo ser solidamente mais eficaz.
Nunes (2010, p. 156) refere que a aproximação dos dois sistemas possui, ao
menos por ora, limitações naturais. O discrímen entre o precedente do sistema de
7
Deixe-se a decisão firmada e não se altere as coisas que foram assim dispostas.
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Efeito vinculante e segurança jurídica
Common Law e a súmula vinculante do sistema Civil Law, tal qual concebida, por
exemplo, no Brasil, possui traços claros, à medida que o precedente nos sistemas
de Common Law forma-se após uma única decisão, enquanto a formação da súmula
vinculante deve passar por um processo de maturação perante a mais alta Corte de
Justiça do País.
De tal modo discorre Vargas (2005, p. 102):
As diferenças que ainda existem, como já se disse, principalmente quanto
ao grau de criatividade do direito pelo juiz, tendem a desaparecer porque,
se uma das características do novo milênio, em processo civil, será a
especial atenção á efetividade da entrega da prestação jurisdicional, a outra
será a convergência das famílias do Civil Law e do Common Law. Uma
técnica processual civil cada vez mais internacional e eficaz é o objetivo.
E, em complemento significativo, Nunes (2010, p. 105) assim se refere:
É certo, esse dois sistemas jurídicos, que em passado não muito remoto
guardavam diferenças marcantes, hoje estão a aproximar-se. René David,
em obra clássica sobre direito comparado, reconhecendo essa tendência
afirma que “projeta-se, assim, um movimento de aproximação entre o direito
inglês e o direito do continente europeu; este movimento é estimulado pelas
necessidades do comércio internacional e favorecido por uma mais nítida
consciência das afinidades que existem entre países europeus ligados a
certos valores da civilização ocidental.
Entretanto, há que se observar que o efeito vinculante do precedente da
Common Law é uma decorrência natural própria do sistema, em que a decisão
jurisprudencial assume a função não apenas de dirimir determinada controvérsia
colocada para julgamento pelo magistrado, e sim, indo além, tem a obrigação de
conseguir que esse precedente vinculante (stare decisis) assegure que, no futuro,
caso análogo se baseie e venha a ser decidido com base no caso anterior, é
costume, é regra para todos, enquanto no Civil Law esse papel é assumido pela
força da lei, evidentemente com maior alento a Constitucional, e a jurisprudência,
que nasce de força vinculante com a súmula8 é utilizada quando nasce a
controvérsia, diferentemente da anterior, é nesse cavo que a força do sistema inglês
vem se incutindo.
8
Artigo 103-A da Constituição Federal e Lei 11.417/2006.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
68
Edimara Sachet Risso e outros
6
O INGRESSO DA SÚMULA COM EFEITO VINCULANTE NO SISTEMA
JURÍDICO BRASILEIRO
As chamadas súmulas surgiram no ordenamento jurídico brasileiro em
meados de 1963, vindo como uma tentativa de solução para o excesso de
demandas repetitivas que surgiam no Supremo Tribunal Federal. Houve êxito no
quesito rapidez no julgamento dos processos, mas sua utilização era restrita, tendo
em vista ter sido introduzida por emenda ao próprio Regimento Interno do STF.
O sucesso em prol da celeridade do Poder Judiciário ficou tão destacado
que, em 1973, com o advento do atual Código de Processo Civil, criou-se o incidente
chamado de “uniformização jurisprudencial”, pelo qual se autoriza qualquer Tribunal,
a nível nacional, a criar súmulas das suas jurisprudências.
Diz o art. 479 do referido Código:
Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros
que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na
uniformização da jurisprudência.
Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no
órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante.
Súmula, em Português, origina-se do latim summula e expressa o
diminutivo, o resumo, a menor parte, o sumo e a soma, no sentido do Civil Law
(precedentes reiterados de um tribunal para casos iguais).
Faltava, de toda sorte, instrumento que tornasse efetivamente obrigatório
seguir a orientação do Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição
Federal.
A expressão efeito vinculante não era de uso comum no sistema jurídico
brasileiro até a Emenda Constitucional n. 7 de 1977 que dispôs acerca da
representação interpretativa9.
9
Art. 9º, EC n. 7/77: “A partir da data da publicação da emenda do acórdão no Diário Oficial de
União, a interpretação nele fixada terá força vinculante, implicando sua não observância negativa
de vigência do texto interpretado”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
69
Efeito vinculante e segurança jurídica
Entretanto, após esta disposição, o Supremo Tribunal Federal já mostrou
interesse em operar efeito vinculante às suas decisões, quando introduziu e
disciplinou, no seu Regimento Interno, as decisões interpretativas10.
Em 1992, a força vinculante das decisões proferidas em sede de controle
abstrato de normas foi referida em Projeto de Emenda Constitucional, no qual o
Deputado Roberto Campos distinguiu eficácia geral (erga omnes) de efeito
vinculante11.
A propósito, com a criação do citado projeto é que em 1993 o efeito
vinculante
foi
introduzido
no
texto
constitucional
brasileiro
pela
Emenda
Constitucional 3 do ano de 1993.
Porém, o efeito vinculante encontra limitações, vez que, embora o deputado
quisesse alcançar, em seu projeto, não só a parte dispositiva do acórdão, atingindo,
também, os “fundamentos determinantes”, diferenciando o referido instituto de coisa
julgada, ainda existem posicionamentos doutrinários diversos, ao passo que a
emenda não incorporou a proposta em sua inteireza.
Nas lições de Mendes (2009, p. 1.334),
A concepção de efeito vinculante consagrada pela EC n. 03/93 está
estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31-2 da Lei
Orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta
apresentada pelo deputado Roberto Campos não deixa dúvida de que se
pretendia outorgar não só eficácia erga omnes, mas também efeito
vinculante à decisão, deixando claro que estes não estariam limitados
apenas à parte dispositiva. Embora a EC n. 3/93 não tenha incorporado a
proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi
positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta
original.
10
Art. 187, RISTF: “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da
Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”.
11
No referido projeto, o § 2º, do artigo 102, da CF, teria a seguinte redação: “As decisões definitivas
proferidas pelo Supremo Tribunal, nos processos de controle de constitucionalidade de leis e atos
normativos e no controle de constitucionalidade da omissão, têm eficácia erga omnes e efeito
vinculante para os órgãos e agentes públicos.” Ainda, o § 3º do mesmo artigo dispunha o seguinte:
“Lei complementar poderá outorgar a outras decisões do Supremo Tribunal Federal eficácia erga
omnes, bem como dispor sobre o efeito vinculante dessas decisões para os órgãos e agentes
públicos.” Ainda, o § 4º do artigo 103, da CF, neste projeto, assim ficaria: “Os órgãos ou entes
referidos nos incisos I a X deste artigo podem propor ação declaratória de constitucionalidade, que
vinculará as instâncias inferiores, quando decidida no mérito”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
70
Edimara Sachet Risso e outros
A discussão em relação a instrumentos que poderiam amenizar tal volume
de recursos no STF e contrapartida servir de base para as decisões de Tribunais
inferiores teve seu ápice em 2004, juntamente a uma forte campanha política que se
voltou à Reforma do Judiciário, que culminou com a Emenda Constitucional n. 45 a
qual trouxe um alicerce instaurador de contendas sem fim: a “Súmula Vinculante”,
reunindo, desde então, amantes e inimigos. As palavras de Dantas (2008, p. 179)
são no sentido de que foi nesse clamor popular por mudanças aptas a solucionar a
crise da Justiça que se acresceu a Constituição Federal (CF) o art. 103-A.
Conforme Marinoni e Arenhart (2007, p. 623), a Emenda Constitucional n.
45/2004 incluiu no texto constitucional o art. 103-A, que prevê a possibilidade de o
Supremo Tribunal Federal editar súmula com caráter obrigatório e vinculante para
todo o Poder Judiciário, e ainda para a Administração pública direta e indireta, em
todas as suas esferas. Nos termos do preceito constitucional,
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
proceder á sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
A expressão “vinculante”
12
vem do verbo vincular que por sua vez tem
origem latina vinculare que significa obrigar, sujeitar. (CARVALHO, 2008)
Mesmo com sua instauração, em 2004, parece que, a súmula vinculante,
não conseguiu seu objetivo frente o gigantismo do número de processos submetidos
12
Segundo o glossário do site do STF, acessado em 24 jul 2010, efeito vinculante “é aquele pelo
qual a decisão tomada pelo tribunal em determinado processo passa a valer para os demais que
discutam questão idêntica. No STF, a decisão tomada em Ação Direta de Inconstitucionalidade,
Ação Declaratória de Constitucionalidade ou na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental possui efeito vinculante, ou seja, deve ser aplicada a todos os casos sobre o mesmo
tema. As Súmulas Vinculantes aprovadas pela Corte também conferem à decisão o efeito
vinculante, devendo a Administração Pública atuar conforme o enunciado da súmula, bem como
todos os demais órgãos do Poder Judiciário do país. Os demais processos de competência do
STF (habeas corpus, mandado de segurança, recurso extraordinário e outros) não possuem efeito
vinculante, assim a decisão tomada nesses processos só tem validade entre as partes. Entretanto,
o STF pode conferir esse efeito convertendo o entendimento em Súmula Vinculante. Outro
caminho é o envio de mensagem ao Senado Federal, a fim de informar o resultado do julgamento
para que ele retire do ordenamento jurídico a norma tida como inconstitucional.”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
71
Efeito vinculante e segurança jurídica
ao crivo dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, visto a Corte usar de
mecanismos extraordinários, conforme Lima (2009, p. 137), assenta:
Em 2006, através da Emenda Regimental 20, o Regimento Interno do STF
foi modificado em seu art. 131, § 4º, para permitir este tipo de julgamento
em bloco, consistente em apreciação por “temas” e não por “casos”. Com a
alteração, estimou-se que a Corte julgaria 7.000 processos de uma só vez,
em uma única sessão. Por aquela época, o STF havia se deparado com
pesquisa segundo a qual apenas 45 temas em julgamento representavam
mais de 60% dos processos em curso no Tribunal. O Supremo vinha
trabalhando já com dois mecanismos que teriam acelerado seus
julgamentos. Um deles era a pauta temática utilizada pelo Plenário da Corte.
Por esta técnica, julgavam-se em seqüência na mesma sessão processos
relacionados ao mesmo tema. Deste modo, habeas corpus e extradição
estariam no mesmo bloco. Pelo segundo mecanismo as Turmas passaram
usar o sistema de listas, consistente em uma relação discriminada de casos
que já tinham jurisprudência assentada, julgando, então, todos os processos
em um só. São mecanismos “desesperados” para superar o volume de
processos da Corte, julgando no atacado.
A norma que regulamentou o artigo na Constituição Federal é a Lei n.
11.417, de 19 de dezembro de 2006. Alvim (2008, p. 238) refere que a súmula
vinculante, para vir a ser editada, pressupõe determinadas condições, que constam
do § 1º, do art. 103-A, da CF, e, que são reiteradas no art. 2º, caput e seu § 1º, da
Lei n. 11.417: (a) devem existir reiteradas decisões sobre a matéria da competência
do STF, i.e., interpretação e aplicação de matéria constitucional; (b) essas decisões
reiteradas dizem respeito a decisões de Tribunais outros, entre si, que não o STF, ou
de colisão de decisões destes com as do STF, pois é da existência de decisões
diferentes, sobre o mesmo assunto, que se pode configurar “grave insegurança
jurídica”; (c) também, coloca-se como elemento previsto a “relevante multiplicação
de processos sobre idêntica questão” (§ 1º, do art. 2º); (d) como, ainda, é possível
editar-se a súmula se a divergência de entendimento ocorrer entre decisões jurídicas
e órgãos da administração pública.
Alvim (2008, p. 235) ainda diz que a súmula vinculante objetiva impor o
entendimento estabelecido pelo STF, em plenário, pelo quorum de 2/3 (dois terços)
dos seus membros (art. 103-A, caput, CF e § 3º, art. 2º, Lei 11.417), a todos os
demais juízos e tribunais, e bem assim à administração pública, direta e indireta.
Em ensinamento de Nunes (2010, p. 129) lê-se:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
72
Edimara Sachet Risso e outros
Têm-se os assentos ou súmulas como deliberações obrigatórias, proferidas
por tribunais supremos, em decorrência de exame reiterado de casos
concretos, em que é eleita uma interpretação (ou um conjunto de
interpretações) de dado preceito normativo, a ser seguida por órgãos da
jurisdição e por quaisquer outros agentes do Estado que tenham dentre
seus misteres a aplicação do Direito.
Ainda vale dizer que, por meio da súmula vinculante, passa a não existir a
possibilidade de outro entendimento de texto constitucional, senão aquele que tenha
sido sumulado. Problema ulterior à edição da súmula vinculante é o de,
eventualmente, essa súmula comportar dúvida quanto ao seu entendimento, o que,
por certo, exigirá que ela mesma seja interpretada. O que a súmula torna obrigatório
é o entendimento do STF a respeito daquele determinado texto (constitucional). É
certo, por isso mesmo, que, alterado o texto constitucional, objeto da súmula, isso
haverá de repercutir no enunciado da súmula vinculante. Como, ainda, alterado o
texto da lei objeto da súmula, normalmente, isso repercutirá na súmula (ALVIM,
2008, p. 238).
7
O PAPEL DA JURISPRUDÊNCIA A PARTIR DO EFEITO VINCULANTE
Viu-se que o efeito vinculante foi introduzido no texto constitucional brasileiro
pela Emenda Constitucional n. 3 do ano de 1993. Com a referida Emenda, criou-se o
§ 2º do artigo 102, estabelecendo efeito vinculante para as Ações Declaratórias de
Constitucionalidade. Embora o citado efeito só produzisse a sua eficácia vinculante
em relação às ADC, a partir de então, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
passou a conferi-lo também às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), em
razão do caráter dúplice destas ações.
Mais tarde, em 1999, com a edição da Lei n. 9.868 e, posteriormente, com o
advento da Emenda Constitucional 45 de 2004, o efeito vinculante foi estendido
expressamente à ADI.
Cabe ressaltar que na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, a decisão também opera com efeitos vinculantes, inclusive no direito
municipal, conforme ensina Mendes (2009, p. 1351-1352).
Ciente da necessidade de ter de dar conta da complexidade que se
apresenta ao Poder Judiciário, o legislador constituinte derivado entendeu por bem
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
73
Efeito vinculante e segurança jurídica
de
incluir
na
Emenda
Constitucional
de
2004
os
seguintes
pontos:
a
proporcionalidade de juízes em relação à demanda judicial, prevista no art. 93, XIII
da Constituição Federal; o Conselho Nacional de Justiça, do art. 103-B da
Constituição Federal; o Princípio da Razoável Duração dos Processos, cujo art. 5º
da Constituição Federal ganhou um inciso (LXXVIII); a distribuição imediata dos
processos, conforme art. 93, XV da Constituição Federal; o fim das férias coletivas
na atividade Jurisdicional de 2º grau, que está no art. 93 XII da Constituição Federal;
a extinção dos Tribunais de Alçada, conforme o art. 4º da Emenda Constitucional
45/2004; as alterações no Recurso Extraordinário e a inclusão da Repercussão
Geral como requisito de admissibilidade; na Justiça do Trabalho, a ampliação da sua
competência; a Súmula Vinculante, tratada em especial neste estudo e disciplinada
no art. 103-A, da Constituição Federal.
Em princípio, deve-se concordar que a súmula vinculante é instrumento
adequado para tutelar a igualdade e a certeza ou segurança jurídica. Contudo,
esses não são os únicos valores em jogo, havendo também a democracia, a
liberdade entendida como autonomia, e a independência do juiz, tão importantes e
merecedores de proteção quanto aos outros. Então, tem-se uma concorrência ou
competição ou conflito de valores [...] (ROCHA, 2009, p. 128).
A súmula vinculante, em sua incansável luta por entendimento pacífico,
pugna por aproximar valores e por apaziguamento. Os membros do STF, como
tribunal supremo, têm, sobretudo, o dever de interpretar decisões, especialmente as
suas, justo ou equivocado que seja, é principalmente na interpretação que se
desenrola a batalha para o significado constitucional, sobremaneira dever legal de
cada cidadão.
Dentre os princípios constitucionais encontra-se o do livre convencimento
motivado (art. 93, X da Constituição Federal), que norteia a função do magistrado.
Com relação a ele, Donizetti (2009, p. 79) ensina que o juiz é livre na formação de
seu convencimento, na apreciação das provas e argumentos apresentados pelas
partes. Essa liberdade de convicção, no entanto, há de ser exercida de forma
motivada (princípio da motivação), “não podendo o juiz desprezar as regras legais
porventura existentes e as máximas de experiência”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
74
Edimara Sachet Risso e outros
Nas palavras de Donizetti (2009, p. 79), o princípio da persuasão racional do
juiz situa-se entre o sistema da prova legal, no qual há prévia valoração dos
elementos probatórios, e o sistema do julgamento secundum conscientiam, no qual o
juiz pode apreciar livremente as provas e decidir até contrariamente a elas. A
apreciação das provas é atividade discricionária do juiz, mas sempre motivada e
fundamentada. O princípio da persuasão racional, também denominado do livre
convencimento motivado, é o que vigora no sistema brasileiro.
O trabalho do juiz enquanto intérprete, parte do texto, perpassa pelo sistema
(iluminado pela doutrina e por outras decisões) e termina no texto. Efetivamente, ao
cabo da tarefa interpretativa, nada mais terá feito o juiz do que clarificar, nitidamente,
o sentido, a extensão e a amplitude do texto legal. Aí, pode-se dizer, termina a sua
tarefa como intérprete. De certa forma, a tarefa do juiz, enquanto intérprete,
confunde-se com a do jurista, porque, em última análise, ambos estão voltados ao
conhecimento específico do significado do texto legal (ALVIM, 2008, p. 164).
Não há a mínima possibilidade de considerar a súmula vinculante como uma
camisa de força a vestir a atividade judicante. Nem assim e nos sistemas de
Common Law com o stare decisis, nem assim é nos sistemas de Civil Law. O que
há, e certamente há, é a necessidade de criação de mecanismos que atribuam um
mínimo de previsibilidade às decisões judiciais, com o abrandamento da incidência
das variáveis praticamente intangíveis que contribuem para a formação da decisão
judicial, [...], pré-juizos, pré-conceitos, valores individuais etc., que o magistrado traz
inevitavelmente para o exercício da função jurisdicional (NUNES, 2010, p. 103).
Assim, também, não está em jogo, em momento algum, o direito de ação do
jurisdicionado. Em nenhum momento, em nenhuma circunstância, a edição de uma
súmula viola o direito de ação do jurisdicionado. O que ocorre é que o jurisdicionado
sabe, de antemão, com relativo grau de certeza, qual será a resposta do Poder
Judiciário á pretensão que exercer. Isso, certamente, não configura violação ao
direito de ação (NUNES, 2010, p. 103-104).
A súmula vinculante não veio ao jurisdicionado com o intuito de mitigar a sua
função, diminuindo seu grau de decisão ou, mesmo, antecipar o que o magistrado
deverá decidir. Tanto é assim que o juiz não necessita amarrar-se a um preceito
vincular, mas sim pode utilizar-se dele para formar seu convencimento motivado, ou
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
75
Efeito vinculante e segurança jurídica
seja, dele se empregar para fundamentar sua decisão, favorável ou não, mas
aclarada.
Ademais, o requisito de existência de matéria constitucional em discussão,
como um dos motivos que ensejam a edição de súmula reitera, de forma cabal, a
sistemática adotada pelo ordenamento jurídico de que ao STF cabe a última palavra
quando o assunto é Direito Constitucional, conforme preceitua o artigo 102, caput13,
da CF (FARIAS, 2008, p. 6).
A interpretação dada para o texto constitucional deve, como ensina Farias
(2008, p. 7), ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito
definitivo absoluto outorgado à sua decisão. Não se pode, com a manutenção de
decisões divergentes, dirimir a eficácia das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Contrariamente, a manutenção de soluções divergentes sobre o mesmo tema, em
instâncias inferiores, provocaria, além da desconsideração do próprio conteúdo da
decisão nesta Corte, última intérprete do texto constitucional, a fragilidade da força
normativa da Constituição e a insegurança jurídica.
Ou seja, ao magistrado é dada a oportunidade de decidir conforme seu livre
convencimento motivado, porém sobre certos assuntos sumulados deve ele se ater,
e sobre tal justificar, ou não, sua decisão conforme decidiu a suprema corte, sobre a
égide de ver sua sentença posta em reclamatória sobre a alegação de estar em
desconformidade com texto consolidado pelos membros do STF, que guarnecem a
Constituição.
A súmula vinculante, em vez de significar ofensa à liberdade de decidir,
facilita, simplifica e engrandece o trabalho do juiz, pois, pela indicação de seu
número, adotam-se os fundamentos e a ementa do mais alto tribunal brasileiro, que
se convertem na base das decisões de todos os membros da Magistratura (MELO,
2007).
Há, ainda, aqueles que se posicionam contra a adoção do efeito vinculante,
referindo que o mesmo contraria o princípio da separação dos poderes.
13
Constituição Federal Brasileira, art. 102. “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente,
a guarda da Constituição, cabendo-lhe:[...]”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
76
Edimara Sachet Risso e outros
A teoria da separação de poderes, que por meio da obra de Montesquieu se
incorporou ao constitucionalismo, foi concebida para assegurar a liberdade dos
indivíduos.
Com efeito, diz o próprio Montesquieu que, quando na mesma pessoa ou no
mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo,
não há liberdade, pois que se pode esperar que esse monarca ou esse senado
façam leis tirânicas para executá-la tiranicamente. Ora, tal ideia surgiu no contexto
do século XVIII, com o fim exclusivo de proteção da liberdade, mais tarde seria
desenvolvida e adaptada a novas concepções, pretendendo-se, então, que a
separação dos poderes tivesse também o objetivo de aumentar a eficiência do
Estado, pela distribuição de suas atribuições entre órgãos especializados. Essa
última ideia, na verdade, só apareceu no final do século XIX, quando já se havia
convertido em dogma a doutrina da separação dos poderes, como um artifício eficaz
e necessário para evitar a formação de governos absolutos. É importante assinalar
que essa teoria teve acolhida e foi consagrada numa época em que se buscavam
meios para enfraquecer o Estado, uma vez que não se admitia sua interferência na
vida social, a não ser como vigilante e conservador das situações estabelecidas
pelos indivíduos (DALLARI, 2003, p. 215).
E continua (DALLARI, 2003, p. 217):
O antecedente mais remoto da separação de poderes encontra-se em
ARISTÓTELES, que considera injusto e perigoso atribuir-se a um só
indivíduo o exercício do poder, havendo também em sua obra uma ligeira
referência ao problema da eficiência, quando menciona a impossibilidade
prática de que um só homem previsse tudo o que nem a lei pode
especificar. Mas a concepção moderna da separação de poderes não foi
buscar em ARISTÓTELES sua inspiração, tendo sido construída
gradativamente, de acordo com o desenvolvimento do Estado e em função
dos grandes conflitos políticos – sociais. [...].
A independência e a harmonia entre Poderes do Estado indicam, como
princípio, que cada um deles projeta uma esfera própria de atuação, cuja
demarcação tem por fonte a própria norma constitucional (ARAÚJO, 2007, p. 103).
Essa divisão ou tripartição foi adotada pela maioria dos Estados modernos,
porém de forma mais abrandada. Isso se deu pelo fato de ter havido uma
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
77
Efeito vinculante e segurança jurídica
interpenetração entre os mencionados poderes, seja em razão das diversidades
históricas e/ou sociais (FARIA, 2008, p. 2).
Foi essa “independência” colocada no texto da lei, que levou os críticos da
súmula vinculante arraigar seus contras, visto acharem que resta prejudicada a
separação dos poderes, cláusula pétrea, quando da possibilidade de o STF vir a
editar de ofício ou por provocação, súmulas que passam a vincular o Poder
Executivo e os demais órgãos do Judiciário.
Pelas palavras de Faria (2008, p. 2), segundo os defensores de tal
posicionamento, as súmulas aprovadas nos moldes do que prevê a sistemática da
Lei 11.417/2006 e da CF seriam uma espécie de “superlei”, uma norma geral e
abstrata, o que por si só, configuraria afronta e usurpação da função típica de
legislar, inerente ao Poder Legislativo. Isso seria, para os combatentes da súmula,
verdadeira superposição de poderes, na qual o STF se colocaria em posição
superior em relação ao Poder Legislativo, cujo exercício é atribuído ao Congresso
Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
O papel da súmula vinculante não é mera criação de lei nova, e sim
resultado da divergência sobre texto já existente, e constitucional, o que faz essa
decisão do STF, que resulta em preceito norteador se manter ileso, não podendo
afirmar que infringe a formação dos poderes de Montesquieu, nem seu núcleo de
competências.
Nessa linha de ideias, brinda-se Dallari (2003, p. 221) que esclarece que a
evolução da sociedade criou exigências novas, que atingiram profundamente o
Estado. Este passou a ser cada vez mais solicitado a agir, ampliando sua esfera de
ação e intensificando sua participação nas áreas tradicionais. Tudo isso impôs a
necessidade de uma legislação muito mais numerosa e mais técnica, incompatível
com os modelos da separação dos poderes.
O Legislativo não tem condições para fixar regras gerais sem ter
conhecimento do que já foi ou está sendo feito pelo executivo e sem saber de que
meios este dispõe para atuar. O Executivo, por seu lado, não pode ficar á mercê de
um lento processo de elaboração legislativa, nem sempre adequadamente
concluído, para só então responder às exigências sociais, muitas vezes graves e
urgentes. Assim, pode-se por ordem, entender, que não podem os guardiões da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
78
Edimara Sachet Risso e outros
Constituição deixarem que inúmeros processos de assuntos idênticos sobrestejam o
judiciário, sendo que um pressuposto de ordem geral pode dissolver contendas que
demorariam anos para serem analisadas, prejudicando a celeridade e a confiança
na justiça, desse modo se concilia a necessidade de eficiência com princípios
democráticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o que se viu, os enunciados vinculantes tornaram-se, no
sistema jurídico brasileiro, aprimoramentos. O que resta por trás de toda a discussão
envolvendo a adoção da súmula vinculante é, na verdade, uma tensão entre o
desejo de uma Justiça de boa qualidade – estável, célere e econômica – e o receio
de uma rigidez que impossibilite o desenvolvimento do próprio direito.
O sistema jurídico brasileiro é anacrônico, caro, elitista e sobremodo
demorado no que diz respeito ao “fazer justiça”. Com o ingresso da súmula
vinculante a nível constitucional, aparece como escopo resolver o “inchaço” do
Poder Judiciário, o qual deveria ter o seu tempo destinado para apreciar conflitos
complexos, sobre os quais ainda reinam divergências e a demora de ver o direito do
cidadão reconhecido, que faz com que a justiça pareça ser algo não tão somente
inatingível como quase impossível.
A súmula e a súmula vinculante não inovam na ordem jurídica, no sentido de
criar originariamente um comando, tal como ocorre com a lei que é, por excelência, a
fonte de direito. A súmula, em rigor, acaba por conter a interpretação de uma lei, a
qual se torna obrigatória. Mas, é evidente que essa interpretação, oriunda do mais
alto tribunal do país, objetiva, apenas, atribuir à lei interpretada o seu entendimento
adequado, de forma obrigatória. O mandamento é o da lei e a interpretação
obrigatória é da súmula (ALVIM, 2008, p. 236).
Ou seja, a atividade exercida pelo STF é interpretativa, não pode, então, ser
taxada como atividade típica do Legislativo, pois não inova o ordenamento jurídico, e
sim atribui força formal de lei, resultado de decisões consolidadas de juízes de
primeiro grau.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
79
Efeito vinculante e segurança jurídica
Não só de críticas perfaz-se o regime da súmula vinculante. Sua adoção,
aliás, passa pela presença de defensores, que argumentam há tempos em favor da
sua inclusão na prática forense do sistema judiciário.
Destacam-se, entre inúmeros outros pontos, que o precedente vinculante vai
a favor da derrubada da morosidade que estava a impactar o sentimento desolador
de falta de justiça no país, bem como resulta em segurança jurídica provida de
alicerce seguro quando se vê a pretensão analisada e desburocratizada por órgão
superior que amplia e determina os verdadeiros valores promulgados, diminuindo a
complexidade e, assim, cumprindo a função do Direito.
A segurança jurídica é razão fundamental do Direito, é nela que o indivíduo
organiza-se, podendo construir sua vida. Proteção oriunda da garantia concreta, a
partir da existência de uma previsibilidade da conduta tida como reta, é ordem e
estabilidade que o povo quer que emane da justiça.
É da incerteza que nasceu o precedente vinculante é dele a raiz da
harmonia social, onde, como aprovisiona Faria (2008, p. 9), com a vinculação dos
juízos inferiores, quando do exercício de sua função jurisdicional, em obediência aos
comandos exarados nos enunciados das súmulas, deixarão de existir decisões em
conflito sobre um mesmo tema e, por conseguinte, haverá maior segurança nas
relações jurídicas postas sob decisão.
Além da segurança, cabe aos jurisdicionados a competência para controlar
os erros oriundos da diversidade de interpretações das normas quando da aplicação
ao caso concreto. É exatamente onde a súmula vinculante toma posição
privilegiada, fazendo dos Tribunais Superiores intérpretes da Constituição,
exercendo atividade correicional de decisões de primeiro grau, ou seja, a correta
colocação do binômio justiça-certeza, que valorize efetivando a justiça, distribuindo-a
de forma igual aos que a ela se tutelam.
É que, da relevante multiplicação de processos, sem que haja um norte
seguro sobre a incidência da norma [...], deflui grave déficit de segurança jurídica, à
medida que o cidadão não tem o controle das expectativas do agir do Poder Público
(Judiciário e Administração) e, de conseguinte, não possui referências sobre seu
próprio proceder. [...], a ideia que anima a súmula vinculante é justamente a de
aumentar o controle sobre a dicção do Judiciário a respeito de demandas de igual
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
80
Edimara Sachet Risso e outros
natureza, em que deva incidir a mesma regra jurídica: para problemas iguais,
soluções iguais (NUNES, 2010, p. 160).
Ao Supremo Tribunal Federal foi dado, pela súmula vinculante, o papel de
interpretar o texto constitucional dentro da máxima eficácia, sem inová-lo, mas
interpretando ao ponto de passar a devida segurança sobre o tema a ele
questionado, atendendo ao objetivo de reduzir parcialmente conflitos, ministrando
com maior certeza o querer da justiça.
Pois bem, o princípio da segurança jurídica em decorrência da súmula
vinculante faz remeter ao seu objeto que é a validade, ou seja, à adequação da
norma à Constituição, a interpretação, que é dar o sentido correto para as palavras
da lei e a eficácia que gera segmento ao resultado esperado, de ter ao cidadão em
um menor espaço de tempo, com segurança a resposta ao seu direito resguardado,
pacificando a jurisprudência.
O precedente vinculante implantado pela Emenda Constitucional n. 45/2004,
e elencado no artigo 103-A da Constituição, se bem aplicado, contribuirá para o
prestígio da Justiça.
O efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal, assim como
os demais instrumentos processuais postos à disposição do Poder Judiciário, em
especial a repercussão geral da questão constitucional no recurso extraordinário e o
incidente de demandas repetitivas, não são óbices de acesso à justiça, nem se
incompatibiliza com os princípios constitucionais, e, sim, são importantes
ferramentas desse acesso e de concretização de princípios, numa realidade
protagonizada pelo Poder Judiciário no século XXI.
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Rogério Montai de Lima
PODER DE DECIDIR X SEGURANÇA JURÍDICA:
UM OLHAR FIRME PARA O EXERCÍCIO JUDICANTE1
POWER OF DECISION VS. LEGAL SECURITY: A FIRM LOOK TO THE JUDICIAL PRACTICE
Rogério Montai de Lima2
Resumo
No Estado Constitucional a supremacia da Constituição Federal coloca o órgão
incumbido da jurisdição constitucional em um papel destacado e diferenciado e o
Poder Judiciário é chamado para resolver questões que envolvam implementação
de política pública a questões sociais. Assim, é exigível do Judiciário, em alguns
casos, impor determinadas condutas, desde que afinada com direitos fundamentais,
de interesse coletivo e políticas públicas diretamente decorrentes do texto
constitucional, pois traduz-se em dever do Estado, do qual o Judiciário é poder/
função precípua. É preciso assegurar a credibilidade das instituições públicas, em
especial do Poder Judiciário, quanto à visibilidade e transparência de seus atos,
diretamente relacionados com a adoção tempestiva de medidas adequadas e
eficazes associadas à base empírica concreta do texto constitucional, tais como a
preservação dos direitos humanos e fundamentais. Não se pode permitir, após uma
história de lutas pela igualdade das partes e dos poderes, onde ditaduras foram
prostradas pelo anseio de uma justiça idônea, retroceder-se a ponto de permitir que
iniquidades emanem de quem tem o dever de assegurar o justo.
Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Ativismos. Omissão legislativa. Direitos
fundamentais.
Abstract
In the Constitucional State the supremacy of the Federal Constitution puts the
branch responsible for the constitucional jurisdiction in a highlighted and
differentiated place and the Judiciary is called to solve questions that involves all,
from implementations of public policies to social issues. Therefore, it is in some
cases possible to require from the Judiciary the imposisiton of some conducts, as
long as they are bound to fundamental rights, collective interest and public policies
that derive from the constitucional text, for it translates itself in a duty of the State, of
which the Judiciary is main power or role. It is necessary to assure the credibility of
public institutions, specially the Judiciary, when it comes to the transparency of their
acts, directly related to the timely adoption of appropriate and effective mesures
associated to the empirical and concrete basis from the constitucional text, as for
1
2
Artigo apresentado ao X Simpósio Nacional de Direito Constitucional: Constituição e as Novas
Codificações Curitiba-2012
Doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro, Mestre em
Direito pela Universidade de Marília; Juiz de Direito Substituto da Comarca de Porto Velho/RO;
Professor de Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito; Professor da Escola da
Magistratura de Rondônia; E-mail: [email protected].
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
85
Poder de decidir x segurança jurídica
example, the preservation of the fundamental and human rights. It should not be
allowed, after a history of fights for equality of people and powers, where
dictatorships were taken down by the wish of a reputable justice, that injustice come
from those who have the obligation to assure justice.
Keywords: Constitutional jurisdiction. Activism. Legislative omission. Fundamental
rights.
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Conclusão. Referências.
“Compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para
si mesmos. A autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade
desse mesmo direito construído democraticamente.” (Lenio Streck)
INTRODUÇÃO
Sabe-se que na tradicional divisão de funções do Estado, o magistrado é o
principal responsável por dizer o direito e, ao aplicá-lo ao caso concreto, distribui a
justiça. Para tanto, deve ter coragem e preservação da independência de
convicções.
É certo também que ao magistrado impõe-se à oferta de iguais
oportunidades às partes e recusa a estabelecer distinções em razão das próprias
pessoas ou reveladoras de preferências personalíssimas. Assim, não se lhe tolera, a
indiferença (DINAMARCO, 1987, p. 275). Vale destacar os preceitos, em construção
irretocável, de Maurice Aydalote e Jacques Charpentier (2011) no sentido de que
“Não é proibido sonhar com o juiz do futuro, cavalheiresco, hábil para sondar o
coração humano, enamorado da ciência e da justiça, ao mesmo tempo que
insensível às vaidades do cargo, arguto para descobrir as espertezas dos poderosos
do dinheiro, informado das técnicas do mundo moderno, no ritmo desta era nuclear”.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso, citado pelo professor
José Renato Nalini (1992, p. 219), bem esclareceu a função da magistratura,
baseando-se no fato de que nem tudo é trágico para o juiz moderno e pontua: “Que
vos pedem, como desígnio funcional, a sociedade e o ordenamento jurídico? Não
vos pedem a revolução, ou a redenção da ordem social decaída. Essa é tarefa dos
políticos. Pedem-vos o cumprimento estrito das virtudes humanas primárias, porque,
também isto já vos notaram, “o direito valerá, em um país e um momento histórico
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
86
Rogério Montai de Lima
determinados, o que valham os juízes como homens” (Couture). E já me atrevi a
observar que uma grande magistratura não se faz com pequenos homens”.
Todavia, o sistema constitucional brasileiro, por exigir lógica e coerência das
decisões judiciais, se põe contra uma atuação judicial ilimitada e desmedida. Não
obstante, é possível verificar diuturnamente diante de decisões arbitrárias e
fundadas unicamente em convencimentos, bases ideológicas e sentimentalistas,
contrariando todas as previsões que, amparados pela lei, firmam os sujeitos de
direito.
Nas palavras do professor Lenio Streck (2011), se foi diminuída a liberdade
de conformação do legislador, através de textos constitucionais cada vez mais
analíticos e com ampla previsão de acesso à jurisdição constitucional, portanto, de
amplo controle de constitucionalidade, o que não pode ocorrer é que essa
diminuição do “poder” da legislação venha a representar um apequenamento da
democracia, questão central do próprio Estado Democrático de Direito.
Para que se fale em um Estado Democrático de Direito, há que se impor a
todos, indistintamente, o dever de sujeição ao ordenamento jurídico, aqui
representado não só pelo Poder Legislativo, mas, também, ao Poder Judiciário,
como legitimo distribuidor da justiça. É por isso que, a atividade interpretativa do juiz
só conseguirá ser efetivamente cumpridora da ordem jurídica justa quando, não
estiverem corrompidas por influências, sejam internas ou externas, no momento da
exteriorização da decisão. E é somente neste contexto de independência e
autonomia que pode-se deparar com o juiz efetivamente imparcial, agindo como
terceiro na solução da demanda, tendo, como apoio, além da lei, principalmente a
Justiça.
DESENVOLVIMENTO
Consiste a jurisdição em uma das formas de manifestação do poder estatal,
materializada através dos atos do juiz que, ante a capacidade que seus atos têm de
produzir efeitos perante a sociedade, é tido como a figura mais relevante dentro do
ambiente processual.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
87
Poder de decidir x segurança jurídica
Corporifica-se, assim, a figura do julgador, como a do agente sujeito às
imposições e determinações positivadas pelo legislador, que tem a função de,
através de um juízo embasado em normas jurídicas, avaliar o direito das partes
litigantes.
Segundo Carlos Aurélio Mota de Souza (1987, p. 87-88), homem egrégio, de
escol, é o juiz a substância humana dentro do processo, atuada livremente, com
dignidade e hierarquia, como comandante de uma nave, porém limitado aos seus
contornos, que é a lei. É o juiz a face humana da Justiça, aquela que o povo vê, com
a qual dialoga, reclama, protesta, reivindica. Ronaldo Rebello de Britto Poletti, ao
citar Joaquim Nabuco, traz que: Joaquim Nabuco, em ‘Minha Formação’ insiste em
que o mais democrático dos países que visitara era a Inglaterra, não em função do
Parlamento ou do regime eleitoral, mas pelo fato de o mais humilde dos ingleses e o
mais importante nobre, serem colocados em posição de absoluta igualdade diante
do juiz.
Está, assim, amplamente ligada ao ideal de justiça e de eficiência do
processo, a questão dos poderes do juiz. Neste sentido Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira (2011):
[...] O tema dos poderes do juiz constitui um dos mais fascinantes da
dogmática processual civil, porque se vincula estreitamente à natureza e à
função do processo, à maior e menor eficiência desse instrumento na
realização de seus objetivos e, ainda, ao papel que é atribuído ao
magistrado, na condução e solução do processo, em consonância com os
fatores acima mencionados. Impõe-se, na verdade, estabelecer uma
solução de compromisso, que permita ao processo atingir suas finalidades
essenciais, em razoável espaço de tempo e, principalmente, com justiça. O
mesmo tempo, importa estar atento para que o poder concedido ao juiz não
redunde em arbítrio ou comprometa sua necessária e imprescindível
imparcialidade.
Carlos Aurélio Mota de Souza (1987, p. 53-54) ao discorrer sobre os deveres
funcionais do magistrado dispõe que
Na verdade, pretende-se muito mais do juiz, como guardião dos interesses
privados e públicos, único a dizer a ultima palavra sobre o direito, como
dever institucional de que está privativamente investido. Exige-se, além da
imparcialidade, apanágio de sua função, o dever de legalidade, a
incorruptibilidade e a obrigação moral de ditar a sentença [...] ou declarar
porque não pode prover no mérito [...], sendo-lhe vedado o non liquet, por
constituir denegação da justiça [...]. Deverá, e sempre, motivar todos os
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
88
Rogério Montai de Lima
seus atos, como princípio constitucional obrigatório para o controle da
justiça [...], única garantia contra o arbítrio [...]. Em toda sua conduta se
exige, sobretudo, o constante dom da prudência, a reta estimativa das leis
(evitando o error in judicando), a docilidade de saber (humildade intelectual
e profissional), sagacidade (presteza no julgamento), circunspecção e
cautela, para manter integra sua autoridade e sua independência.
Dentro da função estatal encontra-se, no entanto, além da jurisdicional, a
função legislativa, momento em que o Estado estabelece as normas que regularão
as relações entre os sujeitos de direito.
A atuação do juiz, como se verá, dá-se de modo complementar e
subsequente à função legislativa, vez que, dentre suas competências está a de bem
aplicar as previsões e prescrições legais. Assim, se posiciona Sidnei Amendoeira
Junior (2006, p. 09) que é este trinômio – função, poder e atividade – que liga a
jurisdição à atividade estatal.
[...] O Estado possui uma função jurídica, exercendo-a em dois momentos
distintos. O primeiro ao legislar, estabelecendo assim as normas que irão
reger as relações entre os jurisdicionados, de forma abstrata, e o segundo,
na jurisdição, através da qual será possível atuar praticamente as normas
antes estabelecidas em abstrato, em um primeiro momento declarando a
vontade concreta da lei para, em seguida, se for o caso, atuá-la.
Os poderes do juiz compreendem, veladamente, exigências éticas
essenciais ao legítimo exercício das funções que lhe são atribuídas. Diante disso,
lado a lado aos ditos poderes encontram-se os deveres do juiz.
Carlos Aurélio Mota de Souza (1987, p. 77) dispõe que, os poderes que
incumbem ao juiz são intrinsecamente deveres, sem os quais não se poderia exercer
plenamente o comando jurisdicional que o Estado lhe outorgou.
Para este autor, a força do poder judicial está em julgar e fazer executar o
julgado, transportando a certeza jurídica, querida pelo legislador, da lei para a coisa
julgada, tarefa que reputa exclusiva do magistrado.
Dentre os deveres do juiz, destaca-se o dever de ser imparcial, que, em
nada se confunde com uma eventual neutralidade, inércia e pacificidade por parte do
magistrado.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
89
Poder de decidir x segurança jurídica
Luciana Amicucci Campanalli (2006, p. 95), acerca do dever de
imparcialidade, traz que:
Entende-se por juiz imparcial não aquele juiz inerte que assiste
pacificamente o duelo entre as partes, limitando-se a proferir a decisão,
mas, ao contrário, o julgador preocupado com o resultado concreto da
sentença na vida dos litigantes e, portanto, comprometido com a entrega da
prestação jurisdicional justa, fundamentada essencialmente na verdade. O
juiz imparcial está especialmente comprometido com a pacificação social do
conflito e a conscientização, tanto dos litigantes quanto de todos os
jurisdicionados, de todos os seus direitos e obrigações [...]. Não se pode
confundir juiz imparcial com juiz neutro, já que este não atende às
necessidades do processo. Na realidade dizer juiz imparcial é redundante,
pois o exercício da função judicante exige eqüidistância das partes, de
modo a decidir a lide sem qualquer interesse em nenhuma delas.
Mauro Cappelletti (1989, p. 32) situa a imparcialidade do juiz como uma
característica adstrita à sua independência. E citando Giovanni Pugliese, dispõe que
devemos reconhecer que a independência dos juízes frente ao executivo, longe de
representar um valor fim em si mesmo, não é ela própria senão um valor
instrumental.
É difícil não compartilhar da opinião de Giovanni Pugliese [...] quando
afirma, exatamente, que a independência, não é senão o meio dirigido a
salvaguardar outro valor [...], ou seja, a imparcialidade do juiz. [...] O valor
‘final’ – a ‘essência’ ou a ‘natureza’, por assim dizer – da função judiciária é,
portanto, que a decisão seja tomada por um terceiro imparcial [...].
Sabe-se que ao magistrado, como princípio fundamental para exercício de
suas funções, exige-se a imparcialidade, todavia não se espera neutralidade por
parte dos julgadores. Para Pietro Calamandrei (1960, p. 60) traz que:
Históricamente la cualidad preponderante que aparece inseparable de la
idea misma del juez, desde su primera aparición em los albores dela
civilización, es la IMPARCIALIDAD. El juez es un tercero extraño a la
contienda que no comparte los interesses o las passiones de las partes que
conbaten entre si, y que desde el exterior examina el litígio com serenidad y
com desapego; es um tercero inter partes, o mejor aún, supra partes. Lo
que lo impulsa a juzgar no es um interes personal, egoísta, que se
encuentre em contraste o em connivencia o amistad com uno o com outro
de los egoísmos em conflicto. El interés que lo mueve es um interes
superior, de orden colectivo, el interes de que la contienda se resuelva civil y
pacificamente, ne cives ed arma veniant, para mantener la paz social. Es
por esto que debe ser extraño e indiferente a lãs solicitaciones de las partes
y al objeto de la lite, nemo iudex in re propria.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Rogério Montai de Lima
Em outro olhar Nagib Slaibi Filho (2011) entende que a função jurisdicional
exige uma neutralidade que, no processo, se traduz pelo principio da imparcialidade.
Já para Mario Pimentel de Albuquerque (1997, p. 168-171), a imparcialidade visa
prevenir que o exercício da jurisdição seja subordinado a fatos que comprometam a
correta aplicação do Direito. A propósito, assim como a independência, eliminando
toda e qualquer vinculação jurídica do juiz a instâncias estranhas à legalidade
vigente, torna efetiva sua sujeição ao ordenamento, a imparcialidade, por seu turno
reforça indiretamente essa sujeição, reprimindo as subordinações fáticas que, por
serem tais, não são menos perigosas para a realização da atividade jurisdicional. [...]
A supressão de qualquer elo da cadeia silogística, por vicio de parcialidade,
determina a ruptura do processo de produção normativa, e a norma que ai advier,
longe de ser a concretização de fases superiores do ordenamento, representará,
antes, a própria negação delas [...]. Assediado pelas paixões, ou arrastado por elas,
lança-se ele, temerariamente, ignorando os elos intermediários, concluindo por julgar
antes de conhecer. [...] Portanto, a primeira vitima de um juiz parcial é ele mesmo; a
imparcialidade constitui, [...] o penhor da eficácia prática da independência judicial e,
onde que quer aquela falte, esta só poderá nominalmente existir.
Leciona Carlos Aurélio Mota de Souza (1987, p. 77-78), acerca da influência
das questões pessoais no ato de julgar, que o poder do juiz é intimo de uma
concepção democrática do Estado, onde se afasta um conceito ‘pessoal’ de poder,
para aceitar o de ‘investidura’, exterior e superior à pessoa da autoridade. Porque
um poder fora e acima da ordem jurídica é poder pessoal, não pertence ao
magistrado como ‘juiz’, mas como ‘indivíduo’, e, portanto, antidemocrático. Deve o
poder judicial, por isso, sofrer uma limitação estatal, imposta em função da
inviolabilidade da ordem jurídica, e da previsibilidade das consequências jurídicas
dos atos humanos.
Há, ainda, dentre os deveres do juiz, o de vinculação de seus atos à
Constituição Federal e à legislação ordinária vigorante, sendo-lhe defesa aplicação
alternativa do direito, caracterizada pela utilização de critérios pessoais e
sentimentais no cumprimento de sua função, em detrimento da lei.
No máximo, poderá se lançar mãos dos princípios constitucionais, conforme
leciona Mario Pimentel Albuquerque (1997, p. 11) como primeiro servidor e guardião
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
91
Poder de decidir x segurança jurídica
do Direito, aplicará e realizará este, servindo-se em primeiro lugar, das normas que a
comunidade, pelo Poder Legislativo, dita como regras mais seguras, objetivas e
gerais; depois as consuetudinárias e, em sua falta, os princípios.
Para o Lenio Streck (2011) o Poder Judiciário somente pode deixar de
aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses:
a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará
de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a
declarará inconstitucional mediante controle concentrado;
b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias.
c) quando aplicar a interpretação conforme à Constituição
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto pela qual
permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua
incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade,
de determinada(s) hipótese(s) de aplicação do programa normativo sem que
se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto na
interpretação conforme há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem
redução de texto, ocorre uma abdução de sentido;
e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução
de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção
da constitucionalidade do dispositivo.
f) quando – e isso é absolutamente corriqueiro e comum – for o caso de
deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não
como standards retóricos ou enunciados performativos.
Ainda, o artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, segundo o qual,
é dever do magistrado cumprir e fazer cumprir, com serenidade e exatidão, as
disposições legais.
Plauto Faraco de Azevedo (1989, p. 70) acerca do dever e obediência ao
direito e poder criativo do juiz, dispõe que no desempenho de sua missão, ao
interpretar e aplicar as normas jurídicas aos casos que lhe são submetidos, não
pode o juiz decidir segundo critérios de justiça pessoais imotivadamente
distanciados do direito positivo e dos princípios gerais do direito orientadores do
ordenamento jurídico. Ao contrário, é com esses dados em mente que deverá
considerar as exigências do caso concreto, tendo em vista as concepções sociais
prevalecentes entre seus concidadãos. Não pode o juiz ignorar ou descurar os
preceitos do ordenamento jurídico ao dirimir os litígios que lhe são submetidos [...].
Desta forma, quaisquer decisões embasadas em instintos puramente
sentimentais, excedem as funções do magistrado e do poder a que está vinculado.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
92
Rogério Montai de Lima
Flavia Moreira Pessoa (2011), ao cuidar da questão da descoberta da
verdade no processo e do arbítrio judicial traz que atualmente, principalmente após
as atrocidades nazistas da segunda guerra mundial, cometidas sob o pálio formal da
lei, assiste-se a um movimento reativo que passou a ‘confiar no juiz a missão de
buscar, para cada litígio particular, uma solução equitativa e razoável, pedindo-lhe
ao mesmo tempo que permaneça, para consegui-lo, dentro dos limites autorizados
por seu sistema de direito’. [...] As amarras a que se submetem os juízes, quer no
campo da apreciação probatória, quer no que se refere à prolação da decisão
fundam-se, por um lado na tentativa de dar cientificidade ao procedimento e, por
outro, no intuito de colocar o poder e evitar o arbítrio. No entanto, Carlos Aurélio
Mota de Souza (1987, p. 87-94) traz clara diferenciação, de modo que não se
confunda arbítrio com arbitrariedade. A propósito:
Quando a lei fala que o juiz deve agir segundo seu ‘prudente arbítrio’ [...],
sem dúvida lhe está atribuindo qualidades que eram exigidas do prudens
romano, o juris prudens, o conhecedor do direito, por experiência da vida,
conhecimento do concreto [...]. A discricionariedade é [...] uma faculdade
inerente ao poder judicial de decisão, não se identificando, para François
Geny, como poder arbitrário [...]; como também para Pontes de Miranda,
que distingue poder de arbítrio e discrição judicial [...]. O arbítrio surge,
assim, como elemento informativo da discricionariedade, a virtude da
prudência ou da razoabilidade, que leva ao acerto mais equânime das
decisões. [...]. Não há confundir arbítrio com arbitrariedade, pois esta é a
patologia do direito. Distingue-se a arbitrariedade, que é arbítrio de meios, e
o arbítrio jurídico, ou arbítrio de fins, como bem se observa no direito penal,
com o sistema das agravantes e atenuantes, em que o arbítrio está na
liberdade do juiz em aplicar a pena dentro de limites certos, e aqui o arbítrio
se aproxima bastante e bem informa o perfeito exercício da
discricionariedade.
Tem-se, assim que, o ofício primordial do juiz consiste em proceder
julgamentos, podendo lançar mão do prudente arbítrio. No entanto, tem de estar
sempre, submetido às leis. Nos casos de omissão legislativa, a fim de evitar
decisões arbitrárias e sentimentais é que, cuidou o legislador de regular o modus
operandi do magistrado ao se deparar com ausência de previsão legal.
Mario Pimentel de Albuquerque (1997, p. 21-22), ao tratar da jurisdição
dispõe que sempre se considerou que o juiz deve estar vinculado a critérios positivos
previamente estabelecidos. Dir-se-ia que existe como que um temor social à
liberdade absoluta dos juízes; que os grupos humanos não suportam a ideia de que
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
93
Poder de decidir x segurança jurídica
suas relações jurídicas, seus atos, suas pessoas e seus bens possam estar
entregues a uma sorte de discricionariedade caprichosa da parte daqueles sujeitos
encarregados de julgar, em nome do Estado, conflitos intersubjetivos qualificados
juridicamente.
Desta forma, mesmo quando o magistrado se depara com lacunas ou com a
necessidade de interpretar a lei, o que não deve lhe ser defeso, há que se cuidar
para que tais interpretações busquem, antes de tudo, conhecer o intuito do
legislador além de se pautar sempre nos princípios constitucionais, especialmente
da segurança jurídica e da certeza do direito. Eis o artigo 4º da Lei de Introdução as
Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual, quando a lei for omissa, o juiz decidirá
o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Vê-se neste caso uma limitação imposta pelo legislador, ciente este de que a
lei nem sempre conseguiria abranger todas as situações decorrentes da vida em
sociedade, de modo a evitar que, nestes casos, extrapolasse o juiz suas funções.
Assim, o poder de julgamento do juiz diante de uma omissão no texto legal,
é restringido pela própria lei, sendo-lhe defeso sentenciar de modo arbitrário, em
atendimento única e exclusivamente à sua própria opinião.
Nas palavras de Lenio Streck e Wálber Araújo Carneiro (2011), o julgador
não está livre das imposições do sistema jurídico e qualquer alternativa deve ser
uma alternativa “do” direito que a sociedade construiu, por mais difícil que seja a sua
revelação.
É dado sim, liberdade ao juiz. Porém, até esta sofre limitações. A propósito,
dispõe Mario Pimentel de Albuquerque (1997, p. 107) mantida em seus justos limites
– dado que nenhuma atividade humana pode ser exercida sem eles – a liberdade do
juiz adapta efetivamente o processo às necessidades da realidade social,
exercendo, deste modo, uma influencia renovadora sobre o Direito. Afronta este,
porém, quando tornada em arbítrio, excede aqueles limites [...] para os estender
para lá do razoável, às expensas dos interesses das partes, cujos direitos nada
contam ante o acrescentado poder do órgão jurisdicional. Carlos Alberto Mota de
Souza (1987, p. 101), citando Vicente Ráo, dispõe que:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Rogério Montai de Lima
Vicente Ráo [...] adverte que não é licito ao juiz ‘criar novas normas,
bastando socorrer-se da analogia e dos princípios gerais’, mas ressalva que
a jurisprudência constitui apreciável força supletiva do direito, pois ‘haveria
paradoxo em se atribuir aos juízes a função de suprir as lacunas da lei, ou a
própria falta de lei e não querer reconhecer-lhes, em certo sentido, uma
função criadora do direito subsidiário, criação que, até sobrevir lei em
contrario, se mantém e se perpetua pela força própria do principio que
reclama julgado igual para casos iguais’.
É por isso que, os poderes/deveres do juiz têm de ser analisados à sombra
da noção democrática de jurisdição, dos princípios e, em ultima análise, da
jurisprudência, vedando-se a presença de qualquer rastro de pessoalidade e
individualidade nas decisões dali emanadas, com base no conceito de investidura,
que ultrapassa e se sobrepõe à pessoa do julgador e, via de regra, de qualquer
sentimentalismo que possa contaminar a decisão.
O vício da segurança jurídica e da certeza do direito é a decisão pautada
única e exclusivamente em questões puramente ideológicas e emocionais.
Carlos Aurélio Mota de Souza (1996, p. 254), acerca da ideologia, assinala
que a ideologia não vê instâncias ou etapas para se posicionar: é uma crença,
espiritual, intelectual ou política, que arrebanha em qualquer tempo e veda à razão
outras experiências ou verdades [...]. São preconceituosas, comprometendo, assim,
a construção da sociedade fraterna enunciada solenemente no Preâmbulo e art. 1
da Constituição.
A tarefa do juiz consiste em interpretar e empregar a lei, que deriva do ato
do poder Legislativo, que emana do povo, sendo-lhe obrigação, no entanto, aferir se,
a norma que tem em mãos para ser aplicada, está ou não, eivada pela
inconstitucionalidade.
Lídia Reis de Almeida Prado (2005, p. 13) ao cuidar dos aspectos
psicológicos da decisão judicial, defende que, a interpretação silogística por parte do
magistrado foi substituída por uma atividade jurisdicional criadora. A propósito
defende-se a ideia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre, em maior ou
menor medida, um aspecto novo que não estava contido na norma geral. E isso
ocorre inclusive quando a sentença tem fundamento em lei expressa, vigente e cujo
sentido se apresenta com inequívoca clareza. Luis Recaséns Siches citado por Lídia
Reis de Almeida Prado (2005, p. 14), traz que a lógica tradicional não serve ao
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
95
Poder de decidir x segurança jurídica
jurista para compreender e interpretar de modo justo os conteúdos das disposições
jurídicas; não lhe serve para criar a norma individualizada da sentença judicial ou
decisão administrativa [...]. Realmente o juiz decide por intuição e não por uma
inferência ou silogismo dos que estudam na lógica; decide por uma certeza que se
forma de modo direto e não em virtude de um raciocínio.
Independente disso, é defeso ao juiz atuar em favor de qualquer das partes
no processo, seja mais forte ou mais fraca. Tudo isso a fim de cassar qualquer
atuação assistencialista por parte do magistrado.
O fato de o juiz conduzir o processo sem, em nenhum momento, pender
para o lado de uma das partes traz a perfeita e absoluta materialização da mais pura
imparcialidade.
Carlos Aurélio Mota de Souza (1987, p. 74-75), em sua obra Poderes Éticos
do Juiz: A igualdade das partes e a repressão do abuso no processo, dispõe o que
segue, acerca da publicização do processo:
Observa-se [...] forte tendência [...] de publicização do processo, a fim de
que venha a tutelar não só direitos subjetivos individualizados, mas também
interesses coletivos e difusos, nitidamente de caráter social, pois o processo
que se faz mais público, mais se democratiza e socializa-se. [...]. Por isso o
juiz, como órgão do estado para aplicação desse direito positivo, ajustará ao
caso concreto soluções que estejam em harmonia com todo o ordenamento
constituído.
Ademais, conforme Recaséns Siches, citado por Lídia Reis de Almeida
Prado (2005, p. 15.) convém ressaltar que, conforme o autor, O Direito não se
restringe ao mundo psicológico. Também não é ideia pura, nem valor puro, pois
relaciona-se com a realidade. Mesmo porque [...] o magistrado que não está acima
da lei, deve acatar a ordem jurídico-positiva. Para José Carlos Baptista Puoli (2002,
p. 39) e também citado por Luciana Amicucci Campanelli (2006, p. 96), há que se
cuidar, assim, para não se confundir a figura do juiz imparcial com a do juiz
participativo, considerando que este pratica os atos necessários à entrega da
decisão justa, baseada na verdade dos fatos, em oposição àquele em que a decisão
proferida é tendenciosa, impossível de pacificar o conflito apresentado.
Miguel Reale (1983, p. 67), mais uma vez acerca do psiquismo do juiz na
sentença, dispõe, que:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
96
Rogério Montai de Lima
Acrescenta Reale que o juiz não pode deixar de ser participe da vida
comum. No ato de sentenciar, quer queira quer não, ele sofre uma tensão
ético-psicológica que vem de seu intimo, de que ele sente e sabe por
experiência própria e dos valores sociais que incidem sobre sua
personalidade [...]. O juiz deve ser imparcial, mas o acerto de sua decisão
depende, segundo Reale, dessa capacidade psicológica. Por isso, conclui
que o segredo da justiça está no fato de o juiz saber que a neutralidade não
significa fugir das pessoas em litígio, mas em se colocar na posição delas.
O que não se pode permitir, pelo que se vê, é a existência e a prevalência
de decisões puramente ideológicas, oriundas de um intuito caritativo do magistrado.
Assim, não pode o Estado Juiz ser mero promotor de igualdade social, almejando,
por meio do Processo, cuidar de questões sociais que não competem à sua esfera
de atuação.
Neste sentido, Luciana Amicucci Campanelli (2006, p. 99):
[...] a justiça das decisões não está em conceder razão ao mais fraco,
quando ele não a tem, em virtude meramente de seus desnível econômico,
técnico, social e cultural ou, ainda, ‘tirar do rico e dar ao pobre’ pelo simples
motivo de um possuir muito e o outro pouco. Tais atitudes restringiriam o
julgador a promotor da igualdade social e a realização desta igualdade não
e o escopo primeiro da atividade jurisdicional, cujo maior objetivo é fazer
justiça [...]. O juiz preocupado somente com a igualdade social deixa de
julgar a lide imparcialmente, porque independente do resultado probatório,
tende a decidir de maneira favorável a uma das partes, em razão do
desnível havido entre elas, ainda que o sistema normativo e o conjunto de
provas sinalizem desfavoravelmente.
Segundo Plauto Faraco de Azevedo (1989, p. 76):
A magnitude do papel que deve desempenhar o juiz dificilmente poderia ser
exagerada. Envolve todos os seus conhecimentos – do direito objetivo e da
vida sob seus múltiplos aspectos, sua concepção da existência e do direito,
de sua função, fins e significado. O bom desempenho de suas funções
haverá de mobilizar toda a sua pessoa, particularmente sua consciência
critica, em face dos fatos que lhe são submetidos e da legislação cuja
aplicação as partes argüem. Sua atuação haverá de descrever um
movimento a um tempo centrípeto, para que bem possa sopesar os
interesses em questão, e centrífugo, para que deles possa distanciar-se e
ajuizar com humana isenção ou imparcialidade. Para que o juiz possa ser
imparcial, precisa ser independente e subordinado ao direito, por ser
possível, contrariamente, ao que propala o discurso positivista, a existência
de leis contrarias ao direito.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
97
Poder de decidir x segurança jurídica
Assim é que, deixa de ser imparcial o juiz que, movido unicamente por pré
conceitos, por puro desconhecimento ou por razões sentimentais e pessoais, atua
como uma metralhadora de conceitos diversos e desintegrados da realidade jurídica.
Para Milton Paulo de Carvalho (2001, p. 241-248) se excluem da atividade
probatória do juiz aquelas que comprometem sua imparcialidade, fundadas no
escopo meramente ‘assistencialista’ de delir, pelo processo, a desigualdade social
ou econômica das partes. Entendemos que também se exclui da atividade
probatória do juiz, pela mesma razão agora exposta, aquela que se destinaria a
suprir, emendar ou corrigir atuação deficiente de qualquer dos litigantes, se tiverem
igual oportunidade de demonstrar suas alegações.
Ao se impor ao juiz, além de meras faculdades, poderes/deveres dentro da
atuação processual, impôs-se, consequentemente, o dever de não se assentar em
juízos puramente sentimentais, mas, antes de qualquer coisa, em juízos estritamente
legais.
José Eduardo Faria (2006, p. 22), acerca do tema, traz que como a
magistratura não pode deixar sem resposta os casos que lhes são submetidos,
independentemente de sua complexidade técnica e/ou de suas implicações
econômicas, políticas e sociais, não poucas vezes ela se sente impelida a exercer
uma criatividade decisória que, como será examinado de forma crítica mais a frente,
acaba transcendendo os limites da própria ordem legal. [...] O problema é que, em
muitos desses casos, em que julgar não significa apenas e tão somente estabelecer
o certo ou o errado com base na lei, mas também assegurar a concretização dos
objetivos por ela previstos, o Judiciário não dispõe de meios próprios para
implementar suas sentenças [...].
Ao juiz, sem sombra de dúvidas, é dado autonomia e discricionariedade,
mas somente enquanto configure a liberdade que este tem de, ao apreciar a lide,
proferir a melhor e mais justa decisão. Neste sentido dispõe Amendoeira Junior
(2006, p. 84):
[...] é possível afirmar que o juiz, diferentemente do que ocorre com o
agente administrativo, não possui várias decisões igualmente possíveis.
Existe apenas e tão- somente uma única decisão em acordo com a lei. O
que se admite é que, diante do principio da independência do juiz e,
principalmente, diante do fato de que o exercício da jurisdição é atividade
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Rogério Montai de Lima
humana é, portanto, falível, conviva-se com decisões diferentes ainda que
para situações absolutamente idênticas, evitando-se, assim, a ruptura do
sistema.
Nagib Slaibi Filho (2011, p. 06 e 09) acerca da autonomia do Poder
Judiciário ensina que a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário,
assegurada no art. 99 da Constituição e a autonomia funcional dos magistrados
(arts. 93 e 95) significam somente o mínimo de independência de atuação que se
pode esperar de qualquer órgão político, mas não legitimam o arbítrio no exercício
da função jurisdicional. [...] Em terríveis momentos de submissão à ordem autoritária,
era simples tentativa de eufemismo dizer que vivíamos momentos do exercício
discricionário do poder. Ora, mesmo na discricionariedade o agente público está
limitado às opções que a ordem jurídica lhe concedeu. Não queremos juízes
discricionários nem que julguem com fundamento no prudente arbítrio judicial, como
dizem as lei antigas – o Estado Democrático de Direito necessita de magistrados
estritamente vinculados à ordem jurídica, sem evasivas e dissimulações.
Ademais, deixa de cumprir a sua função e o seu dever, enquanto portador
da Constituição Federal, o juiz que não se importa com a efetiva concretização da
justiça. Tudo isto para não deixar dúvidas acerca do limite da atividade judicatória,
limite este que, nada mais é do que a atenção aos preceitos da legalidade e da
efetiva justiça, abandonando-se as decisões puramente caritativas e ideológicas.
Foi visando preservar as liberdades individuais tolhidos pelos abusos
cometidos pelos governantes que, o liberalismo burguês defendia a plena separação
dos poderes estatais. Belize Câmara Correia (2011, p. 2) traz que, em referido
período, verificava-se claramente o predomínio da lei, em seu sentido literal, vez que
derivada de deliberação popular. Preponderava, assim, a vontade popular,
representada pelo poder Legislativo. A propósito a despeito de alguns traços
distintivos entre as concepções liberais elaboradas pelos grandes pensadores
políticos do final do século XVII (Montesquieu, Locke e Rosseau), inspiradas nas
ideias libertadoras do absolutismo monárquico e implementadoras de uma estrutura
de poder despersonalizado, em todas elas se percebe a formulação do Estado
moderno como uma entidade necessariamente rígida e estática, informada pelo
predomínio absoluto da lei como norma geral, abstrata e imutável, porque fruto da
vontade popular soberana. Sob essa perspectiva de império da lei, praticamente
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
99
Poder de decidir x segurança jurídica
insignificante era o papel estatal atribuído ao Poder Judiciário, que, na concepção de
Montesquieu, deveria conservar-se nulo, limitando-se à atividade mecânica e
inanimada de aplicação da lei. Preponderava, por esse pensamento, a ideia de que
o juiz representava uma autoridade burocrática, não corporificando, porem, um
verdadeiro Poder.
Hoje, já não prevalece esta ideia de um judiciário a par dos acontecimentos,
sendo a este órgão, inclusive, imputado o dever de atender a uma função social
consistente em estar atento às mudanças sócio-econômicas e às garantias e
preceitos constitucionais.
Porém, não é por isso que deve prevalecer o desrespeito à separação dos
Poderes do Estado, enquanto um dos princípios fundamentais do sistema jurídico
brasileiro. O sistema constitucional brasileiro, por exigir lógica e coerência das
decisões judiciais, se põe contra uma atuação judicial ilimitada e desmedida. Não
obstante, é possível se ver diuturnamente diante de decisões arbitrárias e fundadas
unicamente em convencimentos e bases ideológicas e sentimentalistas, contrariando
todas as previsões que, amparados pela lei, firmam os sujeitos de direito.
Citado por Eduardo Appio (2006, p. 31), Ronald Dworkin, a partir da
experiência norte-americana, entende que a forma como os juízes decidem os casos
que lhes são submetidos influencia o destino de uma comunidade.
Em razão disso, defende uma concepção substancial do princípio
democrático, a partir do direito de cada cidadão a um tratamento justo e isonômico,
não concordando que uma posição contramajoritária dos juízes possa prevalecer, a
partir de uma leitura moral da Constituição.
Para Dworkin (1997), os Juízes se submeterão a uma ordem moral superior,
vez que as decisões judiciais devem se basear em princípios, e não em estratégias
políticas.
Comentando referido artigo, Eduardo Appio (2006, p. 34) rejeita-se, portanto,
uma concepção jusnaturalista do Direito, passando a sustentar que toda pretensão
jurídica corresponde a uma ideia original, não havendo espaço para uma criação
discricionária do juiz. Em síntese, as decisões judiciais devem ser tomadas em
estrita observância de princípios constitucionais que conferem integridade ao
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Rogério Montai de Lima
ordenamento, sob pena de serem ilegítimas ao afrontarem o sistema representativo
sobre o qual se assenta a democracia [...].
A submissão dos atos dos demais poderes ao Judiciário há, no entanto, de
ser limitada ao dever de imparcialidade do magistrado. Tudo isto a fim de evitar
arbitrariedades. Para Carlos Alberto Álvaro de Oliveira (2011, p. 08-15):
Em vez do juiz ditador, dono de um processo inquisitório e autoritário, ou de
um processo totalmente dominado pelas partes, como anteparo ao arbítrio
estatal – a exemplo do sucedido na idade média com o processo romanocanônico – importa fundamentalmente o exercício da cidadania dentro do
Processo, índice da colaboração das partes com o juiz, igualmente ativo na
investigação da verdade e da justiça. [...] O processo civil não atua no
interesse de nenhuma das partes, mas por meio do interesse de ambas. O
interesse das partes não é senão um meio, um estimulo, para que o Estado,
representado pelo juiz, intervenha e conceda razão a quem efetivamente a
tem, concomitantemente satisfazendo o interesse público na atuação da lei
para a justa composição dos conflitos.
Veda-se, neste ínterim, qualquer atuação assistencial por parte do
magistrado.
Tudo isto, pois, o Judiciário, enquanto aplicador das leis não tem, contudo, o
poder de introduzir nenhuma novidade à ordem jurídica, com fulcro, única e
exclusivamente nos sentimentos apaixonados de seus aplicadores.
Novamente, Ronald Dworkin (1989, p. 148), citado por Mario Pimentel de
Albuquerque (1997, p. 41), via o juiz como um guardião dos direitos individuais,
razão pela qual era-lhe vedada a prolação de decisões que promovessem objetivos
sociais e coletivos, que, para ele, seriam justificados por argumentos políticos,
próprios do legislador.
Desta forma, não pode um magistrado, atuando de forma claramente
partidária, ferir preceitos legais e constitucionais, a fim de atender um fim menor ao
que efetivamente se destina.
Até porque, se todo poder tem uma fonte que o legitima, o poder do juiz só é
legitimo diante da ordem jurídica. J. C. Barbosa Moreira, citado por Carlos Alberto
Álvaro de Oliveira (2011, p. 08) dispõe que, juiz atuante não é sinônimo de juiz
prepotente ou mesmo de juiz autoritário. Que ao órgão judicial caiba um papel ativo
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Poder de decidir x segurança jurídica
não quer dizer que lhe toque impor aos litigantes o modo de efetuar as operações
que a li defere a eles.
Não é plausível de aceitação que decisões judiciais eivadas pela
parcialidade do juiz acarretem implicações econômicas desfavoráveis ao mercado, o
que, via de regra, atinge a toda a coletividade de modo geral.
Acerca disso, dispõe José Eduardo Faria (1991, p. 50), que o direito
atualmente se encontra ‘hamletianamente’ martirizado pelo dilema de ser arte ou
ciência. Ou seja, entre ser ‘tecnologia de controle’, organização e direção social, o
que implica uma formação unidisciplinar, meramente informativa, despolitizada e
adestradora, estruturada em torno de um sistema jurídico tido como autossuficiente,
completo, lógico e formalmente coerente; ou ser uma atividade verdadeiramente
cientifica, de natureza problematizante, eminentemente especulativa e acima de
tudo crítica, o que exige uma formação reflexiva, não dogmática e multidisciplinar,
organizada a partir de uma interrogação sobre a dimensão política, sobre as
implicações sócio-econômicas e sobre a natureza ideológica de toda ordem jurídica.
A efetiva democracia depende sim, de um Estado amparado pelas leis, mas
depende, principalmente, de um poder genuinamente independente e imparcial, apto
a infligir o efetivo cumprimento destas leis.
Para Cristiano Becker Isaia e Lissandra Espinosa de Mello Aguire (2005):
[...] A concretização dos valores constitucionais não é atividade exclusiva do
Poder Legislativo. Por contraponto, para grande parte da doutrina existente
acerca do tema, tal assertiva não implica autorização ao Poder Judiciário,
ou melhor, ao Juiz, pra substituir o parlamento em sua função típica
legislativa. Nesta mesma senda, o Poder Judiciário, a Justiça Constitucional
em sentido lato, realizaria a intermediação concretizadora das normas
constitucionais em seu âmbito de atuação, qual seja, solucionando a lide
posta, dizendo o direito ao caso concreto. Primando pela forca normativa da
constituição e sob a égide da efetiva concretização da norma, o papel do
jurista, indiscutivelmente, deve ser o de atribuir máxima efetividade às
Normas Constitucionais. [...] Portanto, mesmo sendo o Poder Legislativo, a
prima facie, o sustentáculo do regime democrático em virtude da crença na
legitimidade e em figuras como a democracia representativa e participativa,
tem-se o Poder Judiciário como responsável pela atividade judicante e
repressora da inconstitucionalidade, corroborando, assim, o Principio
Democrático de Direito.
Assim, tem-se que, a autonomia do magistrado, é fator predominante no
resguardo dos direitos fundamentais e, principalmente, no equilíbrio da democracia.
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Rogério Montai de Lima
Cristiano Becker Isaia e Lissandra Espinosa de Mello Aguire (2005), acerca
da criatividade do juiz, trazem que segundo o raciocínio de Koopmans, foi [..] o
crescimento do Estado que tornou possível o que se denomina ‘poder criativo do
juiz’, dada mesmo a extensão do setor publico, o exercício de generalizado controle
do estado sobre a economia, a assunção da responsabilidade do estado em
questões de emprego e a elaboração de planos de assistência social. [...] É evidente
nesta senda, que a criatividade a que se fa entender não pode ser ilimitada a ponto
de contrariar a própria Constituição, eis que, segundo [...] Capelletti, ‘o juiz não pode
ser um criador completamente livre de vinculos’, mesmo porque, se assim fosse,
seria o ‘Fuhrer’do processo.
Acerca do subjetivismo recorrente nas decisões judiciais, Artur Stamford
(1999, p. 200-201) entende que as previsões do sistema jurídico são impostas como
único meio de eliminar o subjetivismo nas decisões judiciais, pois contém critérios
rígidos, objetivos e não valorativos capazes de oferecer o caminho seguro à escolha
da solução do caso concreto. Para que haja segurança, os casos concretos
semelhantes devem ser decididos de forma semelhante, pois só assim a sociedade
pode objetivar suas expectativas de comportamento e agir segundo um certo cálculo
de probabilidade das ações alheias.
O sentimento que nasce então deriva da necessidade de se impedir que o
magistrado, enquanto a voz do Poder Judiciário, lance mão de seus sentimentos
para dar a palavra final, sendo forçosa a restrição de seus juízos ao conteúdo das
normas jurídicas. Eduardo Appio (2006, p. 26), ao questionar como seria possível
inibir o arbítrio nas decisões judiciais, uma vez que a interpretação constitucional
está fundada na concepção de um homem, o Juiz, traz que a resposta passa,
inicialmente, pelo exame do conceito de Constituição. Ela confere racionalidade às
decisões judiciais, além de assegurar a legitimidade material e sua eficácia social.
É justamente esta racionalidade que, em algumas vezes, é deixada de lado
pelo magistrado, ao se deparar, especialmente, com uma demanda envolvendo
questões sociais.
J. J. Gomes Canotilho citado por Eduardo Appio (2006, p. 26), manifestou
que a terceira dificuldade radica no perigo de um direito de conteúdo variável,
conducente a um perigosíssimo subjetivismo judiciário. Com efeito o pluralismo de
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
103
Poder de decidir x segurança jurídica
princípios está a paredes-meias com fragmentações subjetivistas dos juízes, ficando
tudo inseguro desde a regra aplicada e jurisdicionalmente mediada.
No caso dos planos de saúde, verifica-se grandes problemas nas questões
atinentes à área territorial de atuação do contrato, a hospitais credenciados, a
configuração de efetiva urgência e emergência, cumprimento de carências, além do
fornecimento de medicamentos para tratamentos domésticos, entre outros. Dá-se
por parte dos juízes uma sobreposição de valores e, ao invés de decisões justas, vêse diante de decisões fundadas unicamente em questões ideológicas e
sentimentais, que deságuam na mais pura insegurança, vez que, cada juiz, tem em
si, um juízo de valor.
Assim, buscam as decisões proteger sempre o mais fraco, entendendo ser
este sempre o correto, enquanto o rico sempre esta errado.
Neste sentido, Roger Stielfmann Leal (1999, p. 231-237):
A ambigüidade das normas legais e constitucionais, aliada a um sentimento
de co-responsabilidade do juiz, na medida em que é chamado a corrigir os
desvios na execução das finalidades inscritas nos testos legais e
constitucionais, têm o condão de afastar o juiz da clássica neutralidade. O
juiz passa a ser encarado como elemento participante do sucesso ou do
fracasso político do Estado. Contudo tal ideologização do juiz tem um efeito
perverso, pois cada juiz tem para si o seu Estado ideal. Dificilmente os
juízes entrariam num acordo em relação a qual modelo político é o mais
correto. Desse modo, imbuídos da responsabilidade política que o Welfare
State lhes impôs, os juízes interpretam os conceitos indeterminados,
explicitados através de princípios e diretrizes gerais de modo que mais lhe
agradam politicamente, ou, ao menos, se vêm tentados a tanto.
O que se almeja é uma redução da insegurança que paira sobre as relações
jurídicas de modo a dar aos que esperam o mínimo de previsibilidade e certeza
acerca do direito que lhes assiste.
Sonha-se, tão somente, com a redução da insegurança jurídica, com a
possibilidade de calcular as consequências jurídicas referentes a cada relação
firmada.
José Fábio Rodrigues Maciel (2004, p. 33-34), acerca da insegurança que
pode derivar das decisões judiciais, entende que como o encontro da segurança nos
remete para novas inseguranças, busca-se no direito a sua redução ao mínimo
suportável, advindo daí a segurança jurídica, que pretende dotar o cidadão da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
104
Rogério Montai de Lima
capacidade de prever quais vão ser as reais consequências jurídicas referentes a
cada ato por ele praticado. Ademais, como já se viu, a presença da iniciativa privada
na prestação de serviços de saúde é feita, nos moldes do artigo 199, parágrafo 1º da
Constituição Federal, de forma complementar ao sistema público.
Desta forma, conforme assevera Luiz Fux, citado por Fabiana Ferron (2001,
p. 22) sob esse enfoque é forçoso concluir que estatuída a responsabilidade pública
quanto à saúde, a atividade subsidiária particular não é sucedâneo da ineficácia
estatal, não podendo atribuir-se às entidades privadas deveres além do contrato,
sob pena de gerar-se insustentável insegurança jurídica.
Conclui-se, assim, que a atuação do Poder Judiciário deveria servir como
medida impositiva de tomada de medidas públicas destinadas à melhor aplicação de
recursos. Aliado ao Ministério Público, a função do Judiciário seria a de se assegurar
efetividade às investigações, ao cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, ao
Nepotismo nos órgãos Públicos. Conforme leciona Plauto Faraco de Azevedo (1989,
p. 74) a criatividade do juiz não exclui ou afasta a segurança jurídica. A este respeito
pode-se perceber o acerto da perspectiva apontada por João Baptista Herkenhoff,
propugnando por uma aplicação sociológico-política do direito, que ‘não erige o
subjetivismo como preceito, porque não determina que o juiz imponha seus valores
pessoais na sentença. Pelo contrário, alerta-o sobre a necessidade de procurar
traduzir o sentimento de justiça da comunidade [...]’. Sem dúvida, a percepção e o
sentimento da vida e da situação do povo pelos magistrados fortalecerão a
segurança jurídica, a menos que seja essa associada aos interesses de poucos e
dissociada dos interesses da maioria.
Anseia-se, assim, por um sistema jurídico flexível, mas antes de tudo,
protetivo da ordem constitucional, aqui analisada por meio de um enfoque coletivo e
a longo prazo, contrária a uma analise individual e imediatista, de modo a não
submeter os sujeitos de direito ao arbítrio de decisões puramente sentimentais e
ideológicas.
CONCLUSÃO
Em tempos de Jurisdição Constitucional, é certo que a supremacia da
Constituição Federal em face da lei coloca o órgão incumbido da jurisdição
constitucional em um papel destacado e diferenciado. Não bastasse isso, a fim de
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
105
Poder de decidir x segurança jurídica
exemplificar, o lugar “político” da Suprema Corte se consolida a medida que a
sociedade como um todo não aceita a inércia do Poder Legislativo quando na
ausência de regulamentação de Lei, provocando o Poder Judiciário para resolver
questões que envolvam desde implementação de política pública a questões sociais.
Nessa linha, É possível e exigível do Judiciário, impor determinada conduta,
sem que esta esteja expressamente prevista em lei, desde que afinada com direitos
fundamentais, de interesse coletivo e políticas públicas diretamente decorrentes do
texto constitucional, pois traduz-se em dever do Estado, do qual o Judiciário é poder/
função precípua.
É preciso assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do
Poder Judiciário, quanto à visibilidade e transparência de seus atos, diretamente
relacionados com a adoção tempestiva de medidas adequadas e eficazes
associadas à base empírica concreta do texto constitucional, tais como a
preservação dos direitos humanos e fundamentais.
Todavia, para que se fale em um Estado Democrático de Direito, há que se
impor a todos, indistintamente, o dever de sujeição ao ordenamento jurídico, aqui
representado não só pelo Poder Legislativo ou Executivo, mas, também, ao Poder
Judiciário, como legitimo distribuidor constitucional da justiça.
O que não se pode permitir, após uma história de lutas pela igualdade das
partes e dos poderes, onde ditaduras foram prostradas pelo anseio de uma justiça
idônea, retroceder-se a ponto de permitir que iniquidades emanem de quem tem o
dever de assegurar o justo.
É por isso que, a atividade interpretativa do juiz só conseguirá ser
efetivamente cumpridora da ordem jurídica justa quando, não estiverem corrompidas
por influências, sejam internas ou externas, no momento da exteriorização da
decisão. E é somente neste contexto de independência e autonomia que pode-se
deparar com o juiz efetivamente imparcial, agindo como terceiro na solução da
demanda, tendo, como apoio, além da lei, a Constituição Federal e a Justiça.
Ponto finalizando, reforça-se a ideia de que mesmo quando qualquer juiz se
vê diante de uma obrigação interpretativa deve-se atentar-se para que estas
interpretações visem o intuito do legislador, sobretudo em análise dos princípios
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
106
Rogério Montai de Lima
constitucionais, na verdadeira noção democrática de jurisdição, vedando-se a
presença de qualquer rastro de pessoalidade e individualidade nas decisões dali
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
110
Nestor Castilho Gomes e outros
NEOCONSTITUCIONALISMO, HERMENÊUTICA E PÓSPOSITIVISMO: UMA CRÍTICA A PARTIR DA TEORIA
ESTRUTURANTE DO DIREITO
NEOCONSTITUTIONALISM, HERMENEUTICS AND POST-POSITIVISM: A CRITIQUE FROM THE
STRUCTURALIST THEORY F LAW
Nestor Castilho Gomes1
Aldo Jaison de Souza2
Evelyn Gancheiro
Fernando Tessari
Ivan Preuss
Kamilla S. Melim
Leandro Luís Piccolo3
Resumo
O objetivo da presente exposição é traçar um panorama do neoconstitucionalismo,
especificamente no que tange a sua proposta hermenêutica. O estudo objetiva
identificar qual a técnica de solução de conflitos ventilada pelo
neoconstitucionalismo. Para além disso, importa verificar se a técnica proposta
realmente apresenta-se como pós-positivista, à luz da teoria estruturante do direito.
O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, buscaremos apresentar (i) as
características fundamentais do neoconstitucionalismo; (ii) as críticas desferidas
aos seus postulados caracterizadores, e (iii) a técnica de solução de conflitos que é
proposta pelos autores do referido movimento. Na segunda seção, apresentaremos
sinteticamente a teoria e a metódica estruturantes de Friedrich Müller. Por fim, em
conclusão, alguns apontamentos relativos ao que foi ventilado nas seções
anteriores, em especial sobre os riscos de um certo neoconstitucionalismo/póspositivismo
Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Hermenêutica. Solução de conflitos.
Abstract
The aim of this article is to give an overview of neoconstitutionalism, specifically in
respect to its proposed hermeneutics. The study aims to identify which technique of
conflict resolution by neoconstitutionalism brought by neoconstitutionalism.
Furthermore, it must be ascertained whether the proposed technique actually
presents itself as post-positivist structuring theory of law.
1
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor de Direito
Constitucional da Universidade da Região de Joinville – Univille. Professor de Direito
Constitucional da Faculdade Cenecista de Joinville – FCJ. Advogado.
2
Acadêmicos do Curso de Ciências Jurídicas da FCJ/Joinville.
3
Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas da SOCIESC/Joinville.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
111
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
The work is divided into two parts. At first, it tries to present (i) the fundamental
characteristics of neoconstitutionalism (ii) the criticisms leveled at its characterizing
postulations, and (iii) the technique of conflict resolution that is proposed by the
authors of that movement. In the second section, it summarizes the theory and
methodical structuring of Friedrich Müller. Finally, in conclusion, some notes related
to what was presented in the previous sections, in particular on the risks of a certain
neoconstitutionalism / post-positivism
Keywords: Neoconstitutionalism. Hermeneutics. Conflict resolution.
Sumário: Introdução. 1. Neoconstitucionalismo: características fundamentais. 1.1. As
críticas dirigidas aos postulados caracterizadores do Neoconstitucionalismo. 2. O
Neoconstitucionalismo teórico: aspectos hermenêuticos. 3. A Teoria Estruturante
do Direito e a Metódica Estruturante do Direito como teorias pós-positivistas.
Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
O
objetivo
da
presente
exposição
é
traçar
um
panorama
do
neoconstitucionalismo, especificamente no que tange a sua proposta hermenêutica.
O estudo objetiva identificar qual a técnica de solução de conflitos ventilada pelo
neoconstitucionalismo. Para além disso, importa verificar se a técnica proposta
realmente apresenta-se como pós-positivista, à luz da teoria estruturante do direito.
O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, buscaremos
apresentar (i) as características fundamentais do neoconstitucionalismo; (ii) as
críticas desferidas aos seus postulados caracterizadores, e (iii) a técnica de solução
de conflitos que é proposta pelos autores do referido movimento. Na segunda seção,
apresentaremos sinteticamente a teoria e a metódica estruturantes de Friedrich
Müller. Por fim, em conclusão, alguns apontamentos relativos ao que foi ventilado
nas
seções
anteriores,
em
especial
sobre
os
riscos
de
um
certo
neoconstitucionalismo/pós-positivismo.
1
NEOCONSTITUCIONALISMO: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
A expressão neoconstitucionalismo foi consagrada por Susanna Pozzollo
(2006, p. 78), em meados da década de 90, e tornou-se o termo unificador de
pesquisas realizadas, sobretudo na Itália e Espanha, bem como em países da
América Latina (Brasil, México, Argentina, Colômbia), a respeito das mudanças
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
112
Nestor Castilho Gomes e outros
ocorridas no modelo do Estado e na teoria do direito constitucional. No âmbito da
teoria do direito o epíteto serviria como forma de exprimir “um certo modo
antijuspositivista de se aproximar do direito”.
O termo neoconstitucionalismo não possui um significado unívoco. Não se
deve falar de neoconstitucionalismo no singular, mas sim no plural. Segundo Miguel
Carbonell (2003, p. 9), organizador de diversas coletâneas que versam sobre o
tema, “não se pode falar de 1 (um), senão de vários neoconstitucionalismos”. O
alerta de Carbonell parece acertado, pois existe uma clara heterogeneidade nas
ideias formuladas por autores que se reputam ou são denominados como partidários
deste movimento4.
A despeito da dificuldade de caracterização do neoconstitucionalismo, é
conveniente apresentar algumas de suas vigas mestras, que podem ser sintetizadas
na classificação empreendida pelo Prof. Paolo Comanducci (2003), que,
analogamente à classificação de Norberto Bobbio dirigida ao juspositivismo,
distingue o neoconstitucionalismo enquanto: teoria do direito, ideologia do direito e
método de análise do direito.
Para os limites do presente trabalho, importa analisar, sobretudo, o
neoconstitucionalismo enquanto teoria do direito, pois neste âmbito inserem-se as
pretensas modificações operadas em termos de teoria da norma e, por
consequência, na metódica jurídica. Ainda assim, convém uma breve menção ao
neoconstitucionalismo ideológico e metodológico.
4
Luiz Henrique Cademartori (2009, p. 4) destaca alguns autores que fariam parte do movimento
neoconstitucionalista. Nota-se que, no inventário proposto, há autores que expressamente
reconhecem pertencer ao neoconstitucionalismo, ao passo que outros, como Friedrich Müller,
jamais admitiram a pertença a dito movimento. De outro lado, a heterogeneidade de ideias entre
os autores resta evidente. Basta contrapor, por exemplo, Dworkin e Müller. O primeiro é
antipositivista ao passo que o segundo é pós-positivista: “Tal concepção por vezes relaciona-se
com teorias de argumentação jurídica e moral (tentando estabelecer-lhes algumas conexões),
como no caso de Aléxy e Gunther. Por outro lado, é orientada por um ideário garantista, nos
termos desenvolvidos por Ferrajoli. Também incorpora os aportes críticos de Dworkin ao
positivismo clássico e em prol de uma nova concepção de direito, tal como se apresenta no
contexto neoconstitucionalista. Somam-se ainda as teorias dos direitos fundamentais de autores
como Aléxy, Peces Barba, Peres Luño (que também traz aportes à configuração teórica do Estado
Constitucional) e da dogmática constitucional, como Zagrebelsky, Haberle, Müller e, no Brasil,
autores como Ingo Sarlet – mais especificamente no campo dos direitos fundamentais – ou Lênio
Streck no campo da hermenêutica jurídica”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
113
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Segundo Comanducci (2003, p. 85), o neoconstitucionalismo ideológico
distingue-se parcialmente da ideologia constitucionalista, ao elevar como seu
objetivo precípuo a garantia dos direitos fundamentais, em detrimento da limitação
do poder estatal, algo central no constitucionalismo dos sécs. XVIII e XIX. Tal
mudança deriva do fato do poder estatal não mais ser visto com temor e
desconfiança, decorrência dos ordenamentos democráticos contemporâneos. Ao
contrário, o Estado é visto como principal agente concretizador dos direitos e
garantias fundamentais, sobretudo aqueles direitos de índole prestacional.
O neoconstitucionalismo metodológico, por sua vez, sustenta a tese da
conexão necessária, identificativa e/ou justificativa, entre direito e moral,
contrapondo-se
ao
positivismo
metodológico.
Enquanto
este
defendia
a
possibilidade de se descrever o direito como ele é, de forma avalorativa, aquele
abandona a postura descritiva e mescla a descrição com a avaliação do sistema
jurídico, isto é, o ser do direito com referências ao dever ser ideal (COMANDUCCI,
2003, p. 86-87).
Já o neoconstitucionalismo enquanto teoria do direito apresentar-se-ia como
alternativa ao positivismo. Do ponto de vista teórico, descreve os ganhos do
processo de constitucionalização e sustenta a ideia de uma constituição “invasora”,
decorrente da positivação de um catálogo de direitos fundamentais. Defende,
ademais, que as mudanças ocorridas no objeto de investigação acarretariam na
necessidade de uma radical mudança metodológica5. O formalismo interpretativo do
positivismo jurídico seria insustentável diante da onipresença, nas Constituições, de
princípios e regras. Assim, como pressuposto lógico da adoção da ideia de que o
Direito é composto de regras e princípios, exsurgiria a necessidade de utilização da
técnica interpretativa da ponderação de princípios. Tais características serão
abordadas em seguida, em seção própria.
5
Elival da Silva Ramos (2010, p. 281-282), ácido crítico do neoconstitucionalismo, manifesta-se
expressamente contrário a ideia de que o Direito Constitucional estaria diante de um novo objeto
de estudo. Senão vejamos: “o núcleo do novo constitucionalismo não residiria na diversidade de
objeto em relação ao constitucionalismo clássico e sim em uma nova maneira de compreender o
próprio direito constitucional”. Arremata o autor: “Nesse sentido, o constitucionalismo socialdemocrático, por se reportar a Constituição com esse perfil, calcadas no modelo weimariano,
poderia receber o rótulo de “neoconstitucionalismo”, tendo em vista o constitucionalismo liberal”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
114
Nestor Castilho Gomes e outros
No Brasil o texto de referência a respeito do neoconstitucionalismo é aquele
de autoria do Prof. Luis Roberto Barroso, intitulado “Neoconstitucionalismo e
constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil”,
publicado em diversos livros e revistas jurídicas, e que inclusive ganhou tradução no
exterior6. Em referido texto Barroso estabelece três marcos fundamentais: (i) como
marco histórico, o constitucionalismo do pós-guerra, em especial na Alemanha e
Itália, e que surge no Brasil em 1988, com a Constituição cidadã; (ii) como marco
filosófico, o pós-positivismo, que “busca ir além da legalidade estrita, mas não
despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem
recorrer a categorias metafísicas”; (iii) como marco teórico, o reconhecimento da
força normativa da constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o
desenvolvimento
de
uma
nova
dogmática
da
interpretação
constitucional
7
(BARROSO, 2007) .
1.1
As críticas dirigidas aos postulados caracterizadores do
Neoconstitucionalismo
Transcorrida
fase
inicial
de
entusiasmo
com
a
temática
do
neoconstitucionalismo, foram se avolumando críticas ao movimento. Neste sentido é
bastante sintomática a introdução redigida por Miguel Carbonell, no livro “Teoria del
6
O livro “El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del Derecho” foi publicado pela
Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM em 2008.
7
Estes marcos caracterizadores do neoconstitucionalismo, com diferenças pontuais, também
podem ser encontrados em autores nacionais e estrangeiros. Miguel Carbonell, em texto recente,
divide o neoconstitucionalismo em três níveis distintos de análise: (i) textos constitucionais, o
neoconstitucionalismo pretende explicar um conjunto de textos constitucionais que começam a
surgir depois da segunda guerra mundial e sobretudo a partir dos anos setenta do século XX; (ii)
práticas jurisprudenciais, como consequência da entrada em vigor de um modelo substantivo de
textos constitucionais, a prática jurisprudencial de muitos tribunais e cortes constitucionais também
teria se alterado de forma relevante. Os juízes constitucionais vêm tendo que aprender a realizar
sua função sob parâmetros interpretativos novos e mais complexos; (iii) desenvolvimentos
teóricos, isto é, aportes teóricos que contribuem não apenas para explicar o fenômeno jurídico,
mas muitas vezes para inclusive criá-lo. Ver: Carbonell, 2010. p. 153-158. De outro lado, em
âmbito nacional, Eduardo Moreira em dissertação a respeito do tema, apresenta como
características do neoconstitucionalismo teórico: (i) presença invasora da constituição; (ii) maior
presença judicial no lugar da autonomia do legislador; (iii) revisão completa da teoria da
interpretação, da teoria da norma e da teoria das fontes; (iv) ênfase nos princípios e nos direitos
fundamentais; (v) mais ponderação, em detrimento da subsunção clássica; (vi) percepção de
pensar o direito fora do âmbito da aplicação judicial para também considerar o momento de
formação do direito, de elaboração das leis e de suas resultantes jurídicas. Ver: Moreira, 2008.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
115
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Neoconstitucionalismo”, editado no ano de 2007, quatro anos após a publicação do
livro “Neonconstitucionalismo(s)”, de grande repercussão no Brasil. Nos dizeres
Carbonell (2007, p. 9):
No son pocos los autores que se preguntan si en realidad hay algo nuevo
en el neoconstitucionalismo o si más bien se trata de una etiqueta vacía,
que sirve para presentar bajo un nuevo ropaje cuestiones que antaño se
explicaban de otra manera”.
Atualmente não faltam criticas ácidas dirigidas ao neoconstitucionalismo.
Uadi Lamego Bullos (2011, p. 86) o considera um mero modismo, que não tem nada
de novo, ou melhor:
(...) o que o neoconstitucionalismo tem de novo é a forma de os seus
defensores repetirem o que todo mundo já sabe com outras palavras,
usando termos criados por eles mesmos e adotando terminologias
empoladas ou pensamentos adaptados de jusfilósofos da atualidade.
No mesmo sentido, Elival Ramos da Silva (2010, p. 279) sustenta que:
quando se procura compreender o que é o neoconstitucionalismo para
poder analisá-lo criticamente, aceitando-o ou rejeitando-o, constata-se que
se está diante de elaboração imersa em tamanhas fragilidades, que não
passa de muito mais que um modismo intelectual.
Conforme
adiantamos,
neoconstitucionalismo
vêm
as
sendo
características
alvo
de
conformadoras
críticas.
Partidários
do
do
neoconstitucionalismo afirmam que o marco histórico coincidiria com a formação do
Estado constitucional, “cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do
século XX” (CARBONELL, 2007, p. 154). Críticos do neoconstitucionalismo
lembram, contudo, que nos Estados Unidos da América o chamado Estado
constitucional existe desde o século XIX, isto é, desde a promulgação da
Constituição Americana em 17878.
8
Ao refutar o referido marco histórico, Ramos sentencia que: “O estado constitucional de Direito se
desenvolveu em períodos históricos diversificados, em relação a cada sociedade política,
usualmente coincidindo com a consolidação do próprio sistema político democrático, não existindo
fundamento algum para se afirmar que se trata de um fenômeno simultâneo e de abrangência
universal, contemporâneo às últimas décadas do século XX”. Ramos, 2010, p. 280.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
116
Nestor Castilho Gomes e outros
A ideia de que o controle de constitucionalidade e a jurisdição constitucional
sejam características marcantes do neoconstitucionalismo também é refutada. Isto
porque, o controle difuso de constitucionalidade existe nos Estados Unidos da
América desde o início do século XIX, como decorrência da decisão da Suprema
Corte no caso Marbury vs. Madison. Da mesma forma, o Brasil conhece o controle
de constitucionalidade desde a primeira Constituição Republicana, que data de
1891. Finalmente, o controle de constitucionalidade existe na Europa desde as
primeiras décadas do século XX, (anterior, portanto, ao marco histórico do
neoconstitucionalismo), como comprovam a Constituição Austríaca e a Constituição
Portuguesa. Não se pode negar que após a segunda guerra mundial tenha ocorrido
uma expansão quantitativa de Tribunais Constitucionais na Europa. Isto não
significa, contudo, que o neoconstitucionalismo tenha inaugurado o controle de
constitucionalidade, tampouco a existência de Tribunais Constitucionais.
Outra crítica que merece guarida é aquela refratária ao pensamento de que
apenas com o neoconstitucionalismo tivemos a positivação de valores nas cartas
constitucionais. As constituições do século XIX não eram compostas apenas de
regras formais acerca da organização do Estado e dos Poderes. Havia, nestas
constituições, uma série de dispositivos materiais que positivavam valores liberais,
prevalecentes à época. Conforme afirma Luigi Ferrajoli, é uma característica da
legislação exprimir valores. Para Ferrajoli (2012, p. 27-28):
As constituições expressam e incorporam valores da mesma maneira, nem
mais nem menos, como o fazem as leis ordinárias. Aquilo que representa o
seu traço característico é o fato de os valores nelas expressos – e que nas
constituições democráticas consistem, sobretudo, em direitos fundamentais
– serem formulados por meio de normas positivas de nível normativo
supraordenado àquele da legislação ordinária e serem, por isso, em relação
a esta vinculante.
Neste mesmo sentido, Horst Dippel (2007, p. 10) destaca dez traços do
constitucionalismo moderno que estão presentes na Declaração de Direitos da
Virginia, e que demonstram a positivação de princípios materiais desde o século
XVIII:
a importância singular da Declaração dos Direitos de Virgínia de 1776 reside
no facto de ter estabelecido o catálogo completo dos traços essenciais do
constitucionalismo moderno, características cuja natureza constitutiva é hoje
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
117
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
tão válida hoje quanto a cem anos atrás: soberania popular, princípios
universais, direitos humanos, governo representativo, a constituição como
direito supremo, separação dos poderes, governo limitado, responsabilidade
e sindicabilidade do governo, imparcialidade e independência dos tribunais,
o reconhecimento ao povo do direito de reformar o seu próprio governo e do
poder de revisão da constituição.
Por todo o exposto, apresenta-se como controverso o caráter de vanguarda
do neoconstitucionalismo. Ainda assim, parece indiscutível que o “conceito de
constituição”, que sofreu uma série de críticas ao longo do século XIX e XX, tenha
resistido ao longo deste tempo. É algo induvidável que atualmente o pensamento
jurídico trabalha com a noção de Constituição como norma jurídica superior,
jurisdicionalmente aplicável e que garante a limitação do Poder do Estado e a
concretização dos diretos fundamentais.
2
O NEOCONSTITUCIONALISMO TEÓRICO: ASPECTOS
HERMENÊUTICOS
A teoria neoconstitucionalista sustenta que, do ponto de vista de uma teoria
da norma, o neoconstitucionalismo se caracterizaria pela passagem da espécie
normativa regra à espécie normativa princípio. Nos dizeres de Luis Roberto Barroso,
“o reconhecimento de normatividade dos princípios e sua distinção qualitativa em
relação às regras é um dos símbolos do pós-positivismo”. A ênfase nos princípios
pode ser percebida numa miríade de autores, que alertam acerca da superação da
regra pelo princípio9.
Como consequência desta nova visão a respeito das normas jurídicas, os
autores neoconstitucionalistas propõem uma nova técnica de solução de conflitos,
uma nova dogmática da interpretação constitucional; a ponderação de princípios.
9
Tal estado de coisas faz com que hoje se fale em “principiologização do Direito Constitucional”,
nos dizeres de Elival da Silva Ramos, ou mesmo em “pan-principiologismo”, na alcunha de Lenio
Luiz Streck. Em recente publicação, Streck elenca uma série de princípios despidos de
normatividade, tais como: o princípio “da cooperação processual”, “da afetividade”, da “proibição
do atalhamento constitucional”, da “pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do
“deduzido e do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da “parcelaridade”, da
“verticalização das coligações partidárias”, da “possibilidade de anulamento”, etc. Ver: Streck,
2012.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
118
Nestor Castilho Gomes e outros
Teríamos, assim, a passagem da subsunção à ponderação. Na síntese de Daniel
Sarmento (2009):
Como boa parcela das normas mais relevantes destas constituições
caracteriza-se pela abertura e indeterminação semântica – são em grande
parte, princípios e não regras – a sua aplicação direta pelo Poder Judiciário
importou na adoção de novas técnicas e estilos hermenêuticos ao lado da
tradicional subsunção. A necessidade de resolver tensões entre princípios
constitucionais colidentes – frequente em constituições compromissórias,
marcadas pela riqueza e pelo pluralismo axiológico – deu espaço ao
desenvolvimento da técnica da ponderação (...).
A enorme influência da teoria dos princípios e da técnica da ponderação de
Robert Alexy na bibliografia nacional e mesmo nas sentenças do Supremo Tribunal
Federal nos parece algo autoevidente.
O
discurso
neoconstitucionalista
apresenta,
consciente
ou
inconscientemente, a técnica da ponderação de princípios como única possibilidade
de uma hermenêutica nomeadamente pós-positivista. Os inúmeros trabalhos a
respeito do tema permitem dizer que há uma afirmação sub-reptícia da ponderação
de princípios como sendo “a” técnica hermenêutica pós-positivista. A grande maioria
dos trabalhos ignora solenemente a existência de outros modelos metódicos. A
impressão que fica é a de que existe apenas uma teoria, a ponderação de princípios,
supostamente capaz de caracterizar, de uma vez por todas, uma perspectiva póspositivista.
Dito isto, importa dizer que a técnica da ponderação não é a única proposta
apta a enfrentar a subsunção que caracteriza o positivismo jurídico. Não nos parece,
outrossim, que a compreensão de norma jurídica por parte de autores
neoconstitucionalistas verdadeiramente supere a concepção positivista acerca da
mesma. Desta forma, convém apresentar sinteticamente, a teoria estruturante do
direito e a metódica estruturante do direito, como perspectivas capazes de
efetivamente superar o positivismo jurídico, sem, contudo, abandonar as conquistas
e exigências do próprio positivismo.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
119
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
3
A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO E A METÓDICA
ESTRUTURANTE DO DIREITO COMO TEORIAS PÓS-POSITIVISTAS
A teoria estruturante do direito [Strukturierende Rechtslehre] engloba
conjunta e reciprocamente a dogmática, a metodologia, a teoria do direito (da norma
jurídica) e a teoria da constituição (MÜLLER, 1996, p. 25). Entretanto, apesar de
intrinsecamente entrelaçados, os diversos componentes da teoria estruturante
podem ser lidos isoladamente. A presente seção privilegiará uma breve exposição
da teoria da norma jurídica de Müller, seguido de um igualmente sucinto relato da
metódica estruturante do direito. Isto porque a teoria da norma jurídica e a metódica
estruturante atuam em constante inter-relação. A primeira depende necessariamente
da segunda, ao passo que o contrário também é verdadeiro. Conforme enfatiza
Olivier Jouanjan, a “metodologia ocupa, certamente, no seio da teoria estruturante,
lugar estratégico” (JOUANJAN, 2007, p. 248). Se é possível estabelecer uma
hierarquia entre os quatro elementos que formam a teoria estruturante do direito,
poder-se-ia arriscar que a teoria da norma jurídica e a metódica estruturante ocupam
lugar privilegiado.
Conforme se verá, Müller propõe uma relação indissociável entre norma
jurídica e metodologia jurídica. A definição da norma jurídica necessariamente
afetaria a metodologia jurídica e a própria concepção do que seja a ciência do
direito. Neste sentido importa analisar de que forma a reformulação teórica a
respeito da norma jurídica (operada por Müller) influenciou a metódica jurídica
proposta.
Pode-se dizer que a teoria da norma de Friedrich Müller parte do
pressuposto de que as normas jurídicas não são puro dever-ser. Müller propõe a
norma jurídica como uma noção composta de ser e dever-ser, de dados linguísticos
e dados reais. Ademais, a norma jurídica não se identificaria ao texto da norma. A
norma jurídica seria
estruturada na conjugação do programa da norma
(Normprogramm) com o âmbito da norma (Normbereich). Estes e outros aspectos
serão elucidados a seguir.
Para Müller (2008, p. 16), a separação da norma e dos fatos, do direito e da
realidade, assim como a compreensão da norma como algo que repousa em si e
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
120
Nestor Castilho Gomes e outros
preexiste, é um dos erros fundamentais do positivismo10 na ciência jurídica11. O
positivismo na ciência jurídica sempre diferenciou norma e realidade como
polaridades abstratas, e jamais os investigou de forma diferenciada como partes
integrantes da estrutura da normatividade jurídica. A relação entre norma e
realidade, ser e dever-ser, sempre foi relegada ao campo de estudos da filosofia do
direito, em detrimento de uma sua consideração a partir da teoria da norma jurídica.
Mesmo as correntes críticas ao positivismo jamais propuseram o
direcionamento do problema direito e realidade para o âmbito da teoria da norma. O
máximo que fizeram foi propugnar para a atividade prático-decisória a necessária
mediação entre norma e realidade, sem conseguir, porém, responder de que forma
esta mediação deveria ocorrer. Apesar dos constantes apelos, não se conseguiu
desenvolver uma metódica consciente, que transpusesse para a realidade da vida a
sua intenção programática. Nos dizeres de Müller (2008, 39-40), não houve resposta
à questão decisiva: “a quais passos individuais, controláveis da decisão jurídica
prática, podem referir-se metáforas como “dialética”, “polaridade”, “atribuição
correlativa”?”12. Enquanto isso os Tribunais defrontavam-se (e defrontam-se!) com
questões concretas sem ter, ao seu dispor, mais do que posições genéricas em
termos de método (MÜLLER, 2008, p. 40-41)13.
10
Convém esclarecer o significado do termo positivismo jurídico para Müller (2008, p. 17): “Com
esse termo só se compreende o direito objetivo vigente como sistema perfeito de normas jurídicas,
caracteriza-se a decisão jurídica concreta como aplicação lógica de uma norma jurídica abstrata a
um tipo concreto “a ser subsumido”, iguala-se a relevância jurídica à construtibilidade em termos
de lógica jurídica, e a ação comunitária dos homens à “aplicação” e “execução” de normas
jurídicas abstratas ou a uma infração das mesmas”.
11
Jan Schapp aponta a relevância da problemática da distinção entre ser e dever-ser tanto para
autores que sustentam a imprescindibilidade da contraposição, quanto para autores (como Müller)
que a criticam: “A metodologia jurídica ainda hoje vem marcada, em grande parte, pela distinção
kantiana entre ser e dever-ser. Esta distinção não é apenas determinante para os autores que a
usam como base de suas construções, ela influencia até mesmo autores que a discutem
criticamente”. Cf. Schapp, 1985, p. 33.
12
Sobre a vaguidade dos apelos à relação recíproca entre direito e realidade e os perigosos reflexos
para a jurisprudência, afirma o autor: “A jurisprudência prática comprova que a “ação recíproca” é
uma noção muito imprecisa e que dá espaço a todo processo possível de interpretação, por ser
uma ideia formal e indefinida quanto às possibilidades e limites”. Cf. Müller, 2008, p. 107. É de se
ressaltar que Müller estende as mesmas críticas para a desgastada “dialética”, “quando ela não é
explicitada de modo responsável, mas aparece como metáfora aleatória (...)”.
13
Müller alerta que, enquanto não for investigada a estrutura da normatividade e a norma for
concebida como puro “dever-ser” que se confronta com o “ser”, os problemas metódicos
continuarão sem solução. Nas palavras do Autor: “Enquanto uma teoria (da norma) jurídica não
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
121
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
A originalidade da teoria da norma de Müller reside na estrutura normativa
por ele proposta. Para Müller (1983, p. 155), não é apenas a injunção de dever-ser
que contribui para a decisão do caso, mas também, no que toca a uma série de tipos
de normas, igualmente a estrutura substancial do âmbito de regulação, da parcela
da realidade social relacionada com a norma. Enquanto a Teoria Pura do Direito,
e.g., assenta-se no dualismo incomunicável entre norma e realidade empírica, ser e
dever-ser14, a Teoria Estruturante do Direito congrega estes dois elementos dentro
da teoria da norma. Reside, pois, no entrecruzamento ordenado entre norma e
realidade, uma diferença substancial entre a teoria de Müller e a teoria de Kelsen.
O decisivo para a compreensão da teoria da norma de Müller é a não
identidade entre norma e texto normativo. O teor literal da norma, juntamente com
todos os recursos interpretativos auxiliares, expressa tão-somente o que Müller
denomina de programa da norma (Normprogramm)15, resultado do trabalho de
interpretação. Pertence igualmente à norma, em grau hierárquico igual, o chamado
âmbito da norma (Normbereich)16, resultado do trabalho de análise do segmento da
realidade referida (JOAUJAN in MÜLLER, 2007, p. 259). Assim, a norma será
formada pelo programa normativo (Normprogramm) e pelo âmbito normativo
(Normbereich), só podendo ser compreendida pela recíproca articulação destas
dimensões.
incluir inteiramente na investigação da estrutura da norma a estrutura da “coisa” normatizada, a
norma no fundo sempre confrontar-se-á ao “ser” como um dever-ser”; será concebida como uma
estrutura autônoma e independente da realidade, uma estrutura que está em conexão com a
realidade apenas de modo genericamente teórico-jurídico, mas que em suas especificidades, e
bem assim para os problemas metódicos, permanece em aberto”. Cf. Müller, 2008, p. 106.
14
Essa separação não é absoluta, dado que, para Kelsen, entre vigência e eficácia pode existir ‘uma
certa conexão (...) Um mínimo de eficácia [da norma] é a condição de sua vigência” (Op. Cit, p.
12). E mais: ao nível de ordenamento, só se pode inferir a existência de uma grundnorm a
fundamentar toda a validade do ordenamento se esse ordenamento for, em seu conjunto, eficaz
(p. 237). Sobre a relação validade/eficácia na Teoria Pura do Direito, v. Cademartori, 2007.
15
Müller, 2008, p. 224. “O programa da norma é formado pelo texto da norma, trabalhado pelos
dados da linguagem, visando à sua aplicação ao caso”. Cf. Bornholdt, 2005, p. 40.
16
O âmbito normativo será aquela parcela da realidade situada em conformidade com as
prescrições do programa da norma. O âmbito normativo “é o recorte da realidade social na sua
estrutura básica, que o programa da norma “escolheu” para si ou em parte criou para si como seu
âmbito de regulamentação (...) podendo ter sido gerado (prescrições referentes a prazos, datas,
prescrições de forma, regras institucionais e processuais, etc.) ou não pelo direito”. Cf. Müller,
2000, p. 57; Bornholdt, 2005, p. 46.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
122
Nestor Castilho Gomes e outros
O programa normativo (Normprogramm) e o âmbito normativo (Normbereich)
compõem a estrutura da norma jurídica. Ao interligar o programa da norma e o
âmbito da norma, o operador do direito cria a norma jurídica (Rechtsnorm) – ainda
formulada de forma geral e abstrata. O derradeiro trabalho do operador do direito
consiste na individualização da norma jurídica em uma norma de decisão
(Entscheidungsnorm), que consiste no somatório de todas as fases do processo de
concretização (MÜLLER, 1996, p. 46). Na síntese precisa de Eros Roberto Grau
(s.d., p. 79):
a concretização implica um caminhar do texto da norma para a norma
concreta (a norma jurídica), que não é ainda, todavia, o destino a ser
alcançado; a concretização somente se realiza no passo seguinte, quando é
descoberta a norma de decisão, apta a dar solução ao conflito que
consubstancia o caso concreto.
Se é possível uma analogia, poder-se-ia dizer que a norma jurídica
(Rechtsnorm) representa os “considerandos”, os argumentos determinantes da
sentença, ao passo que a norma de decisão (Entscheidungsnorm) consiste na parte
dispositiva da sentença (e.g., “A lei é inconstitucional”; “A medida não viola o direito
fundamental ‘x’”; “o prazo previsto pela constituição não foi observado”) (MÜLLER,
2008, p. 151). Segundo Müller, apenas é possível falar na viabilidade do raciocínio
subsuntivo após a formulação da norma de decisão.
De ver, portanto, que a “norma”, como diz Müller, é muito mais ampla do que
o “texto normativo”. A norma jurídica não está pronta nem substancialmente
acabada, não está no texto positivo. O positivismo jurídico ao identificar norma e
texto de norma apresentava a tarefa prático-decisória como um procedimento de
dedução lógica17. O juiz decidiria à maneira silogística “subsumindo o caso jurídico
aos conceitos de uma norma jurídica previamente dada” (MÜLLER, 2009, p. 148)18.
17
Müller (2008, p. 47) julga improvável a utilização da lógica formal para a resolução dos casos
concretos. As prescrições jurídicas, devido ao seu caráter linguístico, não oferecem, na maioria
dos casos, nenhum ponto de partida para operações exatas de lógica formal. Nos dizeres de
Müller: “os teores jurídico materiais nem de longe estão “contidos” nos elementos linguísticos das
normas jurídicas, por sua natureza necessariamente imprecisos, de tal modo que poderiam ser
transformados em momentos de conclusões lógicas”.
18
Como esclarece Ralph Christensen, no modelo positivista, “a atividade do jurista gravita em torno
do pólo fixo da norma jurídica dada como orientação prévia”. Cf. Christensen, In: Müller, 2009, p.
234.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
123
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
A identificação da norma com o texto (a norma seria formada por dados
exclusivamente linguísticos) proporcionou o entendimento da atividade decisória
como meramente declaratória. O problema da “interpretação”, ou da “interpretação e
aplicação do direito”, consistiria num problema puramente hermenêutico (em saber o
que significativo-textualmente consta, e.g., da lei) (CASTANHEIRA NEVES, 1993, p.
83).
A teoria e metódica estruturantes, ao contrário, consideram a atividade
decisória um problema prático-normativo. A não identificação da norma com o texto,
e a imprescindibilidade do caso – que contribuirá com a inserção dos dados reais na
norma jurídica –, faz como que a teoria estruturante rejeite uma “interpretação
aplicadora” do texto normativo. Como nos diz Castanheira Neves, Müller (2000, p.
61) reconhece a prioridade metódica do caso, a inafastabilidade do caso para a
concretização do direito. A norma jurídica não é dependente do caso, mas refere-se
a ele. Ambos (norma e caso) fornecem os elementos necessários à decisão jurídica.
A teoria de Müller está inserida num contexto onde:
o problema da interpretação jurídica não é hermenêutico, mas normativo.
Daí que o objeto em causa há de ser correlativo a esta índole do problema,
sendo certo que o problema interpretativo vai implicado pela natureza
prático-normativa do caso a resolver com apoio na solução desse problema.
Por outras palavras, o objeto normativo interpretando não poderá ser um
objeto meramente significante, mas um objeto suscetível de oferecer um
critério normativo para a solução judicativa do caso decidendo. E então o
objeto da interpretação não será o texto das normas jurídicas, enquanto
expressão ou o corpus de uma significação a compreender e a analisar,
mas a normatividade que essas normas, como critérios jurídicos, constituem
e possam oferecer. (CASTANHEIRA NEVES, 1993, p. 143)
Ao investigar a estrutura da normatividade jurídica, a teoria estruturante do
direito se dá conta de que a norma jurídica também é composta por dados reais 19.
19
João Maurício Adeodato enfatiza brilhantemente as razões que levam Müller a propor a diferença
entre a tradicional “interpretação e aplicação do direito” e a sua “concretização”. Segundo o Autor:
“O procedimento genérico através do qual se procura adequar normas e fatos e decidir,
tradicionalmente conhecido por “interpretação” ou “interpretação e aplicação do direito”, Müller
denomina “concretização da norma” (Normkonkretisierung), procurando justamente afastar-se da
hermenêutica tradicional e determinar mais precisamente seus conceitos e procedimentos. Nessa
tarefa insiste que concretização não significa silogismo, subsunção, efetivação, aplicação ou
individualização concreta do direito a partir da norma geral”. Cf. Adeodato, 2002, p. 240; Cf.
Castanheira Neves, 1993, p. 83; Larenz, 1983, p. 155.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
124
Nestor Castilho Gomes e outros
Assim, o processo prático-decisório não se reduz a um trabalho puramente
hermenêutico, pois a norma jurídica não é um dado exclusivamente linguístico. Não
se trata, portanto, de simplesmente descobrir o significado textual das palavras da
lei, o que ensejaria uma posterior “interpretação aplicadora” do texto normativo
(NEVES, 1994, p. 77).
Dito isso, importa ressaltar, por fim, a intrínseca inter-relação da teoria da
norma jurídica com a metódica estruturante20. Tanto é assim que Robert Alexy
(2008, p. 79), em inspirada metáfora, afirma que a teoria estruturante da norma
jurídica e a metódica estruturante são duas faces da mesma moeda.
A teoria da norma jurídica e a metódica são inseparáveis (“concretamente
ligadas entre si”), porque a norma jurídica resulta do processo de concretização, isto
é, resulta do processo metódico de concretização. O processo de construção da
norma jurídica – de tomada de decisão – é regido pela metódica. A norma jurídica é
criada sob o fio condutor da metódica, que busca proporcionar a racionalidade que
se espera no Estado Democrático de Direito.
A complexidade da teoria da norma de Friedrich Müller (um projeto que
abarca tanto dados linguísticos como dados reais) tem como corolário a
consideração do problema metodológico como um problema de concretização das
normas jurídicas. Nas palavras de Castanheira Neves (1993, p. 145):
Operando com as distinções entre “texto normativo” (Normtext) e “norma” (a
normatividade concreto-material obtida pela estruturada concretização) (...)
F. Müller pensa o concreto judicium jurídico como o resultado de um
constitutivo processo normativo de concretização, que mobiliza
estruturalmente (num processo ou “método estruturante”) um conjunto de
fatores ou elementos metódicos jurídicos (“elementos de concretização”), a
mais do texto normativo ou dos elementos hermenêuticos: elementos
dogmáticos, elementos do respectivo domínio objetivo, elementos jurídicoteóricos, técnico-jurídicos, etc. Daí que o problema metodológico seria hoje
de “Normkonkretisierung statt Normtextauslegung” (concretização de
normas em vez de interpretação de textos de normas).
Como restou assentado, a teoria e metódica estruturantes rejeitam a
“interpretação aplicadora” do direito em favor do processo de concretização. O fato
20
Em uma linguagem convencional, com a sua teoria da “aplicação do direito”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
125
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
da norma não estar pronta impede uma sua mera aplicação lógico-dedutiva. A
diferença entre norma e texto de norma permite dizer com Olivier Jouanjan (2007, p.
257) que “a norma não é o ponto de partida da concretização, mas o seu resultado”.
A concretização de uma norma transcende à mera interpretação do texto21,
e será disciplinada por métodos jurídicos, com o que se articulam teoria da norma e
metodologia jurídica (JOAUJAN, 2007, p. 257). E quais seriam estes métodos?
Construída a partir do exemplo do Direito Constitucional, a metódica
estruturante preocupa-se em desenvolver meios de um trabalho controlável de
decisão e fundamentação22. O passo decisivo para esse objetivo é dado com a
especificação dos elementos que concorrem para a concretização da norma jurídica,
e a subsequente eleição de critérios de prioridade para regular os eventuais conflitos
entre esses elementos. Müller busca dar ao trabalho jurídico um método científico
que possa universalizar, explicitar e revelar o seu próprio procedimento (MÜLLER,
1995, p. 26-28).
A metódica estruturante distingue os seguintes elementos de concretização
da norma jurídica: (i) elementos metodológicos em sentido estrito (interpretações
gramatical, sistemática, genética, histórica e teleológica; bem como os modernos
princípios de interpretação da constituição); (ii) elementos do âmbito da norma (que
podem ou não ser gerados pelo direito); (iii) elementos dogmáticos (doutrina e
jurisprudência); (iv) elementos de teoria (e.g., Teorias do Estado e da Constituição);
(v) elementos de técnica de solução de casos; (vi) elementos de política do direito e
política constitucional (MÜLLER, 2000, p. 111).
A divisão dos elementos de concretização não é realizada a esmo. Müller
subdivide os elementos de concretização em dois grandes grupos, classificando-os
conforme a sua função para a concretização e de acordo com a sua referibilidade
aos textos.
21
A interpretação, na teoria de Müller, tem sentido mais restrito, pois diz respeito às possibilidades
de tratamento do texto, isto é, da interpretação de textos de normas.
22
A metódica estruturante não se restringe ao direito constitucional (apesar de construída a partir do
seu exemplo), eis que fornece os equipamentos básicos necessários às diversas condições do
trabalho legal.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
126
Nestor Castilho Gomes e outros
Assim, fazem parte do primeiro grupo todos aqueles elementos diretamente
relacionados à interpretação dos textos das normas. Estão abrangidos os elementos
metodológicos em sentido estrito e os modernos princípios de interpretação da
constituição (como o princípio da interpretação conforme a constituição, o princípio
da correção funcional, etc.).
O segundo grupo abarca os elementos de análise do âmbito da norma.
Como o processo de concretização não se resume aos textos das normas, mas
engloba conjunta e reciprocamente a análise mediada dos elementos da realidade, o
segundo grupo refere-se aos dados reais (secundariamente linguísticos), isto é, os
“teores materiais que resultam da análise do âmbito da norma da prescrição
implementanda e da análise dos elementos do conjunto de fatos destacados como
relevantes no processo de concretização, por via de detalhamentos recíprocos”
(MÜLLER, 2000, p. 71).
Por fim, formando um grupo “marginalizado”, estão os elementos
dogmáticos, de técnica de solução, de política constitucional e de teoria, que
também integram o processo de concretização, desempenhando uma função
suplementar.
No seu contributo à racionalização do trabalho jurídico, a metódica
estruturante objetiva identificar, avaliar, classificar e organizar por critérios de
preferência os elementos de concretização. Ao contrário de Kelsen, que abandona a
concretização do direito ao puro arbítrio do intérprete (limitado pela moldura), Müller
busca estabelecer um processo seguro e comprovável, apresentando determinados
critérios em que o intérprete se possa guiar. Entre estes critérios está a hierarquia
dos elementos de concretização.
Como visto, Müller estrutura o processo de concretização a partir de dois
grupos de elementos, quais sejam: (i) elementos metodológicos referidos ao texto da
norma23, e (ii) elementos metodológicos de análise do âmbito da norma. Finalmente,
ingressam no processo de concretização os elementos dogmáticos, os elementos
23
A interpretação do texto da norma se realiza segundo os cânones desenvolvidos por Savigny:
interpretação gramatical, genética, histórica e teleológica, bem como mediante os modernos
princípios de interpretação da constituição - princípio da interpretação conforme a constituição, da
unidade e da concordância prática.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
127
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
teóricos, os elementos de técnica de solução, os elementos de política do direito e
política constitucional (CHRISTENSEN, 2007, p. 243).
Em caso de conflito, os argumentos diretamente referidos às normas
prevalecem sobre aqueles mais distantes. Nos dizeres de Ralph Christensen: “Isso
significa, por exemplo, que no caso de resultados contraditórios dos diferentes
elementos de concretização, um elemento metodológico no sentido mais estrito
referido ao texto da norma derrota um elemento meramente juspolítico ou um
elemento dogmático não diretamente referido à norma” (CHRISTENSEN, 2007, p.
243). A metódica estruturante fornece, pois, elementos objetivos para a atividade
prática de aplicação do direito.
Convém alertar que antes de um critério de obtenção de verdade ou
meramente descritivo (de uma prática autonomamente constituída, atuando a
posteriori), o que a metódica efetivamente deseja é criar um processo de decisão
que permita a sua discutibilidade, revisibilidade e regularidade.
CONCLUSÕES
A despeito da heterogeneidade dos postulados do neoconstitucionalismo,
pode-se afirmar com certa tranquilidade pelo menos uma característica unificadora
entre diversos autores: a refutação da subsunção como possibilidade metódica. Tal
crítica à subsunção, porém, não é inovadora; remonta ao final do século XIX e início
do século XX, podendo ser encontrada na Escola do Direito Livre e na
Jurisprudência dos Interesses, por exemplo.
Outrossim, o neoconstitucionalismo defende que as mudanças ocorridas no
conceito de Constituição acarretariam na necessidade de uma radical mudança
metodológica. O formalismo interpretativo do positivismo jurídico, calcado na
subsunção, seria insustentável diante da onipresença, nas Constituições, de
princípios e regras. Como pressuposto lógico de uma teoria da norma centrada na
existência de regras e princípios, exsurgiria a necessidade de utilização da técnica
da ponderação de princípios.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
128
Nestor Castilho Gomes e outros
Neste ponto, cabe reforçar que a ponderação de princípios não é a única
alternativa metódica a subsunção. A exposição da teoria e da metódica
estruturantes, elaboradas por Friedrich Müller, deixam isso claro.
Por fim, há que se fazer um alerta acerca dos perigos do “panprincipiologismo”, bem como de uma ponderação irrefletida24. Se as insuficiências
das possibilidades apresentadas pelo positivismo para a concretização do direito são
manifestas, a crítica ao positivismo, muitas vezes, vem desacompanhada da
apresentação dos métodos que permitiriam superá-lo. Do ponto de vista
metodológico, a crítica raramente ultrapassa o nível programático (ou retórico), pois
não se propõe (ou mesmo se discute) a estruturação de um modelo metódico
suscetível de tornar efetiva ou praticável a intenção (CASTANHEIRA NEVES, 1995,
p. 402).
O pós-positivismo à brasileira, que, segundo Dimitri Dimoulis, intenciona na
prática decisória a alforria do operador do direito em relação ao texto das normas
jurídicas, não pode ser confundido com o pós-positivismo proposto pela teoria
estruturante do direito. Importa dizer, com Müller, que a superação do positivismo
em termos de método não é um fim legítimo em si mesmo25. Apesar da teoria (e da
metódica) estruturante refutar alguns dos pressupostos do positivismo 26, isto não
acarreta o abandono das conquistas e exigências do próprio positivismo.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Saraiva, 2002.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008.
24
Lenio Luiz Streck critica o caráter superficial da leitura da teoria de Robert Alexy no Brasil.
Segundo Streck: “É possível dizer que, no Brasil, não há sequer uma “teoria da argumentação”.
Há, tão somente, os traços analíticos de uma teoria dos princípios, sem o controle – bem ou mal –
exercido pelas regras da argumentação. Streck, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e
pós-positivismo. In: Rosa, 2012.
25
Na lição do autor: “Os objetivos de cientifizar na medida do possível a ciência jurídica e de
elaborar uma dogmática racional não merecem ser esquecidos em benefício de exigências
menores no tocante à racionalidade e à honestidade em questões de método. A ‘superação’ do
positivismo não é de modo nenhum um fim legítimo em si mesmo”. Müller, 2009, p. 119.
26
Tal como a identidade entre norma e texto de norma, e a possibilidade de um raciocínio jurídico
lógico-subsuntivo.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
129
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
131
Uma crítica à objeção contramajoritária...
UMA CRÍTICA À OBJEÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA AO
CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE1
CRITIQUE TO THE CONTRAMAJORITARY OBJECTION TO THE JUDICIAL CONTROLL OF
CONSTITUTIONALITY
Luís Fernando Sgarbossa
Geziela Jensen
Alexandre Almeida Rocha
Igor Sporch da Costa
Mariana Morsoletto Carmo
Bárbara Cristina Kruse
Camila Salgueiro da Purificação Marques
Diego Ramires Bittencourt
Gabriel Roman Souza
Hassan Paracat
Vinícius Dalazoana
Resumo
O presente artigo pretende realizar uma análise crítica da denominada objeção
contramajoritária ao controle judicial de constitucionalidade. A escolha do tema
justifica-se em face do surgimento de teorias que criticam, com argumentos
variados em forma, intensidade e origem, o caráter contramajoritário do controle
judicial de constitucionalidade, bem como de propostas recentes nela escoradas.
Investigar o fundamento democrático da jurisdição constitucional torna-se relevante,
já que as mais variadas questões sociais estão constitucionalizadas e
judicializadas, havendo mesmo quem se refira, no contexto brasileiro, a uma
“supremocracia”. No intuito de enfrentar o tema proposto, buscar-se-á, em um
primeiro momento, expor algumas concepções e argumentos críticos ao controle
judicial de constitucionalidade. Na sequência, analisar-se-á criticamente a
democracia representativa contemporânea e suas limitações, enfatizando os
problemas subjacentes à regra da maioria, o que se fará, em boa medida, com
base nos estudos de Economia Política Constitucional de James Buchanan e
Gordon Tullock. Após tal percurso teórico, o presente artigo busca demonstrar que
1
O presente artigo é resultado do trabalho de pesquisa realizado pelo Grupo de Estudos da
Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDCONST em Ponta Grossa, em parceria com o
Curso de Direito das Faculdades SECAL, no período do segundo semestre do ano de 2010 e
primeiro semestre do ano de 2011. Os Professores Orientadores Luís Fernando Sgarbossa e
Geziela Jensen são Professores das Faculdades SECAL. Os Professores Monitores Alexandre
Almeida Rocha e Igor Sporch da Costa são Professores da Universidade Estadual de Ponta
Grossa – UEPG e a Profa. Monitora Mariana Morsoletto Carmo é Professora das Faculdades
SECAL. Os pesquisadores Bárbara Cristina Kruse e Diego Ramires Bittencourt são acadêmicos
do Curso de Direito das Faculdades SECAL. Os acadêmicos Camila Salgueiro da Purificação
Marques, Hassan Paracat, Gabriel Roman de Souza e Vinícius Dalazoana são acadêmicos do
Curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
132
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
o controle judicial de constitucionalidade das leis pode ser compreendido como um
pressuposto lógico da própria democracia, na medida em que protege
determinados pressupostos democráticos e as minorias vencidas de decisões
tomadas pelas maiorias ocasionais, atuando como corretivo a certas vicissitudes
que assolam a democracia representativa majoritária.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Poder judiciário. Democracia.
Abstract
This article aims to make a critical analysis of the objection referred to
contramajoritarian judicial review of constitutionality. The choice of subject is
justified in view of the emergence of theories that criticize, with various arguments in
shape, intensity and origin, the contramajoritarian character of judicial review of
constitutionality, as well as recent proposals it anchored. Investigating the
democratic basis of the constitutional jurisdiction becomes relevant, since the
various social issues are constitutionalised judicialized, there are even those who
refer, in the Brazilian context, to a "supremocracy". In order to tackle the theme, tis
paper will look, at first, to expose some concepts and critical arguments of judicial
review of constitutionality. Furthermore, it will examine critically contemporary
representative democracy and its limitations, stressing the problems underlying the
majority rule, which will, to a large extent, based on studies of Constitutional Political
Economy of James Buchanan and Gordon Tullock. After this theoretical route, this
article seeks to demonstrate that the judicial review of constitutionality of laws can
be understood as a logical assumption of democracy itself, in that it protects certain
assumptions democratic and minorities due to decisions taken by majorities
occasional acting as corrective to certain vicissitudes plaguing representative
democracy majority.
Keywords: Control of constitutionality. Judiciary. Democracy.
Sumário: Introdução. 1. Breve panorama sobre as teorias críticas ao controle judicial de
constitucionalidade das leis. 2. Reflexões sobre as limitações da democracia
representativa majoritária. 3. O controle de constitucionalidade como instituto
corretivo do caráter majoritário da democracia contemporânea. Conclusão.
Referências.
INTRODUÇÃO
“Resulta así desmentida la concepción corriente de la democracia como
sistema político fundado en una serie de reglas que aseguran la
omnipotencia de la mayoría. Si las reglas sobre la representación y sobre el
principio de la mayorías son normas formales en orden a lo que es decidíble
por la mayoría, los derechos fundamentales circunscriben la que podemos
llamar esfera de lo indecibible: de lo no decidible que, y de lo no decidible
que no, es decir, de las obligaciones públicas determinadas por los
derechos sociales.” (FERRAJOLI, 2004, p. 51)
O presente artigo pretende realizar uma análise crítica da denominada
objeção contramajoritária ao controle judicial de constitucionalidade. A escolha do
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
133
Uma crítica à objeção contramajoritária...
tema justifica-se em face do surgimento de teorias que criticam, com argumentos
variados em forma, intensidade e origem, o caráter contramajoritário do controle
judicial de constitucionalidade, bem como de propostas recentes nela escoradas2.
Investigar o fundamento democrático da jurisdição constitucional torna-se
relevante, já que as mais variadas questões sociais estão constitucionalizadas e
judicializadas, havendo mesmo quem se refira, no contexto brasileiro, a uma
“supremocracia”. (VIEIRA, 2008, p. 441-464)
No intuito de enfrentar o tema proposto, buscar-se-á, em um primeiro
momento, expor algumas concepções e argumentos críticos ao controle judicial de
constitucionalidade.
Na
sequência, analisar-se-á
criticamente a
democracia
representativa contemporânea e suas limitações, enfatizando os problemas
subjacentes à regra da maioria3, o que se fará, em boa medida, com base nos
estudos de Economia Política Constitucional de James Buchanan e Gordon Tullock.
2
Neste sentido, a atualidade do tema é evidenciada pela Proposta de Emenda à Constituição nº
33/2011, cujo autor é o Deputado Nazareno Fonteles – PT/PI. A PEC, apresentada no Plenário da
Casa Legislativa em 25 de maio do presente ano, está aguardando parecer na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Entre outras questões, caso aprovada a referida
proposta, o quórum exigido pela denominada cláusula de reserva de plenário – artigo 97 da
Constituição da República de 1988 – seria elevado de maioria absoluta para quatro quintos dos
membros dos tribunais ou dos membros de seus respectivos órgãos especiais. Além disso, ao
artigo 102 seriam acrescidos três parágrafos, dos quais a principal novidade seria a sujeição das
decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de
inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição
Federal à apreciação do Congresso Nacional, o qual, caso manifeste-se de modo contrário à
decisão judicial, deveria submeter a controvérsia a consulta popular.
3
Neste ponto, é importante ressaltar que a democracia analisada neste artigo é unicamente a
representativa de cunho majoritário. Isto não significa que se desconheçam ou se ignorem as
múltiplas concepções e propostas teóricas existentes acerca do tema. Conforme asseverou Held,
existem múltiplas dimensões e concepções de democracia (Models of Democracy. 3. ed.
Cambridge: Polity Press, 2006). Pode ser mencionada a experiência suíça da democracia direta,
bem trabalhada pelo Professor da Faculdade de Direito de Zurique, Johannes Reich, em “An
Interactional Model of Direct Democracy - Lessons from the Swiss Experience” (June 05, 2008).
Disponível em SSRN: <http://ssrn.com/abstract=1154019>; a democracia liberal de Dworkin (Is
democracy possible here?: principles for a new political debate. Princeton: Princeton University
Press, 2006) e de Dahl (Sobre a democracia. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2001); a
democracia procedimentalista de Habermas (Facticidad y validez. 4. ed. Madrid: Trotta, 2005); a
democracia participativa de Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (Para ampliar o
cânone democrático. In: SANTOS, B. S. (org.). Democratizar a Democracia: Os caminhos da
democracia participativa. Porto: Afrontamento, 2003); a democracia radical de Chantal Mouffe (On
the Political. New York: Routledge, 2005); a democracia global ou cosmopolita de Ulrich Beck
(Risk Society: Towards a New Modernity. London: Sage, 1992). Todavia, o estudo destas
diversas teorias fugiria do escopo proposto neste trabalho, cujo enfoque é, ademais,
manifestações históricas da democracia moderna, e não concepções teóricas.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
134
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
Após tal percurso teórico, o presente artigo busca demonstrar que o controle
judicial de constitucionalidade das leis pode ser compreendido como um pressuposto
lógico da própria democracia, na medida em que protege determinados
pressupostos democráticos e as minorias vencidas de decisões tomadas pelas
maiorias ocasionais, atuando como corretivo a certas vicissitudes que assolam a
democracia representativa majoritária.
1
BREVE PANORAMA SOBRE AS TEORIAS CRÍTICAS AO CONTROLE
JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS
O controle judicial de constitucionalidade das leis vem sofrendo, não há
pouco tempo, uma série de críticas de diferentes autores, com diversos fundamentos
e em variados níveis de intensidade, mas com um mesmo alvo central: seu suposto
caráter contramajoritário, ou, noutro falar, a ausência de legitimação democrática da
jurisdição constitucional4.
Os argumentos destas teorias baseiam-se especialmente naquilo que
Alexander Bickel denominou de dificuldade contramajoritária5. Em essência, os
4
Com efeito, o tema do fundamento democrático da jurisdição constitucional é objeto de volumosa
literatura na doutrina estadunidense. Exemplificativamente, poderiam ser citados: ELY, J. H.,
Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980;
BICKEL, A., The least dangerous branch. 2. ed. Indianapolis: Bobbs-merril Co., 1986; BLACK
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a título meramente exemplificativo: NINO, C. S. La Constitución de la Democracia deliberativa.
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democracia constitucional. Trad. José C. González. Granada: Comares, 2000; HABERMAS, J.,
Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003;
GARCÍA DE ENTERRÍA, E. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 4. ed.
Madrid: Civitas, 2006; GARGARELLA, R. La justicia frente al gobierno: sobre el carácter
contramayoritario del poder judicial. Barcelona: Ariel, 1996. No Brasil, entre outros, merecem
destaque: VIEIRA, O. V., A Constituição como reserva de justiça. Revista Lua Nova, São Paulo,
1997, e VIEIRA, O. V., A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites
materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999; BARROSO, L. R. Constituição,
Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, disponível
em:
<http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/constituicao_
democracia_e_supremacia_judicial.pdf>, Acesso em: 24 abr. 2011.
5
BICKEL, A. The least dangerous branch. 2. ed. Indianapolis: Bobbs-merril Co., 1986, apud
BARROSO, L. R., idem: “A questão mais profunda é que o controle de constitucionalidade (judicial
review) é uma força contramajoritária em nosso sistema. (...) Quando a Suprema Corte declara
inconstitucional um ato legislativo ou um ato de um membro eleito do Executivo, ela se opõe à
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
135
Uma crítica à objeção contramajoritária...
autores que sustentam referida dificuldade propugnam a inadmissibilidade de órgãos
do Poder Judiciário – não eleitos e supostamente menos responsáveis politicamente
– invalidarem leis ou atos normativos emanados do Poder Legislativo em um regime
democrático.
Na visão dos críticos ao controle judicial de constitucionalidade, a vontade
da maioria, deste modo, quedar-se-ia obstada por agentes antidemocráticos e de
grupos elitistas de magistrados, diante de cujas decisões autoritativas restaria
somente o acatamento e a sujeição6.
Satelitários deste argumento, e em sua maioria a ele relacionados, outros
podem ser elencados, a começar por aquele que Roberto Gargarella chama de
“argumento histórico” (GARGARELLA,1996, p. 54), o qual consiste, resumidamente,
na ideia de que frequentemente as Constituições não refletem a vontade popular,
posto serem frutos de um processo constituinte bastante antidemocrático e com
pequena participação popular7.
Ao lado do argumento histórico, Gargarella descortina aquele que denomina
“intertemporal”, (GARGARELLA, 1996, p. 55) na doutrina alcunhado “mão morta do
passado” – the death hand of the past. Esta expressão designa, genericamente, a
crítica acerca da possibilidade de gerações passadas controlarem, por meio de
vontade de representantes do povo, o povo que está aqui e agora; ela exerce um controle, não em
nome da maioria dominante, mas contra ela. (...) O controle de constitucionalidade, no entanto, é o
poder de aplicar e interpretar a Constituição, em matérias de grande relevância, contra a vontade
da maioria legislativa, que, por sua vez, é impotente para se opor à decisão judicial”, No mesmo
sentido: Nino, 1997, p. 259.
6
Segundo algumas concepções, elas partiriam da premissa de que a democracia consistiria em um
valor absoluto, ao qual todos os demais deveriam se subordinar, o que seria equivocado. Para tais
entendimentos, ao elevar a democracia ao patamar de postulado indiscutível estas teorias não
esclarecem como e em que medida são legítimas as instituições democráticas fundadas na
representação e tampouco esclarecem qual a amplitude e o significado da regra da maioria em
seu bojo. Neste sentido Sgarbossa, 2011.
7
Veja-se que o próprio Gargarella (1996, p. 54), logo após apresentar sua argumentação, destaca a
sua fragilidade, direcionado sobretudo ao processo constituinte norte-americano: “Sin embargo,
aquí no voy a detenerme más en el argumento histórico, dada la debilidad que en el fondo
presenta, puesto que bien pudede darse el caso de que nos encontremos frente a un processo
constituyente irreprochable, perfectamente respetuoso de la voluntad mayoritaria y, entonces, este
hipotético caso bastaría para anular la crítica de carácter histórico recién esgrimida”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
136
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
normas com um procedimento de modificação agravada, quando não imutáveis, as
gerações presentes e futuras8.
De se elencar ainda, com base na obra do professor argentino, o “argumento
sobre a interpretação”, (GARGARELLA, 1996, p. 56-57) segundo o qual os juízes, ao
interpretarem e aplicarem a Constituição, não agiriam simplesmente declarando a
vontade preestabelecida dos constituintes, é dizer, o consenso popular sobre o qual
se erigiu o texto, mas exerceriam forte papel criativo e integrativo, potencializado
pela relativa indeterminação semântica dos significantes constitucionais9. Esta
circunstância, consectariamente, conferiria aos juízes um poder extraordinário, cuja
titularidade, por imperativos democráticos contemporâneos, deveria ser atribuída ao
povo, segundo tais entendimentos.
Apresentadas, sem qualquer pretenção de exaurimento, esta breve síntese
dos principais argumentos críticos ao controle judicial de constitucionalidade das leis,
insta agora investigar alguns dos problemas relacionados às referidas construções
teóricas.
Para tanto, examinar-se-ão os institutos democráticos contemporâneos e
algumas suas limitações, com especial ênfase à regra da maioria, expediente
catalisador da vontade das maiorias políticas nas democracias representativas
contemporâneas.
8
O argumento dá ensejo a interessantes estudos sobre mutabilidade e rigidez constitucional,
hermenêutica constitucional, o debate entre interpretativistas e não interpretativistas, entre outros
que não serão objeto deste texto por extrapolarem seu objeto de análise. Sobre estes temas e
outros a eles conexos remete-se a Ely, 2010.
9
Conforme ensina Eros Roberto Grau (2008, p. 161): “Em síntese: a interpretação do direito tem
caráter constitutivo – e não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo
intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas
jurídicas a serem ponderadas para a solução deste caso, mediante a definição de uma norma de
decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito.”. Tanto mais isso é verdade
quando se está diante do texto constitucional, marcado, na maioria das vezes, por uma relativa
indeterminação semântica e por uma linguagem aberta (cf: BARROSO, 2009, p. 198). Uma vez
mais, para a discussão acerca do papel do intérprete na jurisdição constitucional remete-se a Ely,
2010.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
137
Uma crítica à objeção contramajoritária...
2
REFLEXÕES SOBRE AS LIMITAÇÕES DA DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA MAJORITÁRIA
É trivial e inveterada a ideia que associa o conteúdo dos conceitos de
democracia e regra da maioria, concebida a primeira, segundo a etimologia mais
comum, como “governo do povo”, atribuindo-se, assim, a este a legitimidade do
poder soberano.
No entanto, sustenta-se aqui entendimento de que essa associação de ideias,
embora comum, não implica a identidade entre democracia e maioria, e que sua
confusão resulta nociva e equivocada, por ser reducionista do conceito de
democracia, como se verá.
Em princípio, cumpre esclarecer que aqui se aborda o conceito de maioria,
assim como seu oposto, a minoria, sobretudo em sentido quantitativo. Isso porque
aqui nosso enfoque privilegiará sua operação e seu papel no jogo político, nos
processos de tomada de decisão pública (diga-se eleitoral) e, portanto, ganham
relevo as minorias vencidas em processos decisórios majoritários.
Sustenta-se aqui que a regra da maioria teria por natureza e função ser um
instrumento de operacionalização da escolha (pública), constituindo uma simples
regra técnica de tomada de decisão, sendo exagerado atribuir sentido que extrapole
este em uma democracia constitucional (BUCHANAN; TULLOCK, 1962)10.
Reputa-se que não seria adequado sustentar uma visão que reduzisse a
democracia a um regime de domínio da maioria vencedora em um processo eleitoral
ou decisório sobre a minoria vencida, posto que isto representaria muito mais uma
espécie de ditadura autoritária da maioria do que uma verdadeira democracia11.
10
Os autores sustentam, com razão, que não há qualquer evidência empírica que demonstre uma
superioridade intrínseca ou qualitativa na opinião da maioria sobre qualquer outra (da minoria ou
mesmo de um único indivíduo). (BUCHNAN; TULLOCK, 1962, 3.6.32). A maioria pode, inclusive,
estar errada, e há muita evidência empírica de fatos históricos que o corroboram. Demonstram os
autores naquele estudo seminal de Economia Política Constitucional que a adoção da regra da
maioria como mera regra técnica de decisão (e não centro e fundamento estruturante da
democracia) dá-se por imperativos pragmáticos, como se verá.
11
Até porque é bastante consistente a concepção de que a democracia, longe de exaurir-se no
processo decisório representativo e em eleições periódicas, compreenderia toda uma série de
valores que lhe são inerentes, como o pluralismo político, a liberdade de expressão, de
consciência, a liberdade de manifestação, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião e uma
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
138
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
Do mesmo modo que a democracia moderna estrutura-se em torno do
instituto da representação política especialmente em função da dificuldade prática
em uma democracia direta nos Estados-nação modernos, a democracia majoritária
encontra seu lugar em função da impossibilidade prática de uma democracia à
unanimidade, segundo o pensamento de James M. Buchanan e Gordon Tullock.
Os autores sustentam que a regra da unanimidade oferece ao indivíduo uma
proteção de seus interesses que não lhe é proporcionada por nenhuma outra, posto
que o municia de um poder de veto sobre as decisões coletivas. (BUCHANAN;
TULLOCK, 1962, 3.6.13) Assim, de um ponto de vista estritamente individual, a
regra da unanimidade seria muito superior a qualquer outra.
Por outro lado, os autores evidenciam ser necessário, ao organizar o
processo de tomada de decisão coletiva, levar em consideração não apenas os
custos (ou riscos) individuais decorrentes do impacto de tais decisões, mas também
os custos decorrentes do próprio processo decisório (BUCHANAN; TULLOCK, 1962,
3.6.2).
Do ponto de vista de tais custos, a regra da unanimidade é menos eficiente
do que a regra da maioria. Com efeito, um sistema de tomada de decisão
estruturado em torno da regra da unanimidade não apenas pode dificultar ou mesmo
impedir a tomada de certas decisões, dada a dificuldade ou impossibilidade, em
certos casos, de obter-se um consenso unânime.
Traz consigo, ainda, um aumento desproporcional da importância do
assentimento de pequenos grupos ou mesmo de um único indivíduo para a tomada
da decisão, o que pode engendrar muitos riscos e custos para o grupo (BUCHANAN;
TULLOCK, 1962, 3.5.42), posto que este indivíduo pode colocado em uma posição
tal que possibilita que faça exigências extremamente onerosas ao grupo para dar
seu consentimento para com determinada decisão12.
miríade de outros conteúdos que foram historicamente associados a ela durante seu
desenvolvimento.
12
O problema é conhecido na análise econômica como problema do hold out e consiste, como visto,
nos custos decorrentes da barganha necessária para obter o assentimento de um indivíduo ou
grupo de indivíduos sem cujo assentimento uma decisão não pode ser tomada. Embora presente
em sistemas de decisão majoritária, a regra da maioria reduz a importância deste problema que,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
139
Uma crítica à objeção contramajoritária...
É a intersecção entre tais fatores (os riscos decorrentes de uma decisão
tomada e os custos da própria tomada da decisão) que impõe a adoção da regra da
maioria em alguma ou algumas de suas variantes como regra técnica de tomada das
decisões coletivas13.
Portanto, com base em Buchanan e Tullock parece ser plausível sustentar a
visão aqui esposada, segundo a qual a adoção da regra da maioria é feita por
motivos pragmáticos, para viabilizar a tomada de decisão e reduzir seus custos14.
Isso tem implicações que serão analisadas logo adiante.
De outro modo, ainda que não fosse suficiente o argumento acima para
dissociar a equivocada sinonímia entre maioria e democracia, ou a redução desta
àquela, pode-se aduzir alguns outros.
Inicialmente, pode-se observar que a regra da maioria encontra-se presente
em outros regimes de governo, não necessariamente considerados democráticos,
como demonstra Norberto Bobbio15. O Grande Conselho do Fascismo, os Sovietes e
o Senado aristocrático romano são exemplos de órgãos não democráticos regidos
pelo princípio da maioria. (BOBBIO, 2000, p. 430)
Além disso, o autor italiano evidencia que nem todas as decisões em uma
democracia são tomadas de acordo com a regra da maioria, bastando para
demonstrá-lo pensar no imenso poder conferido, nos sistemas presidencialistas, às
decisões monocráticas do Presidente da República.
Norberto Bobbio traz, ainda, outro ponto crítico a respeito da concepção que
associa democracia e regra da maioria, evidenciando que se a operação da regra da
sob a regra da unanimidade, adquire dimensões sem comparação. Sobre o problema do hold out
remete-se, por todos, a Mackaay, 2000, p. 36.
13
Veja-se o item intitulado “The choice of optimal rules” em Buchanan; Tullock, 1968, 3.6.13.
14
“The individualistic theory of the constitution that we have been able to develop assigns a central
role to a single decision-making rule – that of general consensus or unanimity. The other possible
rules for choice-making are introduced as variants from the unanimity rule. These variants
will be rationally chosen, not because they will produce ‘better’ collective decisions (they
will, not), but rather because, on balance, the sheer weight of the costs involved in reaching
decisions unanimously dictates some departure from the ‘ideal’ rule.” (BUCHANAN;
TULLOCK, 1962, 3.7.20) (destaques ausentes do original).
15
Pensar nos regimes de partido único nos quais as eleições periódicas ostentam carater
meramente plebiscitário ou cesarista é importante para perceber a irredutibilidade daquilo que
concebe-se como democracia à mera existência de eleições periódicas ou de decisão majoritária.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
140
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
maioria pode ser verificada no momento do sufrágio, na escolha dos mandatários
pelo povo, no exercício da atividade representativa, no exercício do poder outorgado
pelo povo, torna-se ausente a regra da maioria em relação ao povo-eleitor.
(BOBBIO, 2000, p. 428 e ss.)16.
Encerrada a eleição, um seleto grupo, uma elite passa a agir, definindo o
que será válido para o todo (a ação coletiva), pois o mandato confere o poder de
representar os interesses dos mandantes, a vontade do povo, confere liberdade de
ação, autonomia ao representante-eleito17.
Portanto, do quanto exposto parece demonstrado o quão superficial e em
certa medida equivocado seria associar-se democracia e maioria sem maior
cuidado, ou, principalmente, reduzir o conceito da primeira à última.
Observe-se ainda, na mesma linha de raciocínio, ser plausível entender
existirem matérias cuja decisão não deveria ser submetida ao princípio majoritário.18
Consigne-se, por necessário, que os argumentos aqui expendidos quanto à
operação da regra da maioria e de seus limites nas democracias representativas
evidentemente não constituem uma proposta de sua eliminação. Apenas buscam
redimensionar seu sentido nos regimes democráticos e explicitar que apesar da
vigência da regra da maioria nos processos decisórios democráticos pouco se pode
afirmar sobre a justeza ou a correção das correspondentes decisões, embora,
evidentemente, a regra da maioria constitua um importante elemento para a
16
Ou, dizendo-se de outro modo: relativamente ao povo, os órgãos legislativos representativos são
elites minoritárias. É notória a crítica de Rousseau à democracia afirmando o filósofo político
helvécio que os eleitores deteriam poder decisório apenas no momento da eleição, sendo sujeitos
do poder o restante do tempo.
17
Recorde-se, de passagem, que a democracia moderna baseia-se precipuamente no mandato livre
(não imperativo) e irrevogável, que faz com que por ficção considere-se a vontade do
representante-eleito seja considerada a vontade do eleitor-representado, embora empiricamente
possa existir uma grave dissidência entre ambas. Na prática, a doutrina da soberania nacional de
Seyès, vencedora nas democracias pós-revolucionárias, dá primazia à vontade do representante
sobre a vontade do representado, contrariamente ao que fazia a doutrina da soberania popular de
Rousseau. (BONAVIDES, 2009, p. 140 e ss.). Observe-se que os custos e riscos expectados
pelos indivíduos como decorrência da ação coletiva majoritária dotada de tais características
podem ser presumidos ainda maiores.
18
O professor canadense Ejan Mackaay evidencia em seu livro sobre análise econômica do direito
os problemas relativos à ação coletiva e a necessidade de estabelecimento de uma decisão
autoritativa e monocrática em casos nos quais não seja possível se obter o consenso do grupo,
para viabilizar a tomada da decisão, v.g. Sobre o tema remete-se a Mackaay, 2000, p. 37.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
141
Uma crítica à objeção contramajoritária...
operacionalização concreta da democracia e que tal regra seja, sem dúvida, melhor
do que outras.
Como visto, parece ser mais plausível e prudente sustentar a regra da
maioria não como princípio maior da democracia, mas como regra de tomada de
decisão, adotada por imperativos pragmáticos, sobretudo.
Sua adoção, no entanto, traz consigo, no entanto, alguns inconvenientes do
ponto de vista individual e das minorias vencidas em processos decisórios
majoritários. Com efeito, os interesses dos indivíduos vencidos em tais processos
decisórios podem ser severamente afetados pela ação coletiva, o que remete à
sequência da argumentação.
3
O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO INSTITUTO
CORRETIVO DO CARÁTER MAJORITÁRIO DA DEMOCRACIA
CONTEMPORÂNEA
Com base nos argumentos anteriores, percebe-se que a fundamentação da
democracia representativa na regra da maioria somente se justifica em função da
impossibilidade
em
operacionalizar
a
regra
da
unanimidade
e
de
seus
inconvenientes, o que, porém, não a dota de caráter absoluto.
Ademais, a representação majoritária traz consigo suas próprias limitações,
entre elas, o problema inafastável da necessidade de instituições protetoras das
minorias vencidas nos processos decisórios, sob pena de ser possível sua
escravização ou mesmo eliminação19.
Como corolário, portanto, da adoção de um regime representativo regido
pelo princípio majoritário, tem-se a adoção de mecanismos de redução dos riscos
(ou custos) expectados pelos indivíduos a partir de decisões coletivas tomadas
majoritariamente (BUCHANAN; TULLOCK, 1962, 3.6.34), isto é, contra sua vontade
e sem seu consentimento. Como visto, os sistemas democráticos representativos
19
Buchanan; Tullock, 1962, 3.6.34: “The individual will anticipate greater possible damage from
collective action the more closely this action amounts to the creation and confiscation of human
and property rights. He will, therefore, tend to choose somewhat more restrictive rules for social
choice-making in such areas of potential political activity.”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
142
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
não oferecem, por si mesmos, nenhuma garantia de proteção às minorias vencidas
em um processo deliberativo baseado pela regra da maioria.
Neste contexto manifestam-se alguns dos mais importantes papéis
atribuídos à Constituição. (BARROSO, 2009, p. 89 e 286) De um lado, cabe à
Constituição proteger direitos fundamentais, ainda e especialmente contra a vontade
das maiorias políticas ocasionais, operando como importante salvaguarda das
minorias, ao limitar o possível no processo político ordinário. É neste sentido que o
jurista italiano Luigi Ferrajoli fala em constituição com lei do mais fraco.
(FERRAJOLI, 2004, passim)20.
Por outro lado, deve-se observar que as constituições asseguram
pressupostos mínimos de existência do próprio jogo democrático. Elementos como o
direito à informação e a liberdade de expressão, o voto direto, secreto, universal e
periódico, entre outros, são pressupostos de um sistema democrático que não pode
ser reduzido à regra da maioria, como visto21.
De se observar, inclusive, que mesmo as disposições garantidoras de
direitos que escapam à clássica esfera civil e política, como os direitos sociais,
econômicos e culturais, podem ser entendidos como pressupostos para uma
verdadeira democracia22.
Segundo Oscar Vilhena Vieira (1997, p. 54), as democracias constitucionais
encontram seu fundamento na ideia de autovinculação ou pré-compromisso, por
força do qual a soberania popular limita seu poder futuro, no escopo de proteger a
própria democracia das consequências nefastas das paixões e interesses
20
Ferrajoli evidencia muito bem que em uma democracia constitucional a democracia estabelece as
forma da tomada de decisão, ao passo que a constituição estabelece o conteúdo possível das
decisões, ou seja, o que pode e o que não pode ser deliberado, democraticamente ou não.
21
Palombella, 2000, p. 9: “las condiciones de libertad, y de participación em las decisiones, el libre e
igual acceso a las deliberaciones públicas, la paridad entre partes y la possibilidad de un libre
concurso de ideias parecen presupuestos para que se forme una orientación democrática, y su
valor, también como requisito ideal, o regulativo, está em la constitución de la democracia, de
modo que sea imposible para la democracia negarlo sin negarse a si misma”.
22
Acrescente-se a isso o fato de que em função do influxo das novas gerações ou dimensões de
direitos e do crescimento em importância dos aspectos sociais, econômicos, culturais, ambientais
e outros, há autores propugnando concepções inovadoras e profundas de democracia, como a
democracia social e econômica.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
143
Uma crítica à objeção contramajoritária...
circunstanciais, aos moldes do que fez Ulisses, na Odisséia de Homero23, metáfora
esta já bastante familiar aos estudiosos do constitucionalismo.
Esta auto-limitação de poder, no âmbito do Direito Constitucional, se realiza
mediante a retirada de determinadas matérias do âmbito do deliberável, ou então
por meio da imposição de um procedimento de modificação agravado em relação a
estas matérias24.
Esta concepção é fortalecida pela constatação de que, no rol das matérias
retiradas do âmbito deliberável pela Constituição brasileira, tutelam-se condições
existenciais da própria democracia25.
Estas matérias, por sua relevância, não poderiam, sem risco, ficar sujeitas
ao processo político ordinário, não sendo prudente sustentar que possam ser
restringidas e modificadas ao talante das maiorias ocasionais26.
23
Em uma determinada passagem do Livro XII, Ulisses ordena que o amarrem ao mastro de sua
embarcação, porquanto sabia que não resistiria ao canto mortal das sereias e se atiraria ao mar,
caso estivesse livre. Destarte, uma vez deliberadamente preso, Ulisses pode passar pelos
rochedos e ouvir o canto das sereias, sem correr o risco de ele sucumbir. A metáfora foi
pioneiramente utilizada por John Elster, em Ulisses and the Sirens. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1979), (VIEIRA, 1997, p. 54).
24
Justamente para fazer frente às limitações da maioria. Buchanan e Tullock abordam a
racionalidade de um escalonamento de maiorias (podendo ir da maioria relativa ou absoluta até
maiorias qualificadas de níveis elevados) em conformidade com a importância das matérias a
serem deliberadas. (BUCHANAN; TULLOCK, 1962, 3.6.31).
25
Como o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 60, § 4º, II), a separação dos Poderes (art.
60, § 4º, III) e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV), além da forma federativa de
Estado (art. 60, § 4º, I), que, embora não constitua um pressuposto inafastável das democracias, é
um importante elemento de limitação do poder estatal. De fato, se a separação de poderes opera
uma divisão “horizontal” do poder, o princípio federativo age verticalmente, dividindo as funções
em esferas de poder distintas. Em ambos os casos, de um ponto de vista constitucionalista, o
intuito é a limitação do poder pela sua divisão.
26
Precisamente este é o entendimento de Luigi Ferrajoli sobre os direitos fundamentais: vínculos
substanciais, positivos ou negativos, impostos à democracia política, que não podem ser violados
sequer por uma unanimidade, e formam, assim, a esfera do “indecidível”: “Así, los derechos
fundamentales se configuran como otros tantos vínculos substanciales impuestos a la democracia
política: vínculos negativos, generados por los derechos de libertad que ninguna mayoría puede
violar; vínculos positivos, generados por los derechos sociales, que ninguna mayoría puede dejar
de satisfacer. Y la democracia política, como por lo demás el mercado, se identifica con la esfera
de lo decidible, delimitada y vinculada por aquellos derechos. Ninguna mayoría, ni siquiera por
unanimidad, puede legítimamente decidir la violación de un derecho de libertad o no decidir la
satisfacción de um derecho social. Los derechos fundamentales, precisamente porque están
igualmente garantizados para todos y sustraídos a la disponibilidad del mercado y de la política,
forman la esfera de lo indecidible que y de lo indecidible que no; y actúan como factores no sólo
de legitimación sino también y, sobre todo, como factores de deslegitimación de las decisiones y
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
144
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
Em função disso, a Constituição as eleva a um patamar de supremacia, e
exige um procedimento agravado para a modificação dos enunciados que as
veiculam, ou até mesmo vedam determinadas deliberações a seu respeito. A ideia,
singela e basilar, é a de que quanto mais gravosa uma decisão, mais a exigência de
aprovação deve se aproximar do consenso, concepção esta que, embora simples e
intuitiva, constitui o cerne da própria noção de Constituição (SGARBOSSA;
JENSEN, 2011, passim ) e do próprio valor do consenso.
Postas
tais
premissas,
convém
recordar
que
o
controle
de
constitucionalidade é o instrumento garantidor da supremacia constitucional por
excelência (DANTAS, 2001, p. 9).
Assim, considerando-se tal característica instrumental e de garantia da
constitucionalidade que o caracteriza, o controle de constitucionalidade opera como
instituição assecuratória das minorias vencidas e da própria democracia, protegendo
e corrigindo imperfeições do próprio sistema democrático representativo majoritário.
Poder-se-ia
sustentar,
inclusive,
que
nesta
ótica
o
controle
de
constitucionalidade das leis constituiria uma condição de existência da democracia, e
não um limite externo.
De todo o exposto, ademais, percebe-se existir uma grande diferença entre
um caráter contramajoritário e um caráter antidemocrático. O controle judicial de
constitucionalidade das leis, nesta perspectiva, embora por vezes atue em
contraposição
à
vontade
da
maioria,
não
necessariamente
funciona
antidemocraticamente. Por mais paradoxal que possa parecer, é justamente em
de las no-decisiones.” E, na mesma obra: Precisamente, en virtud de estos caracteres, los
derechos fundamentales, a diferencia de los demás derechos, vienen a configurarse como otros
tantos vínculos sustanciales normativamente impuestos — en garantía de intereses y necesidades
de todos estipulados como vitales, por eso «fundamentales» (la vida, la libertad, la subsistencia)
— tanto a las decisiones de la mayoría como al libre mercado. La forma universal, inalienable,
indisponible y constitucional de estos derechos se revela, en otras palabras, como la técnica —o
garantía—prevista para la tutela de todo aquello que en el pacto constitucional se ha considerado
«fundamental». Es decir, de esas necesidades sustanciales cuya satisfacción es condición de la
convivencia civil y a la vez causa o razón social de ese artificio que es el Estado. (...) Resulta así
desmentida la concepción corriente de la democracia como sistema político fundado en una serie
de reglas que aseguran la omnipotencia de la mayoría. Si las reglas sobre la representación y
sobre el principio de la mayorías son normas formales en orden a lo que es decidióle por la
mayoría, los derechos fundamentales circunscriben la que podemos llamar esfera de lo
indecibible: de lo no decidible que, y de lo no decidible que no, es decir, de las obligaciones
públicas determinadas por los derechos sociales. (FERRAJOLI, 2004, p. 23-24 e 51).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
145
Uma crítica à objeção contramajoritária...
razão de ser contramajoritário que este instituto pode desempenhar sua cardeal
função em uma democracia constitucional, valendo-se do termo de Buchanan e
Tullock.
Portanto, a tensão constantemente ventilada não se verifica exatamente
entre o controle judicial de constitucionalidade das leis e a democracia, mas entre
aquele e a regra da maioria, revelando-se a objeção, além de reducionista, falaciosa.
Neste mesmo sentido, Gianluigi Palombella (2000, p. 8), ao tratar da dialética entre
democracia e constitucionalismo, afirma:
Por su parte, los demócratas tiendem efectivamente a teorizar una
supremacía sobre las constituciones que a su vez ignora un aspecto
esencial: las constituciones no son sólo la proyección de una decisión
históricamente determinada (...) sino que con frecuencia contienem los
pressupuestos esenciales de una gramática democrática que parece
indisponible para la democrácia. Se trata de algo sobre lo que a
democracia, por princípio, no puede arbitrariamente decidir, y que escapa a
las pretensiones de constante refundación, de ejercicio no limitable de la
“voluntad” democrática”. (grifos do original)
Assim sendo, existem elementos nas constituições que determinam
condições de salvaguarda da própria democracia – e das minorias envolvidas em
processo majoritário de tomada de decisão – e não a sua limitação (PALOMBELLA,
2000, p. 9-10). Uma parcela das disposições constitucionais representa uma
garantia à democracia e uma proteção às minorias27.
Estas disposições, consoante propugna Palombella28, representam uma
garantia para a própria democracia, e, certamente, não um limite para ela. Nesta
esteira, os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e outros, ao
constituírem, como mencionado acima, a área da indeliberável, não estão limitando
a democracia representativa, mas, antes, delimitando o alcance do deliberável
27
Sejam estas minorias quantitativas ou qualitativas.
28
Palombella, 2000, p. 10: “Pero al respecto de la relación entre democracia y constituciones, debe
también añadirse que unaparte de estos derechos, y uma parte de las previsiones constitucionales
de principio, representan además uma garantía de la democracia y ciertamente no un limite para
ella (es decir, no um limite externo para con el ‘poder’ democrático). Ellas no tienen efecto
constitutivo alguno sobre lo que la democracia no puede (em el sentido de estar autorizada o
legitimada a) decidir, sino sólo um significado declarativo de aquello de lo que por su naturaleza a
democracia tiene necessidad” (grifos do original).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
146
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
majoritariamente,
bem
como
corrigindo
distorções
ínsitas
à
democracia
29
representativa majoritária .
Certamente algumas disposições constitucionais podem ser interpretadas
como um limite, não à democracia, mas a toda aberração intitulada de democrática,
a todo poder autoritário e parcial, toda maioria ocasional ou tirânica que pretenda
assujeitar ou eliminar a minoria vencida ou violar as regras basilares da democracia
constitucional (PALOMBELLA, 2000, p. 11)30.
Portanto pode-se inferir que o controle judicial de constitucionalidade das
leis, sem embargo de ser contramajoritário – pois frequentemente realizará sua
função obstaculizando a vontade majoritária – não é antidemocrático, senão
instrumento garantidor da própria noção de democracia ou corretivo de seu caráter
contramajoritário.
Tal conclusão evidencia, inclusive, que o fato de ser feito por instituições que
não representam a vontade da maioria, em lugar de ser grave defeito de
legitimidade, como alguns parecem querer fazer crer, faz com que o instituto esteja
mais apto ainda a desempenhar suas funções, ainda que contra a vontade
majoritária ou fictamente reputada como tal, em função da representação31.
Ao contrário, ao que parece, é exatamente a privilegiada posição
institucional do Poder Judiciário e de seus órgãos, com suas garantias de
29
Observe-se que do mesmo modo que a democracia majoritária engrendra riscos para a minoria
vencida, se não for regulada e controlada, a seu caráter representativo gera problemas de agency
consistentes em uma dificuldade em fazer corresponder, de fato, a atuação dos representanteseleitos de acordo com as expectativas dos eleitores-representados, o que constitui um importante
fator adicional a revelar a importância da noção de constitucionalidade e de seu controle para as
democracias contemporâneas.
30
Sustenta-se, aqui, que as matérias que se apresentam como garantias da democracia não podem
significar limitação antidemocrática, salvo se esteja diante de um regime pseudo-democrático que
não reconhece sequer seus próprios pressupostos.
31
Atente-se para o seguinte: não se está aqui afirmando que a constituição realize apenas a
proteção da minoria, e tampouco que o controle judicial de constitucionalidade também restrinja-se
exclusivamente a esta função ou finalidade. Obviamente a constituição desempenha outras
funções (ordenação do Estado, do território, da soberania, p. ex.) e igualmente o controle de
constitucionalidade. Também não se pretendeu afirmar aqui, em momento algum, que o instituto
do controle judicial sempre cumpra as funções aqui defendidas. Sabe-se que por vezes não o fez,
ou mesmo atuou de maneira conservadora, mas outras tantas foi protagonista de mudanças que
apenas muito mais tarde ocorreriam se fossem confiadas exclusivamente aos órgãos
representativos.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
147
Uma crítica à objeção contramajoritária...
independência, aliadas à grande possibilidade de ferimento da constitucionalidade
dos outros dois poderes que indicam este como um poder ao qual preferencialmente
deva ser confiada a tarefa da fiscalização da constitucionalidade32/33.
Malgrado alguns inconvenientes que obviamente podem se verificar
(ativismo excessivo, p. ex.), não se vislumbra razão pela qual confiar tal tarefa ao
Poder Executivo ou ao Poder Legislativo poderiam ser menores, diante do quanto foi
aqui discutido.
Ademais, deve-se ter em mente que comumente as ofensas mais frequentes
às normas constitucionais originam-se do Poder Legislativo e do Poder Executivo, no
exercício de suas respectivas funções típicas.
Desse modo, atribuir aos próprios fiscalizados a atividade fiscalizadora
demonstra uma gritante falta de coerência lógica, cuja consequência inafastável
seria a fragilização da constituição e seu assujeitamento às maiorias parlamentares,
inclusive no tocante à reforma da própria constituição34.
32
Ainda que com argumentos não exatamente coincidentes, Mauro Cappelletti defende a tese da
legitimidade democrática do que denomina “direito jurisprudencial”, apoiando-se em cinco
argumentos principais: a) as lideranças legislativas e executivas não constituem, ao contrário do
judiciário, perfeito paradigma de democracia representativa; b) o Poder Judiciário é dotado de
fortes atributos de representatividade, como, especialmente, a indicação política dos membros da
Suprema Corte, que permite um controle da filosofia política do Tribunal; c) a necessidade de
fundamentação das decisões jurisdicionais, bem como a forte exposição pública dos integrantes
dos Tribunais Superiores – no Brasil, em razão da transmissão ao vivo de muitos julgamentos pela
“TV Justiça”, esta característica é ainda mais forte; d) a natureza do procedimento judiciário tornao o mais participatório e acessível de todos os processos da atividade pública, especialmente em
razão das regras fundamentais que regem a atividade judicial; e) a proteção dos direitos
fundamentais exige um Poder Judiciário razoavelmente independente dos caprichos das maiorias,
ativo, dinâmico e criativo, a fim de que seja preservado o sistema de separação dos Poderes.
(CAPPELLETTI, 1993, p. 92-107).
33
Observe-se, adicionalmente, que o problema do quis custodet ipsos custodes aplica-se a qualquer
órgão, judicial ao não, pelo que não há, no caso da última palavra em matéria de
constitucionalidade, nenhuma superioridade, no particular, quanto a este aspecto. Por fim, a
consulta popular, como aquela proposta pela PEC 33/2011 desconsidera tudo quanto aqui se
estudou sobre a proteção da minoria e a irredutibilidade da democracia constitucional à estrita
observância da vontade de uma maioria ocasional, ostentando exatamente o inconveniente de
dotar a maioria de um poder exacerbado em face das minorias, deixando-as desprotegidas em
face de modificações que as afetem negativamente.
34
Um exemplo parece ilustrar muito bem a fragilidade das argumentações em prol de um modelo
político de controle de constitucionalidade. Adotado tal modelo, em caso de violação, pelos
poderes legislativo ou executivo, ou ambos, dos procedimentos legislativos estabelecidos pela
constituição, a quem incumbiria garantir a correção e a restauração da normalidade
constitucional?
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
148
Luís Fernando Sgarbossa, Geziela Jensen e outros
Ademais, partindo-se da premissa de que o controle de constitucionalidade
das leis pode operar como um instrumento protetor das minorias políticas, como
visto, seria uma vez mais absurdo deixar esta proteção sob a incumbência de órgãos
eleitos por um processo deliberativo majoritário, os quais parecem melhor
vocacionados à representação política das maiorias do que à proteção das minorias.
Paralelamente, justamente em razão de serem eleitos, é natural que estes
órgãos estejam muito mais sujeitos a pressões da opinião pública, e, assim, sejam
mais suscetíveis a concretizar os clamores populares feitos em momentos de
comoção pública, ainda que em clara contrariedade ao texto constitucional.
CONCLUSÃO
A esta altura, mostra-se forçoso advertir que não se desconsidera, neste
trabalho, a importância da democracia. Não obstante os problemas e deficiências da
representação e as limitações inerentes à regra da maioria, aqui sucintamente
expostos, evidentemente a democracia constitui um valor fundamental em nossa
ordem política e jurídica.
Por outro lado, ao se analisar a “dificuldade contramajoritária” da jurisdição
constitucional não se pode deixar de analisar, como feito aqui, o papel
desempenhado pela regra da maioria e os problemas da representação, bem como
o arranjo institucional mais adequado à proteção da constitucionalidade, à
construção não de uma democracia “qualquer”, mas de uma democracia
constitucional.
Esta democracia constitucional tem como uma de suas características
proteger as próprias instituições democráticas, as pré-condições do jogo
democrático e, notadamente, as minorias eventualmente vencidas em processos
decisórios majoritários.
Um equívoco fundamental, neste contexto, deve ser evitado: a visão
reducionista da democracia à noção de maioria, uma democracia na qual há um
papel proativo a ser desempenhado por todos os poderes, como observa Mauro
Cappelletti (1993, p. 107):
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
149
Uma crítica à objeção contramajoritária...
Parece bem evidente que a noção de democracia não pode ser reduzida a
uma simples ideia majoritária. Democracia, como vimos, significa também
participação, tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente
independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria, pode dar
uma grande contribuição à democracia; e para isso em muito pode
colaborar um judiciário suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que
seja capaz de assegurar a preservação do sistema de checks and balances,
em face do crescimento dos poderes políticos, e também controles
adequados perante os outros centros de poder (não governativos ou quasegovernativos), tão típicos das nossas sociedades contemporâneas.
Portanto, justamente em razão de ser contramajoritário e garantidor dos
máximos interesses democráticos, o controle judicial de constitucionalidade das leis
é um pressuposto essencial de um Estado que se pretenda verdadeiramente
democrático, em um sentido mais rico do que aquele que reduz a democracia ao
princípio majoritário.
O instituto do controle judicial consubstancia a garantia da supremacia
constitucional, garantindo, assim, a proteção dos direitos fundamentais e das regras
centrais da própria democracia, ainda que em contrariedade à vontade das maiorias
políticas ocasionais. E isso vale tanto para os representantes-eleitos quanto para os
eleitores-representados, quando diretamente consultados.
O intuito do presente estudo, portanto, foi evidenciar que uma concepção
reducionista da democracia, sinonimizando-a à regra da maioria, assim como uma
concepção exagerada da mesma, adotando-a como um valor absoluto, podem,
ambos,
obscurecer
o
papel
de
institutos
como
o
controle
judicial
de
constitucionalidade, aviltando-os.
Mais do que isso, tais concepções podem virtualmente permitir o vilipêndio
de tais instituições, em prejuízo do arranjo institucional, das minorias vencidas nos
processos decisórios majoritários e, ainda, do próprio conceito de democracia
constitucional.
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
151
Brasil, o que se espera do pré-sal?
BRASIL, O QUE SE ESPERA DO PRÉ-SAL?
RETROSPECTIVA CONSTITUCIONAL DO PETRÓLEO E
ANÁLISE DO NOVO MARCO LEGAL
BRAZIL, WHAT TO EXPECT OF THE “PRE-SALT”?
CONSTITUTIONAL RETROSPECTIVE OF THE OIL AND ANALYSIS OF THE NEW LEGAL
FRAMEWORK
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira1
Resumo
Este trabalho vislumbra a concreção de uma retrospectiva constitucional petrolífera,
além das legislações referentes ao petróleo e pré-sal, e as modificações do novo
marco legal, analisando-o criticamente e apontando as suas perspectivas, eis que
antes da descoberta do pré-sal, os contratos eram celebrados mediante o regime
de concessão, o qual implica ao concessionário a obrigação de explorar, por sua
conta e risco e produzir petróleo ou gás com direito à propriedade destes bens
extraídos, mas com a exploração compartilhada, o contratado passa a exercer por
sua conta e risco as atividades e em caso de êxito, possui o direito à restituição do
custo do óleo e de parcela do excedente em óleo nas condições pactuadas. Além
disso, houve a criação de um Fundo Social e de uma nova empresa pública, a Présal Petróleo S. A., para gerir os novos contratos no âmbito do pré-sal, a autorização
da cessão onerosa de direitos de exploração da União à Petrobrás e a sua
capitalização. Ocorre que os riscos são inúmeros, não há definição das alíquotas
dos royalties, o Fundo Social não estabelece percentuais fixos para cada área a ser
investida e a capitalização da Petrobrás pode trazer grandes prejuízos à sociedade.
Soma-se a isto a afronta a diversos Princípios Constitucionais. Tendo em vista
tantos questionamentos, vem esta pesquisa demonstrar os prováveis efeitos
gerados pela adoção de um novo marco legal e elencar soluções aos problemas
apontados. Tudo isto por meio de uma abordagem dedutivista e funcionalista num
modelo de pesquisa teórico e metodológico.
Palavras-chave: Pré-sal. Novo Marco Legal.
Abstract
This work presents a retrospective of the concretion constitutional oil rules, in
addition to laws relating to oil and “pre-salt”, as modifications of the new legal
framework, analyzing it critically and pointing their perspectives, as before the
discovery of pre-salt, contracts were awarded by concession, which implies an
obligation of the holder of said concession to explore at his own risk and produce oil
1
Advogada, Especialista em Direito pela UFPE, Mestranda em Direito pela UFPE e Membro do
Grupo de Pesquisa sobre Direito do Petróleo da UFPE. E-mail: [email protected].
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
152
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
or gas with the right to their ownership, but with shared extraction, the contractor
shall perform at his own risk activities and if successful, is entitled to a refund of the
cost of oil and a portion of the surplus of oil under the conditions agreed upon.
Furthermore, there was the creation of a Social Fund and a new public company,
the “Pre-Salt” Oil S. A., to manage the new contracts under the “pre-salt”, whith the
authorization of the onerous assignment of exploitation rights of the Federal
Governament to Petrobras and its market capitalization. It happens that the risks are
numerous, there is no definition of rates of royalty, the Social Fund does not set
fixed percentage for each area to be invested and the capitalization of Petrobras can
bring great harm to society. This added to the affront of various Constitutional
Principles. Having seen so many questions, this research is to demonstrate the
likely effects generated by the adoption of a new legal framework and rank solutions
to problems identified. All this is analysed through a functionalist approach and a
deductivist model of theoretical and methodological research.
Keywords: Pre-Salt. New Legal Framework.
Sumário: Introdução. 1. Histórico Legal do Petróleo. 2. Alteração de Regimes Fiscais. 3.
Outras modificações legais. 3.1. Capitalização da Petrobrás. 3.2. Modelo de
Fundo Norueguês. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Tendo em vista a dependência gerada pela sociedade com relação ao uso
do petróleo e de seus derivados, relata a sua evolução histórico-legal através de
uma retrospectiva desde o seu surgimento mercadológico, o desenvolvimento de
sua cadeia de produção, até os ditames imbuídos em meio interno, por meio das
Cartas Constitucionais dispondo sobre seu manuseio e titularidade.
Em sequência abordam os diferentes tipos de regimes fiscais utilizados nos
contratos petrolíferos, em meio à troca de regime efetivada em função da adoção ao
novo marco legal do pré-sal, que mutuou do modelo de concessão para o de partilha
de produção, salientado os aspectos mais polêmicos desta mudança e criticando-os.
Comenta ainda outros pontos referentes às Leis 12.304/2010, 12.351/2010 e
12.304/2010, tais como a criação do Fundo Social estabilizador da economia interna,
aludindo ao modelo paradigma norueguês, a criação da Petro-Sal para a
averiguação dos novos contratos em âmbito de pré-sal, bem como a capitalização
da Petrobrás, com todos os pormenores embebidos nestas inovações, os quais
poderão proporcionar prejuízos à coletividade por razões financeiras e axiológicoconstitucionais.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
153
Brasil, o que se espera do pré-sal?
1
HISTÓRICO LEGAL DO PETRÓLEO
A história do petróleo foi marcada por um ciclo comercial2 iniciado nos
Estados Unidos, cujo intuito único era remediar enfermos portadores de reumatismo.
Em 1849, o líquido foi intitulado como “kier rock oil” por conta de Samuel Kier o ter
comercializado
como óleo
medicinal a custo
de
um
dólar por garrafa.
Posteriormente, o petróleo foi utilizado como óleo de iluminação, e apenas em 1854
fundou-se a primeira companhia petrolífera dos Estados Unidos, a Pennsylvania
Rock Oil Company of New York, com o objetivo de pesquisa e produção de recursos
minerais e sal, ocorre que as dificuldades eram muitas em razão das paredes das
salinas gerarem desmoronamentos constantes. Assim, em 1859, o Coronel Draker,
um dos sócios da empresa, resolveu revestir as paredes internas com tubos de ferro,
iniciando a era do petróleo e o seu desenvolvimento tecnológico com a indústria do
refino. (COSTA, 2009, p. 1-25)
Nasceu a medida padrão do barril de petróleo a partir de barris
armazenadores
de
uísques,
os
quais
se
encontravam
disponíveis
como
reservatórios, cuja capacidade de 159 litros é até hoje utilizada comercialmente. Em
1863, houve uma grande expansão dos estabelecimentos de refino. Vários países
começaram a produzir petróleo na América, Europa e Oriente Médio. Mais tarde foi
inaugurado o seu transporte por dutos completando a integração industrial do
petróleo, com todas as atividades de exploração, produção, refino, transporte e
distribuição, a cadeia ‘do poço ao posto’, incluindo o upstream, midlestream e
downstream se completava. O desenvolvimento da indústria do petróleo se deu
devido ao emprego do petróleo e seus derivados nas diversas áreas da indústria e
nos motores de combustão, gerando uma dependência econômico-social no século
XIX, cujos reflexos são claramente percebidos no século XX. Em meio a guerras viuse o petróleo e seus derivados atrelados às questões estratégicas e políticas dos
países. Os movimentos nacionalistas cresciam, pois os países hospedeiros
percebiam que as rendas advindas desta riqueza proporcionavam benefícios à
população. Em 1960, foi criada a OPEP em Bagdá formando um cartel de
2
O petróleo sem cunhos comerciais já havia sido utilizado no antigo Egito para o embalsamento de
mortos e também na construção das pirâmides. (SIQUEIRA, 2010, p. 17)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
154
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
exportadores de petróleo, o que mudou para sempre as relações de força entre
hospedeiros e compradores. Hoje a dignidade da pessoa humana se vê associada
ao acesso ao Direito de Energia. (COSTA, 2009, p. 1-25)
Em 1864, são datados os primeiros estudos sobre a possibilidade da
existência de petróleo em território brasileiro. Houve a mudança na disciplina
constitucional das riquezas provenientes do solo. Até a Constituição de 1891, art. 72,
§17, o proprietário do solo as detinha devido ao caráter da acessoriedade. A partir
da Constituição de 1934, seu art. 119 passou a constar que o aproveitamento
industrial das minas e das jazidas, assim como as águas e energia dependiam de
concessão, assim a sua exploração passa a ser objeto de concessão, perseverando
o pensamento na Constituição de 1937, mas restringindo ao regime das
autorizações. Em 1938, com o Decreto 395 foi declarada a sua utilidade pública,
esta foi a primeira legislação brasileira a respeito do petróleo. Em 1946, as
concessões retornaram. Porém, o monopólio do petróleo foi constitucionalizado
apenas em 1967 no art. 162 da Constituição então vigente, esta carta assegurava o
regime dúplice e o direito ao proprietário do solo à participação nos resultados da
lavra, exceto as jazidas e minas cujo monopólio era da União. A ideia foi perpetrada
na Carta de 1969 em seu art. 169, contudo foi o Poder Constituinte de 1988, por
meio do art. 177, que transcreveu detalhadamente as atividades da indústria
petroleira previstas na Lei instituidora da Petrobrás 2.004/53, a qual teoricamente
determinou a atuação monopolística da empresa de 1953 até 1997, e apenas
conseguiu alcançar a autossuficiência em 2005, mesmo ano da instituição da ANP
por meio da Lei 11.097. A Lei Federal 9847/99 ficou conhecida como a lei do
petróleo, mas no ano de 2007, com a descoberta na bacia de Santos das reservas
de hidrocarbonetos localizadas na camada geológica denominada pré-sal, a cerca
de sete mil metros abaixo da água foi encontrado um óleo de considerável leveza e
voluptuosidade, o que levou ao estabelecimento de um novo marco legal. (SOUTO,
2010, p. 1-248)
2
ALTERAÇÃO DE REGIMES FISCAIS
Há quatro regimes fiscais básicos de exploração e produção de petróleo:
concessão, partilha de produção, prestação de serviços e joint venture. No primeiro
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
155
Brasil, o que se espera do pré-sal?
a empresa explora o recurso e assume os riscos e a propriedade do óleo e gás,
garante direitos exclusivos para pesquisa, lavra e comercialização, sua disputa
depende do pagamento de bônus aos estados e royalties cuja base de cálculo é
relacionada à receita bruta, a principal desvantagem deste regime é a falta de
conhecimento sobre a comercialidade da área a ser concedida. O regime de partilha
foi utilizado pela primeira vez na Indonésia em 1966 e neste a propriedade do
petróleo é do Estado, mas as empresas podem gerenciar e operar as instalações
assumindo todos os riscos. O Estado tem sua parcela do custo no investimento, mas
é pago às empresas com as receitas futuras do estado, o excedente em óleo não
possui critérios de definição, não há o pagamento de bônus, as empresas têm direito
de recuperar seus custos de operação ao longo dos anos e de manutenção nos
anos em que eles ocorrem, pode ser estabelecido um limite para recuperação do
custo em óleo, os riscos e os recursos são partilhados entre a empresa e o governo,
oferece maior segurança tanto ao estado quanto as empresas, pois o contrato é
inflexível por somente poder ser alterado pelo Parlamento. A contratação de serviço
pode ser de dois tipos: de prestação de serviços ou de risco, nos primeiros as
empresas são contratadas para explorar e desenvolver um campo em troca de
pagamento, todos os riscos, investimentos e petróleo são do estado, já no de risco
os investimentos serão recebidos em dinheiro ou em petróleo, pois o risco é de não
ocorrer tal produção. Por último há o regime de joint venture, no qual não existe
critério nem definição estabelecidos, os custos e riscos são compartilhados entre
estado e empresas, exigem longas negociações e o estado é responsável direto, por
isso mister se faz a fiscalização e arbitragem de uma agência reguladora. (LIMA,
2011, p. 11-16)
A escolha do regime fiscal se dá em razão das circunstâncias do local, se o
risco exploratório for alto, deve ser eleito o modelo de concessão, com royalties. Se
há grandes reservas e baixo risco de produção deve ser adotado o contrato de
partilha. Nos países incapazes de atrair investimento de empresas são comuns as
joint ventures e naqueles com grande reserva, baixo risco exploratório e baixo custo
são utilizados os contratos de serviço.
Antes da descoberta do pré-sal, os contratos eram celebrados mediante o
regime fiscal de concessão, o qual implica ao concessionário a obrigação de
explorar, por sua conta e risco e produzir petróleo ou gás com direito à propriedade
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
156
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
destes bens extraídos, entretanto após, o governo e o Congresso Nacional optaram
pela exploração compartilhada, importada da Indonésia nos anos 50, no qual o
contratado exerce por sua conta e risco as atividades de exploração, avaliação,
desenvolvimento e produção e em caso de êxito possui o direito à restituição do
custo do óleo e de parcela do excedente em óleo nas condições pactuadas. Este
novo tipo contratual foi adotado sob o argumento de que em meio a eventual
ausência de sede constitucional para as concessões de petróleo haveria a
autorização na instituição de um novo modelo contratual, bem como outros
mecanismos de funcionamento do setor.
Sendo assim, este regime de partilha altera a Lei 9.748/97, o contratado
exerce
por
sua
conta
e
risco
as
atividades
de
exploração,
avaliação,
desenvolvimento e produção, com direito a apropriação do custo em óleo, da
produção dos royalties e parcela do excedente em óleo, cuja parcela será repartida
entre a União e o contratado sob critérios a definir em contrato, sendo resultado da
diferença entre a produção total, o custo do óleo, os royalties e se necessária a
participação do superficiário. Por se tratar de áreas estratégicas de baixo risco e
elevada produção o operador será a Petrobrás, cuja participação mínima é de 30%
em caso de consórcio. O bônus de assinatura é um valor fixado à União.
A definição dos blocos é papel do MME (com acesso irrestrito e gratuito ao
acervo técnico), CNPE E ANP conjuntamente, bem como a definição do excedente
em óleo, limites, prazos, critérios e condições para os royalties, conteúdo local
mínimo, valor do bônus de assinatura. (LIMA, 2011, p. 35)
3
OUTRAS MODIFICAÇÕES LEGAIS
Além da mudança contratual, as novas Leis 12.304/2010 e 12.351/2010
trouxeram a criação de um Fundo Social e de uma nova empresa pública, a Pré-sal
Petróleo S. A., para gerir os novos contratos no âmbito do pré-sal, bem como a
autorização da cessão onerosa de direitos de exploração da União à Petrobrás e a
sua capitalização, por meio da Lei 12.304/2010, ocorre que isto não garante uma
renda estatal maior que a estabelecida pela antiga lei do petróleo, além disso, o
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
157
Brasil, o que se espera do pré-sal?
Fundo Social não deve receber vultosos recursos a curto prazo e a capitalização da
Petrobrás pode trazer grandes prejuízos ao patrimônio público.
O Fundo Social tem como objetivos a formação de uma poupança pública ao
longo dos anos de exploração do pré-sal, e a implementação destes recursos na
aplicação no desenvolvimento social e regional do país, na minoração das variações
de renda e preços na economia interna e no investimento em fontes alternativas de
energia, entre outas pretensões. Todavia, a lei não estabelece percentuais fixos para
cada área a ser investida deixando estes objetivos muito soltos, inclusive o art. 47
§2º que trazia estes percentuais com 50% para educação pública, básica e superior
e 80% para a educação básica e infantil foi vetado pela Presidente da República,
resultando na criação de um Comitê de Gestão Financeira do Fundo Social para
dirimir a politica de investimento do fundo, cuja composição se dá pelo Ministro do
Estado e da Fazenda, Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão e Presidente
do Banco Central, os quais agirão no amplo leque da discricionariedade
administrativa. Dentre os recursos atinentes ao fundo a Lei 12.351/2010 enumera a
parcela do bônus de assinatura, a parcela dos royalties, a receitas advindas da
comercialização do petróleo e gás, a participação especial e as aplicações
financeiras. (LIMA, 2011, p. 24-31)
Afora estes aspectos, no que diz respeito à definição das alíquotas dos
royalties, no regime de partilha de produção não há percentuais fixos como no
regime anterior de concessão que estabelecia o valor entre 5% e 10%, dependendo
da produção, sendo assim a arrecadação do estado pode ser menor do que a
estabelecida na antiga lei do petróleo. A vantagem deste regime foi deixar a
Petrobrás como única exploradora do pré-sal. Além disso, o estado não precisa ser
investidor, nem correr riscos como se dá nos regimes de joint venture e de prestação
de serviços e ainda assim ficar com a maior parcela do excedente em óleo.
3.1
Capitalização da Petrobrás
Com relação à capitalização da Petrobrás, esta se concretizou com a
adoção da Medida Provisória 50/2010, a qual autorizou a cessão e a permuta de
ações entre entes federais, e da Medida Provisória 505/2010, a qual autorizou a
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
158
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
colocação direta, em favor do BNDS, de títulos da dívida pública mobiliária federal
em até R$30 bilhões de reais. O motivo se pautou devido a grande capacidade
técnica da estatal, além disso com o aumento da participação da União no capital da
Petrobrás, porém, os investidores privados terão que investir na participação para
não serem diluídos de seus dividendos. Esqueceram que a sociedade de economia
mista só foi criada porque houve colaboração do capital privado, uma vez que o
governo sozinho não teria condições de desenvolver a atividade, mas mesmo assim
não permitiram que o acionista privado continuasse recebendo as riquezas do
petróleo. A cessão do direito de pesquisa gerou no ativo da Petrobrás o equivalente
a dívida da empresa para com a União, com a subscrição das ações houve o
lançamento dos títulos da dívida pública no ativo da Petrobrás, aumentando o capital
social no passivo, e como a dívida da Petrobrás pode ser paga com títulos da dívida
pública, aqueles títulos utilizados pela União e entes federais serviram para o
pagamento da dívida, concomitantemente a entrada de outros acionistas trouxe
recursos
no
ativo
da
Petrobrás,
proporcionando
a
captação
de
R$
115.052.319.090,80, tornando-a a quarta maior companhia do mundo. (LIMA, 2011,
p. 109-116)
Esta capitalização além de diminuir o exercício do direito de preferência dos
acionistas, põe em risco o novo valor do capital da empresa. Soma-se a isto a
afronta a diversos princípios constitucionais, tais como a livre concorrência, a
isonomia, a liberdade, a autonomia, a segurança jurídica, a Democracia e o Estado
de Direito. (PRISCO, 2011, p. 1-256)
No Brasil, o aumento do government take na produção do pré-sal deve estar
atrelado a finalidades especificas, como por exemplo, a educação, mas a vinculação
orçamentária deve ser cumprida, como acontece com a CIDE-Combustíveis, inciso II
do § 4º do art. 177 da CF/88, os quais deverão ser destinados ao pagamento de
subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados
de petróleo; financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do
petróleo e do gás; e financiamento de programas de infraestrutura de transportes.
Conforme fiscalização do TCU, de 2002-2004, a arrecadação foi de R$ 22 bilhões,
R$ 9 bilhões não foram aplicados, R$ 10,6 bilhões em despesas do Ministério dos
Transportes, R$ 1 bilhão com pessoal e R$ 657 milhões com juros e encargos. Afinal
de contas não basta existir uma lei, é mister haver a efetivação orçamentária da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
159
Brasil, o que se espera do pré-sal?
vinculação, caso contrário os recursos advindos do pré-sal acarretarão disputas
políticas na partilha entre ministérios, órgãos e entidades da Administração.
(RIBEIRO, 2009, p. 179)
3.2
Modelo de Fundo Norueguês
Na verdade, a lei brasileira buscou inspiração no modelo norueguês, pois há
a presença de um regulador, ANP no Brasil e Olje-og Energidepartament – OED na
Noruega e de uma empresa controlada pelo Estado, Petrobrás no Brasil e
StatoilHydro na Noruega. O IBP se assemelha a OLF, entidade que congrega e
representa empresas petrolíferas e prestadoras de serviços. Lá eles utilizam o
contrato de licença ao invés do contrato de concessão brasileiro, que além de ser
mais enxuto, é composto por três documentos: as provisões especiais (o acordo que
prevalece sobre os demais documentos), o JOA (Join Operation Agreement) ou
acordo de operações conjuntas e o accounting agrement. Nenhum desses
documentos são negociáveis, apenas o nome das partes, suas participações, o
nome do operador e o número da licença do bloco são ajustáveis. Com a abertura
do capital da Statoil foi criada em 2001 a PETORO, empresa pública norueguesa
cujo capital é 100% do Estado para administração do SDFI (State’s Direct Financial
Interest) em virtude da necessidade de diminuição do poder e influência da empresa
estatal, à época maior empregadora da Noruega. No que tange ao seu sistema de
royalties, este se encontra em extinção. (RIBEIRO, 2009, p. 126-133)
Seu fundo social foi criado em 1990 e atualmente possui um montante de
2,3 trilhões de coroas ou U$S 420 bilhões de dólares, e apenas são utilizados os
valores frutos do rendimento dos recursos totais, cujos reflexos foram no atingimento
do pleno emprego, com um salário mensal de U$ 5 mil e uma inflação dentro das
metas. (GOBETTI, 2009)
O modelo importado norueguês do SDFI – State Direct Financial Interest e
da companhia estatal PETORO incorre no risco de sobreposição de agentes estatais
reguladores e de interferência governamental contraproducente. Há o risco das
NOCs (National Oil Company) tornarem-se estados dentro dos estados e ao invés
de defender os interesses do governo, utilizá-lo para proteger os seus. O controle do
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
160
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
governo sobre ela a faz uma extensão da Administração Pública e um controle
insuficiente pode fazê-la apenas mais uma multinacional do petróleo. Essa
modelagem vai de encontro ao poder de controle. (RIBEIRO, 2009, p. 166)
Acrescenta-se que os recursos brasileiros advindos do pré-sal acumulados
em um fundo correm o risco de serem utilizados para o aumento do déficit primário,
como já visto com os royalties até então, o que vai de encontro ao objetivo para o
qual a poupança fora criada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É certo que o ganho indireto pela sociedade com a efetivação destes novos
contratos é feito por meio da geração de empregos, inserção social, o que leva ao
ciclo do consumo e movimentação da economia, mas não se pode olvidar da grande
capacidade governamental de proporcionar diretamente desenvolvimento social com
as rendas do pré-sal, e em meio a tanta mudança é necessário “aparar as arestas”
deste novo marco, fixando as pendências, solucionando-as de pronto e visualizando
de forma cristalina o sentido destas modificações legais.
A partilha de produção não assegura ao Estado maior arrecadação, pois
não garante um excedente em óleo mínimo, não estabelece limite para recuperação
dos custos do contratado e nem alíquota de royalties, o que pode gerar grande
renda para o contratado e pouca para o Estado, daí a oportunidade em se criar a
empresa pública federal para representar a União. (LIMA, 2011, p. 128)
Quanto ao Fundo Social, seus recursos serão apenas do retorno sobre o
capital, algo que a um curto prazo será baixo. Com a cessão onerosa, a União
deixou de receber o bônus de assinatura e o excedente de óleo, os quais
vinculavam o contrato anterior e representavam importantes montantes para o
enriquecimento deste fundo, mas mesmo assim este possui um alto risco de ser
utilizado para fins não desenvolvimentistas.
Fica claro afirmar que as mudanças são necessárias em meio à
globalização, ocorre que antes deve haver um debate político, uma participação
social, aberta a sugestões e esclarecimentos quanto às alterações legislativas, eis
que sem estes instrumentos não há democracia e nem segurança jurídica,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
161
Brasil, o que se espera do pré-sal?
proporcionando uma visão arbitrária, estatizante, anti-democrática, radical e avessa
a sociedade.
O controle social não deveria se restringir a representantes da sociedade
civil no Conselho Deliberativo do Fundo Social, e sim na prestação de contas com
total transparência, pois esta mudança legal acontece em um período pré-eleitoral, o
que historicamente gera demagogia na aplicação das verbas públicas, o Rio de
Janeiro3, por exemplo, possui a segunda maior fonte de renda com o petróleo.
Em meio à assimetria de informações em virtude da preponderância de
conhecimento por parte da Petro-sal, é oportuno o maior supervisionamento
contratual, eis que o art. 174 da CF/88 prescreve caber ao Estado a tarefa de agente
normativo e regulador da atividade econômica, fortalecedor do papel do Estado, ao
gastar menos e arrecadar mais para maior distribuição da riqueza nacional.
É fundamental que o objetivo do Estado, insculpido no art. 3º da CF/88 por
meio da inclusão social dê azo a uma vida humana digna a todos os cidadãos
brasileiros.
REFERÊNCIAS
COSTA, Maria D’Assunção. Comentários à Lei do Petróleo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
FRANÇA, Vladimir da Rocha; MENDONÇA, Fabiano André de Souza; XAVIER, Yanko
Marcius de Alencar. Energia e Constituição. Ceará: Konrad Adenauer Stiftung, 2009.
GOBETTI, Sérgio Wulff. Política Fiscal e Dívida Pública. Política Fiscal e Pré-Sal: como
gerir as rendas do petróleo e sustentar o equilíbrio macrofiscal do Brasil. Finanças Públicas,
2009.
LIMA, Paulo César Ribeiro. Pré-sal: O novo marco legal e a capitalização da Petrobrás. Rio
de Janeiro: Synergia, 2011.
PRISCO, Alex Vasconcellos. Atuação da Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e
Gás Natural S. A. – Pré-sal Petróleo S. A. (PPSA): gestão e risco no regime jurídicoregulatório dos consórcios constituídos no âmbito do sistema de partilha de produção.
Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte, Fórum, ano 9, n. 34, p. 1-256,
abr./jun. 2011.
RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Novos Rumos do Direito do Petróleo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009.
3
Apesar dos valores provenientes do petróleo serem sua segunda maior fonte de renda, vários
municípios do Rio de Janeiro investem em time de futebol, inclusive o ex-secretário de Guamaré
disse “é tanto dinheiro que entra que políticos tem que encontrar um jeito de gastar.” (FRANÇA;
MENDONÇA; XAVIER, 2009, p. 156)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
162
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira
SIQUEIRA, Mariana de. O fomento aos campos maduros de petróleo e o
desenvolvimento: uma análise jurídico-constitucional. Natal: UFRN, 2010.
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Propostas legislativas de novo marco regulatório do présal. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Fórum, ano 8, n. 29, p. 1248, jan./mar. 2010.
SUNDFELD, Carlos Ari. Quanto reformar do direito brasileiro do petróleo? Revista de
Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Fórum, ano 8, n. 29, p. 1-248, jan./mar.
2010.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
163
Justiça e democracia
JUSTIÇA E DEMOCRACIA: UMA RETOMADA DO DEBATE
ACERCA DO CONTROLE DEMOCRÁTICO SOBRE AS
DECISÕES JUDICIAIS
JUSTICE AND DEMOCRACY: A REVISTING OF THE DEBATE OVER THE DEMOCRATIC
CONTROL OVER JUDICIAL DECISIONS
Marcus Firmino Santiago1
Pablo Malheiros da Cunha Frota
Rafael Freitas Machado
Ramiro Freitas de Alencar Barroso
Resumo
A questão chave que orienta a presente pesquisa é: como realizar
democraticamente o controle das decisões judiciais? Para tanto, o grupo trabalhou
as reflexões sobre o sentido de democracia de Gargarella, de Bobbio e de
Habermas, a evidenciar a necessidade de aproximação entre Estado e sociedade,
mormente no que tange à atividade decisória judicial. Nessa medida, o desafio
contemporâneo da teoria e da prática jurídica não mais se vincula a construir
justificativas teóricas ao ativismo judicial ou afirmar a força normativa das
Constituições, mas aproximar o Judiciário da sociedade, sendo essencial permear
esta relação com valores democráticos, cumprindo identificar e construir
mecanismos que permitam um efetivo controle social sobre as decisões,
especialmente dos Tribunais Superiores.
Palavras-chaves: Constitucionalismo. Interpretação. Democracia. Ativismo judicial.
Direitos fundamentais.
Abstract
The key issue that drives this research is: how to perform the control of judicial
decisions democratically? To this end, the group worked the reflections on the
concept of democracy, in Bobbio, Gargarella and Habermas, demonstrating the
need for rapprochement between the State and society, particularly with regard to
judicial decision-making activity. In this way, the contemporary challenge of legal
theory and practice no longer links to construct theoretical justifications to judicial
activism or affirm the normative force of the constitutions, but bring the Judiciary
closer of the society, being essential to permeate this relationship with democratic
1
Professor orientador: Marcus Firmino Santiago, professor universitário, advogado, Doutor em
Direito pela Universidade Gama Filho, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.
Professores Coorientadores: Pablo Malheiros da Cunha Frota, professor universitário, advogado,
Doutorando em Direito na Universidade Federal do Paraná, Mestre em Direito pela Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo. Professor no Curso de Direito no UNICEUB (DF); Rafael
Freitas Machado, professor universitário, advogado, Mestre em Direito em Ciências JurídicoPolíticas pela Universidade de Lisboa – Portugal. Ramiro Freitas De Alencar Barroso, advogado e
Mestrando em Direito na Universidade de Brasília.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
164
Marcus Firmino Santiago e outros
values, identify and build mechanisms for an effective social control over the
decisions, especially of the superior courts.
Keywords: Constitutionalism.
Fundamental rights.
Interpretation.
Democracy.
Judicial
activism.
Sumário: 1. Metodologia utilizada pelo grupo e problematização da pesquisa. 2. Poder
judiciário e democracia. 3. Reconstruindo teorias democráticas: Gargarella,
Bobbio e Habermas. 4. Análise dos elementos comuns às teorias democráticas
contemporâneas e contribuições para abordagem do problema de pesquisa. 5. O
intérprete, o ativismo judicial e o controle democrático. Conclusão. Referências.
1
METODOLOGIA UTILIZADA PELO GRUPO E PROBLEMATIZAÇÃO DA
PESQUISA
Três grandes linhas teórico-metodológicas surgiram como reação ao
tradicionalismo jurídico de inspiração formalista, sendo que a pesquisa em tela se
filia à linha crítico-metodológica, lastreada em uma teoria crítica da realidade que
compreende o Direito como uma “rede complexa de linguagens e de significados”,
como apontado por Miracy Gustin e Maria Dias (2006, p. 20-21). Trazida para o
contexto específico da pesquisa jurídica, pode-se pensar a temática apresentada
para esta pesquisa na ambiência de uma vertente jurídico-teórica, não se
descurando no desenvolvimento de sua repercussão prática, como é inerente a toda
investigação científica no campo das ciências sociais aplicadas. O raciocínio
empreendido será de natureza hermenêutico-dialógica, buscando densificar os
sentidos dos institutos jurídicos a partir dos imperativos da realidade e emanados
das variadas formas de expressão do Direito.
O grupo segue a linha desenvolvida por Edgar Morin (2007) acerca do
sentido de complexidade e de dialogicidade, respectivamente:
(...) coincide com uma parte de incerteza, seja proveniente dos limites de
nosso entendimento, seja inscrita nos fenômenos. Mas a complexidade não
se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de sistemas ricamente
organizados. Ela diz respeito a sistemas semi-aleatórios cuja ordem é
inseparável dos acasos que os concernem. A complexidade está, pois,
ligada a certa mistura de ordem e de desordem, mistura íntima, ao contrário
da ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina no
nível das grandes populações e a desordem (pobre porque pura
indeterminação) reina no nível das unidades elementares. (MORIN, 2007, p.
35)
Unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias
complementares, concorrentes e antagônicas que se alimentam uma da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
165
Justiça e democracia
outra, se completam, mas também se opõem e combatem. Distingue-se da
dialética hegeliana. Em Hegel, as contradições encontram uma solução,
superam-se e suprimem-se numa unidade superior. Na dialógica, os
antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou dos
fenômenos complexos. (MORIN, 2007, p. 300-301)
Essa metodologia serve à construção de uma resposta adequada à seguinte
indagação: Como realizar democraticamente o controle das decisões judiciais?
Tal questionamento se põe em um cenário no qual cada vez mais o Poder
Judiciário se apresenta como um ator institucional capaz de suprir incapacidades
crônicas dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento da tarefa de conferir
efetividade aos direitos fundamentais constitucionais. Afigura-se, por conseguinte,
retomar o debate acerca do controle sobre as decisões judiciais. Nesse sentido,
cumpre questionar: qual é o nível de responsabilidade democrática das decisões
judiciais? Como conciliar a autonomia, imprescindível no sistema republicano, com
um elevado grau de responsabilidade pelas manifestações dos órgãos judicantes?
O modelo constitucional que se desenvolve no decorrer da segunda metade
do século XX se pauta em uma lógica diversa daquela predominante nas origens do
constitucionalismo. Se antes a prioridade de um sistema jurídico era o controle do
poder estatal, delimitando suas funções e restringindo os espaços de atuação dos
governantes, agora o foco passa a ser o reconhecimento e a promoção dos direitos
fundamentais.
Resultado de um processo histórico iniciado em meados do século XIX,
como resposta à dura realidade forjada no seio da Revolução Industrial, a transição
dos direitos fundamentais de elementos acessórios ao ponto central do
constitucionalismo tem repercussões claras na maneira como a atividade estatal é
exercida.
O crescente rol dos direitos fundamentais de estatura constitucional cria um
modelo de ampla vinculação do Estado e dos particulares, que se veem, em seu
campo de escolhas políticas, severamente adstritos à tarefa de conferir concretude
àqueles direitos.
Semelhante realidade, presente no cenário contemporâneo ocidental,
permite ao Poder Judiciário assumir um papel de protagonismo face aos demais
poderes estatais, tomando para si tarefas que tradicionalmente lhe seriam estranhas.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
166
Marcus Firmino Santiago e outros
E o modelo constitucional adotado pelo Brasil, na esteira da transformação
experimentada pelo mundo europeu no pós-guerra, chancela semelhante atuação, à
medida que permite inserir no rol de atribuições do Poder Judiciário o controle das
escolhas políticas, as quais, como dito, são também jurídicas.
O problema que decorre desta realidade reside na ausência de mecanismos
concretos que permitam um efetivo controle sobre o resultado da atividade
jurisdicional. Afinal, se os poderes políticos, bem ou mal, encontram-se submetidos a
um permanente controle social, o Poder Judiciário, por sua estrutura, modo de
funcionamento e de provimento de cargos, fica fora deste modelo. Os eventuais
excessos que, até por força da natureza humana, tendem a acontecer acabam
restando isentos de qualquer controle externo ao próprio Poder Judiciário.
Quando se fala em democratizar o Poder Judiciário, muito se pensa na
forma de acesso aos cargos, especialmente nos Tribunais Superiores, e na questão
do acesso dos jurisdicionados à justiça. Há mais um aspecto, contudo, que deve se
agregar à citada democratização, a fim de completar este quadro: o controle sobre
as decisões judiciais.
Já se discutiu com galhardia, por ocasião dos debates que culminaram com
a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, sobre a instituição de instâncias para
controle externo do Poder Judiciário. O modelo que acabou prevalecendo restringiuse a um órgão interno com funções apenas administrativas, restando a atividade
jurisdicional isenta de apreciação por outro meio, que não o sistema recursal.
Parece relevante, diante de uma realidade na qual o Poder Judiciário
emerge como um ator institucional capaz de suprir as incapacidades crônicas dos
poderes políticos, trazer de volta ao debate a questão do controle sobre as decisões
judiciais. Que modelo poderia ser pensado de modo a não sujeitar o Poder Judiciário
a um controle político ou a sua submissão aos demais poderes? Como conciliar a
autonomia, imprescindível no sistema republicano, com um elevado grau de
responsabilidade por suas manifestações? A tentativa de responder a tais
perguntas, derivadas do problema colocado neste trabalho, se coloca como uma
proposta para um debate a se desenvolver no âmbito desta pesquisa.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
167
Justiça e democracia
2
PODER JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA
Resultado de um processo histórico iniciado em meados do Século XIX, a
travessia que os direitos fundamentais experimentaram, desde o ponto em que eram
vistos como itens quase acessórios até seu reconhecimento como elementos
centrais das Constituições, provocou significativas mudanças na forma como as
instituições estatais se organizam, funcionam e se relacionam com a sociedade. Se,
na origem do constitucionalismo, a prioridade de um sistema jurídico era o controle
sobre o poder estatal, delimitando suas funções e restringindo os espaços de
atuação dos governantes, em fins do Século XX o foco do sistema normativo se
transfere para o reconhecimento e para a promoção dos direitos fundamentais.
Significativamente ampliados e alçados ao patamar de condição para
existência de regimes democráticos, os direitos fundamentais, com sua base
normativa constitucional, apresentam-se como elementos definidores da atividade
estatal, vinculando as escolhas políticas. Este processo, que no Brasil se consolida
com o advento da Constituição de 1988, tem por consequência o alargamento da
submissão dos espaços políticos ao sistema jurídico. Por força desta característica,
que permeia os regimes constitucionais atuais, a discricionariedade estatal se vê
amplamente circunscrita em uma esfera juridicizada, permitindo aos tribunais alargar
o controle exercido sobre atividades públicas e privadas voltadas a implementar
direitos fundamentais.
O cenário contemporaneamente delineado e o modelo constitucional
adotado pelo Brasil, na esteira da transformação experimentada pelo mundo
europeu no pós-guerra, chancela o protagonismo do Poder Judiciário. Confere-se a
este um rol exemplificativo de atribuições sobre o controle das escolhas políticas, as
quais em grande medida são também jurídicas. (SANTIAGO, 2011, p. 9-10)
Esta visão é complementada por Ran Hirschl, que destaca ainda as
mudanças políticas e sociais marcantes na sociedade na segunda metade do Século
XX:
Judicial empowerment through constitutionalization is therefore commonly
perceived as reflecting progressive social or political change; as derivative of
a general waning of confidence in technocratic government and a
consequent desire to restrict discretionary powers of the state; or simply as
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
168
Marcus Firmino Santiago e outros
the result of societies or ‘politicians’ genuine devotion to a pos-Word War II
‘thick’ notion of democracy and universal notion of human rights. (HIRSCHL,
2004, p. 212)
Na visão de Ran Hirschl, a concentração de prerrogativas no Judiciário, em
especial de suas Cortes Supremas, pode ser compreendida como uma reação
conservadora que visa a preservar o status quo ante as pressões sociais,
transferindo a esta instância, tradicionalmente fechada à sociedade, as principais
decisões. Nas suas palavras: “(...) the judicialization of fundamental political
questions offers a convenient refuge for politicians seeking to avoid making difficult
no-win moral and political decisions (…)”. (HIRSCHL, 2004, p. 213)
Segundo o autor, um exame mais cuidadoso da prática judicial indica que a
transferência dos principais debates envolvendo direitos fundamentais da esfera
política para a judicial foi aceita tacitamente, senão ativamente provocada, por atores
políticos que representam as elites hegemônicas. (HIRSCHL, 2004, p. 213) Não
seria mero acaso, portanto, a tradicional inércia dos Poderes Executivo ou
Legislativo, tão criticada nessas terras e sempre lembrada quando o Judiciário é
chamado a suprir lacunas legais, doutrinárias e jurisprudenciais que tanto dificultam
a efetivação de direitos.
O debate sobre o ativismo judicial está na pauta do dia, sendo algo
indissociável dos estudos sobre direitos fundamentais e sua efetividade. Em
verdade, o cenário atual coloca a expansão das atribuições judiciais como uma
realidade quase inevitável, com a qual se deve aprender a conviver. Ora, se ao
menos em um curto prazo não parece possível promover uma ampla revisão sobre
as práticas institucionais, os pensamentos político e jurídico devem se debruçar
sobre a busca de alternativas que permitam aproximar o Judiciário da sociedade,
permitindo um mínimo controle democrático sobre sua atividade.
Antes de se tratar, contudo, de definir um modo de agir voltado a assegurar
semelhante controle, é preciso firmar que tipo de democracia se pretende ver
aplicada. Afinal, a se pretender discutir este que é um dogma nas relações
institucionais – o fechamento das decisões judiciais a qualquer espécie de controle
externo – fundamental compreender adequadamente o que é um modelo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
169
Justiça e democracia
democrático, especialmente diante das diversas variáveis que envolvem a
implementação deste ideal.
Os sentidos de democracia que convivem na teoria atual divergem em
diversos aspectos, mas, de um modo geral, se aproximam ao reconhecer a
necessidade de assegurar máximo grau de participação social, a fim de permitir o
alcance de objetivos capazes de atender aos interesses do maior número de
participantes. Este fim é buscado por trilhas diversas, que vão desde a rejeição
completa da interferência judicial até a sua acomodação em moldes variados,
passando por análises do sistema representativo, das práticas democráticas ou da
forma como os interesses sociais podem ser identificados e defendidos.
O trabalho ora desenvolvido ocupa-se, também, de identificar diferentes
visões acerca da democracia, destacando virtudes e defeitos, além de diferentes
compreensões acerca dos caminhos que podem ser traçados para se concretizar os
ideais democráticos. Busca-se, assim, fornecer alicerces que permitam estruturar
soluções para o problema encontrado: como aproximar o Judiciário da sociedade.
3
RECONSTRUINDO TEORIAS DEMOCRÁTICAS: GARGARELLA, BOBBIO
E HABERMAS
Em seu artigo “Crisis de representación y constituciones contramayoritarias”,
Roberto Gargarella busca explicar o desinteresse pela vida política por grande parte
da sociedade, bem como o distanciamento existente entre representante e
representados. (GARGARELLA, 1995) Neste estudo, o autor se dedica a
compreender um fenômeno que, mesmo não sendo novo, segue atentando contra
um dos alicerces das teorias democráticas: a representação política como
instrumento para manifestação da vontade social.
Gargarella começa sua argumentação explicando que, quando o atual
modelo de democracia representativa foi criado, o conceito de imparcialidade era
diferente do conceito que temos hoje em dia. Acreditava-se que, quando uma
decisão devia ser tomada, para que esta fosse imparcial, o debate precisaria ser
feito com um número reduzido de pessoas, do contrário, esta decisão teria maior
chance de se tornar parcial.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
170
Marcus Firmino Santiago e outros
O modelo constitucional que conhecemos hoje em dia segue esta linha,
inibindo o debate público e favorecendo a tomada de decisão apenas pelo pequeno
círculo de representantes. Com isto, surge a presente crise de representação que
vivenciamos. Cobra-se dos cidadãos uma participação mais ativa na vida pública,
embora as instituições públicas não a favoreçam, tornando difícil a comunicação
entre representante e representado.
O vínculo entre decisão imparcial e democracia foi objeto de análise de
diversos autores, alguns trazidos no texto sob enfoque. Todos constatam que existe
uma ligação entre a participação política, a discussão pública e a ideia de
imparcialidade.
Concentrando seu estudo no modelo norte-americano, Gargarella analisa o
texto O Federalista de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay para estudar
a Constituição norte-americana e, baseando-se nela, explicar a atual crise de
representação. Madison aponta que uma preocupação que a Constituição deve
tratar é a influência de facções na vida política2.
Sua preocupação não era, como se imagina hoje, de proteger os cidadãos
contra a “facção” classe dirigente, mas ao contrário, de proteger a minoria, classe
dirigente, contra a maioria, ou seja, grande parte da sociedade, para evitar “riscos de
impulsos majoritários opressivos”. Gargarella explica que a minoria a que se refere
Madison em seu texto não está ligada a número de representante que esta comporta
ou à sua proporcionalidade na sociedade, mas a uma elite de “ricos e bemnascidos”. (GARGARELLA, 1995, p. 97-98)
Gargarella cita exemplos que caracterizam a Convenção Constituinte como
contramajoritária, dentre os quais se destaca o distanciamento entre poder judiciário
e sociedade, ao fundamento de lhe assegurar imparcialidade, preservando-o de
pressões sociais. (GARGARELLA, 1995, p. 103)
Em conclusão, é possível afirmar que o modelo constitucional que seguimos
hoje sofre influência de uma época em que os objetivos eram diferentes, onde se
2
Madison define essas facções como “(…) un grupo de ciudadanos que, ya sea que correspondan
a una mayoría o a una minoría dentro de la totalidad, se unen y actúan motivados por impulsos o
pasiones comunes, o por intereses, contrarios a los derechos de otro ciudadanos, o a los intereses
agregados y permanentes de la comunidad.” (GARGARELLA, 1995, p. 96)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
171
Justiça e democracia
procurava proteger uma pequena classe governante, em detrimento da maioria da
sociedade. Como resultado, tem-se instituições que dificultam a comunicação entre
representante e representados, fazendo questionar sobre a validade da atual
democracia. O autor propõe, no final de seu texto, que, para resolver a crise de
representação apresentada, é preciso estabelecer uma forma institucional que
valorize o debate público, permitindo à sociedade participar das questões públicas,
criando um verdadeiro poder do povo. (GARGARELLA, 1995, p. 107-108)
Norberto Bobbio se debruçou sobre o tema da democracia em diversas
ocasiões, analisando-o sob diferentes aspectos e em variados contextos sociais e
políticos. Em sua vasta bibliografia sobre o assunto, é possível perceber que sua
maior preocupação não reside em definir fundamentos conceituais – o que não
descura de fazer, por certo – mas em analisar realidades, buscando compreender
forças e fragilidades dos regimes democráticos.
Segundo Bobbio (2001, p. 36-37):
(...) a democracia não pode mais ser uma formalidade; não pode mais ser
um simples instrumento de governo; deve ser a finalidade da luta política.
Eis, portanto, que pedir hoje à Constituinte instituições democráticas
significa pedir instituições nas quais, a democracia não seja somente uma
formalidade para designar os regentes do Estado, nem apenas uma forma
de governo, mas a essência e a finalidade da nova ordem que deverá ter o
nosso futuro.
Estas assertivas se encontram no livro Entre Duas Repúblicas, em capítulo
escrito em 1945, no qual analisa a realidade da sua Itália no imediato pós-guerra,
com todas as dificuldades que o país enfrentava para consolidar e para estabilizar
suas instituições e elaborar uma nova Constituição.
Interessante objeto de estudo é o texto O Futuro da Democracia.
Originalmente apresentado em 1983, em Madri, aborda de maneira objetiva os
desafios e as transformações experimentadas pelos regimes democráticos. Nesta
obra, Bobbio procede a uma análise sobre a realidade dos regimes democráticos,
estudo que, embora já antigo, resta tremendamente atual, visto que se pauta em
uma comparação entre o modelo ideal de democracia arquitetado (e em larga
margem ainda hoje defendido) e as vicissitudes das práticas sociais e políticas dos
Estados. (BOBBIO, 2000, Apresentação)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
172
Marcus Firmino Santiago e outros
Note-se que Bobbio mais se ocupa em compulsar modelos – o ideal e o real
– e indicar inconsistências em ambos: o que se prometeu e se mostrou irrealizável; o
que se revelou um desvio no rumo inicialmente traçado. Ao fim do estudo é possível
extrair as bases do modelo democrático vislumbrado pelo autor, pautado em um
sistema procedimental que, a partir de regras pré-definidas, autoriza a participação
no processo de tomada de decisões e respeita a liberdade de escolha. (BOBBIO,
2000, p. 31)
A democracia é um sistema dinâmico, sempre em transformação, afinal, é
um modelo político que se propõe a permitir a plena expressão das vontades sociais
que, como a natureza humana, são cambiantes: “Para um regime democrático, o
estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica, o
despotismo é estático e sempre igual a si mesmo.” (BOBBIO, 2000, Introdução).
Capaz, portanto, de se adaptar ao novo, às diferentes reivindicações sem entrar em
crise, sem sofrer rupturas, em que pese todas as dificuldades práticas identificadas e
analisadas pelo autor.
A adaptação, porém, depende de uma adequada compreensão da realidade,
dos seus conflitos e das suas contradições. As insuficiências das práticas
democráticas são enumeradas tendo por ponto de partida uma das principais
promessas do pensamento contratualista: a eliminação dos corpos intermediários,
permitindo a direta participação dos indivíduos, no pleno exercício de seu poder
soberano. Não se nega, contudo, a existência de uma potência individual
(mantendo-se viva a tradição contratualista), que na prática, gerou a capacidade de
articulação de grupos, das organizações e das associações, com a consequente
restrição da autonomia individual:
Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa
sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a
nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta
ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade
ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos
contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do
governo central. (BOBBIO, 2000, p. 35)
Toda manifestação de vontade, portanto, deixa de ser um ato estritamente
individual, dependendo da articulação em torno de uma coletividade com capacidade
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
173
Justiça e democracia
representativa, a qual acaba por usurpar o poder de ação privado, visto, no
nascedouro das teses democráticas contemporâneas, como elemento essencial ao
próprio sistema.
A análise prossegue pela constatação de que as elites permanecem no
controle do Estado. De fato, o desenvolvimento de regimes democráticos não
afastou a hegemonia das elites, quando muito, abriu espaço para que diferentes
grupos passassem a concorrer, disputando apoio popular. O poder oligárquico não
foi derrotado – como se houvera prometido – mas, em larga medida, se vê obrigado
a se sujeitar às regras do jogo democrático para conquistar apoio e se manter no
controle das estruturas de poder político, o que afasta os Estados dos regimes
autocráticos.
Se, por um lado, os regimes democráticos não conseguiram derrotar o poder
oligárquico, por outro, também não se mostraram capazes de oferecer mecanismos
que permitam ocupar todos os espaços nos quais o poder decisório é exercido. Na
limitação do acesso a instâncias decisórias reside mais um problema identificado por
Bobbio.
O desenvolvimento da democracia caminhou, por longo tempo, no sentido
da ampliação do sufrágio, o que, de um modo geral, foi alcançado no período do pós
Segunda Guerra. De outro turno, a abertura de novos espaços de atuação social,
que permitam aos indivíduos e aos grupos participar mais ativamente e
proximamente nas instâncias públicas onde decisões que a todos vinculam são
tomadas, ainda resta insuficiente. Afinal, a democracia moderna nasceu como um
método para legitimar as decisões políticas, o que autoriza concluir ser um desvio
qualquer restrição à participação social no exercício de seu poder de controle.
Tendo em mira este conjunto de promessas não cumpridas pelos regimes
democráticos, Bobbio traz à tona a questão sobre se, de fato, estas e outras
promessas seriam exequíveis.
A diferença gritante entre os modelos ideal e real de democracia reside na
concepção equivocada do que poderia ser construído: “o projeto político democrático
foi idealizado para uma sociedade muito menos complexa que a de hoje.” (BOBBIO,
2000, p. 46) Não se previu a tecnocracia, naturalmente excludente, à medida que
concentra a capacidade decisória nas mãos daqueles que detenham conhecimentos
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
174
Marcus Firmino Santiago e outros
cada vez mais sofisticados, onde se incluem os juízes! A democracia se sustenta
sobre a hipótese de que todos possam decidir sobre tudo. Como compatibilizar esta
premissa com uma realidade na qual o conhecimento técnico impregna as decisões
estatais? Como chamar a sociedade a opinar sobre políticas cambiais, combate à
inflação ou à criação de novos empregos?
A lentidão imposta pelos complexos procedimentos inerentes aos sistemas
democráticos evidencia a dificuldade dos governos em atender às crescentes
reivindicações que lhes chegam a todo instante. A velocidade com que novos
problemas surgem e são encaminhados ao Estado é muito maior que a capacidade
deste se organizar e conceber uma resposta adequada.
Esta defasagem leva, algumas vezes, a que se vislumbrem vantagens em
regimes e em instituições autoritários (aqui se encaixaria o Poder Judiciário?), visto
que nestes, como regra, a capacidade de atividade governamental é muito maior.
Ou, ainda, ao esvaziamento de instâncias decisórias eminentemente políticas –
Executivo e Legislativo – e sua substituição por um Judiciário teoricamente técnico e
isento.
Enfim, apesar das insuficiências evidentes, os regimes democráticos têm
conseguido sobreviver, mostrando suficiente flexibilidade para suportar suas
contradições e suas carências, resistindo a apelos autoritários e buscando se
reinventar a partir de sua crença histórica na participação social como o melhor
instrumento para evitar abusos no exercício dos poderes político e jurídico.
Outro autor estudado, Jürgen Habermas, no texto O Estado Democrático de
Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? analisa duas fontes
concorrentes de legitimação do Estado Democrático de Direito que surgem na
recente filosofia política: a) uma liberal, voltada para a defesa das liberdades
subjetivas, pelo rule of law; b) outra republicana, ou clássica, mais baseada na
compreensão de democracia dos antigos, em que os direitos de participação política
dos cidadãos assumem importância capital. (HABERMAS, 2003)
Essas duas perspectivas, embora concorrentes, não se excluem, sendo cooriginárias, formando uma relação complementar entre autonomia privada e pública.
Para que haja autonomia pública, garantida pelos direitos políticos, é preciso que
essa autonomia seja construída a partir de uma vida privada independente e
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
175
Justiça e democracia
assegurada legalmente de forma simétrica para todos. Da mesma forma, o cidadão
só pode gozar de sua liberdade privada simetricamente quando um bom uso da
autonomia pública se torna possível na sociedade.
Assim, a possibilidade de aproximação entre os destinatários e os autores
do Direito não significa a possibilidade de arbítrio legislativo, pois a necessidade de
se
construir
uma
sociedade
em
que
as
liberdades
estejam
distribuídas
equilibradamente exige que o debate público seja pautado por uma racionalidade da
vontade, condição segundo a qual só serão aceitáveis as leis que são do interesse
simétrico de cada um. A percepção dessa racionalidade, no entanto, tem se perdido
nos projetos políticos modernos, o que intensifica os debates entre democracia e
Estado de Direito, colocando as perspectivas liberal e clássica em conflito 3.
(HABERMAS, 2003, p. 155-157)
Os diferentes enfoques criam certas diferenças importantes:
1. Quanto à cidadania. No modelo liberal, a cidadania se mede conforme
os direitos individuais conferidos ao sujeito em face do Estado e dos demais
concidadãos. É a garantia de sua esfera residual de autonomia privada. O mesmo
vale para os direitos políticos, entendidos como a possibilidade do cidadão
influenciar o Estado na defesa de seus interesses. Para o republicano, o status de
cidadão se mede pelos direitos positivos de participação e de comunicação política.
Há uma responsabilidade pela comunidade, pois só há liberdade individual quando
todos podem gozar dos mesmos espaços de liberdade. A legitimação do Estado não
se limita à defesa de interesses subjetivos, mas pela garantia de um processo
inclusivo de formação da opinião e da vontade.
2. Quanto à natureza do processo político. Para os liberais, a política é a
disputa por posições que permitam dispor do poder administrativo. Há o embate
estratégico entre grupos de interesse para maximização de seus poderes e de suas
influências. Os votos são a legitimação da população a um projeto de exercício do
poder. Na concepção republicana, não há essa coincidência entre os processos de
sucesso do mercado e o processo político. Este último se caracteriza pela
3
Esta tensão entre concepções aparentemente conflitantes também é explorada na obra A Inclusão
do Outro, na qual Habermas explicita as diferenças e proximidades destas teses para embasar
sua própria ideia acerca de democracia. (HABERMAS, 2004).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
176
Marcus Firmino Santiago e outros
construção de uma comunicação pública, na busca de um entendimento mútuo, cujo
“o paradigma não é o mercado, mas, sim, a interlocução.” Assim, o voto significa
mais do que autorização para o exercício do poder, mas uma concessão para o uso
do poder segundo certo entendimento, consenso, ou ideia previamente discutida e
avalizada.
De forma geral, o modelo republicano tem a vantagem de não reduzir o
processo político a uma negociação de poder e à alocação eficiente de interesses
privados. Por outro lado, é muito idealista e se baseia na virtude dos cidadãos para a
construção do bem comum. Há uma redução da política à ética. (HABERMAS, 2004,
p. 283-284)
Há interesses sociais que passam longe da tentativa de formação de um
consenso, interesses que devem ser compensados no processo político, sobre os
quais a exigência de padrões éticos de uma comunidade concreta pode não
funcionar. É necessário que haja uma legitimação racional mais abrangente para
esses acordos de interesses, uma legitimação que não passe necessariamente por
um autoentendimento de caráter ético, mas que seja capaz de equilibrar interesses
divergentes, por meio de um discurso de coerência jurídica e de fundamentação
moral. Habermas procura, portanto, mesclar os tipos políticos liberal e republicano
de Michelmann: “O terceiro modelo de democracia que me permito sugerir baseia-se
nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de
alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de
modo deliberativo.” (HABERMAS, 2004, p. 286) É a política como procedimento.
No caso do processo democrático de construção das vontades, vê-se como
essa perspectiva compõem as duas correntes divergentes quando nega o caráter de
arranjos de interesses baseados em direitos fundamentais, defendido pelos liberais,
mas também se distancia da concepção republicana de autoentendimento ético. A
terceira via proposta por Habermas igualmente foge da despolitização proposta
pelos liberais, para os quais a política se resolve na consolidação da Constituição,
que fixa as garantias individuais e as formas de participação política. A Constituição,
dessa forma, estabelece as condições de comunicação do procedimento
democrático.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
177
Justiça e democracia
A teoria do discurso, por sua vez, acaba por transformar o jogo político num
processo de racionalização das decisões governamentais e administrativas com o
Direito e a lei, em um processo que revela mais do que simples legitimação, sem cair
no problema constante da soberania popular. Não se trata de um sistema que
simplesmente repasse as políticas para o crivo posterior da opinião pública, mas que
permite, de algum modo, a inserção dos meios sociais nas criações das políticas e
em seu planejamento.
Habermas espera que os interesses individuais possam ser expostos e
discutidos em instâncias públicas, por intermédio de canais comunicativos
institucionalizados nas Constituições, de modo que opiniões consensuais possam
ser construídas como resultado do uso público da razão.
Entende que o recurso aos procedimentos funciona como um limite para
paixões e para egoísmos privados, de modo que a formação das vontades políticas
sociais não depende da interferência de homens virtuosos, ao contrário. Os freios
procedimentais, neste turno, devem ser suficientes para permitir que os seres
humanos, mesmo com sua propensão a desvios e aos abusos, consigam construir,
em espaços públicos e por meio da atuação discursiva, consensos: “A teoria do
discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um
conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização
dos procedimentos que lhe digam respeito.” (HABERMAS, 2004, p. 288)
As instâncias procedimentais referidas por Habermas podem residir tanto
nos Parlamentos e no processo eleitoral quanto fora. Há espaços outros nos quais a
formação das opiniões e o debate acerca delas podem acontecer e estes são
encontrados em instâncias estatais, como órgãos administrativos ou no processo
judicial, e extraestatais, como variadas arenas sociais. Assim: “A formação de
opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas
institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via
comunicativa
é
transformado
em
poder
administrativamente
aplicável.”
(HABERMAS, 2004, p. 289)
Sua teoria democrática dá suporte a concepções que identifiquem o Poder
Judiciário como uma potencial instância procedimental, por cujo intermédio seja
possível formar consensos sociais e levar reivindicações ao Estado. Para tanto,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
178
Marcus Firmino Santiago e outros
contudo, é preciso que este Poder se abra à participação social, aproximando-se de
seus destinatários e os reconhecendo como sujeitos ativos e relevantes na definição
de suas prioridades e no direcionamento conferido a suas decisões.
4
ANÁLISE DOS ELEMENTOS COMUNS ÀS TEORIAS DEMOCRÁTICAS
CONTEMPORÂNEAS E CONTRIBUIÇÕES PARA ABORDAGEM DO
PROBLEMA DE PESQUISA
Em síntese, dos elementos até aqui trazidos, tem-se em Gargarella uma
análise do modelo democrático representativo, visto pelo autor como promotor de
um natural distanciamento entre as massas e os processos de tomada de decisões
nas diversas instâncias estatais, inclusive no Judiciário. Esta crítica também está
presente em Habermas, que defende a abertura de espaços alternativos ao modelo
de intermediação representativa, a fim de permitir efetiva proximidade entre
governantes e governados, condição para qualquer regime que se pretenda de fato
aberto à participação social.
Bobbio amplia horizontalmente a análise crítica dos modelos democráticos,
comparando a realidade e o projeto em algum momento idealizado. Busca, assim,
identificar as mazelas das democracias do Século XX, abrindo espaço para delinear
um horizonte mais próximo da realidade. Exalta o sistema procedimental, composto
por regras pré-definidas, que autoriza a participação social no processo decisório e
respeita a liberdade de escolha dos indivíduos, elemento retomado por Habermas e
essencial à proposta deste último.
Já Habermas sistematiza sua análise a partir da comparação entre dois
modelos democráticos que identifica como liberal (com suas crenças nos sistemas
representativos) e republicano (que afirma a possibilidade de consensos sociais
serem formados sem interferências externas). Sustenta que os acordos discursivos
dependem do respeito à autonomia privada e, ao mesmo tempo, do controle sobre o
uso público da razão por meio de procedimentos previamente estabelecidos,
capazes de permitir o maior grau de participação, essencial à construção de
posições consensuais estáveis e publicamente defensáveis.
As diferentes análises trazidas têm um claro ponto comum: a preocupação
em ampliar os espaços de participação social no processo de tomada de decisões.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
179
Justiça e democracia
Todos os autores realçam o drama do distanciamento entre sociedade e instâncias
representativas como um mal típico das práticas democráticas e buscam construir
alternativas que permitam prescindir de instâncias intermediárias.
Esta abordagem se mostra bastante pertinente quando se tem em mira o
problema de início delineado: como estabelecer mecanismos que permitam um
controle democrático sobre decisões judiciais?
Certamente a resposta não deve passar pelo controle feito pelos Poderes
Executivo ou Legislativo. Em verdade, a se crer no acerto das críticas aqui
apresentadas, as opções devem ser buscadas na forma de uma aproximação entre
o Judiciário e a sociedade, por meio da derrubada de barreiras que distanciam o
primeiro de seus jurisdicionados e da construção de canais procedimentais que
permitam aos cidadãos se apropriarem deste Poder, com o que se assumiria
definitivamente a natureza e as consequências políticas de suas decisões.
Gargarella, em estudo atual no qual analisa diversas concepções acerca do
tema em questão, transcreve interessante observação de Larry Kramer (2010, p.
409) quanto ao modo de como deveria se dar a relação entre as Cortes Supremas e
a sociedade:
Los jueces de la Corte Suprema pasarían a verse en relación con la gente,
como hoy se ven los jueces inferiores en relación con la Suprema Corte:
como responsables en la tarea de interpretar la Constitución conforme a su
mejor juicio, pero al mismo tiempo conscientes de que existe allí fuera una
autoridad más alta, con el poder de imponerse sobre sus decisiones.
Nesse texto, Gargarella lista diferentes opiniões sobre a chamada
supremacia judicial e as abordagens que o tema suscita. De um lado, identifica o
constitucionalismo popular, movimento composto por autores que compartilham
severa desconfiança em relação ao papel de ascendência que o Judiciário vem
desempenhando frente aos demais poderes e à apreensão da Constituição pelas
Cortes Supremas. Estes vêm como principal desafio retirar a Constituição das mãos
destas Cortes, devolvendo-a a sociedade. Neste sentido é que o povo deve ter a
última palavra sobre o significado dos enunciados normativos que se transformam
em normas constitucionais, (GARGARELLA, 2010, p. 407-408) sempre existentes
após a interpretação diante das nuances do caso concreto.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
180
Marcus Firmino Santiago e outros
Menos radical é o movimento chamado progressista, que também desconfia
do judicial review, mas não chega a rejeitá-lo. Em verdade, deposita suas crenças na
capacidade da sociedade de interagir com as Cortes, em um modelo deliberativo
bastante próximo ao defendido por Habermas, por meio do qual seja possível
exercer a persuasão, a discussão e o diálogo racional. (GARGARELLA, 2010, p.
416)
Uns e outros compartilham, além da identificação do problema comum a
este estudo, a percepção de que o direito constitucional deve encontrar sua
legitimidade não pela boca dos juízes das Cortes Supremas, mas na cultura
constitucional de atores não judiciais. Como Gargarella (2010, p. 419) resume, os
vários elementos analisados acerca da relação do Judiciário com a Constituição e
com a sociedade reforçam a dificuldade em sustentar que as decisões
constitucionais mais importantes para a vida de uma comunidade “(...) no sean
decididas como debieran serlo, por ella misma y a la luz de sus más mediatas
convicciones.”
O Judiciário segue como um poder altamente refratário a uma aproximação
mais enfática com a sociedade, a uma abertura democrática que lhe escancare as
entranhas e coloque suas decisões à vista de todos, permitindo um efetivo debate
sobre as razões por traz delas e suas consequências sociais. Em uma realidade na
qual cresce o ativismo judicial, este tema assume importância fulcral para o
constitucionalismo e para a democracia, sendo imprescindível que também este
espaço se abra, de alguma forma, à participação e ao controle social.
5
O INTÉRPRETE, O ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE
DEMOCRÁTICO
Alcançar
uma
compreensão
do
texto
constitucional
adequada
às
expectativas dos atores sociais depende de se buscar, pela via do debate, construir
um consenso. Este, por seu turno, não deve ser percebido como um momento de
perfeita harmonia, produto da atividade de homens bons e justos que só querem o
bem de todos e aceitam de bom grado ceder até um denominador comum. Salientese que, a diferença será reconhecida e respeitada efetivamente se pensarmos, como
apontado por Derrida, na ideia de hospitalidade como pressuposto da alteridade,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
181
Justiça e democracia
(DERRIDA, 1996, p. 18)4 que permeia as relações e situações jurídicas, a
demonstrar que o trauma da diferença se torna um encontro ético, como nos legou
Levinas. (PEREIRA, 2011)
Agindo desta maneira, preserva-se o pluralismo, enquanto se busca garantir
um mínimo de harmonia e um máximo de realização dos direitos constitucionais.
Afinal, é ideia central da teoria discursiva da democracia aceitar que os direitos
fundamentais não se prestam a fazer com que as pessoas passem a ser boas e
justas, a se amar incondicionalmente. Em verdade, é tarefa da Constituição garantir
a capacidade de autodeterminação individual, assegurando a existência de uma
esfera privada dentro da qual as pessoas possam formar suas próprias convicções,
sempre abarcando a singularidade dos outros e sem se desconectar ou ignorar o
coletivo. E uma sociedade plural somente se pode construir assim, permitindo a
cada um ser livre na formação de seus projetos de vida.
Ao mesmo tempo – e aqui se encontra requisito basilar para a existência de
uma democracia constitucional – a Constituição busca delinear os liames que
separam as esferas privada e pública, garantindo que, nos espaços coletivos, os
comportamentos individuais se pautem pelo mais profundo respeito ao outro e a
hospitalidade com a diferença, postura que permite conciliar as liberdades públicas e
privadas e o constitucionalismo e democracia.
Destaca-se o sentido atribuído aos dois significantes democracia e
constitucionalismo neste trabalho, seguindo os sentidos apostos por Vera Karam de
Chueiri e por Miguel G. Godoy: “democracia significa o povo decidindo as questões
politicamente
relevantes
da
sua
comunidade,
inclusive
os
conteúdos
da
constituição;5 e o constitucionalismo significa, por sua vez, limites à soberania
popular”. (CHUEIRI, 2010, p. 159)
4
Veja: Bernardo, 2002, p. 421-446.
5
Robert Dahl, cientista político, considera democracia como um “sistema político que tenha, como
uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a
todos os seus cidadãos”. Além disso, a responsabilidade do governo deve dar vazão às
preferências dos cidadãos, politicamente iguais, que devem ter a oportunidade plena de formular
as suas preferências, de expressá-las a todos por ações individuais e coletivas e de tê-las
consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência, cujos
requisitos são: 1 – liberdade de formar e aderir a organizações; 2 – liberdade de expressão; 3 –
direito de voto; 4 – elegibilidade para cargos públicos; 5 – direito de lideres políticos disputarem
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
182
Marcus Firmino Santiago e outros
No instante em que conflitos são apresentados perante o Judiciário, colocase em marcha um processo dialógico por meio do qual indivíduos e grupos podem
formular suas reivindicações, encontrando uma série de procedimentos capazes de
regular o uso público da razão e frear os egoísmos privados. São limites tanto
formais – ínsitos à estrutura do processo judicial – quanto linguísticos – assentados
em fundamentos hermenêuticos – que restringem os riscos de uma posição
excludente vir a prevalecer, com o que se legitima tanto o próprio procedimento
quanto o resultado da atividade em seu seio desenvolvida.
O intérprete, definitivamente, não deve e não pode ignorar a realidade social
que o circunda, porque o texto só o é no contexto histórico-social no qual é
interpretado – perspectiva dialógica (pensamento racional produtor de objetos
culturais) que percebe o Direito como uma totalidade existencial perenemente
transformada pela valoração do fato e da norma (que só existe após a
interpretação)6.
Para grande parte da doutrina, a interpretação teleológica adapta o
enunciado normativo ao momento da sua interpretação, pois visa atender às
necessidades sociais e de justiça vigentes e incidentes no caso concreto, adaptando
a norma ao fim social (objetivos da sociedade, por exemplo, o art. 1º da CF/88) e ao
apoio; 6 – fontes alternativas de informação; 7 – eleições livres e idôneas; 8 – Instituições para
fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de
preferência. (DAHL, 2005, p. 25-27).
6
Veja: Streck, 2011. Coelho, 2009, p. 120-121 e 128-133. O autor aduz: “O direito não é
autopoiético, ele é instrumento da autopoiese. Não é um sistema, mas componente que permeia
todos os sistemas sociais, dando-lhes um certo grau de consistência e favorecendo sua
autopoiese. O direito, como sempre, está a serviço de grupos microssociais hegemônicos, e se
configura como instrumento de reprodução das relações intersubjetivas que devem prevalecer
sobre o conjunto da macrossociedade. (...) Por isso, é preferível falar em interdisciplinariedade
objetiva do ordenamento jurídico, enfatizando que ele está integrado nos demais microssistemas e
é com eles permanentemente articulado. (...) Como existem interesses conflitantes e interesses
prevalecentes em cada grupo, estes se esforçam para impor seu direito aos demais. Daí a
caracterização de uma ordem jurídica horizontal, onde as relações entre as normas não são
lógicas, de subordinação hierárquica, mas sociológicas, de coordenação e conflito. (...) A ordem
jurídica é circular, como horizontal é a sociedade, na convivência dos grupos que manipulam o
direito positivo para a manutenção de seus privilégios e reprodução de sua hegemonia. A
consciência dessa realidade pode conduzir a que o direito finalmente se transforme em
instrumento de libertação das pessoas e povos oprimidos. Mas isso é tarefa para as futuras
gerações”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
183
Justiça e democracia
bem comum7, considerados standards jurídicos “construções jurídicas apoiadas em
generalizações da moral social, que permitem, com mais segurança, a identificação
do sentido de “boa-fé, bons costumes, etc.” 8 Por isso, Maria Helena Diniz afirma que
o bem comum e o fim social são “sínteses éticas da vida em sociedade,
pressupondo uma unidade de objetivos na conduta social do homem”, sendo que o
intérprete sempre se baseará no sentido mais razoável da norma para o caso
concreto na época em que a interpreta. Bem comum e fim social também servem
para preencher lacunas ontológicas e axiológicas. A adaptabilidade do rigor
normativo às nuances sociovalorativas do caso concreto é chamada por Maria
Helena Diniz de equidade, que deverá sempre ser observada pelo juiz. (DINIZ, 2010,
p. 165-166, 182-194)9 As reflexões de Maria Helena Diniz devem ser temperadas,
pois ela não parte do problema para interpretar o Direito, mas do enunciado
normativo, mesmo defendendo uma postura concernente à equidade do magistrado,
o que pode gerar interpretações apriorísticas e insuficientes em cada caso.
Afasta-se, destarte, a dicção posta no art. 127 do Código de Processo Civil,
que determina ao juiz julgar por equidade somente nos casos determinados por lei,
já que a equidade deve ser aplicada em todos os casos analisados, porque ela nada
mais é do que direito justo do caso concreto10. Esse entendimento pode possibilitar
que representações sociais positivadas não incidam em um caso “decidendo” e
gerem uma decisão injusta.
O jurisprudencialismo ou o paradigma judiciativo-decisório de Castanheira
Neves tem como ponto de partida a historicidade radical do Direito como experiência
humana, sendo o Direito a expressão de uma decisão fundamental do humano que
decide viver pautado pelo reconhecimento do outro como pessoa, em sua autonomia
e responsabilidade, (COELHO, 2007, p. 185) sendo a pessoa uma categoria ética –
7
Francisco Amaral atribui sentido bem comum como o “conjunto de condições necessárias ao bem
particular dos membros da comunidade, e é também um valor social que se realiza com a
participação de todos na criação das condições necessárias à existência de paz e estabilidade,
prescindindo o desenvolvimento do direito em geral”. O princípio da solidariedade é o elo para a
consecução do valor bem comum. (AMARAL, 2008, p. 20-21). Percebe-se, por exemplo, o valor
bem comum no direito civil e no do consumidor com a conformação dos princípios individuais dos
contratos pelos princípios sociais.
8
Também chamada de moral de costumes. (MALTEZ, O direito e a moral, 2011)
9
Sobre o Direito como problema veja: MALTEZ, José Adelino. O direito como problema. Disponível
em: <http://maltez.info/>. Acesso em: 15 jan. 2011.
10
Veja sobre o assunto Amaral, 2004, p. 16-23.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
184
Marcus Firmino Santiago e outros
ante a coexistência com as outras – e não uma categoria antropológica ou
ontológica. (CASTANHEIRA NEVES, 2008, v. 3, p. 9-41)
Essa perspectiva do Direito não se ombreia no jusnaturalismo, porque é o
ser humano que decide a si mesmo na coexistência, dispondo sobre o seu próprio
sentido como humano. Também não compraz o positivismo, já que a validade do
Direito repousa na decisão do humano, com o Direito fundamentando-se como
problema num constante indagar sobre a validade. O Direito reafirma-se
continuamente com a autorrecuperação do humano ao coexistir com o outro. Cada
decisão jurídica em um caso concreto recupera a ideia do Direito a partir da
mediação pelo conteúdo da decisão deflagradora das formas de expressão do
Direito – do problema para o problema11 – sem circunscrever o Direito àquele
imposto pelo Estado. O Direito como princípio normativo da pessoa fundante da
juridicidade e refletido em cada problema concreto advindo da coexistência das
pessoas. No jurisprudencialismo, a igualdade ganha foros de existencialidade no
sentido de pessoa – base para a compreensão do Direito como Direito em si.
(COELHO, 2007, p. 185-188) Como salienta Juliano Zaiden, verifica-se a “alteridade
como condição do direito”, com a relação se estabelecendo entre sujeito e co-sujeito
como participantes do discurso, sendo a realidade concreta o espaço para a reflexão
social das pretensões de validade tensão entre facticidade e validade passando-se
da razão pura à razão situada e sensível. (ZAIDEN BENVINDO, 2010, p. 179; 192200)12.
Paulo Ferreira da Cunha defende, com base em Castanheira Neves, ser a
13
justiça
o princípio constitutivo do Direito numa dimensão entitativa (constituinte e
11
Em sentido parecido Perlingieri, 2008, p. 193 (nota 95) - A decisão recairá no decidir normativo
que inspira o caso concreto, a traduzir princípios e regras pertencentes ao complexo sistema no
<<ordenamento do caso concreto>>, “destinado a passar do particular ao particular, reduzindo
tudo à unidade dos valores jurídicos sobre os quais se funda a convivência social que se
substancia na justiça de cada caso”.
12
Nessa linha assevera Maltez, ao trabalhar o Direito como problema: “À maneira de Hegel, talvez
importe começar pelas coisas complexas, considerando que, no princípio, pode estar o fim, que o
princípio é o verbo que caminha em direcção ao fim, superando as circunstâncias para atingir a
ideia do todo. E talvez seja pela dialéctica que pode aceder-se ao todo. Uma dialéctica que, em
primeiro lugar, seja a capacidade do pensamento se reencontrar na alteridade; e que, em segundo
lugar, leve ao reconhecimento como uno, num plano superior, do que, num plano inferior, aparece
como antitético”. (MALTEZ, O direito como problema, 2011).
13
Sobre o tema sugere-se exemplificativamente: COELHO, 2004; CASTANHEIRA NEVES, 1995,
v.1, p. 241-286; LUDWIG, 2006; SEN, 2010; RICOEUR, 1997; CASTAN TOBEÑAS, 1966;
FORST, 2010; GARGARELLA, 2008; SANDEL, 2011.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
185
Justiça e democracia
existencial)
e
numa
dimensão
cogniscitiva
(de
relevância
epistêmica
e
metodológica), sendo a justiça um constante constituir-se e refazer-se, sem remontar
ao jusnaturalismo e ao positivismo jurídico (FERREIRA DA CUNHA, 2010). Maltez
(2011) afirma que o todo do problema do Direito é uma questão prática seja na
decisão de um juiz, seja na interpretação de um particular: questiona-se o que é
justo para cada caso. Certo é que o sentimento do justo e do injusto alicerçam
as ordens sociais14.
Lembra-se das palavras de Helmut Coing (1976): “o Direito, como ciência,
diz-nos o que é justo ou injusto; como técnica, ensina-nos o como; diz-nos como
alcançar o justo e como evitar o injusto; como obter para os indivíduos e para a
colectividade, a máxima ‘utilitas’ compatível com a existência humana”. Assim
deveria ser, embora saibamos que não tem ocorrido dessa forma.
A perspectiva axiológica do Direito entra em confronto com a perspectiva
finalista, que pretende substituir os valores pelos fins, podendo-se desfavorecer o
valor justiça em detrimento de determinados fins,15 como o econômico ou o político.
Isso porque a proteção jurídica coativa é exigência do justo – condição sine qua non
– da norma jurídica intenção regulativa voltada para a realidade. Esta relação de
querer fim dependente de um valor, sem ser a sua causa primeira, por ser o Direito
uma “ordem ao serviço de um valor supremo que é a justiça”.16 Destaca Michael
Sandel (2011, p. 28) que se sabe quando uma sociedade é justa no momento em
que se pesquisa como ela distribui rendas, riquezas, direitos, deveres, poderes,
oportunidades, cargos, honrarias, conferindo a cada um o que lhe é devido.
António Castanheira Neves (2010), com extrema razão, sugere significados
para a interpretação na contemporaneidade:
14
MALTEZ, José Adelino. O direito como problema. Frisa Maltez citando Larenz: “Larenz, a este
respeito, salienta que o Direito “positivo”, medido pelo ideal de uma justiça perfeita, nunca é
plenamente justo, é também, portanto, em parte, injusto; mas segundo o seu sentido está sob a
exigência da justiça e não pode negar esta exigência sem deixar de ser “direito”. Daí entender que
a ideia do Direito tenha uma função “constitutiva”, fundadora de sentido (é o sentido a priori geral
concreto, logo, cheio de conteúdo, de todo o Direito). MALTEZ, José Adelino. Ubi societas, ubi jus.
Disponível em: <http://maltez.info/>. Acesso em: 15 jan. 2011.
15
Veja MALTEZ, José Adelino. O direito
<http://maltez.info/>, Acesso em: 15 jan. 2011.
16
Idem, ibidem.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
como
realidade
cultural.
Disponível
em:
186
Marcus Firmino Santiago e outros
(...) não há um sentido prévio e determinante da interpretação, e sim os
sentidos que resultem da interpretação –, por outro lado, e decisivamente,
há que superar essa compreensão textual por uma compreensão normativa
– é essa a minha tese e posição – e a dizer, no fundo, que a interpretação
jurídica tem essencialmente um sentido problemático-judicativo concreto e,
nesses termos, os interpretativos sentidos jurídicos de quaisquer
fundamentos ou critérios jurídicos que se mobilizem judicativamente apenas
se obtêm no próprio juízo em que operem como fundamentos ou critérios
(como que numa circularidade de ponderação jurídico-normativa em função
do problema jurídico concreto judicando), assim como toda a interpretação
será, já por isso, normativamente constitutiva em concreto, tal como
normativamente constitutivo será sempre o concreto juízo jurídico. E daí ou
neste continuum normativamente judicativo não há delimitações ou
fronteiras formais entre “interpretação”,“aplicação” e “integração” – a
interpretação é sempre “aplicação”, com ser sempre concretamente
judicativa, e não menos sempre “integração”, mais ou menos ampla, com
ser sempre também normativamente constitutiva. (...) E então, se os textos
nunca se fecham a diversas interpretações possíveis, já a problemáticoconcreta decisão juridicamente judicativa deverá ser concludente
relativamente ao caso decidendo através de uma fundamentação judicativa
que a sustente. Tenho, pois, por errada a comum invocação de sempre
possíveis decisões alternativas, porquanto é isso apenas o correlato do
abandono, justo abandono, dos esquemas lógico-subsuntivos, a que todavia
não seguiu a exigível procura metodológica da fundamentação judicativa. E
através desta o caso admitirá só uma solução correcta. Pelo dever-se-á dar
razão a Dworkin quando defende a mesma conclusão, embora de um modo
já metodologicamente criticável, como julgo ter mostrado. (...) Devendo
ainda distinguir-se aqui dois momentos intencionalmente metodológicos: o
momento do ante decisório, em que as alternativas serão hipoteticamente
possíveis, e o momento do iter e da conclusio judicativos, em que a decisão
judicativa já não admitirá ser outra senão a normativamente fundada e
correcta - em que não haverá, pois, alternativa (cfr, Metodologia jurídica, 32,
ss., e passim) (...) É que o problema da interpretação jurídica não é o de
saber o que textual-significativamente consta e se comunica, p. ex., nos
textos das leis, em termos puramente exegéticos ou especificamente
hermenêuticos e tomados, portanto, esses textos como quaisquer outros
textos linguísticos, literários ou culturais em geral, mas o de saber de que
modo prático-normativamente se deve aceder e assimilar o sentido
normativo-jurídico, a normatividade jurídica, intencionada por esses textos
enquanto expressões de fundamentos e critérios jurídicos vigentes, e para
que possam ser fundamentos e critérios juridicamente adequados,
problemático-juridicamente adequados, de uma “justa” (i.é, com justeza
problemático-normativa) decisão dos problemas jurídicos concretos.
Parece adequada a tese de que a um caso concreto somente é possível
uma “solução correcta e justa ou mais elegante,17 embora se permitam várias visões
sobre o fenômeno”, a partir da efetivação metodológica da fundamentação
judicativa. Filia-se à ideia de jurisprudencialismo ou construção judicativo-decisória
proposta pelo jusfilósofo português Castanheira Neves. A metodologia por ele
17
Veja Aronne, 2006.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
187
Justiça e democracia
elaborada altera a fórmula norma, ordenamento e subsunção18 por um novel
esquema metodológico: caso, princípios e razão prática, a fim de que o intérprete
encontre a “solução correcta e justa” para cada caso decidendo. (CASTANHEIRA
NEVES, 2003, v. 1) Pensa-se que o referido esquema metodológico poderia ser:
caso – formas de expressão do Direito – razão prática, a fim de ampliar as
possibilidades para o intérprete encontrar a “norma” do caso concreto.
Maltez destaca a importância da fundamentação ou justificação:
Aliás, a fundamentação nos domínios do direito significa constituir face às
circunstâncias concretas, ser guiado por uma luz que nos vem dos
princípios a realizar. Só a fundamentação nos permite criar perante as
circunstâncias concretas e dar sentido a um objecto. Isto é, integrá-lo na
ordem de todos os outros objectos, referindo-os a um mesmo critério de
19
sentido, através de uma global compreensão.
O conflito jurídico é condição de possibilidade de uma decisão, que não o
elimina, mas o soluciona, o finaliza e impede que seja novamente rediscutido (coisa
julgada), (DINIZ, 2010, p. 163) salvo nos casos em que os pedidos da demanda
rescisória são julgados procedentes ou nas hipóteses em que a coisa julgada é
relativizada, delgada ou inconstitucional.
A sobredita metodologia de realização do Direito necessita ainda do amparo
de um modelo interpretativo capaz de estabelecer uma releitura de sentido das
formulações dogmáticas dos institutos jurídicos e inclusiva das hipóteses fáticas não
positivadas, alcançável por meio da utilização de uma linguagem filosófica que
implique o intérprete relativamente ao objeto analisado – relação sujeito inicialsujeito final. (MARRAFON, 2010) A formulação teórica de Robert Brandom (2005),
por ele intitulada inferencialismo, uma vez transportada para as ciências sociais
aplicadas, pode ser adequada ao contexto das ciências jurídicas, refazendo as
matrizes da discursividade racional que permeia a interpretação do Direito,
afastando-se definitivamente daquela de natureza lógico-dedutiva para se ocupar
18
A subsunção se expressa na seguinte fórmula: premissa maior – a norma – premissa menor – o
caso concreto – conclusão – decisão com base nas premissas. Veja Diniz, 2010, p. 163-164.
19
MALTEZ, José Adelino. O direito como ciência de princípios. Disponível em: <http://maltez.info/>.
Acesso em: 15 jan. 2011.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
188
Marcus Firmino Santiago e outros
com as repercussões de sua atuação no meio social, sem que se caia em realismos
jurídicos.
Dessa maneira, o intérprete tem como prius o problema e como ponto de
chegada (posterius) a solução do problema, que passará pela fundamentação
judicativa.
Pode-se entender que o modelo constitucional que norteia as premissas
metodológicas, jurídicas e filosóficas retrocitadas é o Estado Democrático de Direito,
consubstanciado na Lei Fundamental brasileira de 1988. A realização dessas
premissas requer um aparelhamento jurídico-dogmático que resulte na eficácia
direta, imediata e horizontal dos direitos fundamentais às relações jurídicas de
qualquer
espécie,
conforme
determinação
20
reaproximando o Direito dos valores éticos
constitucional
(art.
5º,
§
1º),
que o inspiram.
Para tanto, colhe-se a lição de Luiz Edson Fachin acerca das três dimensões
da constitucionalização do Direito “formal, material e prospectiva”, que, se
observadas, geraram melhores respostas à efetivação dos direitos fundamentais.
Elucida Fachin (2008, p. 9-15; 12-14):
É possível encetar pela dimensão formal, como se explica. A Constituição
Federal brasileira de 1988 ao ser apreendida tão só em tal horizonte se
reduz ao texto positivado, sem embargo do relevo, por certo, do qual se
reveste o discurso jurídico normativo positivado. É degrau primeiro,
elementar regramento proeminente, necessário, mas insuficiente.
Sobreleva ponderar, então, a estatura substancial que se encontra acima
das normas positivadas, bem assim dos princípios expressos que podem,
eventualmente, atuar como regras para além de serem mandados de
otimização. Complementa e suplementa o norte formal anteriormente
referido, indo adiante até a aptidão de inserir no sentido da
constitucionalização os princípios implícitos e aqueles decorrentes de
princípios ou regras constitucionais expressas. São esses dois primeiros
patamares, entre si conjugados, o âmbito compreensivo da percepção
intrassistemática do ordenamento.
Não obstante, o desafio é apreender extrassistematicamente o sentido de
possibilidade da constitucionalização como ação permanente, viabilizada
na força criativa dos fatos sociais que se projetam para o Direito, na
20
Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 107) define valores constitucionais: “Tais valores,
extraídos da cultura, isto é, da consciência social, do ideal ético, da noção de justiça presentes na
sociedade, são, portanto, os valores através dos quais aquela comunidade se organizou e se
organiza. É neste sentido que se deve entender o real e mais profundo significado, marcadamente
axiológico, da chamada constitucionalização do direito civil”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
189
Justiça e democracia
doutrina, na legislação e na jurisprudência, por meio da qual os significados
se constroem e refundam de modo incessante, sem juízos apriorísticos de
exclusão. Nessa toada, emerge o mais relevante desses horizontes que é a
dimensão prospectiva dessa travessia. O compromisso se firma com essa
constante travessia que capta os sentidos histórico-culturais dos códigos e
reescreve, por intermédio da ressignificação dessas balizas linguísticas, os
limites e as possibilidades emancipatórias do próprio Direito.
Nessa linha, a efetivação dos direitos fundamentais em cada situação
concreta pode estar explicitada na tensão democracia versus constitucionalismo,
porque, como aduz Vera Karam de Chueiri (2011, p. 7-12): “interpretar o Direito
(Constitucional) é compreender e interpretar a nós mesmos como comunidade”. Esta
afirmação de Vera Karam de Chueiri serve como elo do que foi dito até agora e o
que se está por dizer: como interpretar a nós mesmos como comunidade sem a
noção do outro (pessoa como categoria ética), sem a noção de justo em cada
interpretação diante de uma situação concreta, efetivando princípios e valores que
compartilhamos (razão sensível e paradigma judicativo decisório) e sem a ideia de
direito como problema?
Como visto, os pressupostos jusfilosóficos sobreditos servem de alicerce
para se estudar a tensão constitucionalismo e democracia, mormente quando se
discute a efetivação (ou não) de direitos fundamentais em um caso concreto,
devendo os princípios fundarem as decisões judiciais. Intimamente ligado ao
pensamento anterior, acerca do papel do intérprete no Direito, constata-se que o
neoconstitucionalismo21
assumiu
envergadura
dogmática
consolidada
no
ordenamento jurídico brasileiro.
A ideia e a mudança ocorrida no direito constitucional de valorização e de
empregabilidade de normatividade às Constituições e aos princípios, o afastamento
da aplicabilicabilidade restrita da lei, em nome da leitura moral do Direito, a
expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática
da interpretação constitucional consolidam a nova ótica do Direito.
21
Atualmente, larga parcela de constitucionalistas tratam a respeito do neoconstitucionalismo. Em
destaque cite-se, dentre outras, a obra “Neoconstitucionalismo” de coordenação de Regina
Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira, Rio de Janeiro,
Editora Forense, 2009.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
190
Marcus Firmino Santiago e outros
Como consequência, assenta-se a fundamentalidade da constitucionalização
do direito, a vinculação à Constituição por parte dos Poderes e particulares e a
concretude normativa dos enunciados normativos constitucionais.
Dessa forma, com a virada da concepção de que a Constituição não mais
poderia ser vista apenas como documento político e sim como diploma com força
normativa, na linha do pensamento de Konrad Hesse, o texto constitucional passou
axiologicamente e finalisticamente a tratar, dentre outros pontos, da organização do
Estado, da separação dos poderes, das competências atribuídas aos entes e as
tarefas previstas aos Poderes e principalmente dos direitos fundamentais.
Dentro de uma perspectiva de estabilidade democrática, de fortalecimento
do constitucionalismo e de “Constituição viva”, as relações jurídicas se consolidam
em meio aos fatos da sociedade e a necessidade de regulação dos fatos pelo
Direito.
O cidadão e a sociedade, de um modo geral, erigem uma nova esperança
de “justiça”, vislumbrada na expectativa de concretização do Direito ou até mesmo o
simples pronunciamento de solução pelas vias judiciárias, ante a descrença
generalizada da sociedade pelos seus representantes e o estado de latência
político-eleitoral.
Nesse
contexto,
salienta
Luís
Roberto
Barroso
(2005)
que
“a
constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade
brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma
intensa judicialização das relações políticas e sociais.”
A judicialização – e porque não o intitulado “ativismo judicial” – surgem na
sociedade como manifestações concretas do fortalecimento do Judiciário, bem como
da necessidade de intervenção estatal (no caso judicial) em questões22 que
normalmente não se tinha análise e solução como campo de atuação o processo
judicial.
22
Apenas a título de exemplo cite-se: os medicamentos e internações reivindicados, a união estável
entre homossexuais, as cotas nas universidades, a denominada “lei de ficha limpa”, o uso das
algemas etc.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
191
Justiça e democracia
Assim, e em certos casos em decorrência da omissão legislativa e da
administrativa, o Judiciário assume para si a árdua tarefa constitucional de proteger
a Constituição, de assegurar direitos e garantias e de preservar o Estado
Democrático de Direito. Para tanto, conforme visto, o intérprete assume papel central
na missão constitucional de elucidar a norma no caso concreto (judicativo-decisório).
Ocorre que, permeado pelos mais variados métodos de interpretação e
hermenêutica existentes no ordenamento jurídico e vinculado aos limites da
publicização e principalmente da fundamentação, o intérprete e sua sociedade
aberta de intérpretes da Constituição (HÄBERLE, 1997), no constitucionalismo
contemporâneo são convocados a democratizar o processo de interpretação.
O processo judicial (afastado da ideia privatísta) é alargado para a
participação de novos e outros atores, além da salutar postura do próprio Estado em
tornar públicas, acessíveis e compreensíveis as decisões judiciais e o dia a dia das
Cortes. A alargada, formal e tradicional distância entre o cidadão e o Judiciário é
reduzida pela sociedade contemporânea que privilegia a informação23.
Retorna-se,
entretanto,
à
célebre
tensão
entre
democracia
e
constitucionalismo, que, ao menos num primeiro momento pode refletir dicotomia,
mas que em verdade, tencionam-se para buscar a estabilidade do Estado
Democrático de Direito.
Dessa forma, o que se tem em cheque é uma nova perspectiva do
constitucionalismo
(neoconstitucionalismo),
fulcrada
na
força
normativa
da
Constituição, na interpretação e na democracia. Na aparente tensão é que devem
ser assentadas as premissas de eticidade do intérprete e do controle e participação
como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade democrática das
decisões.
Nas palavras de Rodolfo Viana Pereira (2008, p. 281), “os vetores
normativos que amarram esse esquema compreensivo são, por um lado, a ideia de
23
Os meios de comunicação (TV Justiça, Twiter, Rádio Justiça e Facebook) representam
importantes iniciativas de acesso e divulgação dos atos judiciais. No âmbito legislativo merece
referência a salutar Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011 que regula o acesso a informações
previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da
Constituição Federal; altera a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei 11.111, de 5 de
maio de 2005, e dispositivos da Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
192
Marcus Firmino Santiago e outros
constitucionalismo moralmente reflexivo e, por outro, a noção de democracia
enquanto sistema complexo.” Não por outro motivo, portanto, é que se entende que
o controle democrático das decisões judiciais finca balizas em três pontos
fundamentais, além dos já tratados (v.g. fundamentação e publicização), quais
sejam: respeito e vinculatividade às instâncias democráticas, controle e participação.
O respeito e a vinculatividade às instâncias democráticas são essenciais
para a estabilidade das instituições e principalmente para a manutenção
proporcional e equilibrada da raiz democrática, como fonte principal de preservação
e de interligação entre os cidadãos e o poder.
Nesse contexto, e conectando o neoconstitucionalismo com o controle
democrático, Daniel Sarmento (2009) afirma que: “Se for visto como uma concepção
que, sem desprezar o papel protagonista das instâncias democráticas na definição
do Direito, reconheça e valorize a irradiação dos valores constitucionais pelo
ordenamento, bem como a atuação firme e construtiva do Judiciário para proteção e
promoção dos direitos fundamentais e dos pressupostos da democracia.”
Por certo o que se busca é o equilíbrio entre a instância democrática e a
necessidade de proteção (e acionamento) do Judiciário, em defesa da ordem
jurídica. Na linha do que restou assentado, o foco do objetivo é a preocupação em
ampliar os espaços de participação social no processo de tomada de decisões.
Repita-se: todos os autores tratados anteriormente realçam o drama do
distanciamento entre sociedade e instâncias representativas como um mal típico das
práticas democráticas e buscam construir alternativas que permitam prescindir de
instâncias intermediárias.
O momento é de resgate e fortalecimento da soberania do povo. Do povo
ativo e protagonista das esferas legislativa, executiva e judicial. Não por outro motivo
é que se entende que o controle judicial passa também e principalmente pela
mudança na concepção da própria democracia, cujo dever de fundamentação das
decisões deve ser real e seguido à risca por todos aqueles que postulam direitos e
deveres e decidem sobre tais fatos jurídicos, como determina o art. 93, IX da
Constituição Federal brasileira.
É fato que a democracia representativa não mais se sustenta, ao menos
isoladamente. Exige-se a democracia participativa como forma legitimadora e
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
193
Justiça e democracia
renovadora de efetivação concreta da vontade do povo, ainda que sejam em esferas
tradicionalmente conservadoras ou “blindadas” pelo controle democrático.
Assim, indica Paulo Bonavides (2008, p. 288-289) que “... busca-se fundar
uma nova legitimidade, que só é possível com a repolitização do seu conceito, de
todo exequível, se inserirmos a democracia participativa na moldura do regime, de
maneira concreta mais ampla, porquanto ao Direito Constitucional ela já pertença.”
A reinvenção proposta atinge a democratização participativa e a participação
no controle, ou seja, o indivíduo e a coletividade como protagonistas da efetivação
de suas vontades, ao mesmo passo que é sujeito do controle, no caso, judicial.
Com isso, certamente, novos canais de comunicação e de interação entre o
poder e o povo estarão fortalecidos e abertos, de modo a tornar as vias possíveis de
participação (e controle) mais legítimas, concretas e eficazes.
Por fim, saliente-se que o controle democrático das decisões judiciais
perpassa obrigatoriamente pela oxigenação ideológica dos bancos acadêmicos, pela
reformulação do dia a dia forense, pela mutação do formato dos concursos para
ingresso nas carreiras jurídicas, pelo aprimoramento e pela fixação da eficiência nos
modelos existentes de freios e contrapesos no que concerne às relações de
ingresso dos magistrados e principalmente pela constante e pluralista participação
social no debate intra e extra processual.
CONCLUSÃO
A pesquisa amparou-se em uma teoria crítica da realidade que compreende
o Direito a partir da complexidade, da linguagem e dos sentidos dos institutos
jurídicos, verticalizados sem olvidar da repercussão prática que qualquer reflexão
jurídica deve proceder, demonstrando a necessária tensão entre democracia e
constitucionalismo. Indicou-se, também, a importância do intérprete e da
interpretação para a construção da decisão justa e correta para cada caso concreto,
sem que com isso falemos em usurpação de poder por parte de quem decide ou em
déficit de legitimação democrática.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
194
Marcus Firmino Santiago e outros
Desse
modo,
a
resposta
erigida
à
indagação
Como
realizar
democraticamente o controle das decisões judiciais? apontou para os seguintes
caminhos:
a) necessidade de os sentidos contemporâneos de democracia –
especialmente no que tange à aproximação entre Estado e sociedade – permearem
a atividade judiciária e judicante, com uma maior participação dos cidadãos da vida
pública, desde que as instituições mudem suas práticas, facilitem e promovam tais
participações, a fim de que se evitem abusos políticos e jurídicos;
b) é correta a identificação do Poder Judiciário, mas não só ele, como
potencial instância procedimental, no qual devem ser formados consensos sociais,
como um dos locais em que se reivindicam do Estado direitos e deveres dos
cidadãos. Para tanto a aproximação do Poder Judiciário com a sociedade é
imprescindível, com tal poder assumindo as consequências políticas, sociais e
econômicas das suas decisões;
c) o Direito deve recuperar a sua autenticidade e autonomia, deixando de ser
um discurso justificador do político e do econômico, como ocorreu, por exemplo, ao
longo do século XX e início do século XXI;
d) a compreensão do texto constitucional a partir do contexto em que ele é
interpretado, sem que haja colonizações de quem é maioria ou minoria, porque o
reconhecimento e o respeito às diferenças emana o sentido de hospitalidade, na
qual se percebe a alteridade e a pessoa como categoria ética;
e) imprescindibilidade de teoria e práticas jurídicas efetivarem as promessas
constitucionais sempre em diálogo com, no mínimo, significativa parcela da
sociedade, com o objetivo de que se diminuam as frustrações decorrentes de
decisões que parecem pouco se importar com os anseios sociais, sem que com isso
existam inclusões exclusivas, nas quais o coletivo se torna mais individual do que o
próprio individual;
f) os direitos fundamentais sejam efetivados diretamente em qualquer
relação jurídica, tomando o problema jurídico como prius e como posterius da
atividade interpretativa, sendo o intérprete a única fonte do Direito, pois por meio
dele é que se encontra, e não se escolhe, a norma do caso concreto, a partir da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
195
Justiça e democracia
densificação das formas de expressão do Direito em cada caso decidendo, já que o
intérprete se implica com o objeto analisado;
g) a justiça é o valor e o princípio constitutivo do Direito numa dimensão
entitativa (constituinte e existencial) e numa dimensão cognoscitiva (de relevância
epistêmica e metodológica), sendo a justiça um constante constituir-se e refazer-se,
devendo cada decisão fundamentar e justificar a motivação da resposta justa e
correta para cada caso analisado, aparecendo aí a efetivação do dever
constitucional de fundamentação dos direitos e dos deveres requeridos pelas partes
e das decisões que os reconhecem (ou não), de acordo com o art. 93, IX da CF/88;
Diante disso, há a legitimidade e o controle democráticos de cada decisão
judicial, mormente dos Tribunais Superiores, sem que falemos em decisionismos.
Concomitante a tudo isso, se torna imprescindível, uma melhor formação jurídica dos
intérpretes conferidas pelas instituições de ensino no país, para que abandonemos,
realmente, o Direito à la carte e possamos diuturnamente construir, desconstruir e
reconstruir um Direito de índole constitucional crítica, emancipatória, e prospectiva
que aponta para o devir, para o porvir e para o por vir jurídico-social.
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
199
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
O PODER NORMATIVO E REGULADOR
DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
FEDERAIS: ABRANGÊNCIA E LIMITES
NORMATIVE AND REGULATORY POWERS OF FEDERAL REGULATORY AGENCIES: SCOPE
AND LIMITATIONS
Elton Dias Xavier1
Elizangela Santos de Almeida2
Resumo
O presente trabalho tem por objeto investigar a abrangência e os limites do poder
normativo e regulador das agências reguladoras federais brasileiras. Essas
entidades, inspiradas nos órgãos reguladores norte-americanos, também chamados
de agências, surgiram no direito brasileiro a partir da década de 90 no âmbito do
programa nacional de desestatização, também conhecido como privatização. A elas
foi conferido o poder de editar normas reguladoras das atividades postas sob sua
área de abrangência. No entanto, tendo em vista que nosso sistema jurídico é
diferente do sistema norte-americano, tais poderes não têm a mesma dimensão
daqueles concedidos às agências norte-americanas. Algumas teorias surgiram,
então, para justificar o fundamento do poder normativo das agências reguladoras
brasileiras. A teoria da deslegalização, que prega a delegação limitada de poderes
legislativos às agências deve ser afastado porque no sistema constitucional
brasileiro não há essa espécie de delegação. Igualmente, fica afastada a tese que
iguala o poder normativo das agências reguladoras ao poder regulamentar do
Chefe do Poder Executivo, isso porque a Constituição Federal atribuiu apenas a
este, com exclusividade, o poder de baixar regulamentos para a fiel execução das
leis. A teoria que mais se adéqua ao nosso ordenamento é aquela que defende que
o poder normativo e regulador das agências limita-se a questões técnicas e
específicas relativas às atividades postas sob seu âmbito de atuação, e mesmo
assim, nos exatos limites da lei. Trata-se muito mais de um “poder regulador”, visto
sob o aspecto econômico, que “regulamentar”, do ponto de vista político-jurídico.
Qualquer produção normativa além desses parâmetros será fulminada de
inconstitucionalidade. Com relação ao método de abordagem, será utilizado o
método indutivo para que, a partir da análise das posições doutrinárias,
jurisprudenciais e diplomas legais seja possível formar posição, principalmente do
prisma constitucional, sobre o tema proposto.
1
2
Professor na Universidade Estadual de Montes Claros - MG. Doutor em Direito pela UFMG.
Doutorando em Ciências Sociais pela UERJ. Advogado.
Mestranda em Educação pela Universidade de Uberaba - UNIUBE; Especialista em Direito
Administrativo pela Universidade Cândido Mendes - UCAM; Pós-Graduanda em Ensino de
Filosofia, bem como Coordenação Pedagógica e Planejamento, Direito Ambiental pela
Universidade Cândido Mendes – UCAM; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de
Montes Claros – UNIMONTES.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
200
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
Palavras-chaves: Agências reguladoras. Regulamento. Poder legislativo. Poder
executivo. Ato normativo. Norte-americanas. Desestatização. fundamento.
Abstract
This study aims to investigate the scope and limits of legislative and regulation
powers of federal regulatory agencies in Brazil. These entities, inspired by U.S.
regulators, also called agencies, have emerged in Brazilian law from the 90's under
the National Privatization Program, also known as privatization. To them powers
were given to dictate standards of regulatory activities put in their service area.
However, given that our legal system is different from the American system, such
powers are the same size as those granted to U.S. agency. Some theories have
arisen, thus, to justify the foundation of the normative power of the Brazilian
regulatory agencies. Deslegalização theory, which advocates limited delegation of
legislative powers to agencies should be removed because the brazilian
constitutional system there is this kind of delegation. Also, the thesis that is removed
equals the regulatory powers of regulatory agencies to the regulatory power of the
Chief Executive, that because the Constitution only to the assigned, exclusively, the
power to lower regulations for the faithful execution of laws. The theory that best fits
our land is one that argues that the legislative powers and regulatory agencies is
limited to specific and technical issues relating to the activities brought under its
scope of action, and even then, the exact limits of the law. It is much more of a
"regulatory power", because under the economic aspect, which "regulate", from the
standpoint of political and legal. Any production rules beyond these parameters will
be struck down as unconstitutional. With regard to the method of approach, the
inductive method will be used to that from the analysis of the doctrinal positions,
statutes and case law can be formed position, especially the constitutional
perspective on the theme.
Keywords: Regulatory agencies. Regulation. Legislative. Executive. Legislative act.
U.S. Privatization. Foundation.
Sumário: Introdução. 1. As agências reguladoras no direito norte-americano: matriz do
modelo brasileiro. 1.1. O surgimento e evolução das Agências Reguladoras
norte-americanas. 1.2. Os poderes conferidos às Agências norte-americanas: as
agências reguladoras e agências não reguladoras. 1.3. As formas de controle
exercidas sobre as agências reguladoras norte-americanas.
2. O
desenvolvimento das agências reguladoras federais brasileiras. 2.1. O
surgimento das agências reguladoras. 2.2. A natureza jurídica das agências
reguladoras. 2.3. O controle externo das atividades das agências reguladoras. 3.
O poder normativo e regulador das agências reguladoras federais brasileiras:
abrangência e limites. 3.1. As atribuições das agências reguladoras federais
brasileiras. 3.2. Fundamento do poder normativo das agências reguladoras.
3.2.1. A tese da deslegalização. 3.2.2. Poder regulamentar das agências face à
exclusividade conferida ao Chefe do Poder Executivo pelo art. 84, IV da
Constituição Federal. 3.2.3. O poder normativo das agências reguladoras como
poder para expedição de atos regulatórios técnicos. Considerações finais.
Referências.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
201
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da economia e a mudança de paradigma da atuação
estatal frente ao mercado impuseram uma revolução na forma do Estado lidar com a
economia. Crises econômicas recorrentes e a incapacidade do Estado figurar como
principal ator no cenário econômico fizeram com que novos modelos de
desenvolvimento e de intervenção do Estado na economia fossem repensados. A
figura do Estado-empresário foi relegada a segundo plano e aos particulares foi
atribuída a função de atuar no mercado, ficando reservada ao Estado a posição tão
somente de agente normativo e regulador da atividade econômica. Nesse embalo,
serviços públicos essenciais também foram transferidos à iniciativa privada, dada a
reconhecida ineficiência do Estado na prestação dos mesmos. Por meio do
Programa Nacional de Desestatização, inaugurado pela Lei 8.031/90, setores
estratégicos foram transferidos aos particulares por meio das concessões. Serviços
como de telefonia, eletricidade, exploração do petróleo, dentre outros, agora não
constituem mais monopólio estatal.
A concorrência, própria da iniciativa privada, que deve conduzir à busca
permanente pela melhoria dos serviços prestados, foi determinante para a mudança
de postura e estratégias do Estado em relação aos serviços públicos até então
conservados sob sua exclusiva atuação. Contudo, o Estado não abriu mão do seu
poder fiscalizador e regulamentar. Previu-se, por isso, a criação das Agências
Reguladoras, inspiradas no direito norte-americano, cuja função precípua é editar
atos de caráter geral, abstratos e impessoais em relação aos setores da economia
postos sob seu controle. O Estado, por meio das agências reguladoras, passou a ter
a faculdade de influenciar diretamente, e sem a necessidade de lei em sentido
estrito, na liberdade econômica, na esfera de atuação dos particulares, na imposição
de normas de conduta e sanções pelo descumprimento de tais normas.
Tal atuação instrumentaliza-se pelos decretos regulamentares editados
pelas agências reguladoras; daí a necessidade de delimitação do alcance,
abrangência e a própria constitucionalidade e legalidade de tais decretos, visto que
em nosso sistema, atos legislativos secundários não podem inovar no ordenamento
jurídico. E como toda regulamentação implica, necessariamente, intervenção na
esfera de direitos do particular, torna-se ainda mais patente a necessidade de se
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
202
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
classificar, adequadamente, em nosso ordenamento jurídico, a configuração e
natureza de tais atos. Longe de serem atos estritamente administrativos, os
regulamentos impostos por tais agências, não raro, trazem em si forte carga de
normatividade, cuja observância é obrigatória ao concessionário do serviço público,
sob pena de responsabilização, cujas sanções também são previstas pelas próprias
agências reguladoras.
Para alguns haveria, no caso, uma crise de legalidade, tendo em vista que
somente a lei poderia impor sanções ou ditar normas de conduta aos particulares;
para outros, adeptos da chamada teoria da delegiferação ou deslegalização, nada
obsta que a lei atribua a esses entes determinadas funções para edital atos
normativos, mesmo que o exercício dessa função implique inovação no
ordenamento jurídico, nesse caso estariam amparadas pela lei que lhe traçou tal
âmbito de atuação, seria, mutatis mutandis, uma espécie de delegação do próprio
Poder Legislativo, razão pela qual não há que se falar em ilegalidade ou
inconstitucionalidade. Há, ainda, aqueles que fazem a distinção entre função
regulamentar e função regulatória, esta conferida, por lei, às agências reguladoras,
aquela, ao chefe do Poder Executivo pela própria Constituição Federal.
A questão nodal que se coloca, portanto, frente a esse panorama é a
delimitação da função normativa ou regulatória das agências reguladoras em face
dos postulados constitucionais da tripartição de poderes e do princípio da legalidade,
que no nosso sistema têm como parâmetros fundamentais os arts. 5º, inc. II, e 84,
inc. IV, da Constituição Federal, segundo os quais, respectivamente, somente a lei
pode obrigar condutas e impor sanções e que é do Presidente da República a
competência para expedir regulamentos, com a estrita finalidade de permitir "o fiel
cumprimento da lei".
O presente trabalho, então, busca estudar o fenômeno da criação das
agências reguladoras e a atribuição regulatória que lhes foi dada, razão da própria
existência das mesmas. A carga de normatividade, o alcance, autonomia, o poder de
sanção das agências reguladoras, bem como, a legalidade e constitucionalidade de
tais regulamentos. A atuação regulatória das agências, face às liberdades e direitos
fundamentais dos usuários e das empresas, as restrições regulatórias, serão
investigadas e confrontadas com as várias teorias e posições doutrinárias e
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
203
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
jurisprudenciais. Ao final, procurar-se-á firmar posição conclusiva acerca do poder
normativo e regulador das agências reguladoras federais.
1
AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO DIREITO NORTE-AMERICANO:
MATRIZ DO MODELO BRASILEIRO
1.1
O surgimento e evolução das Agências Reguladoras norte-americanas
As agências reguladoras norte-americanas, seu modelo e organização,
serviram de parâmetro aos nossos legisladores para a criação das agências
brasileiras. Não é exagero, e a doutrina nacional tem ensinado dessa forma, que
houve uma verdadeira importação do arcabouço das agências americanas para o
nosso ordenamento jurídico. Pode-se, assim, dizer que a matriz do nosso modelo de
agência foi trazida do sistema da common Law3.
As agências reguladoras no direito norte-americano existem desde a origem
daquele Estado. Se no Brasil esses órgãos apareceram a partir do início da década
de 90, com o movimento denominado programa nacional de desestatização, nos
Estados Unidos da América, falar de agências reguladoras é falar da própria
evolução do direito administrativo; existe muito pouco desse ramo do direito fora das
leis organizadoras das agências. A cultura administrativista americana desenvolveuse ao redor dos órgãos reguladores, principalmente devido à grande dificuldade
herdada do sistema anglo-saxão de reconhecimento de autonomia do direito
administrativo4. A organização administrativa era estudada no âmbito da ciência
3
Contudo, não se pode esquecer da advertência feita por Rafael Carvalho Rezende Oliveira de que
“não se pode olvidar da importância, também da influência europeia, especialmente de matriz
francesa, na feição das agências reguladoras brasileiras. A denominação de agências na França
(autorotés administratives independentes), por exemplo, foi consagrada no art. 9º da Lei nº
9.472/97 ao dispor que a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL – atuará como
autoridade administrativa independente. (In: O modelo norte-americano de agências reguladoras e
sua recepção pelo direito brasileiro. Revista Eletrônica sobre reforma de Estado. Nº 22 –
junho/julho/agosto 2010. Salvador. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE22-JUNHO-2010-RAFAEL-OLIVEIRA.pdf> Acesso em: 24 ago. 2011.
4
Segundo esclarece Caio Tácito, citado por Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “sabidamente, foi
tardia a acolhida, no direito anglo-saxão, da autonomia do Direito Administrativo. Identificando a
disciplina com o regime francês de dupla jurisdição – que interditava aos tribunais comuns o
controle da administração – os autores ingleses, com Dicey à frente, repudiavam o droit
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
204
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
política, sendo considerada estranha ao direito (RIVERO, 1995, p. 39). Por outro
lado, o Estado norte-americano pouco tem de empresário, a exploração de
atividades econômicas diretamente pelo Estado não faz parte da história marcante
americana; nem sequer os serviços públicos, tal qual conhecemos em nosso
ordenamento, tinham sua titularidade atribuída ao Estado, ao contrário, desde o
início encontravam-se nas mãos dos particulares, assim, pela própria lógica do
sistema, não há o instituto da concessão desses serviços. Nesse quadro, as
agências reguladoras surgiram, naturalmente, a partir da necessidade de regulação
de atividades indispensáveis à coletividade e que se encontravam sendo exploradas
por particulares. Ao comparar o fenômeno do surgimento das agências norteamericanas e brasileiras Conrado Hubner Mendes explica que
Nos Estados Unidos, ao contrário, as atividades econômicas sempre
permaneceram em mãos de particulares. O que ocorreu, gradativamente, foi
a necessidade de regulação de atividades que se mostraram de especial
interesse da coletividade, os chamados business affected with a public
interest (negócio afetado pelo interesse público). Aos poucos, então, cada
atividade foi adquirindo um regime próprio de regulação. Como o Direito
Americano é casuístico, e não codificado, agências foram sendo criadas
segundo as contingências econômicas e sociais. (MENDES, 2000, p. 119120)
A evolução das agências reguladoras modernas nos Estados Unidos,
segundo a doutrina, passou por vários estágios até alcançar o modelo atual de
organização (MENDES, 2000, p. 125). Destacam-se quatro momentos distintos. Em
um primeiro momento, avulta-se a fase inicial da organização do próprio Estado
norte-americano. Em 1887, pouco mais de uma década após a declaração de
independência, fortes disputas formaram-se, patrocinadas pelas empresas de
transporte ferroviário, que se valendo das elevadas tarifas, fixadas livremente,
almejavam
maximizar
seus
lucros.
A
elas
se
opunham
os
fazendeiros,
principalmente do lado oeste, que pressionavam para que não só as tarefas
ferroviárias, como também o preço da armazenagem dos cereais, fossem regulados
pelo legislativo através das assembleias estaduais. Nesse ano foi criada a ICC –
administratif (expressão que até mesmo se escusavam a traduzir) por incompatível com princípio
da supremacia do Judiciário, que era um dos pilares da rule of Law, em que repousava, na
common Law, o sentido da Constituição e do Estado de Direito.” (In: Temas de Direito Público, 1º
volume, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 15)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
205
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
Interstate Commerce Comission, com a finalidade de ditar regulação a tais disputas
econômicas. Tendo em vista o sucesso da experiência, pouco tempo depois criou-se
uma nova agência, a FTC – Federal Trade Comission. Igualmente à sua
antecessora, também tinha o objetivo de cuidar da regulação de atividades de
empresas e corporações que ameaçavam a competitividade e favoreciam a
formação de monopólios. Para possibilitar o desempenho de suas atividades, foramlhe atribuídos por lei, poderes que a doutrina convencionou chamar de “quase
legislativos”, “quase judiciais” e atribuições normalmente afetas ao poder executivo.
Dessa forma, houve uma fusão das competências dos três poderes do Estado em
um único órgão, fazendo nascer uma entidade sui generis. Porém, Alexandre Santos
de Aragão ensina que essas funções nada mais representam que a função
administrativa propriamente dita
A concepção originária dos E.U.A. e o sistema do Common Law
praticamente desconheciam a função administrativa, daí a já mencionada
utilização da nomenclatura de função “quase-judicial” e “quase-legislativa”
das agências reguladoras, para que, em realidade não eram nada mais do
que, respectivamente, a função processual e regulamentar da
Administração Pública. Com a atual posição da Suprema Corte, que impede
uma série de ingerências do Poder Legislativo sobre as agências que
exercem funções administrativas, ficou claro que as outrora chamadas
funções “quase-judiciais” e “quase-legislativas” das agências reguladoras
são espécies da função administrativa lato sensu [...] (ARAGÃO, 2005, p.
232)
Entre os anos de 1930 e 1945, período em que o mundo sofria com a
segunda guerra mundial, os Estados Unidos, internamente, viviam a experiência do
New Deal, plano econômico lançado pelo presidente Roosevelt, cuja característica
marcante foi uma exarcebada intervenção na economia, até então sem precedentes,
dado o perfil do Estado, marcado pelo liberalismo econômico. A consequência foi a
irradiação e multiplicação das agências, que rapidamente ganhavam maior
autonomia. Tratou-se de período histórico que representou um divisor de águas em
relação à criação de elevado número de agências reguladoras.
O crescente poder atribuído às agências provocou uma série de debates,
principalmente de natureza constitucional, acerca da legitimidade das decisões por
elas proferidas5. Foi, então, editada a principal lei relativa a procedimentos
5
Segundo esclarece Richard Pierce Jr., “as agências federais decidem mais controvérsias que as
cortes federais e criam mais regras de condutas obrigatórias que o Congresso".
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
206
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
administrativos, cujo objetivo principal foi dar maior uniformidade e transparência ao
processo regulatório. A APA (Administrative Procedural Act) fundava-se em
princípios básicos e padrões mínimos para a produção e execução de normas;
houve, inclusive, a conceituação legal do que poderia ser considerada agência
reguladora. O § 557 (1) estabeleceu que
(1) Agency means each authority of the Government of the United States,
whether or not it is within or subject to review by another agency, but does
not include
(A) the Congress;
(B) the courts of the United States;
(C) the government of the territories or possessions of the United States;
(D) the government of District of Columbia; or except as to the requeriments
of section 552 of this title;
(E) agencies composed of representatives of the parties or of the
representatives of organizations of the parties to the disputes determined by
them;
(F) courts martial and military commissions;
(G) military authority exercised in the field in time of war or is occupied
territory; or
(H) functions conferred by sections 1738, 1739, 1743 and 1744 of title 12;
chapter 2 of the title 41; or sections 1622, 1884, 1891-1902, and former
section 1641 (b) (2) of the title 50, appendix
A conceituação legal não foi muito feliz, há uma definição, apenas por
exclusão, ao afirmar que agência é cada autoridade dos Estados Unidos, com
exceção das enumeradas nas letras “A” a “H” do citado § 557 da Administrative
Procedural Act, ou seja, não se classificam como agências reguladoras o
Congresso, Tribunais, Governo de territórios ou possessões norte-americanas,
Governo do Distrito de Columbia, agências compostas de representantes das partes
ou de representantes de organizações das partes, tribunais marciais e comissões
militares, autoridade militar exercida no campo em tempo de guerra ou de território
ocupado, e outras funções especificadas no apêndice da lei procedimental. Como
visto, trata-se de conceito impreciso, presta-se tão somente a afastar, taxativamente,
alguns órgãos do conceito de agência; assim, a definição exata do que seja ou não
uma agência reguladora dependerá da lei criadora da mesma, que também
estabelecerá a extensão dos poderes regulatórios a ela conferidos.
Entre os anos de 1965-1985, terceiro grande momento do desenvolvimento
das agências reguladoras, desenvolveu-se nos Estado Unidos a denominada teoria
da captura, que procura explicar o fenômeno do desvirtuamento das finalidades das
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
207
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
agências reguladoras. Os agentes econômicos que deveriam ser regulados
passaram a influenciar as atividades das agências de forma a predeterminar o
conteúdo da atividade regulatória a eles direcionada, fato que fez enfraquecer, e por
vezes, até tornar sem sentido a existência de determinadas agências. Aliás, essa é,
ainda hoje, uma das preocupações da doutrina em relação ao poder regulatório das
agências. José dos Santos Carvalho Filho é um dos teóricos brasileiros que explica
o seguinte
a relação jurídica entre a agência reguladora e as entidades privadas sob
seu controle tem gerado estudos e decisões quanto à necessidade de
afastar indevidas influências destas últimas sobre a atuação da primeira, de
modo a beneficiar-se as empresas em desfavor dos usuários do serviço. É o
que a moderna doutrina denomina de teoria da captura ("capture theory", na
doutrina americana), pela qual se busca impedir uma vinculação promíscua
entre a agência, de um lado, e o governo instituidor ou os entes regulados,
de outro, com flagrante comprometimento da independência da pessoa
controladora. (CARVALHO FILHO, 2009, p. 467)
A partir da década de 80, última etapa na evolução das agências, e que se
intensifica até os dias atuais, a atividade das agências reguladoras passou a ser
marcada por um maior controle externo, no entanto, sem perder a autonomia que
lhes é característica, justamente como uma reação do Estado à captura de suas
atribuições que marcou a fase anterior. Ao mesmo tempo em que se aperfeiçoou um
complexo sistema de controle das atividades das agências, exercido por parte dos
três Poderes, elas se consolidaram cada vez mais como importante instrumento de
regulação da atividade econômica.
1.2
Os poderes conferidos às Agências norte-americanas: as agências
reguladoras e agências não reguladoras
Com base nos poderes concedidos às agências a doutrina as classifica em
regulatórias (regulatory agencies) e não regulatórias (non regulatory agencies). As
primeiras são caracterizadas exatamente pelo poder que lhes é dado de intervir nas
atividades econômicas, restringir direitos dos indivíduos ou ditar como esses direitos
serão exercidos6. Basicamente, caracterizam-se pelos já citados poderes “quase-
6
Incluem-se no âmbito de atuação das regulatory agencies, principalmente quanto à qualidade dos
serviços prestados e ao preço cobrado por eles, por exemplo, os chamados public utilities,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
208
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
legislativos” (podem emitir regras e regulamentos que têm força de lei) e “quasejudiciais” (decisões acerca de conflitos individuais afetos à sua área de regulação). É
de se ressaltar, no entanto, que a outros órgãos, com vinculação direta ao Poder
Executivo, também são atribuídos poderes de regulação relativos a determinadas
atividades, como ocorre com o United States Departamento of Agriculture que detém
atribuições regulatórias quanto ao fornecimento de alimentos, atividades rurais e
agrícolas, recursos naturais e meio ambiente. A esses órgãos, em que pese a
semelhança de seus poderes com aqueles conferidos às agências reguladoras, não
são assim considerados.
Percebe-se, portanto, que desde sua origem, as agências reguladoras
detêm amplos poderes para, efetivamente, ditar normas a serem observadas pelos
particulares no exercício de atividades econômicas. É de se observar que não se
trata de uma simples normatização técnica, é muito mais que isso, vão desde a
autorização para o exercício da atividade pretendida, a criação de taxas e
fiscalização de proibição de práticas desleais, prejudiciais à concorrência e ao
consumidor ou tendentes a propiciar a formação de monopólios. Evidentemente, tais
poderes são concedidos pela lei instituidora da agência.
Cristina Barcelos explica, com didática peculiar, a extensão dos poderes
normalmente conferidos às agências reguladoras americanas:
Dispõem as agências administrativas ditas regulatórias de poderes
compreendidos, genericamente, em três categorias: (a) poder de licença,
isto é, poder que as agências têm para controlar o ingresso e exercício de
certa atividade econômica, como, por exemplo, para operar em rotas
aéreas, ou explorar transmissão de rádio e televisão etc.; (b) poder de fixar
taxas e impostos (denominado rate-making) devidos pelas pessoas – físicas
e jurídicas – sujeitas à jurisdição das agências responsáveis, notadamente,
pelo controle de serviços e
transportadoras (como fazem,
exemplificativamente, a Federal Commerce Comission e a Civil Aeronautic
Board; e (c) poder sobre práticas comerciais, que se traduz na autoridade
para aprovar ou proibir práticas empregadas em determinados negócios,
como ocorre em relação a práticas de comércio ou de trabalho desleais, e a
determinadas indústrias. (BARCELOS, 2008, p. 45)
Em relação às agências não regulatórias cabe a execução de atividades
diretamente relacionadas com o bem-estar econômico e social dos cidadãos,
serviços essenciais prestados diretamente pela iniciativa privada, tais como comunicação,
mercados de investimento, transportes terrestres e aéreos, gás e energia elétrica.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
209
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
normalmente, aquelas não entregues à iniciativa privada, como por exemplo, a
concessão e manutenção de aposentadorias, pensões, algumas espécies de
seguros concedidos pelo governo, proteção à saúde, assistência financeira e
serviços para as famílias de baixa renda, prevenção de doenças, etc. São exemplos
de agências administrativas não regulatórias, dentre outras, o United Stated
Departamento of Helath & Human Service (serviços de proteção à saúde), a Farm
Credit Administration – FCA (provê créditos para fazendeiros, rancheiros e
cooperativas de serviços agrícolas e rurais), a Railroad Retirement Board – RRB
(aposentadorias e auxílio à saúde a trabalhadores das ferrovias americanas).
1.3
As formas de controle exercidas sobre as agências reguladoras norteamericanas
A autonomia das agências regulatórias, em que pese ser muito ampla, sofre
diversas espécies de controle por parte dos três Poderes do Estado norteamericano; na verdade, trata-se muito mais de uma supervisão quanto à adequação
da atuação das agências aos rumos da política estatal definida pelo governo do que
um controle propriamente dito, até porque, caso contrário, não se poderia falar em
agências autônomas.
Pode-se dizer que a autonomia das agências tem seus limites traçados,
inicialmente, pelo Congresso, que aprova a lei de sua criação, e assim, traça os
rumos de sua atuação, assim, o grau de autonomia pode variar caso a caso de
acordo com os poderes mais ou menos amplos quando de sua criação. Ademais, no
exercício próprio de suas competências, o Congresso, através de diversos de seus
comitês e subcomitês fiscalizam permanentemente o exercício das atividades das
agências, principalmente, para se estimar as verbas orçamentárias que lhes serão
destinadas no futuro. Em determinados casos, a influência do Congresso sobre as
agências regulatórias pode ser muito mais incisivo, podendo chegar até à avaliação
das próprias decisões de mérito desses órgãos. Conforme ensina Marçal Justen
Filho
A eventual insatisfação do Congresso com o mérito das decisões adotadas
pelas agências pode gerar a edição de leis destinadas a disciplinar o
mesmo tema. Ou seja, não se pode extrair da criação da agência
configuração de uma reserva de competência intangível em face do próprio
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
210
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
legislativo. Aliás, a insatisfação do Congresso pode desaguar inclusive na
extinção da agência (mediante lei, é evidente). (JUSTEN FILHO, 2009, p.
80)
Quanto ao Poder Judiciário, a regra geral é que as decisões das agências
sempre podem ser questionadas em juízo. Destaca-se, no entanto, a exigência que
vem se materializando na jurisprudência das Côrtes americanas da necessidade das
decisões das agências reguladoras, principalmente quando editam normas de
conduta, que essa atividade seja amplamente embasada na participação dos
interessados; quanto maior a participação, maior a legitimidade da decisão, razão
pela qual, quando da tomada de decisões, tem sido cada vez maior a realização de
amplos debates e audiências públicas prévias. Outra posição que vem se firmando
na jurisprudência é quanto à avaliação do mérito das decisões das agências. O
Judiciário tem procurado abster-se de rever atos fundados em critérios técnicos ou
científicos.
Já em relação ao Poder Executivo, a principal forma de exercer controle
sobre as agências ocorre na elaboração do orçamento. É que elas estão vinculadas
ao Office of Management and Budget (OMB), órgão ligado diretamente à Presidência
e que, segundo ensina Marçal Justen Filho “dispõe de poderes para reduzir,
aumentar e aprovar o orçamento da agência, assim como para manifestar-se acerca
de modificação das competências atribuídas a ela.” (JUSTEN FILHO, 2009, p.81)
Ademais, o OMB também tem atribuição de ditar regras procedimentais a serem
observadas pelas agências durante o processo de produção de normas.
2
O DESENVOLVIMENTO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS FEDERAIS
BRASILEIRAS
2.1
O surgimento das agências reguladoras
No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos da América, o surgimento das
agências reguladoras não ocorreu de forma lenta e contínua, mas sim a partir de
uma decisão política determinada. Na década de 90 o Brasil passou por uma revisão
quanto ao seu papel social e econômico. A falência do Estado enquanto agente
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
211
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
econômico forçou a redução desse papel que optou por atuar, precipuamente, como
agente
normativo
e
regulador
da
atividade
econômica,
conforme
consta
expressamente no art. 174, caput, da Constituição Federal. Essa mudança de
paradigma
culminou com
a
institucionalização
do
Programa
Nacional de
7
Desestatização , formalizado pela lei 8.031/90, posteriormente revogada pela lei
9.491/97, e que teve como objetivos reordenar a posição estratégica do Estado na
economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo
setor público; contribuir para a reestruturação econômica do setor público,
especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;
permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser
transferidas à iniciativa privada; contribuir para a reestruturação econômica do setor
privado, especialmente para a modernização da infraestrutura e do parque industrial
do país, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos
diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito; permitir
que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a
presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais
e contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da
oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das
empresas que integrarem o Programa. Ressalte-se, outrossim, que não apenas as
atividades essencialmente econômicas foram transferidas à iniciativa privada, mas
também, serviços de natureza eminentemente administrativas, como é o caso
daqueles que são objeto de concessões e permissões públicas.
A atividade econômica, então, a partir da efetivação do programa de
desestatização, passou a se concentrar, principalmente, nas mãos da iniciativa
privada. Evidentemente, era necessário que o Estado, ao mesmo tempo em que
preferiu afastar-se da exploração de atividades econômicas, não poderia, por outro
lado, postar-se totalmente alheio à atividade desses novos agentes econômicos. Era
necessário que o Estado permanecesse vigilante em relação a aspectos, como por
7
O Programa Nacional de Desestatização também ficou conhecido como movimento de
privatização, em razão da transferência à iniciativa privada de várias empresas até então
pertencentes ao Estado, como também, pela abertura ao capital privado de vários outros setores
econômicos até então não explorados ou de exploração restrita a poucas empresas.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
212
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
exemplo, quanto aos direitos do consumidor, risco de formação de monopólios,
qualidade da os serviços prestados, dentre outros.
Diante desse quadro, vieram à lume as agências reguladoras, inspiradas em
suas congêneres norte-americanas, e conforme explica José dos Santos Carvalho
Filho, com a função principal de controlar, em toda a sua extensão, a prestação dos
serviços públicos e o exercício de atividades econômicas, bem como a própria
atuação das pessoas privadas que passaram a executá-los, inclusive, impondo sua
adequação aos fins colimados pelo Governo e às estratégias econômicas e
administrativas que inspiraram o processo de desestatização. (CARVALHO FILHO,
2009, p. 433-434) Aliás, a própria Constituição Federal já previu no art. 21, XI a
criação de um órgão regulador dos serviços de telecomunicações e no art. 177, § 2º,
III um órgão regulador do setor petrolífero, o que veio a ser posteriormente, a
ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações e a ANP, Agência Nacional do
Petróleo. Todas as demais agências reguladoras não estão previstas na
Constituição; dando azo, assim, a questionamentos acerca da constitucionalidade
das mesmas, contudo, a discussão perdeu sentido a partir do julgamento proferido
pelo Supremo Tribunal Federal na ADI-MC 1949/RS, de relatoria do Min. Sepúlveda
Pertence. Nessa decisão afirmou-se
(...) de limitar-se a Constituição a prever a criação de órgão regulador para
setores de telecomunicações e de exploração pretrolífera, não se segue a
lei ordinária, federal ou estadual, não possa igualmente criá-los para a
regulação e fiscalização de outros tipos de serviços públicos delegados.
Mas aí, com mais razão, sem fugir à alternativa, derivada da Constituição,
entre a Administração direta e a autarquia.”
2.2
A natureza jurídica das agências reguladoras
O legislador brasileiro optou por constituir as agências reguladoras sob a
forma de autarquias, pessoas jurídicas de direito público já existentes em nosso
ordenamento, contudo atribuiu a elas a qualidade de autarquias de regime especial
para diferenciá-las das autarquias até então existentes e que não detém poderes de
regulação. Veja-se o art. 8º da Lei 9.472/1997 que dispôs sobre a organização dos
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
213
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e
outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional 8, de 1995:
Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante
da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico
especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de
órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal,
podendo estabelecer unidades regionais. (grifo)
No mesmo sentido foram as disposições do art. 7º da Lei 9.478/97 que
dispôs sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do
petróleo, instituiu o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional
do Petróleo e deu outras providências
o
Art. 7 Fica instituída a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíves - ANP, entidade integrante da Administração Federal
Indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador
da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis,
vinculada ao Ministério de Minas e Energia. (Redação dada pela Lei 11.097,
de 2005)
Igual disposição verificou-se nas leis de criação das agências que
sucederam a ANATEL e a ANP8. É compreensível essa opção legislativa, pois às
agências foram atribuídos poderes típicos de Estado, e nesse caso, a personalidade
jurídica de direito público é fundamental. Aliás, foi o que decidiu o STF ao julgar
8
Cite-se, por exemplo, a ANA autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério do Meio
Ambiente, que tem por finalidade implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional
de Recursos Hídricos, integrando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
nos termos da Lei nº 9.984/00; a ANVISA, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério
da Saúde, conforme a Lei 9.782/99, tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde
da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e
serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e
das tecnologias a ele relacionadas, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras; a
ANS, criada pela Lei 9.961/00, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde
com órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização da atividades que garantam a
assistência suplementar à saúde; a ANTT e ANTAQ, criadas pela Lei 10.233/01, entidades
integrantes da Administração Pública Indireta, submetidas ao regime autárquico especial e
vinculadas ao Ministério dos Transportes, que têm como objetivos, dentre outros, regular e
supervisionar, em suas respectivas esferas de atribuições as atividades de prestação de serviços
e de exploração de infra-estrutura de transportes, exercidas por terceiros; a ANAC, criada pela lei
11.182/05, é entidade integrante da Administração Federal Indireta, submetida a regime
autárquico especial, cabendo-lhe regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e portuária.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
214
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
pedido de liminar na ADIN 1717-6, sobre a transformação dos Conselhos
Profissionais em pessoas jurídicas de direito privado, operada pelo art. 58 da Lei
Federal n. 9.649/98, cujas conclusões aplicam-se, integralmente, ao caso das
agências reguladoras. Na decisão que considerou a lei inconstitucional o Supremo
ressaltou que é defesa a delegação à entidade privada de atividade típica do Estado,
como é o caso da função de fiscalização e controle de atividade profissional. Confirase:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI
FEDERAL 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE
FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando
prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei 9.649, de 27.05.1998,
como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a
Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a
inconstitucionalidade do 'caput' e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo
art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22,
XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva
à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de
atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de
punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais
regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão
unânime. (STF, ADI 1717, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28/03/2003).
O regime especial a que estão submetidas as agências reguladoras vem
definido nas respectivas leis de criação, mas algumas outras características são
comuns a todas elas, é o que ocorre, por exemplo, com a independência em relação
do Poder Executivo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que
“costuma-se afirmar que as agências reguladoras gozam de certa margem
de independência em relação aos três poderes do Estado: (a) em relação
ao Poder Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o
nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder
Executivo, porque as normas e decisões não podem ser alteradas ou
revistas por autoridades estranhas ao próprio órgão; (c) em relação ao
Poder Judiciário, porque dispõem de função quase-jurisdicional no sentido
de que resolvem, no âmbito das atividades controladas pela agência, litígios
entre os vários delegatários que exercem serviço público mediante
concessão, permissão ou autorização e entre estes e os usuários dos
respectivos serviços.” (DI PIETRO, 1999, p. 131)
Contudo, é a própria autora quem faz a ressalva de que essa independência
deve ser vista em harmonia com o regime constitucional brasileiro. É assim que, em
relação ao Poder Judiciário, a independência das agências reguladoras encontra
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
215
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
seu limite no art. 5º, XXXV que traz o princípio da inafastabilidade do Poder
Judiciário. Em relação ao Poder legislativo, por óbvio, as normas emanadas das
agências não podem se sobrepor ou conflitar com as disposições constitucionais ou
legais editadas pelo Congresso Nacional. Há ainda, o controle exercido com
fundamento nos artigos 49, X e 70 da Constituição Federal. Quanto ao Poder
Executivo, o principal marco da independência das agências é a estabilidade dos
seus dirigentes. Têm dirigentes com mandatos fixos; são nomeados pelo Presidente
da República, após aprovação do Senado Federal. Após nomeados não podem ser
exonerados ad nutum. Explica Carlos Ari Sundfeld, preferindo usar o termo
autonomia ao invés de independência que:
na realidade, o fator fundamental para garantir a autonomia da agência
parece estar na estabilidade dos dirigentes. Na maior parte das agências
atuais o modelo vem sendo o de estabelecer mandatos. O Presidente da
República, no caso das agências federais, escolhe os dirigentes e os indica
ao Senado Federal, que os sabatina e aprova (o mesmo sistema usado
para os Ministros do Supremo Tribunal Federal); uma vez nomeados, eles
exercem mandato, não podendo ser exonerados ‘ad nutum’; isso é o que
garante efetivamente a autonomia. (SUNDFELD, 2000, p. 24-25)
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de enfrentar a questão no
julgamento da Medida Cautelar na ADIN 1.949-RS, ajuizada pelo Governador do Rio
Grande do Sul contra os artigos 7º e 8º da Lei estadual 10.931/97, que criou a
Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do
Sul – AGERGS. O art. 8º da referida lei estatuía que "o conselheiro só poderá ser
destituído, no curso de seu mandato, por decisão da Assembleia Legislativa". Em
resumo, as conclusões a que chegou o STF foram as seguintes:
I - Agências reguladoras de serviços públicos: natureza autárquica, quando
suas funções não sejam confiadas por lei a entidade personalizada e não, à
própria administração direta.
II - Separação e independência dos Poderes: submissão à Assembléia
Legislativa, por lei estadual, da escolha e da destituição, no curso do
mandato, dos membros do Conselho Superior da Agência Estadual de
Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul AGERGS: parâmetros federais impostos ao Estado-membro.
1. Diversamente dos textos constitucionais anteriores, na Constituição de
1988 - à vista da cláusula final de abertura do art. 52, III, são válidas as
normas legais, federais ou locais, que subordinam a nomeação dos
dirigentes de autarquias ou fundações públicas à prévia aprovação do
Senado Federal ou da Assembléia Legislativa: jurisprudência consolidada
no Supremo Tribunal.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
216
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
2. Carece, pois, de plausibilidade a argüição de inconstitucionalidade, no
caso, do condicionamento à aprovação prévia da Assembléia Legislativa da
investidura dos conselheiros na agência reguladora questionada.
3. Diversamente, é inquestionável a relevância da alegação de
incompatibilidade com o princípio fundamental da separação e
independência dos poderes, sob o regime presidencialista, do art. 8º das
leis locais, que outorga à Assembléia Legislativa o poder de destituição dos
conselheiros da agência reguladora autárquica, antes do final do período da
sua nomeação a termo.
4. A investidura a termo - não impugnada e plenamente compatível com a
natureza das funções das agências reguladoras - é, porém, incompatível
com a demissão ad nutum pelo Poder Executivo: por isso, para conciliá-la
com a suspensão cautelar da única forma de demissão prevista na lei - ou
seja, a destituição por decisão da Assembléia Legislativa -, impõe-se
explicitar que se suspende a eficácia do art. 8º dos diplomas estaduais
referidos, sem prejuízo das restrições à demissibilidade dos conselheiros da
agência sem justo motivo, pelo Governador do Estado, ou da
superveniência de diferente legislação válida.
III - Ação direta de inconstitucionalidade: eficácia da suspensão cautelar da
norma argüida de inconstitucional, que alcança, no caso, o dispositivo da lei
primitiva, substancialmente idêntico.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade e impossibilidade jurídica do
pedido: não se declara a inconstitucionalidade parcial quando haja inversão
clara do sentido da lei, dado que não é permitido ao Poder Judiciário agir
como legislador positivo: hipótese excepcional, contudo, em que se faculta a
emenda da inicial para ampliar o objeto do pedido.
Vê-se,
portanto,
que
o
Supremo
Tribunal
Federal
reconheceu
a
constitucionalidade das restrições impostas ao Chefe do Poder Executivo à livre
nomeação e exoneração dos diretores das agências reguladoras. De fato, quanto à
restrição à livre nomeação, não há que se falar em inconstitucionalidade, já que o
art. 52, III, “f” da Constituição Federal admite a prévia aprovação do Senado Federal
da escolha de “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Em relação às
limitações à exoneração dos dirigentes, o Supremo entendeu que também não
violam as prerrogativas do Presidente da República e poderá ocorrer apenas por
justo motivo ou caso ocorra mudança na lei criadora da agência.
Entendemos que decidiu bem o STF, afinal, as agências reguladoras, para
bem exercer o seu papel, devem estar imunes a qualquer interferência política;
nesse sentido, não há pior forma de interferência do que o poder de substituir
aleatoriamente, esse ou aquele diretor cujas decisões não agradem o Chefe do
Executivo.
Outra questão que suscita debates na doutrina é quanto ao fato da não
coincidência dos mandatos dos dirigentes das agências reguladoras com o mandato
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
217
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
do Chefe do Poder Executivo. Celso Antônio Bandeira de Melo é um dos principais
críticos a essa sistemática e ressalta que “em última instância configura uma fraude
contra o próprio povo, ao impedir que o novo Presidente imprima, com a escolha de
novos dirigentes, a orientação política e administrativa que foi sufragada nas urnas.”
(MELO, 2008, p. 161) Já Lúcia Valle Figueiredo defende opinião contrária
entendendo pela importância da regra “para que não haja troca de favores, mas,
sim, total independência.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 143)
Alinhamo-nos a essa última posição, pois além de impedir o tão praticado e
maléfico fisiologismo, a não coincidência dos mandatos permite aos dirigentes das
agências reguladoras garantias de que poderão desenvolver seu trabalho sem
receio de serem substituídos em razão da troca de comando do Executivo.
Outras características comuns às agências reguladoras são citadas pela
doutrina, tais como a impossibilidade de recurso administrativo ao Ministério a que
estiver vinculada: inexistência de instância revisora hierárquica dos seus atos,
ressalvada a revisão judicial; a autonomia de gestão: não vinculação hierárquica a
qualquer instância de governo; estabelecimento de fontes próprias de recursos para
o órgão, se possível geradas do próprio exercício da atividade regulatória e a
quarentena de seus dirigentes assim que deixam o órgão. São essas características
que qualificam essas autarquias como especiais, é o que diz expressamente, o § 2º
do art. 8º da lei 9.742/97, em relação à Agência Nacional de Telecomunicações: “a
natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por
independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e
estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira.” Em relação ao período em
que os dirigentes ficam impedidos de prestar serviços à iniciativa privada cuja
atividade esteja sob regulação da agência por ele dirigida, cite-se, por exemplo, a
disposição do art. 9º da Lei 9.427/96 que criou a ANEEL, Agência Nacional de
Energia Elétrica: “o ex-dirigente da ANEEL continuará vinculado à autarquia nos
doze meses seguintes ao exercício do cargo, durante os quais estará impedido de
prestar, direta ou indiretamente, independentemente da forma ou natureza do
contrato, qualquer tipo de serviço às empresas sob sua regulamentação ou
fiscalização, inclusive controladas, coligadas ou subsidiárias.” Sobre o assunto,
Floriano Azevedo Antunes Marques Neto explica:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
218
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
No nosso entendimento a melhor forma de efetivar tais mecanismos é com
o estabelecimento da proibição de que o dirigente ou detentor de cargo
relevante no órgão regulador represente qualquer interesse da regulada por
um período mínimo de 12 meses após deixar seu cargo. Neste período
cumpre ao Estado pagar pelo seu sustento o valor correspondente ao que
ganhava no cargo. Em que pese às críticas a tal mecanismo, afirmando que
isto caracterizaria pagamento de salário sem contrapartida, delas discordo.
A natureza destes pagamentos é indenizatória, voltada a reparar a restrição
ao direito do indivíduo de trabalhar. De todo o modo, a pior solução parece
aquela oferecida pela Lei federal 9.427, de 1996, que determina que
dirigentes da ANEEL, após deixarem o cargo, permanecerão por um ano
prestando serviços para aquela Agência e sendo-lhes defeso atuar para os
regulados. Nesta regra o dirigente permanece vinculado ao órgão, obtendo
informações e participando da atividade regulatória. a quarentena de nada
servirá. (MARQUES NETO, 2000, p. 85-86)
2.3
O controle externo das atividades das agências reguladoras
Em que pese serem independentes ou autônomas, conforme já dito nesse
trabalho, as agências reguladoras não ficam alheias a qualquer tipo de controle, ao
contrário, submetem-se ao controle por parte dos três Poderes do Estado, como
também do Tribunal de Contas da União, órgão integrante do Poder Legislativo
Federal.
Em relação ao controle exercido pelo Poder Legislativo, o fundamento é o
artigo 49, X da Constituição Federal que determina que é competência exclusiva do
Congresso Nacional fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas
Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta.
Evidentemente, o controle legislativo trata-se de um instrumento constitucional de
preservação da segurança sócio-jurídica da atuação das agências reguladoras
federais. Marçal Justen Filho explica que
O controle parlamentar pode versar, de modo ilimitado, sobre toda a
atividade desempenhada pela agência, inclusive no tocante àquela prevista
para realizar-se em épocas futuras – ressalvadas a necessidade de sigilo
em face das características da matéria regulada. Poderá questionar-se não
apenas a gestão interna da agência, mas também se exigir a justificativa
para as decisões de cunho regulatório. Caberá fiscalizar inclusive o
processo administrativo que antecedeu a decisão regulatória produzida pela
agência, com ampla exigência de informações sobre as justificativas
técnico-científicas das opções adotadas (JUSTEN FILHO, 2009, p. 588).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
219
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
Já o Tribunal de Contas da União, segundo o art. 71 da Constituição
Federal, é órgão auxiliar do Congresso Nacional no controle externo da
Administração Pública, cabendo-lhe, apreciar as contas prestadas anualmente pelo
Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em
sessenta dias a contar de seu recebimento; julgar as contas dos administradores e
demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta
e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder
Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; apreciar, para fins de
registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na
administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo
Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão,
bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas
as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;
realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de
Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil,
financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II
do art. 71; fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo
capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado
constitutivo; fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União
mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao
Distrito Federal ou a Município; prestar as informações solicitadas pelo Congresso
Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões,
sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e
sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas; aplicar aos responsáveis, em
caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas
em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano
causado ao erário; assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as
providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à
Câmara dos Deputados e ao Senado Federal e representar ao Poder competente
sobre irregularidades ou abusos apurados.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
220
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
Em relação ao Poder Judiciário, evidentemente, os atos das agências
reguladoras, como também de toda a Administração Pública, não estão isentos de
controle, isso em razão do disposto no do artigo 5°, inciso XXXV da Constituição
Federal que dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito. Hely Lopes Meirelles explica que
Controle judiciário ou judicial é o exercido privativamente pelos órgãos do
Poder Judiciário sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e
do próprio Judiciário quando realiza atividade administrativa. É um controle
a posteirori, unicamente de legalidade, por restrito à verificação da
conformidade do ato com a norma legal que o rege. Mas é sobretudo um
meio de preservação de direitos individuais, porque visa a impor a
observâncias da lei em cada caso concreto, quando reclamada por seus
beneficiários. Esses direitos podem ser públicos ou privados – não importa –
mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção judicial do ato
administrativo, salvo ação popular, em que o autor defende o patrimônio da
comunidade lesado pela administração. (MEIRELLES, 2005, p. 605)
Contudo, é de se ressaltar que sendo as decisões das agências reguladoras,
eminentemente técnicas, o controle judicial será realizado, ordinariamente, tão
somente quanto ao aspecto da legalidade, contudo, não são raros os casos em que
o judiciário poderá avaliar o mérito desses atos; aplica-se, aqui, de forma geral, a
doutrina acerca do controle judicial dos atos administrativos, mesmo discricionários.
Segundo explica João Aurino de Melo Filho:
Quando provocado, o Judiciário poderá analisar não só os requisitos
vinculados dos atos de regulação, já que realizará uma análise mais
profunda, adentrando no próprio mérito do ato, não para que o juiz imponha
suas convicções sobre a conveniência e oportunidade do ato, mas para
analisar a subsunção do ato às normas superiores e aos princípios
administrativos. O Judiciário, se provocado, poderá fiscalizar, inclusive, o
processo que antecede a emanação de um ato de regulação, exigindo
informações sobre as opções adotadas e suas correlatas justificativas
técnico-científicas. O Judiciário poderá analisar se o órgão regulador adotou
todas as providências necessárias para um profícuo e satisfatório
desempenho da sua competência discricionária. E um ato de regulação que
ignore ou desrespeite as cautelas necessárias, impostas pelo conhecimento
técnico ou científico, pode ser analisado e, se for o caso, invalidado pelo
Poder Judiciário. É esse controle amplo do Judiciário, pelo menos potencial,
que concederá legitimidade à atividade normativa das agências, que não
poderão editar atos arbitrários ou desarrazoados, já que estão sujeitas ao
controle jurisdicional. Há, então, uma discricionariedade vigiada.” (MELO
FILHO, 2009)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
221
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
Tal como o Legislativo e o Judiciário, o Poder Executivo também não exerce
controle direto sobre a atuação das agências reguladoras, até porque, via de regra,
sobre as decisões das agências não cabem recursos administrativos impróprios9,
que se caracterizam pela possibilidade de revisão dos atos de uma entidade da
administração indireta, que são pessoas jurídicas autônomas, pelo Ministério a qual
estão vinculadas. É o que prevê, por exemplo, o § 2º do art. 15 da Lei Federal 9.782,
de 26 de janeiro de 1999 que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ao
estabelecer que “dos atos praticados pela Agência caberá recurso à Diretoria
Colegiada, com efeito suspensivo, como última instância administrativa” Assim, o
cabimento ou não de recurso hierárquico impróprio em face das decisões das
agências reguladoras, em princípio, dependeria de previsão expressa na lei de
criação da mesma. No entanto, manifestando entendimento contrário, a AdvocaciaGeral da União exarou o parecer AC - 051/2006, aprovado pelo Presidente da
República em 13/06/2006, donde se extrai as seguintes conclusões:
(...) o cabimento do recurso hierárquico impróprio não encontra objeções já
que inexiste área administrativa imune à supervisão ministerial, reduzindose, contudo, o âmbito de seu cabimento, de modo idêntico, na mesma razão
inversa da obediência às políticas de iniciativa do Ministério supervisor.
(...) não há suficiente autonomia para as agências que lhes possa permitir
ladear, mesmo dentro da lei, as políticas e orientações da administração
superior, visto que a autonomia de que dispõem serve justamente para a
precípua atenção aos objetivos públicos. Não é outra, portanto, a conclusão
com respeito à supervisão ministerial que se há de exercer sempre pela
autoridade ministerial competente, reduzindo-se, no entanto, à medida que,
nos limites da lei, se atendam às políticas públicas legitimamente
formuladas pelos Ministérios setoriais. (...)
(...)
II – Estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos
interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio,
9
"Recurso hierárquico impróprio, em síntese, é aquele endereçado à autoridade administrativa que
não é hierarquicamente superior àquela de que exarou o ato recorrido. Nas palavras de Celso
Antônio Bandeira de Mello: ‘Os recursos administrativos são propostos na intimidade de uma
mesma pessoa jurídica; por isto são chamados de recursos hierárquicos. Se, todavia, a lei previr
que da decisão de uma pessoa jurídica cabe recurso para a autoridade encartada em outra
pessoa jurídica, o recurso será, em tal caso, denominado de recurso hierárquico impróprio’ (...) Na
mesma linha de raciocínio, José Cretella Júnior denota que ‘Recurso hierárquico impróprio é o que
dirige à autoridade não hierarquicamente superior àquela de que emanou o ato impugnado. É
recurso previsto em lei, mas de uso excepcional, visto faltar-lhe o fundamento indispensável da
hierarquia.’ (...)." (Sérgio Guerra, Agências Reguladoras e a Supervisão Ministerial, texto
componente do livro O poder normativo das agências reguladoras, Alexandre Santos de
Aragão, coordenador, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 492)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
222
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades
administrativas (...)
(...)
VII – As orientações normativas da AGU vinculam as agências reguladoras.
(...)
Conforme determina o art. 40, § 1º da Lei Complementar 73/93, Lei Orgânica
da Advocacia-Geral da União, o parecer aprovado e publicado juntamente com o
despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades
ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. Dessa forma, dada a força vinculante do
mencionado parecer, no âmbito federal sempre vai haver a possibilidade do recurso
hierárquico impróprio das decisões das agências reguladoras ao respectivo Ministro
de Estado. Por outro lado, quando a lei expressamente o vedar, como é o caso do §
2º do art. 15 da Lei Federal 9.782, entendemos, também, não prevalecer tal
disposição frente ao comando do Art. 5º XXXIV da Constituição Federal que
determina que é a todos assegurado, independentemente do pagamento de taxas, o
direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade
ou abuso de poder; e nesse caso, o direito de petição deve ser entendido de
maneira ampla, de forma a abarcar o recurso hierárquico impróprio, mesmo que se
trate de atividade fim da agência reguladora, pois tratando-se de direito fundamental,
não pode ser restringido pela lei, já que a própria Constituição não o restringiu.
Nesse sentido são os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho
Outro relevante instrumento de controle administrativo é o direito de petição.
Consiste esse direito, de longínqua tradição inglesa, na faculdade que têm
os indivíduos de formular aos órgãos públicos qualquer tipo de postulação,
tudo como decorrência da própria cidadania. A constituição em vigor
contempla o direito de petição entre os direitos e garantias fundamentais,
estabelecendo no art. 5º, XXXIV, “a”, ser a todos assegurado “o direito de
petição aos Poderes Públicos em defesa dos direitos ou contra ilegalidade
ou abuso de poder”. Avulta observar que esse direito tem grande amplitude.
Na verdade, quando admite que seja exercido para a “defesa de direitos”
não discrimina que tipo de direitos, o que torna admissível a interpretação
de que abrange direitos individuais e coletivos, próprios ou de terceiros,
contanto que possa refletir o poder jurídico do indivíduo de dirigir-se aos
órgãos públicos e deles obter a devida resposta.” (CARVALHO FILHO,
2009, p. 833-834)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
223
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
3
O PODER NORMATIVO E REGULADOR DAS AGÊNCIAS
REGULADORAS FEDERAIS BRASILEIRAS: ABRANGÊNCIA E LIMITES
3.1
As atribuições das agências reguladoras federais brasileiras
O Estado brasileiro, a partir da instituição do movimento nacional de
desestatização, passou a adotar um modelo gerencial de Administração Pública,
passando a adotar papel preponderante na fiscalização e regulação de atividades
econômicas, ao invés de explorá-las diretamente.
Assim, às agências reguladoras, órgãos criados no âmbito desse novo
modelo administrativo, foram atribuídos poderes de regular, controlar e fiscalizar as
atividades correlatas à sua área de atuação. Foi nesse sentido que a Lei 9472/97
atribuiu à ANATEL a função de órgão regulador das telecomunicações e a lei
9.478/97 dotou a ANP desses mesmos poderes. A Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL) foi instituída com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, a
transmissão, a distribuição e a comercialização de energia elétrica em conformidade
com as políticas e diretrizes do governo federal; a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) detém atribuições institucionais de promover a proteção da
saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da
comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária; a Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi dotada de poderes para promover a
defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as
operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e
consumidores; a Agência Nacional da Águas (ANA) foi criada como entidade federal
de implementação da política nacional de recursos hídricos e de coordenação do
sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos; a Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT) foi destinada à regulação do transporte ferroviário de
passageiros e carga e exploração da infra-estrutura ferroviária; dos transportes
rodoviário interestadual e internacional de passageiros, rodoviário de cargas,
multimodal; e do transporte de cargas especiais e perigosas em rodovias e ferrovias;
atribuições similares foram conferidas à Agência Nacional de Transportes
Aquaviários (ANTAQ) à qual cabe regular os transportes de navegação fluvial,
travessia, apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso e regular os
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
224
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
portos organizados, os terminais portuários privativos, o transporte aquaviário de
cargas especiais e perigosas; a Agência Nacional do Cinema visa ao fomento,
regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica. A
Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC) atua como
entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de
previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência
complementar operado pelas entidades fechadas de previdência complementar,
observando, inclusive, as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional
e pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar.
É de se ressaltar, ainda, que existem outros órgãos que, em que pese, não
ostentarem a qualificação de agências reguladoras, detém atribuições similares a
essas, como é o caso, dentre outros, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a
Agência Espacial Brasileira (AEB), a Agência de Desenvolvimento da Amazônia
(ADA), a Agência de Desenvolvimento do Nordeste (ADENE), a Agência Brasileira
de Inteligência (ABIN) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)10.
10
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) foi criada pela lei 9.427/96, alterada pela lei nº
9.648 e 9.649, ambas de 98, lei 9.986/00 e lei 10.438/02, tendo sido regulamentada pelo Decreto
nº 2.335/97, alterado pelo Decreto 4.111/02; a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL)
foi criada pela lei nº 9.472/97, alterada pela lei nº 9.986/00, regulamentada pelo Decreto nº
2.338/97, alterado pelos Decretos 2.853/98, 3.873/01, 3.986/01, 4.037/01; a Agência Nacional do
Petróleo (ANP) foi criada pela lei nº 9.478/97, alterada pela lei nº 9.986/00, lei nº 10.202/01 e lei
10.453/02, regulamentada pelo Decreto nº 2.455/98, alterado pelos Decretos 2.496/98, 3.388/00 e
3.968/01; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) foi criada pela lei nº 9.782/99,
alterada pela lei 9.986/00 e MP nº 2.190-34/01, regulamentada pelo Decreto nº 3.029/99, alterado
pelos Decretos 3.571/00 e 4.220/02; a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi
instituída pela lei nº 9.961/00, alterada pela lei nº 9.986/00 e pela MP nº 2.177-44/01,
regulamentada pelo Decreto 3.327/00; a Agência Nacional das Águas (ANA) foi criada pela lei nº
9.984/00, alterada pela MP nº 2.216/01 e regulamentada pelo Decreto nº 3.692/00; a Agência
Nacional de Transportes (ANTT) foi criada pela lei nº 10.233/01, alterada pela lei nº 10.470/02, lei
nº 10.561/02, lei nº 10.683/03 e pela MP nº 2.217-03/01, regulamentada pelo Decreto nº 4.130/02;
a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) foi criada pela lei nº 10.233/01, alterada
pelas leis nº 10.470/02, 10.561/02 e 10.683/03 e MP nº 2.217-03/01, regulamentada pelo Decreto
4.122/02; a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) foi criada pela MP nº 2.228-1/01, com a
redação dada pela lei nº 10.454/02 e regulamentada pelo Decreto nº 4.121/02, alterado pelo
Decreto nº 4.330/02; a Superintendência de Previdência Complementar (PREVIC) foi criada pela
lei nº 12. 154/09, regulamentada pelo Decreto nº 7.075/10; a Comissão de Valores Mobiliários
(CVM) é regulamentada pela lei nº 10.411/02, e Decreto nº 4.300/02, alterado pelo Decreto nº
4.537/02; a Agência Espacial Brasileira foi criada pela lei nº 8.854/94, alterada pela MP nº 2.21637/01; a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) foi instituída pela MP nº 2.157-5/01 e a
Agência de Desenvolvimento do Nordeste (ADENE) foi criada pela MP nº 2.165-5/01; a Agência
Brasileira de inteligência (ABIN) foi criada pela lei nº 9.883/99, alterada pela MP nº 2.216-37/01,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
225
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
De um modo geral, então, as atribuições das agências reguladoras são bem
parecidas, a maior ou menor extensão dos poderes a elas conferidos vai variar de
acordo com a lei de criação de cada uma delas. Percebe-se que esses órgãos têm
poderes amplos dentro de sua área de atuação, podendo, inclusive, como é o caso
da novata PREVIC “apurar e julgar infrações e aplicar as penalidades cabíveis”,
evidentemente, trata-se de julgamento e apenação de âmbito, estritamente,
administrativo.
Mas de todas as atribuições, aquela que está presente em todas as
agências reguladoras, e que suscita maiores discussões na doutrina, não se tendo
chegado, ainda, a um consenso quanto ao seu fundamento, abrangência e limites, é
a atribuição regulamentar, através da qual as agências podem baixar atos
normativos gerais e abstratos infralegais, tendentes à limitação de direitos e
imposição de obrigações a pessoas e instituições abrangidos pela atividade
regulada. Aliás, apesar de controversa, sem essa atribuição, essas agências não
poderiam ser taxadas de “reguladoras.” Conrado Hübner Mendes explica que
Possuindo poder normativo, então, consideraremos o ente uma agência
reguladora. Esta será, portanto, não o ente que, simplesmente exerça
regulação em qualquer das formas, mas, acima de tudo, o que possua
competência para produzir normas gerais e abstratas que interferem
diretamente na esfera de direito dos particulares. (MENDES, 2000, p. 129)
De fato, trata-se de um instituto relativamente novo e a dificuldade de sua
compreensão está justamente na forma em que foi introduzido em nosso
ordenamento jurídico. Conforme já mencionado nesse trabalho, o nosso modelo de
agências reguladoras foi largamente influenciado pelo direito norte-americano. Lá as
agências reguladoras detêm uma larga autonomia e suas atribuições aproximam-se
das atribuições do Congresso, do Poder Judiciário e do Poder Executivo, o que
levou parte da doutrina a denominar esses poderes de “quase-legislativos”, “quaseexecutivos” e “quase-judiciais”. No entanto, quando se importa determinado instituto
jurídico de um outro sistema há que se ter o cuidado de fazer as devidas
adaptações, afinal há consideráveis diferenças entre o sistema da Commow Law e o
regulamentada pelo Decreto nº 4.376/02; o Conselho Administrativo de Defesa Econômica foi
criado pela lei nº 4.137/62, tendo se tornado autarquia federal com a lei 8.884/94.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
226
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
nosso sistema, de influência romano germânico. Segundo explica José Cretella
Júnior um dos principais aspectos a serem considerados é que
Adota-se na commow law, o que se denomina de sistema horizontal, em
que a administração é submetida, de regra, ao mesmo direito que rege a
atividade de todo particular, não havendo, portanto, um regime jurídico que
lhe seja peculiar, ao contrário do sistema vertical, predominante nos direitos
de base romanística, de prerrogativas e privilégios, com predomínio de
derrogação e da exorbitância ao direito comum, que regulam as relações
entre a Administração e os administrados, em matéria administrativa.
(CRETELLA JÚNIOR, 1990, p. 30)
Assim, o poder normativo das agências reguladoras brasileiras deve ser
estudado e compreendido em uma acepção que possa conformar-se com o nosso
sistema jurídico, especialmente, quanto à tripartição de Poderes estabelecida pela
Constituição Federal.
3.2
Fundamento do poder normativo das agências reguladoras
3.2.1
A tese da deslegalização
Dentre as várias teses que almejam explicar o fundamento do poder
regulador das agências reguladoras brasileiras está a da deslegalização. Segundo a
concepção originária dessa tese, as normas produzidas com fundamento nessa
teoria têm a mesma densidade legislativa das leis ordinárias, podendo, segundo
alguns, até mesmo revogá-las. Contudo, no caso das agências reguladoras, haveria
uma espécie de delegação limitada, ou seja, o Poder Legislativo disporia de parcela
de suas atribuições em favor das agências reguladoras, abrindo espaço para que,
no limite da delegação, possam, livremente, editar normas gerais e abstratas com
força de lei. Segundo explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto, um dos principais
defensores dessa tese, a deslegalização constitui uma forma anômala de delegação
legislativa
A terceira técnica geral de delegação vêm a ser a delegalização, oriunda do
conceito do desenvolvido na doutrina francesa da délégation de matières,
adotado na jurisprudência do Conselho de Estado em dezembro de 1907
(...) a qual, modificando postura tradicional, no sentido de que o titular de um
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
227
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
determinado poder não tem dele disposição, mas, tão somente o exercício,
passou a aceitar, como fundamento da delegação, a retirada, pelo próprio
legislador, de certas matérias do domínio da lei (domaine de la loi),
passando-se ao domínio do regulamento (domaine de l´ordonnance).
(MOREIRA NETO, 2003, p. 122)
No mesmo sentido, inclusive, defendendo o acolhimento da tese pelo nosso
ordenamento jurídico, Alexandre dos Santos Aragão escreve que
Por este entendimento, com o qual concordamos, não há qualquer
inconstitucionalidade na deslegalização, que não consistiria propriamente
em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo
próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra
sede legislativa a regulação de determinada matéria. E, com efeito, se este
tem poder para revogar uma lei anterior por que não o teria para,
simplesmente, rebaixar o seu grau hierárquico? Por que teria que, direta e
imediatamente revogá-la, deixando um vazio normativo até que fosse
expedido o regulamento, ao invés de, ao degradar a sua hierarquia, deixar a
revogação para um momento posterior, ao critério da Administração Pública,
que tem maiores condições de acompanhar e avaliar a cambiante e
complexa realidade econômica e social? (ARAGÃO, 2005, p. 422-423)
Segundo os defensores da tese, a própria Constituição Federal teria
autorizado expressamente a deslegalização ao estabelecer no art. 4811 que o
Congresso Nacional poderia dispor de todas as matérias ali elencadas; assim,
havendo expressa autorização para disposição da matéria, o Congresso poderia,
então, legislar, não legislar e até deslagalizar, caso assim entenda (MOREIRA
NETO, 2003, p. 122).
Henrique Ribeiro Cardoso nos noticia outros fundamentos constitucionais
segundo os quais assentar-se-ia a deslegalização
Vislumbram os adeptos dessa corrente estabelecer a Constituição Federal,
no artigo que sedia a regulação em geral, art. 174 e nos que prevêem a
criação das agências reguladoras – arts. 21, XI e 177, § 2º, III – uma
atribuição originária de competência normativa, dentro do esquadro de
repartição de funções estabelecidas na Carta Política, em moldes
11
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta
para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da
União, especialmente sobre:
[...]
XII - telecomunicações e radiodifusão;
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
228
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
semelhantes ao disposto nos arts. 62 e 68 da Constituição de 1988.
(CARDOSO, 2006, p. 199)
Na jurisprudência pode-se colher exemplos de julgados que fazem expressa
referência à deslegalização. O Desembargador Tarcisio Martins Costa, do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, ao proferir voto no julgamento do agravo de instrumento
1.0145.05.224751-0/006 (1), publicado em 30/03/2009, manifestou-se sob o caso
em apreciação naquela oportunidade que
Cuida-se de um poder regulamentador geral e abstrato, não tendo qualquer
incidência em casos concretos, como o dos autos, a justificar sua
intervenção no feito, até porque as agências reguladoras exercem uma
atividade delegada pelo Poder Executivo e Legislativo. Trata-se do
chamado fenômeno da deslegificação ou delegação limitada. Em outras
palavras, a retirada pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio
da lei, para atribuí-las à disciplina normativa das agências.
Contudo, em que pese autoridade dos ilustres defensores da tese, com ela
não podemos concordar; isso, por um motivo relativamente simples: a Constituição
Federal já estabeleceu, expressamente, os casos em que se admite a delegação
legislativa, e não há espaço para se forçar determinada técnica interpretativa a fim
de se encontrar hipóteses de autorização implícita. As únicas hipóteses de
delegação legislativa contempladas pela Constituição Federal encontram-se no art.
62, em relação às medidas provisórias e no art. 68 em relação às leis delegadas ao
Presidente da República. Recentemente, a emenda constitucional 45 introduziu em
nosso ordenamento outro caso de produção normativa primária, contudo, trata-se de
ato diferente da lei. Ao criar o Conselho Nacional de Justiça, no art. 130-B, a
Constituição dotou esse órgão de atribuição para “expedir atos regulamentares no
âmbito de sua competência, ou recomendar providências.” Igual atribuição foi
conferida ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo art. 130-A, § 2º, I. Note-se
que em que pese a Constituição utilizar o termo “atos regulamentares”, na verdade
tratam-se de atos completamente diferentes daqueles atribuídos ao Chefe do Poder
Executivo pelo art. 84, IV, posto que são atos primários e situam-se, no plano da
hierarquia, no mesmo patamar das leis. Não fosse isso, para acabar de vez com
qualquer especulação acerca de outra espécie de delegação o art. 25 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT estabeleceu:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
229
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da
Constituição, sujeito esse prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos
legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência
assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que
tange a:
I – ação normativa;
Aliás, Gustavo Binenbojm, um dos principais opositores da tese, apegandose ao princípio da legalidade e após sólida argumentação conclui que “de acordo
com o raciocínio até aqui desenvolvido, a deslegalização constituiria uma fraude ao
processo legislativo contemplado na Constituição, o qual tem por escopo a defesa
das garantias fundamentais do cidadão” (BINENBOJM, 2008, p. 283). Igual
posicionamento é adotado por Juarez de Freitas ao ensinar que:
(...) os atos regulatórios devem ser infralegais, restando vedado ao
administrador inovar como legislador. Assim, por exemplo, a resolução de
uma agência reguladora pode inovar apenas como ato administrativo,
porém, nos exatos termos da lei. A infralegalidade revindica uma sadia
autocontenção. Não há, portanto, falar “deslagalização” no campo
regulatório, que pode até valer noutros contextos, mas não tem guarida em
nosso complexo normativo. (FREITAS, 2004, p. 48)
Manoel Gonçalves Ferreira Filho é outro que nega a possibilidade de
deslegalização em nosso ordenamento jurídico. Ensina o eminente constitucionalista
que não há previsão constitucional para que leis possam delegar competência
material para que um regulamento autônomo normatize determinado setor.
(FERREIRA FILHO, 2002, p. 142).
Esse mesmo entendimento foi abonado pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADI 1.668/DF ao estabelecer que a ANATEL não pode exorbitar as
disposições da Lei de Licitações, à qual seus atos encontram-se subordinados. Eis a
ementa do acórdão, na parte que tratou especificamente do assunto:
(...) deferir, em parte, o pedido de medida cautelar para: a) quanto aos
incisos IV e X, do art. 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação
conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a
qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir
normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem
outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime
público e no regime privado (...) (STF, ADI 1668 MC, Relator Min. Marco
Aurélio, Julgado em 20/08/1998)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
230
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
A tese da deslegalização, portanto, não encontra fundamento em nosso
regime jurídico tendo em vista que não é possível ao Poder Legislativo transferir sua
função, mesmo que transitoriamente, a órgãos da Administração Pública ou
proceder a qualquer espécie de delegação legislativa fora dos casos expressos
autorizados pela Constituição Federal. Caso isso aconteça, ter-se-ia o que Celso
Antônio Bandeira de Melo chama de delegação disfarçada e imprime veemente
condenação:
Considera-se que há delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora
do procedimento regular, toda vez que a lei remete ao Executivo a criação
das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a
restrição à liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento
definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento
do direito material ou ao nascimento da obrigação, dever ou restrição.
Ocorre, mais evidente, quando a lei faculta ao regulamento determinar
obrigações, deveres, limitações ou restrições que já não estejam
previamente definidos ou estabelecidos na própria lei. Em suma: quando se
faculta ao regulamento inovar inicialmente na ordem jurídica. E inovar quer
dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente
deduzir da lei regulamentada.
Entre nós, este procedimento abusivo, inconstitucional e escandaloso foi
praticado inúmeras vezes e de modo mais flagrante possível. Nisto se
revela o profundo descaso que, infelizmente, nossos legisladores têm tido
na mantença das prerrogativas do Poder em que se encartam,
demonstrando, pois, um cabal desapreço pela Constituição e – pior que isto
– olímpica indiferença pela salvaguarda dos direitos e garantias dos
cidadãos.
Assim, inúmeras são as leis que deferem, sic et simpliciter, a órgãos
colegiais do Executivo – como ao Conselho Monetário Nacional, por
exemplo – o poder de expedir decisões (“resoluções”) cujo conteúdo só
pode ser o de lei. (...)
De todo modo, ostensiva ou disfarçada, genérica ou mais restrita, assentada
no todo da lei ou no incidente particular de algum preceptivo dela, a
delegação do poder de legislar conferida ao regulamento é sempre nula,
pelo quê ao Judiciário assiste – como guardião do Direito – fulminar a norma
que delegou e a norma produzida por delegação. (MELLO, 2008, p. 352353)
3.2.2
Poder regulamentar das agências face à exclusividade conferida ao
Chefe do Poder Executivo pelo art. 84, IV da Constituição Federal
Uma vez afastada a tese da deslegalização, outras vozes levantam-se na
doutrina defendendo que as normas expedidas pelas agências reguladoras têm
natureza infralegal, de densidade normativa igual à dos regulamentos editados pelo
chefe do Poder Executivo. Para essa corrente, caberia às agências reguladoras toda
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
231
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
a produção normativa infralegal correlata à sua área de regulação. É o que afirma,
por exemplo, Gustavo Binenbojm (2008, p. 286) ao ensinar que “como já
longamente explicitado no Capítulo IV, supra, a competência normativa das
entidades reguladoras exibe natureza regulamentar infralegal, semelhante àquela
reconhecida ao chefe do Poder Executivo.” Essa parece, também, ser a posição de
Marçal Justen Filho (2009, p. 540) que afirma que “uma agência reguladora na pode
fazer algo além ou diverso do que seria reconhecido ao Poder Executivo, em matéria
de produção normativa” Contudo, essa corrente também não merece acolhida em
nosso ordenamento.
O Poder Regulamentar foi conferido, com exclusividade, ao chefe do Poder
Executivo por expressa disposição do art. 84, IV da Constituição Federal. Diz o
dispositivo que compete privativamente ao Presidente da República sancionar,
promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para
a sua fiel execução. Pois bem, sob essa ótica, resta evidente que qualquer ato
praticado palas agências reguladoras com a finalidade de regulamentar as leis será
flagrantemente inconstitucional, pois que estará invadindo âmbito de atribuição
privativa do Presidente da República. Assim, o Poder Legislativo jamais poderá
dispor dessa atribuição, transferindo-a às agências, pois que se encontra impedido
dada a expressa disposição constitucional que reservou esse ato ao chefe do Poder
Executivo. Nesse ponto, ficamos com os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di
Pietro para quem:
Regulamentar significa também ditar regras jurídicas, porém, no direito
brasileiro, como competência exclusiva do Poder Executivo. Perante a atual
Constituição, o poder regulamentar é exclusivo do Chefe do Poder
Executivo (art. 84, IV), não sendo incluído, no parágrafo único do mesmo
dispositivo, entre as competências delegáveis. (DI PIETRO, 2001, p.
140/141)
3.2.3
O poder normativo das agências reguladoras como poder para
expedição de atos regulatórios técnicos
Os atos expedidos pelas agências reguladoras, com visto, não se tratam de
atos normativos praticados em razão de delegação do Poder Legislativo, posto que
todos os casos de produção normativa delgada já se encontram expressamente
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
232
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
consignados na Constituição Federal, não podendo o legislador criar novas espécies
ou situações de delegação da função normativa ou legislativa.
Da mesma forma, tais atos não podem ser praticados com o condão de
regulamentar as leis, haja vista que essa atribuição ou poder foi conferido pela
Constituição Federal, com exclusividade ao chefe do Poder Executivo.
Mas é certo que as agências reguladoras produzem atos normativos gerais e
abstratos de observância obrigatória para os particulares que exercem atividades
inseridas no seu âmbito de regulação. No entanto, conforme ensina a doutrina mais
autorizada, não há que se confundir o poder regulatório com o poder regulamentar.
Boa parte da discussão acerca da natureza dos atos praticados pelas agências tem
sua origem na confusão que se faz sobre tais definições. Conforme visto no início
desse trabalho, as agência reguladoras foram idealizadas a partir da implementação
do plano nacional de desestatização com a finalidade de servir de órgãos
reguladores das atividades cuja exploração foi transferida ou permitida aos
particulares. Assim, a noção de regulação está intimamente ligada a finalidade
econômica e técnica, cabendo, destarte, a tais órgãos, a expedição, tão somente de
atos com conteúdo técnico e/ou econômico necessário ao fiel desempenho de sua
função. Evidentemente, de forma esporádica, esses atos podem veicular conteúdo
jurídico; apesar de não ser o desejável, nem sempre pode ser evitado, como é o
caso, por exemplo, quando a agência atua na defesa da concorrência ou do
consumidor. José Maria Pinheiro Madeira (2004, p. 265) explica que “a atividade
regulatória não se confunde com a atividade regulamentar, pois enquanto a primeira
é conferida no Brasil, por lei, às agências reguladoras, a atividade regulamentar é,
por força de imperativo constitucional, privativa do Chefe do Poder Executivo”.
Marcos Juruena Villela Souto é outro estudioso do assunto que concorda
com a tese da atribuição das agências reguladoras, exclusivamente, para a
normatização técnica da atividade sob se âmbito de influência. Atendo-se mais
especificamente aos aspectos econômicos ele ensina que
Cumpre, pois, não confundir a regulação, que é um conceito econômico,
com a regulamentação, que é um conceito jurídico (político). Aquela é
sujeita a critérios técnicos, que tanto pode ser definida por agentes estatais
(envolvendo a Teoria da Escolha Pública) preferencialmente dotados de
independência (para fazer valer o juízo técnico sobre o político), como pelos
próprios agentes regulados (auto-regulação) (SOUTO, 2002, p. 43)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
233
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
Trata-se, então, de um poder normativo de cunho essencialmente técnico,
ou seja, de abrangência limitada; na verdade, tais atos não têm a mesma abstração
e generalidade que têm os regulamentos editados pelo chefe do Poder Executivo.
Qualquer ato praticado pelas agências que não sejam direcionados apenas à sua
área de atuação e que tenha por destinatários quaisquer indivíduos ou atividades
será flagrantemente inconstitucional. Afinal, não foi por outro motivo que a própria
Constituição Federal ao prever a criação da ANATEL e da ANP já delimitou o âmbito
de atuação desses órgãos ao estabelecer no art. 21, XI a criação de um órgão
regulador dos serviços de telecomunicações e no art. 177, § 2º, III um órgão
regulador do setor petrolífero.
Outro fato a ser considerado é que mesmo sendo estritamente técnicos,
esses atos somente poderão ser praticados com expressa autorização legal. É que o
legislador, não possuindo conhecimentos ilimitados e específicos sobre todas as
áreas em que há edição legislativa, poderá, e até deverá apenas fixar os parâmetros
e linhas gerais da regulamentação de tais assuntos e deixar que os órgãos técnicos
e especializados ditem as diretrizes para a concretização da vontade legislativa. A
extensão e o limite dos atos normativos técnicos praticados pelas agências
reguladores serão fixados pela lei de sua criação ou a lei que remeteu determinado
assunto à regulação. Observe, entretanto, que os atos regulamentares (na acepção
adotada por esse trabalho, aqueles praticados pelo Chefe do Poder Executivo) são
muito mais abrangentes e poderão, eventualmente, veicular conteúdo de regulação
de determinado atividade econômica, desde que tal assunto não esteja, por
expressa disposição legal, remetido a uma agência reguladora. Essa questão da
densidade normativa dos atos das agências reguladoras foi enfrentada por José dos
Santos Carvalho Filho em abrangente estudo sobre o assunto, no qual consignou
que:
O problema, todavia, derivado de tal carga de amplitude normativa, rende
ensejo ao exame, pelos intérpretes e aplicadores da lei, e até mesmo aos
destinatários, dos limites em que a regulamentação pode ser processada.
Ainda que dotada de grande amplitude, a regulamentação feita pelas
agências – como, de resto, ocorre com qualquer ato de regulamentação –
terá que adequar-se aos parâmetros da respectiva lei permissiva. Afinal, é
de ter-se em conta que a delegação legislativa não é ilimitada, mas, ao
contrário, subjacentes a normas e princípios estabelecidos na lei. Trata-se,
como bem acentuou LUIZ ROBERTO BARROSO, do que se denomina de
“delegação com parâmetros” (“delegation with standards”), através da qual
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
234
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
ao Poder Legislativo cabe fixar as linhas dentro das quais o ato
regulamentar deve ser produzido. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 10)
Evidentemente, tanto José dos Santos Carvalho Filho, quanto Luiz Roberto
Barroso, por ele citado, não utilizam a expressão “delegação” no sentido utilizado
pela Constituição no art. 62 (leis delegadas), nem tão pouco com a amplitude do art.
68 (medidas provisórias). Como o autor mesmo diz, trata-se de remessa da lei para
que a agência disponha sobre determinado assunto, cuja abrangência e amplitude
do ato já deve estar estritamente delimitada, caso contrário, o legislador estaria
burlando o art. 84, IV da Constituição Federal e atribuindo a outro órgão da estrutura
do Poder Executivo a atribuição conferida, com exclusividade, ao Chefe desse
Poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As agências reguladoras, atualmente com forte presença na estrutura
administrativa do Estado brasileiro teve sua origem e inspiração no Direito norteamericano. Nesse país, as primeiras agências apareceram desde os primeiros
momentos da organização do Estado. Com forte viés regulatório, as agências,
chamadas de independentes, logo se fortaleceram e se disseminaram, fazendo,
inclusive, que o direito administrativo norte-americano, pertencente ao sistema da
common Law, nascesse e desenvolvesse em função desses órgãos. Atualmente, as
agências reguladoras norte-americanas se consolidaram como um importante
instrumento de regulação da atividade econômica naquele país.
As agências reguladoras norte-americanas são dotadas de amplos poderes
para ditar regras em relação à atividade econômica posta sob seu âmbito de
atuação. Tais poderes, dada a sua amplitude foram nominados pela doutrina de
poderes “quase-legislativos” (podem emitir regras e regulamentos que têm força de
lei) e “quase-judiciais” (decisões acerca de conflitos individuais afetos à sua área de
regulação) além da enorme presença no campo de atuação do poder executivo.
No Brasil, no início da década de 90 o governo deu início a uma modificação
radical quanto à participação do Estado na economia e na prestação de serviços
públicos. O Programa Nacional de Desestatização transferência à iniciativa privada
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
235
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
de várias empresas até então pertencentes ao Estado, como também, abriu ao
capital privado de vários outros setores econômicos até então não explorados ou de
exploração restrita a poucas empresas. Contudo, era necessário que o Estado não
se desvinculasse completamente dessas atividades, sendo necessária a sua
presença, em determinados setores, ao menos como órgão regulador dessas
atividades para atuar aspectos importantes como defesa da concorrência, defesa e
segurança do consumidor, garantia de serviço contínuo e de qualidade, dentre
outros. Pensou-se então, na criação de órgãos específicos para cuidar desses
aspectos, que, pela carga de tecnicismo que envolviam, não podiam ficar
dependentes de uma atuação difusa e genérica da Administração.
A partir dessa necessidade criou-se em nosso sistema as agências
reguladoras com nítida e inegável influência do modelo norte-americano. Tendo em
vista a necessidade de independência em relação à Administração central, optou-se
pelo modelo de autarquia até então existente em nosso sistema, porém atribuindolhe poderes idênticos àqueles dos órgãos reguladores norte-americanos.
Ocorre que ao se importar determinados institutos de diferentes sistemas
jurídicos como são os da common law e romano germânico, necessárias se fazem
também as devidas adaptações.
O legislador brasileiro ao atribuir poder normativo e regulador às nossas
agências reguladoras deve estar atento às peculiaridades de nosso sistema,
especialmente as regras e princípios constitucionais. Por evidente não é possível,
simplesmente, importar, ipses literes a configuração das agências norte-americanas.
Essa tentativa do legislador de tornar as agências reguladoras brasileiras o mais
idênticas possível das congêneres norte-americanas tem causado forte discussão
doutrinária, notadamente, quanto ao poder normativo e regulador, frente ao nosso
modelo constitucional de repartição de competências e proteção de direitos e
garantias individuais.
A doutrina administrativa brasileira tem se pautado em diferentes teorias
para justificar a abrangência e os limites do poder normativo e regulador das
agências reguladoras brasileiras. Destacam-se a teoria da deslegalização, teoria que
atribui às agências poder de editar regulamentos, idêntico àquele conferido ao
Presidente da República e a teoria que admite às agências a prática de atos
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
236
Elton Dias Xavier e Elizangela Santos de Almeida
administrativos essencialmente técnicos e afetos à sua área de atuação para regular
aspectos específicos determinados por lei.
A teoria da deslegalização defende que os atos normativos praticados pelas
agências reguladoras teriam seu fundamento de validade na delegação do Poder
Legislativo de parcela de suas atribuições, podendo, assim, as agências, no limite da
delegação, livremente, editar as normas que entendessem necessárias. Tais normas
teriam força de lei e poderiam, inclusive, inovar no ordenamento, gerando e
restringindo direitos e obrigações. Contudo, em que pese a respeitabilidade de seus
defensores, a tese não se sustenta. Isso porque o Poder Legislativo, em razão da
conformação constitucional do Estado brasileiro, não pode, livremente, dispor das
funções a ele reservadas. A Constituição Federal já estabeleceu, expressamente, os
casos em que outro Poder ou órgão, poderiam, excepcionalmente, exercer a função
legislativa com capacidade para inovar no ordenamento; no caso, ao Poder
Executivo com fundamento no 62 (medidas provisórias) e art. 68 (medidas
provisórias); ao Conselho Nacional de Justiça (art. 130-B) e ao Conselho Nacional
do Ministério Público (art. 130-A, § 2º, I). Dessa forma, qualquer outra espécie de
delegação, a qual convencionou-se chamar de delegação anômala, será, por
evidente, inconstitucional.
Uma segunda corrente doutrinária defende que o poder normativo das
agências reguladoras são idênticos aos poderes conferidos ao Poder Executivo pelo
art. 84, IV da Constituição Federal. Assim, poderiam editar normas complementares
para a fiel execução e cumprimento das leis afetas à sua área de atuação. Por
óbvio, essa tese também não merece acolhida. A constituição em nenhum momento
demonstra o desejo de compartilhar a atribuição de editar regulamentos para
cumprimento das leis. Ao contrário, esse poder foi conferido com exclusividade
apenas ao chefe do Poder Executivo não havendo igual previsão para órgãos da
Administração.
A corrente que mais de adéqua ao nosso sistema é a que defende que as
agências reguladoras expedem atos normativos técnicos, específicos em relação a
determinados aspectos da atividade posta sob sua área de regulação. Os teóricos
dessa tese defendem que é necessária a distinção entre poder regulador (de caráter
econômico) com poder regulamentar (de cunho político-jurídico). Dada a
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
237
O poder normativo e regulador das agências reguladoras...
especificidade de determinadas questões, em vista do conhecimento técnico que
exigem para sua regulação, as agências podem ditar atos específicos tendentes a
fixar parâmetros para a o exercício daquela parcela da atividade econômica ou
serviço explorado. Jamais poderão ser conferidos poderes às agências reguladoras
para baixar normas complementares às leis em relação à totalidade de determinado
setor. Apenas o chefe do Poder Executivo detém poderes para editar normas gerais
e abstratas para regulamentar as leis. Os atos normativos expedidos pelas agências
reguladoras, em que pesem, também gerais e abstratos, devem restringir-se a
questões pontuais e essencialmente técnicas, e circunscreverem-se aos exatos
limites da lei permissiva. Essa é a melhor interpretação a fim de harmonizar os
dispositivos dos artigos 21, XI e 177, § 2º, III com o art. 84, IV, todos da Constituição
Federal.
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
239
Jefferson Augusto de Paula e outros
A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO
MILITAR À LUZ DOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS1
THE NECESSITY OF INTERPRETATION OF MILITARY LAW IN THE LIGHT OF FUNDAMENTAL
RIGHTS AND GUARANTEES
Jefferson Augusto de Paula2
Carlos Eduardo O-Reilly Cabral Posada3
Ranka Diriángem Sandino da Gama4
Robson Luiz Selleti5
Eduardo Henrique Titão Motta6
Marinson Luiz Albuquerque7
Resumo
O presente artigo tem o objetivo de analisar o direito militar, nos seus subsistemas:
administrativo, penal e processual, através da Constituição Federal de 1988.
O tema proposto, não tem como fim, esgotar a discussão em torno da matéria, mas
sim, alavancar o interesse no meio acadêmico e dos operadores do direito, na
construção de uma dogmática jurídica voltada a uma interpretação conforme a
Constituição Federal, especificamente, nas searas do direito administrativo militar,
e, também, do direito penal e processual militar.
Palavras-chave: Direito Militar. Direitos fundamentais. Subsistemas.
Abstract
This article aims to analyze the military law, in its administrative, criminal and
procedural subsystems, by menas of the Federal Constitution of 1988.
The poposed theme, does not intend to deplete the discussion on the matter, but to
leverage interest in the academic and legal professionals, for the construction of a
1
2
3
4
5
6
7
O presente trabalho é resultado do Grupo de Estudos em Direito Militar realizado na Academia
Brasileira de Direito Constitucional no anos de 2010/2011.
Mestre em Direito Constitucional pela UNIVALI. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela
ABDConst. Pós-Graduado em Direito Criminal pela UNICURITIBA. Coordenador do Grupo de
Estudos em Direito Militar da ABDConst. Advogado.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Pós-Graduado em Direito
Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Pós-Graduado pela Escola da
Magistratura Federal. Advogado.
Bacharel em Segurança Pública, pela Academia Policial Militar do Guatupê. Bacharel em Direito
pela Universidade Campos de Andrade. Pós-Graduado em Direito Militar pela Universidade
Anhanguera-UNIDERP-LFG. Capitão QOPM/PR.
Bacharel em Segurança Pública, pela Academia Policial Militar do Guatupê. 2º Tenente QOPM/PR
Estudante de Direito na Faculdade Educacional de Araucária. Soldado QPM 1-0 da PMPR.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
240
A necessidade de interpretação do direito militar...
legal doctrine geared to an interpretation according to the Constitution, specifically,
the fields military administrative law, and also military criminal and procedural law.
Keywords: Military Law. Fundamental rights. Subsystems.
Sumário: Introdução. 1. A necessidade de uma releitura do direito militar. 2. Interpretação
conforme e outras técnicas de interpretação constitucional. 2.1. Técnicas
tradicionais de interpretação. 2.1.1. Interpretação literal. 2.1.2. Interpretação
sistemática. 2.1.3. Interpretação histórica. 2.2. A interpretação conforme a
constituição. 2.3. A interpretação conforme a constituição e a declaração de
nulidade sem redução de texto. 3. Direitos e garantias fundamentais aplicadas
ao direito militar nas suas sub-áreas: penal, processual e administrativo. 3.1.
Considerações a respeito da hierarquia e da disciplina. 3.2. Os princípios do
contraditório e da ampla defesa. 3.3. O princípio da presunção de inocência. 3.4.
Princípio do devido processo legal. 3.5. Princípio da vedação da prova ilícita. 4.
A efetivação de princípios em favor do militar. 4.1. A efetivação do princípio da
inocência na seara administrativa. 4.2. Efetivação do princípio da legalidade.
4.3. Efetivação do princípio do contraditório e da ampla defesa. Conclusão.
Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem o objetivo de analisar o direito militar, nos seus
subsistemas: administrativo, penal e processual, através da Constituição Federal de
1988.
Após, um período autoritário que se viu no Brasil, a Constituição de 1988,
conhecida como “cidadã”, trouxe novas luzes, concretizando direitos fundamentais e
elevando o país a um status de Estado Democrático de Direito.
Lenio Luiz Streck (2009, p. 37), analisa este contexto constitucional dizendo:
A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente
ligado a realização dos direitos fundamentais. É desse limite indissolúvel
que surge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado
Democrático de Direito.
Passados mais de duas décadas da promulgação da nossa Lei Maior,
vivenciamos um crescimento exponencial do conhecimento da população sobre os
seus direitos e um consequente aumento da efetividade da Carta Magna.
No âmbito do direito militar, esta caminhada ainda não está correndo a
passos largos, porém as mudanças são visíveis e extremamente necessárias, haja
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
241
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vista que tal campo jurídico não pode ser uma “ilha” no ordenamento jurídico
nacional, mas sim, estar em harmonia com os preceitos constitucionais e seu
conteúdo principiológico.
Embora a hierarquia e disciplina sejam pressupostos basilares na
administração militar, suas leis, normas e regulamentos devem passar por um
processo de filtragem constitucional, para verificação da sua sobrevivência no
mundo jurídico, vislumbrando a sua real aplicabilidade.
Durante o trabalho, analisaremos a necessidade de uma releitura do direito
militar a partir da Constituição, citando as mais diversas formas de interpretação
normativa, elencando uma série de princípios que entendemos serem perfeitamente
aplicáveis a todas as esferas do direito militar, bem como a sua efetivação em
benefício do militar.
1
A NECESSIDADE DE UMA RELEITURA DO DIREITO MILITAR
O tema proposto, não tem como fim, esgotar a discussão em torno da
matéria, mas sim, alavancar o interesse no meio acadêmico e dos operadores do
direito, na construção de uma dogmática jurídica voltada a uma interpretação
conforme a Constituição Federal, especificamente, nas searas do direito
administrativo militar, e, também, do direito penal e processual militar.
O militar, seja ele estadual ou federal, possui obrigações específicas, e, esta
carga obrigacional é tratada por Eduardo Augusto Alves Vera Cruz Pinto (2009, p.
57) em um estudo, inserido na obra “Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana”,
onde assim consta:
A disciplina e hierarquia são princípios organizativos estruturados em
valores bem sedimentados de honra, coragem, honestidade, coesão,
companheirismo e cumplicidade entre aqueles que, em cumprimento da
missão, aceitam voluntariamente sacrificar a própria vida em defesa da
comunidade formalizada em torno do conceito de Pátria.
Sua manifestação, embora realizada com o fim de fundamentar seu
raciocínio na defesa da mantença dos Tribunais Militares num Estado Democrático
de Direito, possui também importância em nosso trabalho, pois, é desta classe de
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242
A necessidade de interpretação do direito militar...
agentes públicos que, infere toda a essência de nossa construção dogmática
jurídica.
Por este vértice, é certo que, essa classe – militar, vem sofrendo, às duras
penas, o reflexo de uma ordenação jurídica penal – formal e material, chancelada
nos idos de 1969, quando imperava um regime ditatorial com poderes absolutos,
advindo do Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968, cessando seus efeitos,
somente em 13 de outubro de 1978 quando a Emenda Constitucional 11 foi
promulgada, revogando todos estes atos institucionais arbitrários, contrários ao
interesse da Constituição Federal de 1967.
Note-se que, os integrantes das forças militares (federal e estadual),
acabaram sendo submetidos a uma legislação especial, decretada no início desse
poder absoluto, pois, a codificação material e processual vigente até os dias de hoje,
continuam sendo, os Decretos-Leis 1.001/69 e 1.002/69, ambos, pontificados em 21
de outubro de 1969 – Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar,
respectivamente.
Para consubstanciar a necessidade de uma releitura do direito militar, temos
que, mesmo em pleno século XXI, ainda vivenciamos, magistrados e operadores do
direito, defenderem às cegas, a aplicação irrestrita, da regra do art. 2º do Código de
Processo Penal Militar – concernente à interpretação literal de suas expressões.
Nesse contexto, buscando diferenciar e justificar a importância da classe dos
militares no âmbito do Estado Democrático de Direito, Eduardo Augusto Alves Vera
Cruz Pinto (2009, p. 60) no trabalho acima citado, pondera:
Por isso, os povos que, decidindo querer ter Forças Armadas, desejam viver
em sistemas democráticos no âmbito de Estados de Direito exigem
disciplina aos elementos das forças armadas no quadro de obediência à sua
hierarquia e em respeito das normas legais e regulamentares que pautam a
sua actividade de serviço. A Comunidade, através das leis, confere à
hierarquia militar a garantia de que a disciplina é mantida pela aplicação de
normas aprovadas por ela, através dos seus representantes.
No que concerne às legislações castrenses, o mais adequado seria uma
completa reformulação das normas vigentes em nosso ordenamento, entretanto, por
ser uma ideia futurista e ainda, por acreditar que, nunca chegaríamos ao fim
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243
Jefferson Augusto de Paula e outros
proposto, é que se faz necessário uma busca incessante de uma dogmática jurídica
emancipadora, visando a proteção destes indivíduos que, por voluntariedade:
(...) é pedido um serviço público de interesse geral que pode ir até o
sacrifício da vida e ele é treinado para o uso legítimo da violência através da
aplicação de um conjunto concatenado de armas letais. Essas
particularidades, únicas e caracterizadoras do exercício da função militar
impõem um estatuto jurídico próprio da função militar, não diretamente da
condição militar, e a aceitação de adaptações a princípios e institutos
jurídicos quando aplicado aos militares. (PINTO, 2009, p. 58)
Mesmo reconhecendo que tais características peculiares, impõem um
estatuto jurídico próprio, isto não conduz a inobservância de interpretações advindas
e coadunadas com a Constituição Federal como no caso a interpretação conforme.
Com esse objetivo, eis a manifestação de Paulo Ricardo Schier (1999, p. 2425):
(...) o fenômeno tomado como objeto de estudos refere-se a que, diante da
força normativa da Constituição, todo o ordenamento jurídico estatal deve
ser lido sob a ótica da axiologia, materialidade e jurisdicidade constitucional.
Tal processo de filtragem constitucional decorrente da força normativa da
Constituição, inaugura certamente, no âmbito infraconstitucional, um
momento de releitura do Direito, mormente em sua dimensão tecnológica
(visando a orientação e decidibilidade dos problemas concretos). Isto
porque, a partir da perspectiva da filtragem constitucional, surge a
necessidade de se buscar uma inter-relação axiológica visando a unidade
sistemática e a efetiva realização dos valores estabelecidos no pacto
fundador diante do direito infraconstitucional (fenômeno conhecido como
constitucionalização do direito infraconstitucional).
O referido autor, ao se posicionar em relação ao enfrentamento da
normatividade e seu sistema – Constituição de 1988, expõe:
(...) Será preciso compreender cada uma das Constituições à luz de sua
história, de sua geografia, de seu lócus social e político. Isto, certamente,
não significará decretar-se o fim de uma “Teoria da Constituição”, mas, sim,
que os seus dados devem ser lidos à luz da história e das especificidades
de cada povo. E daqui advém, sempre, a exigência de uma qualificação do
discurso constitucional (referido a um tempo e espaço). Fala-se, por tais
razões, a partir de agora, não de qualquer Constituição, nem de qualquer
tempo ou lugar. O discurso em andamento no Brasil, posteriormente ao seu
processo de redemocratização, culminando pela elaboração da Constituição
Federal de 1988, reconhecidamente vinculante, compromissória,
democrática e dirigente. (SCHIER, 1999, p. 91-92)
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244
A necessidade de interpretação do direito militar...
Extrai-se, portanto, a impossibilidade de se falar em interpretação conforme
a Constituição, se desprezarmos o momento histórico e todo o seu processo de
promulgação.
Sob esta ótica, se conclui que é impossível se abster de garantir tais
proteções à classe dos militares, se nossa Carta da República, tivera sua essência
na libertação do poder absoluto do Estado em relação aos cidadãos, maximizando a
dignidade da pessoa humana, como fundamento, já em seu art. 1º, III.
Neste trilhar, Luigi Ferrajoli (1999, p. 20-21), registra:
(...) la “validez” de las normas (...) em el Estado constitucional de derecho
(...) incluye tambiém normas substanciales, como el princípio de igualdad y
los derechos fundamentales, que de modo diverso limitan y vinculan al
poder legislativo excluyendo o imponiéndole determinados contenidos. Así,
uma norma – por exemplo, uma ley que viola el princípio constitucional de
igualdad – por más que tenga existência formal o vigência, puede muy bien
ser inválida y como tal susceptible de anulación por contraste com uma
norma substancial sobre su produccíon.
Prossegue o autor (1999, p. 47):
(...) Por outro lado, si se asume que son fundamentales todos los derechos
universales, es decir, reconocidos a todos en cuanto personas o
ciudadanos, entre ellos están comprendidos también los derechos sociales,
cuya universalidad no está excluída (...).
Diante dessa constatação, temos que, antes de ser por opção um militar,
jamais perdera sua qualidade de ser humano. Sua farda não encobre seu
eucidadão, ao contrário, por suas características próprias, a sociedade, por
intermédio de seus operadores do direito, deve ter como fim em contrapartida de sua
abnegação, uma releitura do direito militar sob a ótica garantista da Constituição de
1988.
2
INTERPRETAÇÃO CONFORME E OUTRAS TÉCNICAS DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O ordenamento jurídico brasileiro tem suas bases calcadas principalmente
na Escola Positivista, de codificação e hierarquização de normas.
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Jefferson Augusto de Paula e outros
Por muito tempo a hermenêutica jurídica brasileira pautou-se pelos métodos
tradicionais (literal, sistemático, histórico, etc.), porém, o modelo formalista e positivo
veio perdendo seu valor e abrindo espaço para o pós-positivismo através de
doutrinadores contemporâneos como Dworkin e Alexy, dando mais importância à
aplicação de princípios. Sobre isto, Ana Paula de Barcelos e Luís Roberto Barroso
(2008, p. 336) dizem: “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político
do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de
reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”.
Interpretação, antes de tudo, é uma ação de reflexão, na qual o aplicador do
direito visa dar sentido ao conteúdo da norma, aplicando-a em um fato concreto. A
atividade hermenêutica é a que dá condições para a concretização e eficácia de
uma norma.
Apesar de diversas técnicas clássicas de interpretação constitucional, tais
como a interpretação gramatical, sistemática e histórica, o aplicador do direito
procurou modernos mecanismos diferentes de controle de constitucionalidade para
subsidiar seu trabalho e garantir sua conformidade com a Constituição. Daí nasce à
necessidade de aplicar um método mais satisfatório à interpretação da norma.
Um dos institutos adotados pelo direito pátrio, advindo do direito alemão, é o
da interpretação conforme. André Gustavo C. de Andrade (2008), em estudo sobre o
tema, afirmou: “Sob perspectivas diferentes, a interpretação em conformidade com a
constituição pode ser vista como princípio hermenêutico, como princípio de controle
da constitucionalidade, como princípio de conservação de normas e como técnica de
decisão”. Tal mecanismo leva em conta as normas constitucionais de conteúdo
aberto, que contém diversas possibilidades de interpretação.
2.1
Técnicas tradicionais de interpretação
Primeiramente, não há que se confundir métodos de interpretação com
técnicas tradicionais. Aqueles, a exemplo do método hermenêutico-concretizador
são métodos de compreensão enquanto essas são submissivas da realidade à
norma, elementos de um caso concreto. Na interpretação tradicional não é facultado
ao operador fazer qualquer análise que reduza, especifique ou aumente o sentido da
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246
A necessidade de interpretação do direito militar...
norma em consonância com a Constituição. Todavia, tais técnicas não podem ser
aplicadas individualmente. De maneira sintética pode-se enumerar as seguintes
técnicas de interpretação:
2.1.1
Interpretação Literal
Nesta modalidade, também conhecida por gramatical ou textual, trata da
análise filológica. São analisadas questões léxicas, relativas à conexão entre as
palavras e obedecidas as exigências gramaticais da língua.
2.1.2
Interpretação Sistemática
Nesta forma de interpretação busca-se a ordem hierárquica da norma no
ordenamento jurídico e, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 267), foca-se
na vontade e espírito do legislador e vontade da norma. Este modelo de
interpretação,
amplamente
aceito,
é
incisivamente
criticado
por
autores
contemporâneos e desprezado quando se trata de modernas técnicas de
interpretação por ser considerado subjetivo demais e por tentar avaliar a ideia de um
suposto legislador e o espírito da época.
Lenio Streck (2009, p. 88) após apresentar algumas características
atribuídas por outros autores ao “legislador”, como singular, onisciente, consciente,
permanente, coerente, onicompreensivo e econômico, incisivamente se pergunta:
“Pode alguém, ainda, acreditar em tais ‘propriedades’ ou ‘características’ do
‘legislador’?”
2.1.3
Interpretação Histórica
Esta interpretação também é chamada de atualística, visa analisar a
disposição da norma no contexto histórico e aplicá-la com eficácia no contexto social
presente. Este é um modo mais atual de interpretação que tenta contextualizar a
norma, porém há a possibilidade de ferimento das normas constitucionais.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
247
Jefferson Augusto de Paula e outros
2.2
A interpretação conforme a Constituição
Lenio Streck (2009, p. 239), afirma: “As palavras da lei são constituídas de
vaguezas, ambiguidades, enfim, de incertezas significativas. São, pois, plurívocas.
Não há possibilidade de buscar/recolher o sentido fundante, originário, primevo,
objetificante, unívoco ou correto de um texto jurídico.” Desse modo, podemos
concluir que o sentido de qualquer texto depende do contexto jurídico-social do
tempo em que foi escrito e a época considerada para sua análise.
A atividade interpretativa e a hermenêutica constitucional, apresentam,
portanto, uma abordagem diversa – semiótica – a fim de contrariar os métodos
interpretativos analíticos não contextuais. Mister se faz então analisar diferentes
formas de interpretação, fugindo do tradicional e ultrapassado método, por vezes
não aplicável à luz da Carta Magna.
A interpretação conforme a Constituição encontra sua raiz no princípio da
supremacia da Constituição, que visa equilibrar o poder normativo face a disposição
constitucional.
Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, já se destacava o
voto do Ministro Moreira Alves: “A interpretação da norma sujeita a controle deve
partir de uma hipótese de trabalho, a chamada presunção de constitucionalidade, da
qual se extrai que, entre dois entendimentos possíveis do preceito impugnado, deve
prevalecer o que seja conforme à Constituição.” (STF - Representação de
Inconstitucionalidade N°1417-7/ DF, rel. Moreira A lves, 1987).
Há ainda aqueles que entendem a atividade interpretativa como sendo o
Poder Judiciário legislando positivamente e colocando normas em vigor, pelo
contrário, trata-se de fator de autolimitação e controle da constitucionalidade, na
medida em que o judiciário afasta a interpretação inconstitucional da norma.
Luiz Vergílio Dalla-Rosa (2003, p. 149) enfatiza: “Sob análise discursiva,
pode-se observar o caráter limitador da ação sob o discurso constitucional, atuando
sob a credibilidade em nível de possibilidade, fixando os limites mínimo e máximo de
trânsito discursivo.”
A norma só deve ser considerada nula em ultimo caso, portanto, procura-se
evitar a declaração de sua nulidade por causar um vazio normativo até edição de
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248
A necessidade de interpretação do direito militar...
nova norma que discipline o assunto, buscando o princípio da economia e
aproveitando ao máximo a norma jurídica.
Importante se faz, ainda, expor a questão levantada pelo art. 23, I, da CF,
que em sua primeira parte que afirma ser competência comum da União, dos
Estados e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, colocando num mesmo
patamar todos os Poderes Executivos como responsáveis. Determina assim um
poder-dever de suas instituições e de seus servidores, em analisar e aplicar a lei de
acordo com o que preceitua nossa Magna Carta.
2.3
A interpretação conforme a Constituição e a declaração de nulidade
sem redução de texto
A Lei 9.868/99 que trata da ação direta de inconstitucionalidade e a ação
declaratória de constitucionalidade carrega em seu texto a possibilidade da
utilização da interpretação conforme a Constituição e da declaração de nulidade sem
redução de texto e regula seus efeitos no parágrafo único do artigo 28:
A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e
efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à
Administração Pública federal, estadual e municipal.
Importante salientar que ambas são técnicas de decisões constitucionais. A
interpretação conforme a Constituição determina os possíveis sentidos de
interpretação adequados aos ditames constitucionais.
Na declaração de nulidade sem redução de texto, busca-se as hipóteses de
incidência
da
norma
como
forma
de
torná-la
válida,
em
face
sua
inconstitucionalidade da forma como foi posta pelo legislador.
Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 324), as diferencia do seguinte modo:
Ainda que se não possa negar a semelhança dessas categorias e a
proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto,
na interpretação conforme a Constituição, se tem, dogmaticamente, a
declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é
conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem
redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de
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249
Jefferson Augusto de Paula e outros
determinadas hipóteses de aplicação (Anwendungsfälle) do programa
normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal.
Corroborando com o entendimento acima, temos Virgílio Afonso da Silva
(2006, p. 206) que diz:
A diferença primordial entre interpretação conforme a constituição e
declaração de nulidade parcial sem modificação do texto consiste no fato de
que, a primeira, ao pretender dar um significado ao texto legal que seja
compatível com a constituição, localiza-se no âmbito da interpretação da lei,
enquanto a nulidade parcial sem modificação de texto localiza-se no âmbito
da aplicação, pois pretende excluir alguns casos específicos da aplicação
da lei.
Pode-se consubstanciar tal diferenciação como a interpretação conforme
atividade interpretativa e a declaração parcial de nulidade a retirada da aplicação
inconstitucional da norma, e, em ambos os casos dando, de forma protetiva,
estabilidade jurídica ao sistema.
3
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS APLICADAS AO DIREITO
MILITAR NAS SUAS SUB-ÁREAS: PENAL, PROCESSUAL E
ADMINISTRATIVO
A Constituição Federal, promulgada em 1988 veio a reformular o
ordenamento jurídico nacional e a democratização do Estado, bem como, a proteção
e garantia da aplicação dos direitos fundamentais. A luz dessa concepção, Flávia
Piovesan (2002, p. 56-57), afirma: “Infere-se que o valor da dignidade da pessoa
humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vem a construir os
princípios constitucionais que incorporam as exigências de valores éticos, conferindo
suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro” .
Neste contexto, a Carta de 1988 buscou (e ainda busca) valorar princípios,
enraizando a construção de um Estado Democrático de Direito, combinando com o
respeito e a aplicabilidade dos direitos humanos e fundamentais. Dessa forma, as
normas militares devem respeito à Constituição Federal, devendo ser regidas e
aplicadas dentro de seus ditames.
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A necessidade de interpretação do direito militar...
Luiz Roberto Barroso (2008, p. 337), a respeito da aplicabilidade dos direitos
fundamentais, assevera:
O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais
e do reencontro com a ética – ao qual, no Brasil se deve agregar o da
transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão sobre
ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do poder
público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a
fronteira da reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática
jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos sobre a realidade.
Diante dessa realidade, o direito militar, seja ele processual, administrativo
ou penal, não pode ser uma “ilha” dentro do ordenamento jurídico nacional, devendo
ser coerente com aquilo que a Carta Constitucional determina de acordo com a
amplitude de seus princípios.
Neste compasso, trataremos num primeiro momento sobre as considerações
da hierarquia e da disciplina para após tratarmos alguns princípios constitucionais,
sobre o âmbito castrense.
3.1
Considerações a respeito da Hierarquia e da Disciplina8
De acordo com o disposto nos arts. 42 e 142 da Constituição Federal de
1988, com redação dada pela Emenda Constitucional 18/98, a hierarquia e a
disciplina são preceitos basilares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares, que
são responsáveis pela manutenção da ordem e da segurança pública.
Neste contexto, Cleber Pires (2006, p. 206) destaca:
Apesar da hierarquia e da disciplina não serem exclusivos das instituições
militares, é neste ambiente que são potencializados e alcançam relevância,
pois é o único caso que possui previsão constitucional, que enfaticamente
declara que são instituições organizadas com base na hierarquia e na
disciplina. Esta situação privilegiada faz com que a disciplina e a hierarquia
estejam sempre em destaque em todas as circunstâncias na vida militar.
Apesar disso na condição de princípios, devem ser sopesados em cada
circunstância concreta, quando demonstrarem incompatibilidade com outros
princípios constitucionais.
8
Para esse trabalho reconhecemos que a hierarquia e a disciplina são princípios basilares dentro
do contexto do regime militar.
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Jefferson Augusto de Paula e outros
Mesmo para as instituições militares, a hierarquia e a disciplina constituem
um fim em si mesmo, sendo meios organizacionais peculiares que podem conferir
maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas instituições militares para o
atendimento de suas missões constitucionais.
A Carta Constitucional atribuiu à lei a competência para normatizar a
organização militar. Todavia, a questão de punições militares não pode ser
disciplinada tão somente com vistas a manter-se sempre a hierarquia e a disciplina,
mesmo porque, acima desses valores (PIRES, 2006, p. 206) existem normas que em
verdade são princípios constitucionais que em qualquer situação devem ser
respeitados e atendidos, entre elas a “presunção de inocência”, o “direito ao
contraditório e à ampla defesa”, entre outros.
A hierarquia e a disciplina são pressupostos inafastáveis dentro de uma
instituição militar, porém sua aplicação, deve respeitar as garantias processuais e os
direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Mas o fato é que muitos operadores do Direito Militar racionalizam de
maneira equivocada por se basearem na premissa de que este se presta à proteção
dos princípios da hierarquia e disciplina. Não podem os juizes militares, transformar
os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão
institucional (fins). Ao Poder Judiciário e àqueles que têm a competência de punir no
âmbito administrativo militar, tem o dever de garantir os direitos fundamentais do
militar.
3.2
Os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa
O direito administrativo militar é extremamente peculiar, sendo constituído de
regulamentos rigorosos, trazendo até a possibilidade do cerceamento 9 da liberdade
do militar, fato que traz a consequente necessidade da existência de normas claras e
precisas, que possam permitir ao militar apontado como autor do fato o pleno
exercício da ampla defesa e o conhecimento prévio das faltas que se encontra
sujeito, afastando assim, a possibilidade do arbítrio.
9
Cerceamento, no contexto desse artigo, significa a restrição de liberdade.
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A necessidade de interpretação do direito militar...
Segundo o art. 5º, inciso LV da Constituição Federal, “aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são asseguradas o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Sobre
esse aspecto, José Afonso da Silva (2008, p. 432) afirma que “a prestação
jurisdicional quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os
imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório e a
plenitude do direito de defesa”.
Se defender no sentido mais amplo e exercer o direito de contraditar, não é
somente ter a oportunidade de na mais simples forma escrita, contradizer acusações
ou imputações, mas sim exercer (e ter a efetiva possibilidade de exercer) todos os
meios legais para realizar uma defesa ampla. Nesses termos o militar acusado deve
ter a integralidade dos direitos previstos constitucionalmente, sendo de início o
direito de ser informado e conhecer todos os atos do processo.
Além da ciência, relativo aos atos do processo, o acusado deve ser
informado sobre seus direitos, podendo produzir provas que possam propiciar sua
inocência, arrolar testemunhas, além de poder acompanhar suas oitivas e inquiri-lás.
3.3
O Princípio da Presunção de Inocência
A Constituição Federal no art. 5º, inciso LVII, diz que, “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O
Pacto de São José da Costa Rica, no art. 8º, item 2, proclamou “que toda pessoa
acusada de delito tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se
comprove legalmente sua culpa”, elencando também as garantias mínimas para
promover a igualdade durante o processo; e com fulcro no art. 5º, § 2º da nossa Lei
Maior, que viabilizou esse tratado, é aplicado à todos os brasileiros, sejam eles civis
ou militares e no seu conteúdo se encontra o princípio da presunção da inocência ou
da não culpabilidade.
Luigi Ferrajolli (2002, p. 549) salienta: “a presunção de inocência é antes de
tudo um princípio político porque exprime uma opção garantista a favor da tutela da
liberdade dos inocentes, inclusive mediante o custo da possível impunidade de
algum culpável”.
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253
Jefferson Augusto de Paula e outros
Em ambos os processos, seja ele criminal ou administrativo, o militar, poderá
perder sua liberdade, culminando à perda do posto ou da graduação.
Dentro da expectativa de uma prisão disciplinar ou exclusão das fileiras
militares, vem a extrema necessidade da aplicação do princípio da presunção da
inocência, por mais que se afirme que a administração pública possui poderes
especiais e que na dúvida o princípio a ser aplicado é o in dubio pro administração.
Com base no princípio do devido processo legal, juízos de valor ou de
especulação, não podem ser aceitos como fundamento de uma decisão. A sanção,
caso fique configurada a falta disciplinar, deve ser aplicada de forma justa. As provas
devem ser concretas, seguras, caso contrário, não se alcançará a justiça, pois a
inequidade é incompatível com esta.
O direito administrativo militar, por ser peculiar, possui seus próprios
fundamentos e princípios. Tendo estreitas relações com o direito processual penal
militar, haja vista que algumas faltas administrativas também podem redundar num
processo crime militar. O militar que cometer uma transgressão disciplinar poderá ter
o seu jus libertatis cerceado por até 30 dias, devendo permanecer no quartel até o
cumprimento da punição, conforme consta no Anexo III do Regulamento Disciplinar
do Exército – RDE, previsto no Decreto 4.346 de 2002.
O processo administrativo disciplinar é instaurado pelo comandante a partir
de fatos que lhe são noticiados e que o mesmo por previsão legal determina a um
militar que investigue os fatos, os quais devem ser feitos com serenidade e
imparcialidade, o que frise-se nem sempre ocorre.
A sábia observação de Geraldo Prado (2006, p. 03), extremamente válida ao
direito militar, assevera que “No entanto, o que se constata inevitavelmente é que o
modelo de processo penal brasileiro atual balança entre exigências normativas
garantistas e práticas autoritárias”, ou seja, apesar das inúmeras alterações legais e
do advento de uma Constituição “garantista”, ainda há a não observação da
presunção de inocência do acusado e que a sua mudança de condição somente
vem com a condenação final transitada em julgado.
Há de deixar claro que a Constituição Federal garante ao acusado a sua
permanência no “rol” dos inocentes até que sua sentença seja transitada em julgado,
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A necessidade de interpretação do direito militar...
esgotada as suas possibilidades recursais. Embora o art. 5º, inciso LVII, mencione
literalmente em seu final “sentença penal condenatória”, tal princípio não pode de
forma alguma ser limitado apenas na esfera penal, pois está intimamente ligado ao
preceito de justiça envolto em nossa “Lei Maior”.
No âmbito administrativo, devido ao seu caráter sancionador, é mais que
latente a necessidade da aplicação do princípio da presunção de inocência, bem
como conforme Manuel Rebollo Puig (2002, p. 264) salienta, há de se destacar a
proximidade entre a sanção administrativa e a penal:
Ya que prácticamente se acepta que no hay límites de extensión a la
potestad sancionadora de la Administración, como uma especie de
compensación, se la ha sometido a estrictos límites relativos a su forma y
condiciones de ejercicio y a su pleno control judicial. Esto se ha hecho
construyendo um Decrecho Administrativo sancionador que guarda un cierto
paralelismo y toma su inspiración del Derecho Penal e, en cuanto a las
garantías formales, del Derecho Procesal Penal.
Na seara do direito militar, que assim como o direito penal pode vir a ensejar
em restrição de liberdade até mesmo na esfera administrativa, não se vislumbra
mais possível haver penalização antes de esgotados todos os recursos cabíveis,
aplicando-se por analogia as mesmas garantias incidentes no campo do processo
penal, dada à similitude de circunstâncias, já que em ambos os casos há aplicação
de uma penalidade.
A possibilidade de que o militar apontado como autor do fato na esfera
administrativa, cumpra a pena restritiva de liberdade -seja ela uma detenção ou
prisão -mesmo com recurso interposto ainda em análise, viola ao nosso ver o
princípio da presunção da inocência ou da não culpabilidade conforme acabamos de
demonstrar.
3.4
Princípio do Devido Processo Legal
Pode-se afirmar que o princípio do devido processo legal é a norma que
orienta toda a atividade processual. Dessa maneira, Denilson Feitoza (2008, p. 134)
explica que esta garantia “se irradia por todos os demais princípios processuais, pois
o cumprimento dele depende da efetiva realização de todos os outros”.
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255
Jefferson Augusto de Paula e outros
Para Barroso (2009, p. 198), o referido princípio é tratado como cláusula
geral, ou seja, compreendido como “categorias normativas pelas quais se transfere
para o intérprete, com especial intensidade, parte do papel de criação do Direito”.
Assim, deve se amoldar ao contexto histórico-social.
No tocante a sua origem, teve seu marco inicial na Magna Carta de João
Sem Terra de 1215, documento que tinha por objetivo limitar os poderes da
monarquia inglesa da época. Dessa forma, esse princípio é oriundo da expressão,
em inglês, due process of law.
Atualmente, no Brasil, o princípio do devido processo legal encontra-se
elencada no rol dos direitos e garantias fundamentais, nos termos do art. 5º, inciso
LIV, da Constituição da República, “ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal”.
Fredie Diddier Jr., explica que este princípio possui duas dimensões: uma
formal e outra substantiva.
Assim, o devido processo legal em sentido formal é “o direito a ser
processado e a processar de acordo com normas previamente estabelecidas para
tanto, normas estas cujo processo de produção também deve respeitar aquele
princípio” (DIDIER JR., 2008, p. 39). Logo, é o conjunto das garantias processuais
básicas asseguradas aos indivíduos tais como a defesa técnica, o de ser ouvido
pessoalmente perante o juiz com o desiderato de mostrar sua versão acerca dos
fatos, a um pronunciamento judicial devidamente motivado, ao duplo grau de
jurisdição entre outros.
Já o devido processo legal em sentido substantivo “diz respeito à
necessidade de observar o princípio da proporcionalidade com resguardo da vida,
da liberdade e propriedade” (CARVALHO, 2007, p. 656), isto é, configura-se o
fundamento para o uso do princípio, diga-se implícito, da proporcionalidade.
Portanto, “trata-se de princípio que torna possível a justiça do caso concreto,
flexibilizando a rigidez das disposições normativas abstratas” (DIDIER JR., 2008, p.
37) e valorando todos os direitos materiais do cidadão.
Destarte, ante ao contexto do Estado Democrático de Direito, sobretudo no
que tange ao princípio do devido processo legal, em ambos os sentidos, qualquer
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
256
A necessidade de interpretação do direito militar...
dispositivo que resulte na violação das garantias individuais que afaste o ideal do
processo devido, não poderá ser empregado.
Em que pese o regime jurídico militar seja reconhecido como um regime
peculiar é importante ressaltar que ao direito castrense impõe-se a obediência no
que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais. Nesse ponto em específico, o
processo militar (penal ou administrativo) deve seguir o comando do princípio do
devido processo legal, assegurando ao militar/indivíduo um conjunto de garantias
processuais básicas.
3.5
Princípio da Vedação da Prova Ilícita
No campo da atividade probatória, consubstanciado no código de processo
penal militar, o direito castrense adotou o sistema do livre convencimento. Dessa
forma, nos termos do art. 297 do referido Código “o juiz formará convicção pela livre
apreciação do conjunto das provas colhidas em juízo. Na consideração de cada
prova, o juiz deverá confrontá-la com as demais, verificando se entre elas há
compatibilidade e concordância”.
Vale dizer que o livre convencimento, dentro da perspectiva do devido
processo legal substantivo, exige uma respectiva fundamentação. Nesse contexto,
ficam afastados tanto o sistema da íntima convicção do juiz – que prescinde de
qualquer motivação – quanto o sistema da prova tarifada ou prova legal.
Obviamente, o sistema adotado não pode ser considerado de maneira
absoluta, sendo limitado constitucionalmente. De acordo com o art. 5º, inciso LVI, da
Constituição da República, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos”.
Portanto, o julgador, ante a sua livre apreciação do plexo probatório colhido,
deverá fundamentar a sua decisão com base nas provas lícitas, devendo
desconsiderar a(s) prova(s) ilícita(s).
Egon Bockmann Moreira (2003, p. 326) afirma: “não cogitamos de sustentar
a possibilidade de a Administração estar apta à produção de provas ilícitas”. Vale
dizer, a norma de inadmissibilidade das provas ilícitas, segundo Eugenio Pacelli de
Oliveira (2008, p. 295), cumpre:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
257
Jefferson Augusto de Paula e outros
Uma função ainda mais relevante, particularmente no que diz respeito ao
processo penal, a saber: a vedação das provas ilícitas atua no controle da
regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a
adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande
responsável pela sua produção. Nesse sentido, cumpre função
eminentemente pedagógica, ao mesmo tempo que tutela determinados
valores reconhecidos pela ordem jurídica .
Para Didier Jr. (2008, p. 37), a “norma assecuratória da inadmissibilidade
das provas obtidas com violação de direito, com efeito, presta-se, a um só tempo, a
tutelar direitos e garantias individuais, bem como a própria qualidade do material
probatório a ser introduzido e valorado no processo”.
No entanto, partindo-se da premissa de que para alguns “nenhum direito
reconhecido na Constituição pode revestir-se de caráter absoluto” (BASTOS, 1999,
p. 228), destacam-se três correntes acerca da inadmissibilidade das provas ilícitas:
A primeira – inadmissibilidade absoluta – seria justamente uma interpretação
literal do dispositivo constitucional. Convém dizer que essa corrente é criticada na
medida em que:
para nós, desde Einstein não há mais espaço para tais teorias que têm a
pretensão de serem ‘absolutas’, ainda mais quanto é evidente que todo
saber é datado e tem prazo de validade e principalmente, que a
Constituição, como qualquer lei, já nasce velha, diante da incrível
velocidade do ritmo social. Logo, a inadmissibilidade absoluta tem a absurda
pretensão de conter uma razão universal e universalizante, que pode(ria)
prescindir da ponderação exigida pela complexidade que envolve cada caso
na sua especificidade. (LOPES JR., 2007, p. 564)
Uma outra teoria – admissibilidade da prova ilícita consubstanciada no
princípio da proporcionalidade – explica que a norma constitucional que veda a
utilização no processo de prova obtida por meio ilícito deve ser analisada à luz do
princípio da proporcionalidade, devendo o juiz, em cada caso, sopesar se outra
norma, também constitucional, de ordem processual ou material, não supera em
valor aquela que estaria sendo violada. Assim, a mitigação dessa garantia
constitucional deve ser manuseada de maneira excepcional, isto é, “desde que
aplicado único e exclusivamente em situações tão extraordinárias que levariam a
resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes, se inadmitida a prova ilícita”
(GRINOVER et. al., 2009, p. 127).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
258
A necessidade de interpretação do direito militar...
No entanto, observa Aury Lopes Jr. (2007, p. 565), que esta corrente é
temerosa uma vez que o “conceito de proporcionalidade é constantemente
manipulado e serve a qualquer senhor”.
Por fim, a terceira corrente – admissibilidade da prova ilícita pro reo – pela
qual a “prova ilícita poderia ser admitida e valorada apenas quando se revelasse a
favor do réu” (LOPES JR., 2007, p. 565). Assim, “trata-se da proporcionalidade pro
reo, onde a ponderação entre o direito de liberdade de um inocente prevalece sobre
um eventual direito sacrificado na obtenção da prova (dessa inocência)” (LOPES
JR., 2007, p. 565). É importante destacar que esse é o entendimento adotado no
presente artigo.
Convém ressaltar, que apesar do código de processo penal militar não
dispor expressamente sobre a vedação da prova ilícita, este elenca uma regra pela
qual se abstrai esse entendimento. Conforme dicção do art. 295, “é admissível, nos
termos deste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a
moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a
disciplina militares”.
Ademais, enuncia outra hipótese de prova ilícita que impõe o respectivo
desentranhamento do processo. Trata-se do comando legal contido no seu art. 375
que prescreve: “A correspondência particular, interceptada ou obtida por meios
criminosos, não será admitida em juízo, devendo ser desentranhada dos autos se a
estes tiver sido junta, para a restituição a seus donos”.
Portanto, em que pese o ordenamento militar não fazer menção expressa à
vedação da prova ilícita, destaca-se que a legislação castrense, diga-se
infraconstitucional, deve respeito ao mandamento constitucional.
4
A EFETIVAÇÃO DE PRINCÍPIOS EM FAVOR DO MILITAR
4.1
A efetivação do princípio da inocência na seara administrativa
O processo administrativo disciplinar seja ele militar ou não, há que se
pautar no respeito ao devido processo legal.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
259
Jefferson Augusto de Paula e outros
Nelson Nery Junior (2002, p. 37) esclarece:
A cláusula due process of law não indica somente a tutela processual, como
à primeira vista pode parecer ao intérprete menos avisado. Tem sentido
genérico, como já vimos, e sua caracterização se dá de forma bipartida, pois
há o substantive due process eo procedural due process, para indicar a
incidência do princípio em seu aspecto substancial, vale dizer, atuando
no que respeita ao direito material, e de outro lado, a tutela daqueles
direitos por meio do processo judicial ou administrativo.
Nesta linha de pensamento André Ramos Tavares (2010, p. 735) menciona
que o “princípio do devido processo legal vale para qualquer processo judicial (seja
criminal ou civil), e mesmo para os processos administrativos, inclusive os
disciplinares e os militares.”
Uma questão de suma importância é relativa à prisão por transgressão
disciplinar de que trata o art. 24, parágrafo único do Decreto 4.346/2002 (RDE)10.
Nesta hipótese advoga-se que o militar deve ter o direito de defesa efetivamente
exercido, e depois de provada a transgressão aí sim, aplicar-se-ia a pena, pois do
contrário ocorreria o ferimento do devido processo legal.
Afinal, a manter-se a regra atual do art. 24 do RDE, injustiças poderão ser
cometidas, pois, o próprio regulamento assim o reconhece, quando prevê no art. 14,
§ 3º11, que negada a existência ou autoria do fato por sentença criminal, as
responsabilidades cível e administrativa serão afastadas.
Ora, se afastada a autoria como ficaria a questão daquele que ao final do
processo crime é absolvido, mas cumpriu 30 (trinta) dias de prisão pela transgressão
que não cometera? A resposta é simples, a punição disciplinar deveria aguardar a
decisão penal!
10
Art. 24. Segundo classificação resultante do julgamento da transgressão, as punições disciplinares
a que estão sujeitos os militares são, em ordem de gravidade crescente:
Parágrafo único. As punições disciplinares de detenção e prisão disciplinar não podem ultrapassar
30 (trinta) dias e a de impedimento disciplinar, 10 (dez) dias.
11
Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos
estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares,
mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou ainda, que afete a honra pessoal, o
pundonor militar e o decoro da classe.
§ 3º. As responsabilidades cível e administrativa do militar serão afastadas no caso de absolvição
criminal, com sentença transitada em julgado, que negue a existência do fato ou da sua autoria.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
260
A necessidade de interpretação do direito militar...
4.2
Efetivação do princípio da legalidade
Um tema que é objeto de grande discussão é o disposto no art. 5º, LXI da
Constituição12 ao mencionar a ressalva quanto aos militares em razão de prisão por
crime ou transgressão militar definidos em lei, o qual deve ser lido à luz do inciso II
do mesmo artigo13.
Ocorre que o RDE é um decreto e a Constituição menciona expressamente
a necessidade de previsão em “lei”, o que caracteriza o RDE e os decretos estaduais
como inconstitucionais pelo vicio de origem, o que é defendido por Paulo Tadeu
Rodrigues Rosa (2007, p. 135/137)14.
Tanto é verdade que vários Estados da Federação editaram leis estaduais
para disciplinar as punições por transgressão. Minas Gerais é um destes casos,
pois, simplesmente aboliu a prisão disciplinar. Assim fica clara a necessidade de
edição de lei para o caso. Para que se efetive o princípio da legalidade neste caso,
12
LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita fundamentada de
autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei.
13
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
14
O texto “Regulamento disciplinar militar e as suas inconstitucionalidades” trata da adequação da
legislação castrense aos princípios constitucionais que devem ser observados pela administração
pública militar na busca de uma efetiva aplicação da justiça, que é essencial para a construção do
Estado Democrático de Direito, como bem observa o autor em suas conclusões finais. “Neste
sentido, se a prisão somente pode ser decretada por uma autoridade judiciária militar com base na
lei, como o sistema poderá admitir uma prisão administrativa fundada em um ato praticado por
autoridade administrativa que justifica a sua decisão em um regulamento disciplinar militar que não
foi editado por meio de lei, mas um decreto do executivo? Segundo a doutrina, qualquer
modificação ocorrida após a Constituição Federal de 1988 nos regulamentos disciplinares
somente poderá ser feita por meio de lei proveniente da Assembleia Legislativa ou do Congresso
Nacional, sob pena de nulidade do ato, que poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário em
atendimento ao art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. (...) Os legisladores do Estado de
Minas Gerais, preocupados com esta questão, resolveram rever a existência da prisão
administrativa nos regulamentos da PM, e decidiram pela sua extinção. A busca da valorização do
profissional de segurança é o caminho que deve ser seguido para a melhoria do serviço prestado
à população, e a extinção da prisão administrativa é o primeiro passo nesta caminhada, o que não
significa que em determinados casos ou em espécies de transgressão disciplinar a prisão
disciplinar não possa ser decretada. (...) O art. 24, do Código de Ética e Disciplina dos Militares do
Estado de Minas Gerais, disciplina que: “Conforme a natureza, a gradação e as circunstâncias da
transgressão, serão aplicáveis as seguintes sanções disciplinares: I
– advertência; II –
repreensão; III – prestação de serviços de natureza preferencialmente operacional,
correspondente a um turno de serviço semanal, que não exceda a oito horas; IV – suspensão, de
até dez dias; V – reforma disciplinar compulsória; VI – demissão; VII – perda do posto, patente ou
graduação do militar da reserva.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
261
Jefferson Augusto de Paula e outros
deve ser arguida a inconstitucionalidade pela defesa do acusado, demonstrando de
forma clara as hipóteses de violação, para que o julgador possa declará-la.
4.3
Efetivação do princípio do contraditório e da ampla defesa
A Constituição ao assegurar o contraditório e a ampla defesa no artigo 5º,
LV, proporciona ao acusado em processo judicial ou administrativo o direito a
contraditar, de ser informado, de conhecer as acusações que lhe são imputadas, e
de possuir todos os meios de defesa admitidos em direito.
A efetivação deste princípio também se estende aos militares, até porque a
Constituição não lhes faz qualquer tipo de distinção como afirma Renato Luiz de
Mello Varoto (2010, p. 105) “(...) o contraditório e a ampla defesa não são garantias
exclusivas dos servidores civis. Na verdade, pela sua importância e como pilar do
devido processo legal, abarcam eles também os servidores militares...”.
Mais adiante ainda, referido autor apresenta a decisão no STF, no AGRRE
206775/PE15 na qual o Min. Maurício Correia deixa clara a inexistência de distinção.
No caso de processo administrativo disciplinar é imperioso que seja efetiva a
participação de um defensor e do acusado em todos os atos, para os quais são
intimados sob pena de nulidade. A doutrina também caminha por este sentido
conforme André Ramos Tavares (2010, p. 753)16.
15
A Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes. 1.
Alegação de que o policial militar está vinculado a regulamento próprio que permite a aplicação da
penalidade de licenciamento ex officio, e, por isso, inaplicáveis as Súmulas 20 e 21, desta Corte.
Argumentação insubsistente. O preceito constitucional inserto no art. 5º, LV, não fez qualquer
distinção entre civis e militares. Ao contrário, aos litigantes em geral assegurou o
contraditório e a ampla defesa, em processo judicial ou administrativo. 2. Agravo regimental
não provido” (STF, AGRRE 206775/PE, rel. Min. Maurício Correa, DJ 29.08.1997, p. 40.229).
(grifamos).
16
“Ampla defesa é o asseguramento de condições que possibilitam ao réu apresentar, no processo,
todos os elementos de que dispõe. Entre as cláusulas que integram a garantia da ampla defesa
encontra-se o direito à defesa técnica, a fim de garantir a paridade de armas (par conditio),
evitando o desequilíbrio processual, a desigualdade e injustiça processuais. Assim, já teve a
oportunidade de decidir o STF que “A presença formal de um defensor dativo, sem que a ela
corresponda a existência efetiva da defesa substancial, nada significa no plano do processo penal
e no domínio tutelar das liberdades públicas”. STF, HC 71961-9/SC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 612-1994.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
262
A necessidade de interpretação do direito militar...
O STF editou a Súmula Vinculante 5 por entender que a falta de defesa
técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofenderia a
Constituição. Entretanto, com o devido respeito discordamos da Excelsa Corte de
Justiça, afinal, o acusado em processo administrativo disciplinar nem sempre possui
conhecimentos técnicos de legislação para sua defesa.
A defesa técnica e a autodefesa são desdobramentos da ampla defesa, e a
ausência de uma delas, poderá gerar prejuízo, na medida em que ao acusado deve
ser proporcionada a defesa de um profissional habilitado, já que nem todos possuem
conhecimentos e preparo técnico para se defenderem.
CONCLUSÃO
Diante do que foi dito no presente trabalho, podemos concluir que a
Constituição Federal é a norma soberana em nosso ordenamento pátrio, e, como tal,
todo o sistema infraconstitucional deve se amoldar aos seus preceitos, inclusive, o
direito militar.
Todos os direitos e garantias previstos na Constituição Federal devem ser
assegurados aos militares que estejam sendo acusados, seja na seara
administrativa, seja na seara processual penal.
Desta maneira, um militar não pode ser obrigado a cumprir uma sanção
administrativa, antes de esgotadas todas as vias recursais, assegurando ao mesmo,
o efeito suspensivo dos recursos interpostos em todas as instâncias de poder.
Também devem ser assegurados ao militar, a amplitude de sua defesa, com
a possibilidade plena do contraditório.
O devido processo legal seja no seu aspecto formal ou material, devem
prevalecer, para que a decisão final seja justa, conforme prevê o art. 35 do RDE, que
diz:
Art. 35. O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos
com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique
consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do
dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício
educativo do punido e da coletividade.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
263
Jefferson Augusto de Paula e outros
As autoridades, em especial as militares, devem compreender que dentro da
farda, há um cidadão que possui direitos e nem mesmo o ambiente militar ou a
função exercida, lhe retiram tais direitos.
Afinal, chega do autoritarismo, do arbítrio, e momento da democracia
prevalecer neste país, e, um dos principais direitos que marcam este novo tempo é a
liberdade em todos os seus sentidos.
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Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
265
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ENTRE A
JUDICIALIZAÇÃO E O ATIVISMO: PERCURSOS PARA UMA
NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO1
CONSTITUTIONAL JURISDICTION IN THE CROSSROADS OF JUDICIALIZATION AND ACTIVISM:
THE PATHS FOR A NECESSARY DISTINCTION
Rafael Tomaz de Oliveira2
Bruno Costa de Faria3
Cristiane Maria de Lima Curtolo
Leandro Teodoro
Michele Seixas Veludo
Joaquim Eduardo Pereira4
Resumo
Nos últimos anos o debate acerca do papel desempenhado pelos tribunais –
notadamente no exercício daquilo que se convencionou a chamar jurisdição
constitucional – na concretização dos direitos fundamentais foi, acentuadamente,
acirrado. O tema transcendeu os muros das universidades, saiu do universo restrito
das pesquisas científicas que polarizou o debate durante o final da década de 1990
e a primeira metade dos anos 2000, e desaguou nas páginas dos jornais e nos
portais de notícias da internet. Nessa medida, cabe perguntar: de onde vem esse
fenômeno que se insere, cada vez mais, em nosso espaço público de discussões?
Em que ele está enraizado? É algo recente? Se não, porque demoramos tanto para
sentir os seus efeitos?
Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Ativismo judicial. Diferenças.
Abstract
In recent years the debate about the role played by the courts - notably in the
exercise of what is conventionally called constitutional jurisdiction – in the realization
of fundamental rights was markedly strained. The theme transcended the walls of
universities, left the restricted universe of scientific research that has polarized the
debate during the late 1990s and the first half of the 2000s, and flowed in the
newspapers and on the internet news portals. To that extent, we must ask: where
does this phenomenon which it operates, increasingly, in our discussions of public
space? In which it is rooted? Is it something recent? If not, why took so long to feel
its effects?
Keywords: Constitutional Jurisdiction. Judicial activism. Differences.
1
2
3
4
Artigo apresentado à ABDConst como conclusão de pesquisa realizada no âmbito do Grupo de
Estudos Nacionais, biênio 2010-2011.
Coordenador.
Pesquisadores.
Monitor.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
266
A jurisdição constitucional...
Sumário: Introdução. 1. O fenômeno da judicialização (do social e do político) e sua
inexorabilidade contingencial. 1.1. Constitucionalismo dirigente. 1.2. Inflação
legislativa. 1.3. Razões sociais – a degeneração da política e a constituição de
um perigoso imaginário. 2. Ativismo judicial: as vissicitudes de um conceito. 2.1.
Ativismo judicial na experiência estadunidense. 2.2. Experiência alemã. 2.3.
Ativismo judicial à brasileira. 2.3.1. Interpretação da constituição ou
hermenêutica constitucional?. 2.3.2. Especificidades do caso brasileiro –
interpretação da Constituição e ativismo judicial. Considerações finais.
Referências.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos o debate acerca do papel desempenhado pelos tribunais –
notadamente no exercício daquilo que se convencionou a chamar jurisdição
constitucional5 – na concretização dos direitos fundamentais foi, acentuadamente,
acirrado. O tema transcendeu os muros das universidades, saiu do universo restrito
das pesquisas científicas que polarizou o debate durante o final da década de 1990
e a primeira metade dos anos 2000, e desaguou nas páginas dos jornais e nos
portais de notícias da internet. No contexto atual, já não nos causa surpresa quando
nos depararmos, durante uma simples leitura de jornal, com uma notícia que dê
conta de alguma intervenção do judiciário no âmbito da política, da sociedade e, até
mesmo, da ciência (v.g. ADI n. 3510). Um fato interessante pode ilustrar essa
afirmação. No dia 25.04.2011 o jornal Folha de S. Paulo, no caderno “Poder”,
divulgou a seguinte nota: “STF julga a quem pertence vaga de suplente”. Trata-se,
no caso, da resolução de imbróglio jurídico para o preenchimento de 24 vagas de
suplentes para a Câmara dos Deputados. Segundo a notícia, a resolução do
problema dependerá de decisão do STF na qual se discutirá se as vagas pertencem
às coligações ou aos partidos. Frise-se: algo que depende do cumprimento regular
5
Importante salientar que o termo jurisdição constitucional tem um sentido decisivo naqueles países
que, adotando a fórmula de Tribunais Constitucionais ad hoc, possuem um órgão especializado
para se pronunciar sobre questões envolvendo a constitucionalidade das leis e demais matérias
determinadas pela própria constituição. Dessa maneira, se diferencia a jurisdição ordinária
(comum) da jurisdição constitucional, que aparece como uma espécie de jurisdição especializada.
No Brasil, essa significação perde densidade, na medida em que nos ordenamos por um sistema
misto de controle da constitucionalidade no qual convivem o modelo difuso, baseado na judicial
review estadunidense e o modelo concentrado, de inspiração continental. Ademais, a despeito de
o Supremo Tribunal Federal ter competência para julgar, de forma concentrada, a
constitucionalidade das leis, tal qual um Tribunal Constitucional europeu, não se pode dizer que
vivenciamos um modelo de jurisdição constitucional stricto senso. Cf. Streck, 2004.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
267
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
das eleições e do escrutínio popular para ter sua composição configurada (no caso,
as vagas da Câmara dos Deputados) acaba por ser discutida no âmbito da nossa
Corte Constitucional numa discussão que envolve a interpretação adequada do
sistema político-eleitoral previsto pela Constituição, bem como o cumprimento dos
direitos políticos daqueles que foram eleitos, em condições de normalidade, no pleito
democrático.
Não é preciso muito esforço para perceber que, num caso como esse, a
discussão – por sua íntima natureza, política – acabou por ser juridicializada. E não
é apenas em casos envolvendo o processo político que acontece a judicialização de
matérias classicamente tidas como exteriores à esfera de atuação do Poder
Judiciário. No julgamento da citada ADI n. 3510, por exemplo, o tribunal foi chamado
a atuar num campo no interior do qual se discutiam as “verdades da ciência” sobre a
vida e a pesquisa biológica. Discutia-se a constitucionalidade do dispositivo da Lei n.
11.105/2005 que permitia, em seu art. 5º, a possibilidade, para fins terapêuticos e de
pesquisa, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas através de fertilização
in vitro. A afronta à Constituição estava balizada no potencial desrespeito à garantia
constitucional do direito à vida (art. 5º, Caput) e, nos diversos votos, os ministros da
Corte discutiram o conceito de vida; quando ela se inicia; qual o estatuto jurídico do
embrião (se deve ou não ser protegido pelo direito, etc.), entre outras coisas. De
forma solene, por ocasião do julgamento desta mesma ação, o Min. Carlos Aires
Britto afirmou que o STF havia se tornado uma “casa de fazer destinos”. Neste caso,
o debate acerca das “verdades da ciência” (houve, inclusive, quem ressuscitasse o
debate medieval ciência v.s. religião) e das (in)certezas a respeito das pesquisas
científicas, judicializou-se.
E os exemplos sobre esse universo de questões que, no atual contexto,
tornaram-se judicializáveis se multiplicam: questões caras para as relações sociais
no Brasil contemporâneo como os casos da ADPF 153 que colocou sob julgamento
a lei de Anistia no que tange à apuração e à persecução dos crimes comuns
praticados por agentes do governo militar; a definição de regras para demarcação de
terras indígenas, como no conhecido “caso Raposa Serra do Sol”, também se
judicializaram. A listagem de casos certamente continuaria com outros, de igual
projeção e importância.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
268
A jurisdição constitucional...
Nessa medida, cabe perguntar: de onde vem esse fenômeno que se insere,
cada vez mais, em nosso espaço público de discussões? Em que ele está
enraizado? É algo recente? Se não, porque demoramos tanto para sentir os seus
efeitos?
Na verdade o fenômeno da judicialização da política, das relações sociais ou
ainda, como querem alguns autores, da vida, já faz parte do âmbito de interesse de
pesquisadores dos mais variados campos das ciências sociais. Cientistas políticos,
sociólogos e juristas discutem – há décadas – as causas e os contornos deste
fenômeno.
Há uma variedade imensa de obras sobre o assunto6. Entre nós, o grupo de
pesquisadores liderados pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna, pode reivindicar para
si o pioneirismo no enfrentamento da matéria tendo como objeto de pesquisa a
jurisprudência do STF7. No entanto, obra desses pesquisadores brasileiros não
partiu de um “grau zero”, mas, sim de um impulso promovido por vários autores que
enraizaram seus estudos em outras realidades nacionais. Jürgen Habermas, Antoine
Garapon, Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, Laurence Tribe, John Hart Ely entre
outros, fazem parte do rol de autores que proporcionaram o solo teórico das
pesquisas efetuadas pelo grupo de Werneck Vianna.
Com efeito, o livro A Judicialização da Política e das Relações Sociais no
Brasil traz no início uma acalentada introdução que procura reunir – a partir de dois
6
Nesse sentido, é importante mencionar as seguintes obras: TATE, Chester Neal; VALLINDER,
Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. In: ______ (Orgs.).
The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995;
SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On law, politics & judicialization. New York: Oxford
University Press, 2002; HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy. The origins and consequences of
the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Há também textos
traduzidos para o português e publicados recentemente na Revista de Direito Administrativo da
Fundação Getúlio Vargas: HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política
pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, maio/ago. 2009, p. 139-175; numa
outra perspectiva, mas apontando também para a incisividade do poder judiciário na condução da
vida política Cf. DAHL, Robert A. Tomada de Decisões em uma democracia: a Suprema Corte
como uma entidade formuladora de políticas nacionais. Revista de Direito Administrativo, n.
252, set./dez. 2009, p. 25-43.
7
Cf. VIANNA et al. (1999). Os estudos foram ampliados e repercutem também em outra obra, cuja
organização é assinada por Luiz Werneck Vianna intitulada A Democracia e os Três Poderes no
Brasil. Luiz Werneck Vianna (org.). (2002).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
269
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
eixos temáticos, nomeados pelos autores substancialismo e procedimentalismo8 –
as mais diversas posturas dos mais variados autores a respeito do problema
envolvendo o papel dos tribunais no momento da interpretação da Constituição,
principalmente nos casos que envolvem a concretização de direitos fundamentais.
No entanto, como a ênfase da obra é dirigida ao problema da judicialização,
acabou-se por tratar de maneira obliqua outro fenômeno que possui uma
proximidade enorme com a temática: o ativismo judicial. Evidentemente que esse
fator não pode ser debitado como um demérito da obra de Werneck Vianna. Porém,
é notório que durante muito tempo o pensamento jurídico-social brasileiro acabou
por não dar tratamento crítico a essa questão. Isso acarretou, nalguns casos, que se
confundisse ativismo com judicialização e vice-versa. Muitos autores chegaram a
associar, por exemplo, a defesa de uma postura substancial dos tribunais na
interpretação dos direitos fundamentais como uma profissão de fé no ativismo
judicial (substancialismo, nessa perspectiva, passou a ser tratado como sinônimo de
ativismo). Esse fator é extremamente intrigante na medida em que, autores que
historicamente defendem essa postura substancial, como é o caso de Dworkin e
Ferrajoli, formulam inúmeras restrições a atuações ativistas por parte do Poder
Judiciário.
Todas essas questões, somadas à grande repercussão que temos hoje no
Brasil sobre situações envolvendo a judicialização da política e o ativismo judicial,
8
A dicotomia procedimentalismo v.s. substâncialismo vem explicada da seguinte maneira por Lenio
Streck (2011, p. 52): “a grande diferença de cada um destes aportes teóricos está no tipo de
atividade que a jurisdição realiza no momento em que interpreta as disposições constitucionais
que guarnecem direitos fundamentais. As posturas procedimentalistas não reconhecem um papel
concretizador à jurisdição constitucional, reservando para esta apenas a função de controle das
‘regras do jogo’ democrático; já as posturas substancialistas reconhecem o papel concretizador e
veem o judiciário como um locus privilegiado para a garantia do fortalecimento das democracias
contemporâneas”. Esclarecendo melhor o significado das posturas substancialistas ou autor
destaca que sua adoção “não autoriza a defesa de ativismos judiciais ou protagonismos ad hoc, a
pretexto de estar-se concretizando direitos. A concretização só se apresenta como concretização
na medida em que se encontra adequada à Constituição, não podendo estar fundada em critérios
pessoais de conveniência política e/ou convicções morais”. Não faz parte das intenções deste
trabalho aprofundar-se nas questões que emergem desta classificação. Apenas a título ilustrativo,
é importante referir que autores como Jürgen Habermas, Antoine Garapon e John Hart Ely são
apresentados como procedimentalistas, ao passo que Ronald Dworkin, Laurence Tribe e Luigi
Ferrajoli seriam representantes do substancialismo. Como toda dicotomia, também essa é
imperfeita e apresenta falhas. De todo modo, a distinção é ilustrativa e consegue apresentar o
modo como o problema do excesso de judicialização vem sendo discutido nas democracias
contemporâneas.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
270
A jurisdição constitucional...
nos levaram a pesquisar um modo adequado que pudesse oferecer uma distinção
clara a respeito destes dois fenômenos. Em artigo recente, Luís Roberto Barroso
procura encontrar um modo de diferenciá-los. De forma correta, o autor posiciona o
fenômeno da judicialização no contexto do modelo constitucional adotado em 1988 e
de uma série de questões que daí se seguiram. Todavia, no momento em que
esboça sua definição do que seja o ativismo judicial, Barroso fórmula uma afirmação
que
pode
comprometer
seu
empreendimento
de
pesquisa.
Afirma
o
constitucionalista que “judicialização e ativismo são primos” e “provenientes da
mesma família”, embora reconheça que a judicialização e o ativismo não possuem a
mesma origem. A pesquisa que efetuamos e que estamos apresentando nesta
introdução nos permite afirmar, contudo, que não há uma relação de parentesco
entre ativismo e judicialização, do modo como quer Barroso. Efetivamente, as
origens dos fenômenos são distintas. Mas não se trata apenas disso: os contornos
de cada um – sua “carga genética”, por assim dizer – demonstram que cada um dos
fenômenos participam de famílias diferentes.
Antecipando
nossa
conclusão:
enquanto
o
ativismo
judicial
está
umbilicalmente associado a um ato de vontade do órgão judicante; a judicialização
de questões políticas ou sociais não depende desse ato volitivo do poder judiciário,
mas, sim, decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais
complexa) e da própria crise da democracia, que tende a produzir um número
gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos,
portarias, etc.) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e,
principalmente, nas questões cujo deslinde envolve um ato de jurisdição
constitucional.
Esse ponto será esclarecido e demonstrado no decorrer do texto. Cabe-nos,
agora, explicar como procederemos a esse esclarecimento e a essa demonstração.
Num primeiro momento, é importante ter presente que a diferença entre
ativismo e judicialização não se dá apenas por uma questão de “natureza”. Há
também um problema de corte teórico: a judicialização é um fenômeno político,
gerado pelas democracias contemporâneas; ao passo que o ativismo é um problema
interpretativo, um capítulo da teoria do direito (e da Constituição). É inútil procurar
respostas ao problema do ativismo judicial em especulações sociológicas e/ou
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
271
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
políticas porque seu ponto nevrálgico está situado dentro do próprio “sistema
jurídico” e seu fio condutor é a questão da interpretação da Constituição. Já a
judicialização é um fenômeno eminentemente político, contingencial, que tente a se
agigantar e a diminuir na medida em que cresce ou diminui a conflituosidade da
sociedade; o cumprimento pelos poderes constituídos dos direitos fundamentais; o
número de regulamentações existentes, etc..
Nesse sentido, o artigo está organizado em duas partes: na primeira
enfrentaremos o problema da judicialização e procuraremos apontar para os
contornos que ela recebe no nosso contexto atual; na segunda parte,
apresentaremos o problema do ativismo como um problema de interpretação da
Constituição. Por um lado será demonstrado que a judicialização representa um fator
de legitimação do judiciário perante a sociedade, ao passo que o ativismo
deslegitima a ação do judiciário, colocando em risco a sobrevivência democrática
das instituições.
1
O FENÔMENO DA JUDICIALIZAÇÃO (DO SOCIAL E DO POLÍTICO) E
SUA INEXORABILIDADE CONTINGENCIAL
Essa tendência judicializante que se verifica nas sociedades atuais é típica
das democracias de massa e tem seu paroxismo apresentado no contexto atual. Sua
manifestação não obedece, diretamente, aos desejos do órgão judicante. Pelo
contrário, ela se apresenta como fruto de contingências político-sociais. No âmbito
político, fenômenos como o dirigismo constitucional e a inflação legislativa
contribuem para aumentar o espaço de interferência (possível) do judiciário no
âmbito de regulamentação projetado pelo texto da Constituição e do manancial
legislativo, lato senso (Leis, Medidas Provisórias, Regulamentos, Portarias, etc.).
Vale dizer, com Lenio Streck, há um aumento da dimensão hermenêutica do direito:
quanto mais direitos são constitucionalizados ou mais leis são editadas para
regulamentar toda uma plêiade de matérias, maior será o espaço – possível – de
concreção dessa normatividade, atividade que se realiza no âmbito da jurisdição, no
enfrentamento das questões concretas e das demandas apresentadas pela
sociedade.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
272
A jurisdição constitucional...
Por outro lado, as razões sociais para a aglutinação cada vez maior de
matérias judicializadas, deve-se ao aumento da litigiosidade e de uma peculiaridade
que pode ser observada, em maior ou menor medida, na maioria dos países (pelo
menos no que tange aos países ocidentais). Esta particularidade diz respeito a um
imaginário difuso que tende a enxergar no judiciário o lugar legítimo para se discutir
questões que, antes, eram debatidas no âmbito político (legislativo e executivo).
Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes públicos (que
cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de corrupção), passando
pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos fundamentais e desaguando no
fato de que, de forma cada vez mais evidente, “o juiz (melhor seria dizer: o judiciário
– acrescentamos) passa a ser uma referência da ação política” (GARAPON, 1998, p.
41).
Esse último fator anotado repercute no nível da cultura, produzindo um
interessante fenômeno de transformação de algo que se pode chamar de “semântica
da política”, vale dizer, novamente com Antoine Garapon, a judicialização passa a
oferecer para a democracia um “novo vocabulário: imparcialidade, processo,
transparência, contraditório, neutralidade, argumentação, etc. O juiz – e a
constelação de representações que gravitam à sua volta – confere à democracia as
imagens capazes de dar forma a uma nova ética da deliberação coletiva”
(GARAPON, 1998, p. 42).
De todo modo, é importante passar – ainda que brevemente – em revista às
questões acima afirmadas na perspectiva de solidificar uma definição mais precisa
do fenômeno da judicialização.
1.1
Constitucionalismo dirigente
Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições...! Assim proclamou Paulo
Bonavides – um dos mais importantes constitucionalistas brasileiros – o advento de
um novo tipo de experiência constitucional vivenciada pela Europa continental a
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
273
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
partir do fim da Segunda Guerra Mundial9. De um modo muito similar, Jorge Miranda
indicou esse novo modelo de constitucionalismo como um tipo de “revolução” no
âmbito da teoria do direito e da dogmática jurídica, similar àquela propiciada por
Copérnico quando ofereceu uma alternativa científica ao modelo astronômico de
Ptolomeu: tal como a terra cedeu lugar ao sol como o centro de nosso sistema
planetário, os Códigos cederam lugar às Constituições como o centro do sistema
jurídico. Falava, então, o professor português de uma “revolução copernicana” do
direito público10. Ambos os autores atestavam o fato de que, a partir da segunda
metade do século XX, as Constituições deixaram para trás sua tradicional
concepção que atribuía a ela a estrita função de realizar a conformação política do
Estado, estabelecendo um procedimento para produção legislativa e dos demais
atos do Poder público, tornando-se juridicamente vinculante, passando a prever um
rol de direitos fundamentais que determinavam os conteúdos desta mesma produção
normativa. Vale dizer – na formula consagrada por Konrad Hesse –, as Constituições
do Segundo Pós-Guerra, mais do que simples “folhas de papel”, como queria
Ferdinand Lassalle, possuem Força Normativa, vinculando diretamente as relações
entre sociedade e Estado (HESSE, 1991).
Porém, se não é possível dizer que essa descrição está errada, por outro
lado, é correto afirmar que ela encerra uma meia verdade: descreve o ambiente
vivenciado pela Europa Continental (principalmente no que tange a países como
Itália, Alemanha, Espanha e Portugal), mas deixa de mencionar – para não dizer que
exclui – a experiência do constitucionalismo estadunidense, que convive com um
constitucionalismo
jurídico
(portanto,
com
uma
concepção
normativa
de
Constituição) desde o célebre Aresto de Marshall, em 1803, no julgamento do caso
Marbury vs. Madison. Ademais, também a discussão sobre a interpretação judicial
dos chamados “direitos abstratos” aparece como pauta constante da doutrina
constitucional estadunidense desde o século XIX11.
9
Sobre o assunto, Cf. (Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista
do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. Essa questão aparece descrita
desta maneira também em Tomaz de Oliveira, 2011, Inédito e no prelo.
10
A expressão de Jorge Miranda é mencionada em Streck, 2004, p. 216 e ss.
11
De fato, é importante considerar que – embora existam elementos tipológicos que podem ser
encontrados nas mais variadas experiências constitucionais – o constitucionalismo é um
movimento multifacetado que tem raízes profundas nas experiências culturais de cada povo. No
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
274
A jurisdição constitucional...
De toda sorte, é certo que a experiência constitucional vivenciada por
diversos países da Europa continental nos anos que se seguiram ao final da
Segunda
Guerra
Mundial
representou
uma
novidade
para
teoria
jurídica
predominante até então.
Nessa toada, a Constituição Federal Brasileira de 1988 é tratada como uma
constituição dirigente por que traz consigo uma preocupação que vai muito além da
manutenção do status quo ou da mera organização estatal12. Muito acima disso, a
nossa constituição vigente visa ter, em si e por si mesma, uma capacidade de
fomentar a transformação social, de modo que se propõe a estabelecer diretrizes,
objetivos e fins a serem alcançados pelo Estado13 e pela sociedade, além de
vincular o legislador ordinário à realização de políticas públicas que (não só, mas
além de tudo) contribuam – direta ou indiretamente – para a redução gradativa das
mazelas sociais presentes no Brasil contemporâneo.
caso retratado no texto, é nítido que, enquanto a Europa explorava o significado político das
estratégias de limitação de poder, nos EUA, houve um acentuado grau de juridicidade na
construção de seu movimento constitucional. Tanto isso é assim que a absoluta maioria da
literatura americana sobre história das instituições jurídicas, direito constitucional e judicial review
relata experiência e debates que problematizavam a interpretação de direitos fundamentais –
chamados por lá de “direitos abstratos” – já no século XIX. Com efeito, de lá para cá, o
constitucionalismo estadunidense produziu uma considerável bibliografia sobre como foram
julgados esses casos em que se discutia a aplicação dos direitos fundamentais, sendo que hoje o
foco de análise se dá em torno da delimitação das experiências ativistas da Suprema Corte ao
longo da história, bem como na identificação da construção de argumentos de limitação do poder
de revisão da corte, conhecido como judicial self-restraint. É isso que está indicado no texto de
Christopher Wolfe: The rise of modern judicial review. From constitutional interpretation to
judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. Para uma identificação
precisa do caráter jurídico do constitucionalismo norte-americano, também Cf. MURPHY, Walter F.
Judicial Supremacy. In: LEVY, Leonard W.; KARST, Kenneth L.; MAHONEY, Dennis J. (Orgs.).
Judicial Power and the Constitution. Selections from the Encyclopedia of the American
Constitution. New York: Macmillan, 1990, p. 54-7. Igualmente importante é o trabalho de TRIBE,
Laurence H. The invisible constitution. New York: Oxford University Press, 2008. Numa posição
distinta sobre o papel do judiciário na realização da interpretação da constituição, ver: ELY, John
Hart. Democracy and distrust. A theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press,
2002. Em todas as obras citadas, há um número significativo de referências a casos julgados pela
Suprema Corte, nos quais a interpretação da constituição implicava a aplicação direta de direitos
fundamentais (para o bem e para o mal). Independentemente, o fato é que – em última análise –
os autores acima citados corroboram a afirmação de que o problema da força normativa da
Constituição se apresenta no contexto estadunidense desde a afirmação da judicial review.
12
Como é o caso da “Constituição Garantia”, que segundo Gilberto Bercovici, “não possui qualquer
conteúdo social ou econômico, sob a justificativa de perda de juridicidade do texto. As leis
constitucionais só servem, então, para garantir o status quo. A Constituição estabelece
competências, preocupando-se com o procedimento, não com o conteúdo, não com o
procedimento das decisões, com o objetivo de criar uma ordem estável”. (BERCOVICI, 1999).
13
O que é claramente perceptível a partir da leitura do Art. 3º da CF/88.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
275
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
A promulgação de nossa constituição vigente se deu em um período
histórico que conhecemos por “Redemocratização”. Os mais de vinte anos de
experiência ditatorial vividos pela sociedade brasileira antes da promulgação da
carta de 88 gerou um verdadeiro clamor social pelos ideais de igualdade, liberdade e
justiça, e assim como ocorreu em Portugal (1976) e Espanha (1978)14 – países que
também passaram por experiências ditatoriais – buscou-se a configuração de um
Estado democrático de Direito.
Diante de tal contexto, o Estado democrático de Direito não só é o lócus
privilegiado para o “acontecimento” da Constituição dirigente, como é seu correlato
necessário. A Constituição dirigente é o fundamento de legitimação política do
Estado democrático de Direito, garantindo força normativa a seus elementos e
princípios - além dos direitos fundamentais individuais e sociais – conferindo-lhes
caráter vinculante (político e juridicamente) e estabelecendo mecanismos de
reinvidicação pela efetivação desses elementos normativos via poder judiciário,
através de um superlativo mecanismo de controle de constitucionalidade15.
A partir disso, várias questões que anteriormente eram discutidas apenas no
campo político, tornaram-se passíveis de intervenção judicial. Tal fato ampliou a
esfera de atuação do poder judiciário e trouxe um aumento significativo dos limites
da discricionariedade do legislador ordinário, agora vinculado aos objetivos dos
programas constitucionais e também aos limites impostos pelos próprios direitos
fundamentais.
14
É importante ressaltar aqui, que as Constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978)
exerceram uma forte e determinante influência na Constituição Brasileira promulgada em 1988.
Além do caráter dirigente e compromissório destas constituições europeias, cumpre-nos salientar
o momento sócio-politico por que passavam esses países. Mesmo a constituição brasileira tendo
sido promulgada uma década mais tarde das constituições portuguesa e espanhola, o momento
político de todos os países era parecido. Portugal e Espanha, na segunda metade dos anos 1970
buscavam uma( re)construção dos ideais democráticos bem como assegurar os direitos
fundamentais perdidos após anos de governos ditatoriais (situação bem próxima à brasileira da
segunda metade dos anos 1980). A Constituição Dirigente veio, portanto, como uma forma de
minimizar os efeitos trágicos destes regimes ditatoriais atuando como uma forma de garantir o
Estado democrático de Direito e, gradativamente, impulsionar o desenvolvimento social.
15
Há que se agregar, ainda, que as questões que derivam desse conjunto teórico, tornam-se ainda
mais complexas diante da “Força Normativa da Constituição” (HESSE), em países que antes do
segundo pós-guerra, concentravam no Direito Privado o ponto nuclear de todo o seu ordenamento
jurídico.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
276
A jurisdição constitucional...
A principal consequência percebida nesse diapasão foi o aumento (ou
acúmulo) das funções institucionais do poder judiciário. A nossa constituição
dirigente de 1988, além de aumentar essa demanda por (novos) direitos,
estabeleceu um superlativo mecanismo de controle de constitucionalidade, que
compreende tanto a tradição norte-americana (controle difuso/concreto) quanto a
europeia (controle concentrado/abstrato) de modo que o segundo modelo, cuja
jurisdição é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, tem levado
esse órgão – por meio de seus procedimentos (ação direta de inconstitucionalidade,
ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito
fundamental e mandado de injunção) – a desempenhar uma função autoritária,
carregando consigo a última palavra nas questões de interpretação constitucional.
A judicialização da política, consequente da nossa constituição dirigente e
das suas aspirações pela transformação social, a fim de abrigar um Estado novo,
além de diminuir a autoridade do poder legislativo – que agora fica submetido ao
crivo da jurisdição constitucional – muitas vezes acaba por engendrar equívocos do
poder judiciário, que corroem o Estado democrático de Direito e seus princípios
fundamentais.
1.2
Inflação legislativa16
Mas esse caráter hermenêutico do direito provocado pelo dirigismo das
Constituições do segundo pós-guerra destacado por Streck não deixa de comportar
também o problema da inflação legislativa. Como a própria denominação sugere,
inflação legislativa significa um aumento na atividade legislativa de todo aparelho
burocrático estatal. Com efeito, todas as esferas do direito e as tradicionais
disciplinas jurídicas passam por um momento de profundas transformações devido
ao acontecimento de radicais mudanças em seus conteúdos estritamente
legislativos. Aquilo que antes – ao menos no âmbito dos países europeus – era
amplamente discutido nos níveis políticos antes de ser incorporado como matéria
legislativa, passa a ser rapidamente aprovado pelos congressos e parlamentos no
16
Essa questão, sob outra perspetiva e intencionalidade, encontra-se igualmente explorada em
Tomaz de Oliveira, 2008.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
277
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
intuito de remediar situações concretas e imediatas que apontam para a exaustão do
sistema ou para sua insuficiência diante de uma determinada realidade. No âmbito
do direito penal e processual penal, fala-se em expansão das leis penais e no
surgimento de um direito penal simbólico correlato. Isso porque, a insuficiência dos
meios estatais para conter os problemas advindos da violência e da criminalidade
são argumentos pressupostos para uma intensa atividade legislativa no sentido da
construção de tipos penais voltados para proteção de bens jurídicos que escapam
ao núcleo daqueles bens classicamente aparados pela tutela penal. Assim se segue
um avanço de um processo criminalizador em relação a um grande número de
condutas para cumprir apenas um efeito meramente “simbólico” 17. Já no âmbito do
direito processual civil, também assistimos – máxime no Brasil – a um crescimento,
que vem tomando forma pelo menos desde 1994, de micro reformas realizadas sob
o pretexto de atingir clinicamente os efeitos da crise processual que afeta o poder
judiciário. Procedimentos mais céleres são criados, medidas antecipatórias do mérito
são implementadas como que a contrabando no sistema do Código de 1973, entre
outros fatores de igual ou maior importância. De qualquer modo, não é nossa tarefa
avaliar os acertos ou os erros deste tipo de política legislativa. Nos interessa apontar
para o acontecimento que faz com que a completude e sistematicidade (ou o ideal
de completude, sinteticidade e sistematicidade) que se encontravam expressas nos
Códigos, passe a ceder lugar a um processo fragmentário de produção legislativa a
partir da edição de leis pontuais que visam remediar uma situação específica.
Mesmo a Constituição não escapa desse processo de retalhação, e a cada ano se
observa a realização de reformas via Emendas Constitucionais, sempre tendo como
pano de fundo uma instabilidade institucional específica, cuja solução se encontra na
reforma da Constituição18. Tais reformas se expandiram de tal forma que acabaram
17
Neste sentido Cf. Meliá, 2007, p. 17-26.
18
Para corroborar essa afirmação, basta recordar o problema do limite dos juros anuais, instituídos
no art. 192, § 2° da Constituição e que foi revogado pela Emenda Constitucional 40/2003, para
que as taxas de juros pudessem ser flutuantes e reguladas de acordo com o mercado; O efeito
vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal, instituído pela Emenda Constitucional
45/2004 em seu art. 103-A, que contribui significativamente para a crise paradigmática enfrentada
pelo direito brasileiro, entre outras tantas reformas, uma vez que o número de emendas
Constitucionais já passa dos 60, em pouco mais de 22 anos de Constituição. (Quanto ao problema
das Súmulas e sua repercussão na crise do direito brasileiro: Cf. STRECK, 2006, p. 213-237).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
278
A jurisdição constitucional...
por criar quase que um outro texto, paralelo àquele promulgado em 1988 19. Mesmo
no âmbito do direito privado o fenômeno da inflação legislativa é inexorável. O
chamado “Novo Código Civil”, promulgado em 2001, já sofreu até o corrente ano
quatorze micro-reformas e outras tantas aguardam para entrar na pauta de votação
da câmara dos deputados.
Mas não é apenas a atividade legislativa que contribui para o problema da
inflação de leis. Embora tecnicamente o termo “lei” designe um documento emanado
do Poder Legislativo, há outros setores estatais que produzem atos que, a despeito
de não se revestirem da forma da lei, são dotados de força de lei. Obviamente, a
Medida Provisória é o exemplo mais evidente deste tipo de atividade “legislativa”.
Em todo caso, é certo que o crescimento de expedientes normativos dos mais
diversos tipos no âmbito da legislação e da administração pública coloca em cheque
o vetusto princípio da legalidade. Trata-se de um fenômeno corrosivo para a tradição
continental, visto que essa proliferação da atividade legiferante, excedendo inclusive
os limites do Poder Legislativo, tornam deficientes os clássicos postulados sob os
quais está assentado o sistema jurídico romano-germânico.
Em primeiro lugar, os Códigos – que no interior do projeto moderno
deveriam revestir-se de uma completude sistemática – passam a perder a
centralidade da regulação social, e o principal expediente regulatório se dá por meio
de leis fragmentadas e setoriais, o que favorece, num âmbito político, o
19
No que tange especificamente à constante expansão legislativa sobre o texto constitucional, Paulo
Bonavides assevera que estamos vivendo um novo período de crise constituinte em face do
descrédito a que são submetidas a regras constitucionais tendo em vista a postura dos poderes da
república. Este descrédito, que gera uma baixa densidade normativa do texto constitucional,
propicia aos manipuladores do poder central a possibilidade de, à socapa das instituições
democráticas, implementar um golpe de Estado que vive permeado de legitimidade, derrocando o
País a uma situação de neocolonialismo, em que o colonizador é o capital estrangeiro
(globalizador). No pontificado do mestre “o golpe de Estado institucional, ao contrário do golpe de
Estado governamental, não remove governos mas regimes, não entende com pessoas mas com
valores, não busca direitos mas privilégios, não invade poderes mas os domina por cooptação de
seus titulares; tudo obra em discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público declarar
suas intenções, que vão fluindo de medidas provisórias, privatizações, variações de política
cambial, arrocho de salários, opressão tributária, favorecimento escandaloso da casta de
banqueiros, desemprego, desmoralização da classe média, minada desde as bases, submissão
passiva a organismos internacionais, desmantelamento de sindicatos, perseguição de servidores
públicos, recessão, seguindo, assim, à risca, a receita prescrita pelo neoliberalismo globalizador,
até a perda total de identidade nacional e a redução do País ao status de colônia, numa marcha
sem retorno” (BONAVIDES, 2004, p. 23).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
279
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
fortalecimento de grupos de pressão e de lobistas; por outro lado, o caráter genérico
e abstrato da legislação, gradativamente, cede lugar às leis-medida, destinadas a
remediar uma situação concreta específica20, no mais das vezes vinculadas a
interesses particulares, tornando promíscua a relação entre o público e o privado.
Desse modo, a lei acaba se tornando o lugar onde se realizam pequenas reformas,
efetuadas como que a conta-gotas, que ventilam, no mais das vezes, interesses
particulares de determinados setores da sociedade21.
Assim, não apenas a impossibilidade do legislativo prever todas as hipóteses
de aplicação da lei, que já se apresentava como problema desde o início da
codificação, mas também a impossibilidade de o juiz conhecer todo o aparato
legislativo – e proto-legislativo, como no caso das Medidas Provisórias brasileiras –
no momento da decisão judicial, torna-se um problema que a teoria jurídica precisa
resolver. Neste contexto, os princípios jurídicos e as chamadas cláusulas gerais são
chamados a remediar a situação que se instala diante desse caótico quadro
apresentado pela legislação e pelas demandas sociais que são levadas aos montes
para
apreciação
do
Poder
Judiciário.
Isso
representa,
para
alguns,
o
comprometimento total da garantia da segurança jurídica que, segundo eles, seria
20
A expressão “leis-medida” é de Garcia Herrera Cf. GARCIA HERRERA, Miguel Angel. Poder
Judicial y Estado social: Legalidad y Resistencia Constitucional. In: Corrupción y Estado de
Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñez (Editor). Madrid: Trotta, 1996, p.
72 e segs. Garcia Herrera afirma ainda que: “la complejidad social y la proliferación de nuevas
situaciones y necesidades provocan la obsolescencia de las técnicas jurídicas clásicas y el
progresivo avance de la indeterminación y deslizamiento de la decisión. La renuncia a la definición
es acompañada por el reconocimiento de la voluntad conformadora de las instancias
administrativas, desarrollada en un marco de enunciados generales, principios y cláusulas
generales”.
21
Isso causa efeitos drásticos nas estruturas complexas dos países periféricos, entre eles o Brasil.
Neste sentido, Marcelo Neves denuncia um histórico bloqueio realizado por interesses particulares
que impede a formação no Brasil de um espaço público de constitucionalidade e legalidade. Para
este autor, o velho mito de que no Brasil o Estado é forte e a sociedade se encontra a mercê deste
impiedoso Leviatã precisa ser desconstruído. Na verdade, há uma fragilidade do Estado perante
as pressões de uma sociedade desestruturada que acaba por colonizá-lo. Cf. Neves, 2006, p. 244
e ss. Ainda neste sentido Bercovici, 2004, p. 263-290. Colocando em um outro contexto – o do
direito penal – mas apontando também para o equívoco da cisão entre sociedade e Estado, Lenio
Streck assevera: “Para eles o Estado é necessariamente mau, opressor, e o direito (penal) teria a
função de ‘proteger’ o indivíduo dessa opressão. Por isso, em pleno século XXI e sob os auspícios
do Estado Democrático de Direito – no interior do qual o Estado e o Direito assumem (um)a função
transformadora – continuam a falar na figura mítica do Leviatã, repristinando – para mim de forma
equivocada – a antiga problemática que contrapõe o Estado (mau) à (boa) sociedade (sic)”
(STRECK, 2004, p. 309).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
280
A jurisdição constitucional...
sanada mediante a edição de leis mais precisas e em menor quantidade, além da
necessária minoração do uso da técnica das cláusulas gerais nos textos
legislativos22. Claro que nesse caso se está ainda a confundir a ideia de segurança
com a de previsibilidade. Não é necessário que o legislativo dê conta de todas as
minúcias que a vida social nos impinge no dia-a-dia. Aliás, é exatamente por seguir
um rumo de hiper-legislação, inflando as matérias a serem “normatizadas” que
abastece o fenômeno da judicialização, o que provoca, no mais das vezes, efeitos
deletérios.
1.3
Razões sociais – a degeneração da política e a Constituição de um
perigoso imaginário
Garapon afirma – na linha desse crescimento da regulamentação, da
chamada dimensão hermenêutica do direito – que a excessiva judicialização de
matérias que, tradicionalmente, ficavam fora da esfera de atuação do Poder
Judiciário, contribui para a formação de uma nova linguagem e de um novo modo de
ser do político. A linguagem se modifica na medida em que termos próprios do
campo jurídico passam a figurar, regularmente, no âmbito das discussões políticas
(veja-se, por exemplo, o caso recente do julgamento do RE 633703-MG que suscitou
nos meios de imprensa da grande mídia um debate em torno de termos como
“restrição de direitos fundamentais”, “principio da anterioridade das leis eleitorais”,
entre outros). Por outro lado, há uma modificação no modo de ser social, na medida
em que a dimensão coletiva do político – de aprovação de projetos legislativos que
dependem do engajamento e mobilização de várias forças sociais – passa a ser
diluída num debate individualizante, próprio do ambiente judicial.
O autor francês identifica, nesse tipo de manifestação social, um tipo
degenerado de democracia que tende a se legitimar a partir da perspectiva de que a
possibilidade de o próprio indivíduo poder buscar a tutela jurisdicional na defesa de
seus interesses juridicamente protegidos representaria um tipo de democracia direta
(que, pretensamente, estaria livre dos desvios éticos a que está sujeito o processo
político baseado no tradicional modelo representativo de democracia). Nas palavras
22
Por todos Cf. Theodoro Júnior, 2006, p. 29.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
281
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
de Garapon: “o debate judicial individualiza os desafios: a dimensão coletiva existe,
mas de forma incidente. Visa um compromisso mais solitário do que solidário.
Através dessa forma direta de democracia, o cidadão litigante tem a sensação de
dominar melhor a sua representação” (GARAPON, 1998, p. 46).
Tendo em vista o caso especificamente francês – que, vale lembrar, ao
contrário da tradição anglo-saxã, sempre tratou com desconfiança o Poder Judiciário
– Garapon sintetiza esse movimento judicializador da seguinte forma:
A jurisdição é, doravante, um modo normal de governo. A exceção torna-se
a regra, e o processo de resolução de um conflito torna-se o modo comum
de gestão de setores inteiros como o da família e o da imigração. Enquanto,
antes, a concebíamos de forma negativa e punitiva, a justiça torna-se,
progressivamente, positiva e construtiva. Enquanto, outrora, a instituição
judiciária revelava algum atraso relativamente aos costumes, doravante, é
portadora das esperanças da mudança. (...) O direito contemporâneo,
actualmente fora da alçada do Estado, continua a ser excessivo em relação
àquilo que está estipulado, e a justiça, nomeadamente a justiça
constitucional, surge como o espaço de decisão permanente entre o ideal
do querer viver em conjunto e a dificuldade da acção política (GARAPON,
1998, p. 47-48).
Por todas essas questões que levantamos nas linhas anteriores, fica
evidenciado que a judicialização é um fenômeno que independe dos desejos ou da
vontade dos membros do Poder Judiciário. A judicialização, na verdade, é um
fenômeno que está envolvido por uma transformação cultural profunda pela qual
passou os países que se organizam políticamente em torno do regime democrático.
Ademais, há fatores políticos que condicionam o grau de judicialização vivenciado
por uma dada sociedade. Dentre esses fatores, podemos mencionar: a) o grau de
(in)efetividade dos direitos fundamentais (núcleo compromissório da Constituição); b)
o nível de profusão legislativa com o consequente aumento da regulamentação
social; c) o nível de litigiosidade que se observa em cada sociedade. Na medida em
que aumentam os indicadores de inefetividade dos Direitos Fundamentais, os
índices de produção legislativa, e da litigiosidade social, também aumentará o nível
de judicialização (daí que, no título deste tópico, tenhamos falado de uma paradoxal
“inexorabilidade contingencial”: por uma lado a judicialização é inexorável, produto
do próprio modelo político vivenciado contemporaneamente; por outro, ela é
contingencial, na medida em que terá níveis variados de acordo com a articulação
dos fatores mencionados no texto).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
282
A jurisdição constitucional...
Já o ativismo possui uma raiz completamente diversa. Isso é importante
porque, os remédios para contralar uma ou outra patologia serão completamente
distintos, porque as causas dos fenômenos são, elas mesmas, absolutamente
distintas: a judicialização não representa um mal in se. Ela pode se tornar
inconveniente quando encontrada em níveis elevados, mas se mostra necessária em
vários âmbitos que caracterizam a sociedade contemporânea. As relações de
consumo; a preservação do meio ambiente; as questões envolvendo direitos sociais,
etc., são questões que merecem ser discutidas judicialmente, na medida em que
aquilo
que
foi
projetado
pela
Constituição
apresentar-se
na
forma
de
descumprimento. De todo modo, o bom funcionamento do sistema político tende a
controlar os índices da judicialização. O ativismo, por outro lado, está situado dentro
do direito – no âmbito interpretativo, da decisão judicial – mas, paradoxalmente,
também está fora, na medida em que a estrita dependência em torno daquilo que o
juiz pensa, entende ou deseja no julgamento de uma determinada questão
judicializável, pode levar à suspensão do direito vigente, criando fissuras na
institucionalidade, desenvolvendo figuras típicas de um Estado de Exceção. Por isso,
o modo de controlá-lo deve ser aferido no âmbito da própria interpretação do direito,
sendo, por isso, um problema a ser enfrentado pela hermenêutica jurídica.
2
ATIVISMO JUDICIAL: AS VISSICITUDES DE UM CONCEITO
Embora sem mencionar expressamente, Antoine Garapon, intui de forma
correta o elemento que marca a linha divisória que separa a judicialização do
ativismo. Com efeito, depois de uma análise minuciosa do modo como a sociedade
contemporânea encara temas como a política e a democracia, demonstrando como
a democracia contemporânea acabou por produzir esse espaço de judicialização,
Garapon assevera o seguinte:
O ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do
juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo
contrário, de a travar. (GARAPON, 1998, p. 54) (grifo nosso)
Nota-se, portanto, que Garapon liga a ideia de ativismo a um desejo – vale
dizer, um ato de vontade – do órgão judicante. Esse ponto indica, de plano, que o
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
283
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
problema que vem à tona no enfrentamento do problema do ativismo é, exatamente,
o âmbito que a Teoria do Direito reconhece como “calcanhar de Aquiles” do jurídico,
qual seja, o âmbito interpretativo. De forma mais clara, é aqui que aparece o ponto
decisivo que diferencia ativismo de judicialização: aquele é dependente de um ato
de vontade; este é contingencial, condicionado pelo sistema político.
Não é outra a posição exarada por autores como Lenio Streck que, em obra
recente, associa diretamente a noção de ativismo judicial com o problema da
“vontade do interprete” no momento da concreção do direito23. O jusfilósofo gaúcho
aponta, ainda, para o fato de que, no Brasil, compreende-se de modo inadequado o
significado do ativismo.
23
Vale reforçar aqui que, para Streck, essa questão voluntarista que está no germem do ativismo
judicial, tem suas raízes no normativismo kelseniano e na separaçãpo efetuada por este autor
entre interpretação como ato de conhecimento e interpretação como ato de vontade. De fato, em
sua obra, Kelsen continuava a perseguir o tipo de rigor lógico que inspirava o dedutivismo da
Jurisprudência dos Conceitos, porém, sabia que os instrumentos por ela utilizados eram
insuficientes para garantir precisão epistemológica para a Ciência Jurídica. Ademais, ele conhecia
as críticas formuladas pela Jurisprudência dos Interesses e pelo Movimento do Direito Livre em
relação ao problema da determinação do papel do juiz no preenchimento das chamadas lacunas e
sabia que o dogma da completude dos significados dos conceitos que compõem a lei – em
especial os Códigos – não podia mais ser defendido àquela altura da história. A saída encontrada
por Kelsen foi estabelecida a partir de uma fratura entre conhecimento e vontade. Explicamos: a
construção epistemológica kelseniana está alicerçada na clássica dicotomia razão v.s. vontade.
Assim, todas as questões reivindicadas pelos interesses, finalidades, etc. Kelsen atira para dentro
daquilo que ele chamou de política jurídica, que se manifesta, em termos kelsenianos, na
interpretação que os órgãos jurídicos competentes formulam sobre o direito. Portanto, são
reunidos no interior da esfera de atos voluntaristas daqueles que lidam com o direito; ao passo
que a ciência do direito se interessa pelo conhecimento das normas jurídicas (e não de sua
“aplicação”), sendo que essa interpretação é regulada por determinados pressupostos lógicosistemáticos desenvolvidos no ambiente de sua teoria pura. Nesse aspecto, portanto, Kelsen se
movimenta em um metadiscurso que fornece uma interpretação logicamente rigorosa do complexo
“mundo normativo”. Assim, Kelsen retoma a ideia de um sistema estruturado a partir de uma
rigorosa cadeia lógico-dedutiva, mas que não se encontra atrelado à atividade das autoridades –
órgãos – que efetivamente “aplicam” as normas jurídicas. Ressalte-se, por fim, que esse dualismo
kelseniano entre razão e vontade e os problemas teórico-juridicos daí decorrentes, foram
denunciados – de maneira inédita – no posfácio da terceira edição do livro Verdade e Consenso
de Lenio Luiz Streck. Com efeito, neste texto – em que o autor busca as condições para
construção de uma teoria da decisão no direito – aparece claramente apresentada a dualidade
kelseniana entre razão teórica e razão prática (no interior da qual aparece o problema da vontade)
e a opção de Kelsen por um modelo teórico de fundamentação, bem ao modo da filosofia da
ciência propagada pelo neokantismo de Marburgo, cujos corifeus Herman Cohen e Paul Nartop
são os grandes inspiradores de Kelsen (neste sentido, Cf. Streck, 2009, p. 415-429; para uma
identificação das manifestações desse solipsismo kelseniano nas diversas posições doutrinárias
no âmbito da dogmática jurídica brasileira, ver também Streck, 2010, p. 33 e ss.)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
284
A jurisdição constitucional...
Nos termos propostos por Streck, nos EUA a discussão sobre o governo dos
juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Quanto
a isso, basta recordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedente que
consagrou a judicial review foi também quem iniciou, no case McCulock v.s.
Maryland, a tradição do judicial self restraint. Sintomático, também, que a segunda
decisão em sede de controle de constitucionalidade nos EUA só se deu cinquenta e
dois anos depois da primeira.
Assim, aceitando essa provocação, procuraremos nos itens seguintes
iluminar a questão do ativismo norte-americano sob o fio condutor da obra de
Christopher Wolfe. Posteriormente, faremos uma incursão pela experiência alemã da
jurisprudência da valoração, para termos claro em que medida esse modelo de
“ativismo” se diferencia daquele vivenciado nos EUA. Na sequência, passaremos
para uma avaliação do modo como a questão vem sendo colocada no Brasil.
2.1
Ativismo judicial na experiência estadunidense
Para estudar os paradigmas metódicos norte-americanos que compõem o
universo temático da interpretação da Constituição, faremos uso da divisão feita por
Chistopher Wolfe (1994, p. 3), em seu livro The Rise of Mordem Judicial Review.
Para o autor, a interpretação da Constituição norte-americana pode ser analisada –
ao longo de sua história – a partir de três modelos/paradigmas de interpretação.
Cada um desses modelos definem, de tal modo, a predominância dos paradigmas
interpretativos vigentes que Wolfe nomeia cada um deles como “Eras” da
interpretação da Constituição. Assim, temos a seguinte divisão tripartite: a) Era
Tradicional; b) Era de Transição; e c) Era Moderna.
A Era Tradicional se inicia com o advento da Constituição em 1789 e vai até
1890. Contudo, primeiramente, é mister ressaltar, a Carta Magna norte-americana
não previu expressamente o controle de constitucionalidade, o que levou John Jay ,
primeiro Chefe de Justiça da Suprema Corte estadunidense, a declarar que esta
“nunca obteria a energia, o peso e a dignidade essenciais para dar seu devido
suporte ao governo nacional”. (WOLFE, 1994, p. 40)
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
285
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
Entretanto , em 1803, no caso Marbury contra Madison (SWISHER, 1962, p.
10-14), sob a presidência de John Marshall, a Suprema Corte institui o controle de
constitucionalidade, pois julgando inconstitucional o art. 13 da Lei Judiciária de 1789,
“que atribuía competência originária para julgar o mandamus... argumentando que a
Constituição fixara competência da Suprema Corte e somente ela poderia estendêla” (SILVA, 2009, p. 27-36). De modo que, percebe-se o ativismo judicial
estadunidense está imbricado desde o início do controle de constitucionalidade,
porquanto, concernente aos estudos, e não ao assentimento dos norte-americanos,
não é incontroverso a legitimidade da Suprema Corte, neste caso, de exercer uma
função não atribuída expressamente a ela pelo poder constituinte originário que,
aliás, continua até a atualidade regulamentada por lei ordinária nos EUA. De
qualquer forma, graças ao Chief of Justice John Marshall, melhor representante da
Era Tradicional de revisão judicial norte-americana, a Suprema Corte galgou a
importância que John Jay dissera impossível.
Ademais, percebe-se que a primeira Era se caracteriza pela presunção de
que a Constituição é a um só tempo inteligível, tinha um “significado real” que
poderia ser conhecido se lida apropriadamente, e substancial, “estabelece princípios
que eram definitivos e claros o suficiente para serem cumpridas as regras legais, ao
invés de meramente proclamar generalidades vagas” (WOLFE, 1994, p. 3-4), pelo
que a revisão judicial desse período em dar preferência às normas constitucionais a
qualquer outro ato legislativo e executivo que com ela conflitasse. Assim, quanto ao
método utilizado, teve grande influência as regras de interpretação de Blacksotne,
que se valiam dos indícios mais naturais e prováveis, a saber, “as palavras, o
contexto, a matéria, os efeitos e as consequências ou espírito e razão da lei”
(WOLFE, 1994, p. 18).
Todavia, equivoca-se quem pensa que nesse paradigma – e no âmbito da
experiência estadunidense – se tem a ideia de um processo mecânico de
interpretação, e que por meio dele encontrará inevitavelmente um significado correto
de uma previsão constitucional; pois, tal interpretação reclama mais do que “mera
gramática e habilidade lógica”, e exige, além de um conhecimento da matéria, como
a “natureza de governo” e “os requisitos de governo”, um conhecimento das
“realidades descritas pelas palavras dos documentos bem como uma habilidade
para
perceber
os
‘objetos’
ou
os
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
‘propósitos’
implícitos
nas
previsões
286
A jurisdição constitucional...
constitucionais”, e, outrossim, “alguma medida de prudência política” (WOLFE, 1994,
p. 37).
Portanto, vê-se que nessa Era o Poder Judiciário não é exercido com o
propósito de efetivar a vontade do julgador, mas visa efetivar a vontade da lei
interpretando as palavras, o contexto, a matéria e a intenção dos autores da
constituição, no entanto essa interpretação não é um processo mecânico de
aplicação, o julgador deverá buscar o caráter substancial da constituição para buscar
a interpretação correta (WOLFE, 1994, p. 76-79).
Doravante, tanto Marshall quanto seu sucessor Roger B. Taney, que
ocuparam o cargo de Presidente da Suprema Corte por quase toda Era Tradicional
(Marshall de 1801 a 1835 e Taney de 1835 a 1863), faziam uso da mesma
metodologia jurídica, que é ter sempre em vista o caráter substancial da Constituição
ou a vontade política da Constituição para fundamentar suas decisões, malgrado as
decisões entre ambos diferirem sobre assuntos comuns, como cláusulas comerciais,
cláusulas contratuais entre outros, o método utilizado para decidir e fundamentar as
suas decisões eram os mesmos (WOLFE, 1994, p. 63-71).
Entrementes, do período que vai de Taney até 1890 que se inicia a Era de
Transição, o método da Era Tradicional resiste, mas começa a ser sofrer críticas
pelos motivos que se passa a expor.
Primeiramente, de 1861 a 1865, houve a Guerra de Secessão norteamericana, grosso modo, desencadeada pela possibilidade de abolição do sistema
escravagista devido à eleição de Abraham Lincoln (um abolicionista moderado, mas
cuja maior preocupação era com a união do país). Pelo que, por corolário do conflito,
perdida a guerra pelos sulistas escravocratas, no mesmo ano do término da Guerra
Civil ianque em 1865, foi ratificada 13º emenda à Constituição, que acabou
oficialmente com a escravidão no país, pouco tempo depois, em 1868, foi aprovada
a 14º emenda à Constituição24, com o intuito precípuo de controlar medidas
24
Estados Unidos. Constituição (1789). Décima quarta emenda, de 21 de julho de 1868. ‘nossa
tradução’ Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua
jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou
porá em vigor qualquer lei que restrinja os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados
Unidos; nem qualquer Estado privará qualquer pessoa de vida, liberdade ou propriedade
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
287
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
arbitrárias contra quaisquer cidadãos dos Estados Unidos, dando constitucionalidade
ao The Civil Rights Bill de 1866 (WOLFE, 1994, p. 139), contudo tal emenda deixou
vagos os sentidos de “privilégios e imunidades”, “devido processo legal” e “igual
proteção da lei”, de modo que se abriu uma margem para formulação do
“substantive due process” no sentido vago do “devido processo legal” (WOLFE,
1994, p. 139-150).
Assim sendo, a espinha dorsal do “substantive due process” é o seguinte
raciocínio: uma lei que priva a vida, a liberdade e a propriedade, direitos
constitucionais, esta lei não era uma verdadeira lei, pois “se pode argumentar que tal
lei viola a cláusula do devido processo e que a punição (privação a vida, a liberdade
e a propriedade) era inválida e proibida” (WOLFE, 1994, p. 146). Dessa maneira, o
julgador não passa mais apenas a dar preferência à vontade política dos autores da
Constituição, eles, por meio da revisão judicial, passam a “normatizar” direitos e
proibições não previstas da legislação, para conseguir concretude as previsões
constitucionais Por isso, Wolfe obtempera que houve uma passagem de uma
interpretação constitucional para “judge-made law”.
Demais, há que se atribuir, também, as origens do “substantive due process”
a dois fenômenos da Era Tradicional. Nas palavras de Wolfe (1994, p. 145):
Primeiro, houve um padrão de revisão judicial – baseado não na
Constituição, mas nos princípios de justiça natural; isso, como eu
argumentei antes, foi uma posição minoritária e um desvio dos princípios
fundamentais da Era. Segundo, havia alguns casos, primeiramente na corte
dos estados, em que foram firmados em análises dos requisitos intrínsecos
da “lei”. Esses dois fenômenos estavam especialmente unidos em suas
orientações sobre os direitos de propriedade.
Observando que tal formulação do “substantive due process”, com base em
uma escola de pensamento chamada realismo jurídico (WOLFE, 1994, p. 5)25,
somente granjeou aplicação de modo restrito, a saber, aplicou-se apenas o
sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição igual
proteção das leis. (Grifo Nosso)
25
“Uma nova escola de pensamento legal referida como “realismo jurídico” surgiu no final do século
dezenove, e argüiu que a todo julgamento – não apenas um tipo, como a jurisprudência “laissezfaire”- era inerente a legislação... o princípio chefe... era que todas as leis eram “feitas” (um
comando de vontade) ao invés de “descobertas” (através da razão na lei natural).”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
288
A jurisdição constitucional...
“economic substantive due process”, ou seja, apenas nos assuntos econômicos a
Suprema Corte intervém com base no “substantive due process”. Sendo, em 1890,
no caso Chigago, Milwaukee and St. Paul Railroad contra Minnesota, caso
paradigmático para marcar o início da Era de Transição.
Pois bem, o caso mencionado versou sobre a constitucionalidade de uma lei
que regulamentava as taxas ferroviárias de Minnesota, entretanto “o caso não se
focou nas taxas em si (e se elas eram matéria de revisão judicial), e sim no
procedimento para a fixação das taxas ferroviárias” (WOLFE, 1994, p. 149).
(tradução livre), o qual a Suprema Corte decidiu inconstitucional, porquanto ela
“adotou um particular entendimento dos direitos de propriedade garantida pela lei
natural, que é o ‘laiszzez-faire’ capitalista” (WOLFE, 1994, p. 4) (tradução livre). De
maneira que, com base nessa “filosofia política”, a Suprema impediu muitas
tentativas de regulamentação econômica no período de 1890 a 1937 (WOLFE, 1994,
p. 4-5)26.
Doravante, com a quebra da bolsa de 1929, o cenário econômico dos
Estados Unidos se tornou um caos, causando sérios problemas sociais, e,
consequentemente, levou o governo estadunidense a tomar medidas para regular a
economia para levantar o país da chamada Grande Depressão. Em 1933, assume a
presidência Franklin D. Roosevelt, que tenta implementar a política do New Deal,
mas este foi barrado pela Suprema Corte, conquanto, naquele contexto histórico, tal
política fosse consentânea e necessária pelos anseios norte-americanos, cinco dos
nove ministros que compunham a Suprema Corte não pensavam assim. Isso levou a
propor um projeto de lei para aumentar para 15 o número de ministros, para ganhar
maioria na Corte, todavia, enquanto o projeto estava em tramitação, o Ministro Robet
26
Nossa tradução: “O clássico exemplo de um dos casos dessa Era foi Lochner VS. New York
(1905). O Estado de New York proibiu a contratação de padeiros por mais de sessenta horas
semanais ou dez horas por dia. A Corte reconheceu o poder do Estado para regular problemas
relacionados à segurança, saúde moral e o bem-estar geral, mas argüiu que tal poder deveria ser
limitado, senão “a legislatura dos estados teriam poderes ilimitados”. A questão era se esse
exercício do poder estatal interferia injustificadamente na liberdade de contratar – a liberdade dos
empregadores comprarem, e a dos empregados venderem, o trabalho em termos de mútua
aceitação. A Corte entendeu inadmissível a lei interferir em tal liberdade e derrubou-a. De fato,
segundo esta abordagem, a Corte estava livre para impedir qualquer lei que, em sua opinião,
regularia “demais” os problemas econômicos. Tal poder pareceu muito mais uma questão de
vontade – legislativa nos termos do Federalismo- do que um julgamento, ou adjudicação, ou
interpretação”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
289
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
E. Hughes “conseguiu influenciar o juiz Roberts e este passou a apoiar o New Deal
(...) A sensibilidade de Hughes salvou a Corte de uma derrota perante o Executivo e
a opinião pública” (SILVA, 2009. p. 37).
Posteriormente, “em 1937 – depois da proposta de reformulação da corte
por Franklin Roosevelt - a Corte oscilou sobre e acolheu a controvertida legislação”
(WOLFE, 1994, p. 6) (tradução livre), e, depois que Roosevelt conseguiu indicar
outros nomes para a Suprema Corte, esta praticamente abdicou do “economic
substantive due process”. Por isso, Wolfe usa essa data para indicar o término da
Era de Transição e o início da Era Moderna.
Não obstante os conflitos entre o Poder Judiciário e o Executivo e legislativo
na Era de Transição, o entendimento moderno de que o Judiciário tem ínsito à sua
função um caráter fundamentalmente legislativo, sendo os juízes responsáveis por
modificarem as normas sob a luz de novas circunstâncias e experiências (WOLFE,
1994, p. 6-7) (tradução livre), isto é, o “substantive due process” ou o “judge-made
law” assentou-se nos EUA, em especial pela própria tradição da “common law”
(DAVID, 1998); (BALL, 2005); e, também, por ideias ventiladas por vários autores na
Era de Transição, dentre os principais, cita-se Woodrow Wilson27, Oliver Wendell
Homes Jr. e Benjamin Nathan Cardozo28.
27
Woodrow foi eleito duas vezes consecutivas para a presidência do Estados Unidos no período de
1912 a 1921. Wolfe, 1994, p. 208-209 (tradução livre) “A Constituição, de acordo com Wilson, foi
construída em cima da teoria whig sobre a dinâmica política, a qual era uma cópia inconsciente da
teoria newtoniana do universo. O governo Whig, como o universo newtoniano, era composto de
corpos governados pelo equilíbrio e harmonia das forças que dão ao sistema todo... sua simetria e
ajustamento perfeito... Wilson rejeitou a teoria newtoniana de governo em favor da teoria
darwiniana: o governo tomba não sob a teoria do universo, mas sob a teoria da vida orgânica...
que é modificada pela necessidades do ambiente e seus caprichos, dando forma a suas funções
simplesmente pela premência da vida... A Corte, diz Wilson, era um “fórum não político no qual as
interpretações [constitucionais] poderiam ser imparcialmente debatidas e definidas”. Contudo, por
outro lado, pode-se dizer sobre os juízes “que seus poderes são políticos”, porque “se determinam
quais poderes devem ser exercidos nos termos da Constituição, eles, pelo mesmo motivo,
também determinam a adequação da Constituição em relação às necessidades e interesses da
nação”. A Corte deve ler a Constituição amplamente, para que “cada geração de estadista olhe
para a Suprema Corte para fornecer a interpretação que melhor servirá as necessidades atuais”.
Isso acaba, então, por estar longe de ser não político, “sem dúvida, a Corte deve ‘fazer’ leis para
os seus dias atuais”. Cf. Woodrow, 1908.
28
Cardozo foi ministro da Suprema Corte de 1932 a 1938, e sucessor de Holmes. Wolfe, 1994, p.
230-231 (tradução livre) “De acordo com Cardozo, o julgamento começa com a comparação de
um caso com os precedentes. O juiz primeiro extrai o princípio latente no precedente e depois
determina o caminho ou a direção ao longo do qual o princípio vai se move e desenvolver. A
direção é dada por quatro métodos: lógica, histórica, costumeiros e sociológico. Este último
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
290
A jurisdição constitucional...
Contudo, deter-se mais no pensamento de Holmes Jr., ministro da Suprema
Corte durante parte da Era de Transição, de 1902 a 1932, e o autor que mais
contribuiu para o assentamento da moderna revisão judicial estadunidense por meio
de sua teoria sobre e do processo judicial.
Pois bem, na teoria de Holmes, “a nação é um organismo que
inevitavelmente cresce e muda, os autores [da Constituição] não poderiam ter tido
nenhuma previsão completa de seu desenvolvimento” (WOLFE, 1994, p. 224).
Desse modo, deve haver uma ampliação nas palavras dos autores, para torná-las
aplicáveis às circunstâncias e experiência de uma nação mais crescida e madura. E,
sobre o trabalhado do juiz, comenta Holmes (1881, p. XXIV):
A necessidade sentida pelo tempo, as teorias morais e políticas
predominantes, as intenções da política pública, declarada ou inconsciente,
até mesmo os preconceitos que juízes compartilham com seus colegas,
tiveram muito mais influência do que o silogismo na determinação das
regras pela quais os homens devem ser regidos. A lei incorpora a história de
séculos de desenvolvimento de uma nação, e isso não pode ser tratado
como se contivesse apenas axiomas e corolários de um livro de
matemática.
Destarte, após a vitória de Roosevelt em 1937, a Suprema Corte adota o
“rational basis test” para toda legislação de intervenção no domínio econômico, isto
é, “para que a lei passasse neste teste bastava que fosse razoavelmente
relacionada a um objetivo político válido” (MORO, 2001, p. 338)29. Entretanto,
quando a lei afeta direitos considerados fundamentais, como os previstos nas
emendas à Constituição norte-americana, ou os processos políticos para
promulgação da lei, ou se afetar a certas minorias, a Suprema Corte adotou um teste
de constitucionalidade mais rigoroso, denominado strict scrutiny, “no qual a lei, ainda
relacionada a um objetivo legítmo, seria considerada inválida se o mesmo objetivo
pudesse ser alcançado por um meio menos gravoso e se este... não fosse
qualificado como de especial magnitude” (MORO, 2001ª, p. 339).
método é o árbitro de todos os métodos, porque ele considera o bem-estar da sociedade, a qual é
a causa final da lei, ao se decidir sobre o alargamento ou restrinção de uma regra existente, o juiz
deve atender as necessidades sociais”. Cf. Cardozo, 1928.
29
Ver também Moro, 2001b.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
291
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
Uma marca nesta Era Moderna foi a Corte de Warren (1953 a 1969), a Corte
se envolveu em vários casos famosos, os quais abarcam assuntos como, por
exemplo, segregação racial, reordenação de distritos federais, liberdade de
expressão e casos criminais. A Corte de Warren tinha tendências liberais, prova
disso é o caso Brown contra Board of Education, de 1954, no qual foi declarada
inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas do sul; e no caso Gideon
contra Wainright, de 1963, que “reconhece aos acusados perante os tribunais
estaduais o direito a assistência judiciária provida pelo Estado se não tivessem
condições de contratar um advogado” (MORO, 2001a, p. 350). Portanto, tal Corte de
Warren é um exemplo de ativismo judicial norte-americano, que por influência de seu
Chefe de Justiça, estimulou positivas mudanças sociais, sendo chamada de
revolução judicial.
Essa postura liberal pela Corte Warren não agradou ao Presidente Nixon,
que foi um ferrenho crítico desse poder exacerbado de que dispunha a Suprema
Corte. Por isso, depois da aposentadoria do Chief of Justice Warren, o presidente
Nixon nomeou Warren Burger, que tinha uma postura mais conservadora, na
expectativa de frear a intervenção da Suprema Corte. Contudo, Burger não teve
força suficiente para mudar a orientação da Suprema Corte.
Então, Corte Burger (1969 a 1986) trilhou um ativismo judicial parecido com
o da Corte anterior. Por exemplo, um de seus casos mais conhecidos foi Roe contra
Wade, em 1973, tendo reconhecido que a interrupção da gravidez não poderia ser
indistintamente criminalizada, fundamentando sua decisão no direito de privacidade.
Após 1986, com o término da Corte de Burger, não houve mudança significativa,
sendo, portanto, o modo de interpretação prevalente ainda é o da Era Moderna.
Posto isso, conclui-se, as mudanças ocorridas nos modos de controle de
constitucionalidade norte-americano ocorreram de forma gradativa e não linear, o
que não poderia ser diferente, pois de algum modo o crescimento da judicial review
e o desenvolvimento de suas técnicas interpretativas se confunde em muitos
aspectos com a própria história do direito constitucional estadunidense.
De todo modo, a grande questão que fica desse discurso histórico que aqui
foi percorrido pela trilha de Christopher Wolfe é a impossibilidade de se tratar do
fenômeno do ativismo judicial – diretamente ligado ao problema da interpretação da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
292
A jurisdição constitucional...
Constituição – de um modo monolítico, desconsiderando as vicissitudes históricas
que giram em torno do exercício constante da judicial review.
2.2
Experiência alemã
Não há que se falar em ativismo judicial sem que esteja relacionado com o
problema da interpretação, sendo que este problema se mostra mais evidente com o
advento das constituições dirigentes, de fortes conteúdos substanciais e que
possuem em seu núcleo os direitos fundamentais, especialmente os individuais.
Nesta seara, importante deixar claro que o caso alemão é diferente do
estadunidense, uma vez que os contextos sociais e políticos são diferentes, o que
talvez dificulte até mesmo denominar a experiência alemã da Jurisprudência dos
Valores como um caso típico de ativismo judicial como aquele.
A Jurisprudência dos Valores exsurge como uma condição de possibilidade
para romper com o Positivismo Jurídico e adequar o direito ao Estado Democrático
de Direito, sendo que uma de suas principais preocupações seria justamente
oferecer uma alternativa ao problema que o Positivismo exacerbara e se mostrava
incongruente com o novo Estado: o ativismo. Enquanto no Positivismo deixavam-se
a cargo do juiz as decisões que não podiam se enquadrar na moldura interpretativa,
em um procedimento subjetivista, aquela procura impor limites para os casos de
difícil solução, não deixado a solução à mercê de um ato solipcista do magistrado,
mas estabelecendo as condições em que a decisão seja legítima, o que quer dizer,
resultado de um processo interpretativo intersubjetivo.
Além de todo o exposto há outro fator que influencia a Jurisprudência dos
Valores, que é o fato de a Alemanha precisar assinalar para o resto do mundo que
iria aceitar a Lei Fundamental e não mais representar um risco. Juntamente com o
fato de na Europa estar em evidência a Constituição dirigente e o Estado
Democrático de Direito, esta circunstância complementa o pano de fundo em que se
move a Ciência do Direito na época, qual seja, de um modo geral, garantir e efetivar
a Constituição, colocando-a como o centro do direito e buscando a melhor forma de
sua aplicação, sendo que no caso alemão isto vale para a Lei Fundamental.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
293
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
Neste ínterim a Jurisprudência dos Valores propõe uma nova metodologia
para o direito, em que a Lei Fundamental alemã aparece como o instituto que deve
permear todas as relações jurídicas, sendo que o caso concreto, momento de
efetivação do direito, deve ser decidido levando-a em consideração. Para tanto o juiz
deve se pautar pelos valores estruturados na constituição, posto que estes são a
expressão da vontade política da sociedade, o que permite uma decisão que não
mais se justifica subjetivamente, mas intersubjetivamente, por ter seus limites
previamente estabelecidos de maneira não autoritária.
Há renomados defensores da Jurisprudência dos Valores, como Arthur
Kaufmann e Karl Larenz, sendo que este define bem a perspectiva do novo modo de
operar da Ciência do Direito:
(...) não é de todo possível ao juiz, na maioria dos casos, chegar à decisão
estritamente com base na lei, e, porque esta carece de interpretação e a
interpretação é mais ou menos discricionária ou requer dele a emissão de
um juízo de valor, subsiste a questão de se saber o que é que realmente
motivou o juiz na sua decisão – no lugar da ciência normativa do Direito,
que comprove como deva ele decidir, subentra uma ciência factual, uma
psicologia ou uma sociologia judiciária. No entanto, a passagem a uma
<Jurisprudência da Valoração> só levará a tal resultado quando se
sustente, sem limite algum a posição de que os valores não são
susceptíveis de fundamentação e, assim, passíveis de controlo racional,
pelo menos em certa medida. (...) A passagem a uma <Jurisprudência da
Valoração> só cobra, porém, o seu pleno sentido quando conexionada na
maior parte dos autores com o reconhecimento de valores ou critérios de
valoração <supralegais> ou <pré-positivos> que subjazem às normas legais
e para cuja interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo
menos sob determinadas condições (LAREZ, 1997, p. 167 e ss.).
Nesta obra o autor vai desenvolver os critérios de acordo com os quais
acredita seja possível tornar em maior grau objetiva a decisão do juiz, sendo que
esta deve levar em consideração os valores morais sob os quais se instituiu a
Constituição, sendo que esta deve servir de parâmetro para a legislação que se
impõe aos cidadãos. Parte-se do pressuposto que é possível destacar um método
que permite ao juiz alcançar estes valores para que de acordo com os mesmo seja
proferida a decisão, a qual será legítima, diferentemente do que seria se baseada
em valorações morais subjetivas do juiz.
Como se pressupõe um sistema de direito previamente fundamentado, criase a ilusão de que a tarefa da ciência do direito é primordialmente metodológica. O
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
294
A jurisdição constitucional...
método, com suas raízes modernas, têm a função de proporcionar caminhos que
conformem a decisão achada ao direito, conferindo a esta o status de legítima. O
problema que perpassa este novo modo de aplicar o direito é o fato de que se
procede como antes, ou seja, busca-se fundamentar a decisão em um ente
transcendente ao direito, que passa a ser a constituição. Habermas expõe os
perigos desta postura, a qual diz não se distanciar do que procura superar:
Como explicar a possibilidade de reprodução da sociedade num solo tão
frágil como é o das pretensões de validade transcendentes? O médium do
direito apresenta-se como um candidato para tal explicação, especialmente
na figura moderna do direito positivo. As normas desse direito possibilitam
comunidades extremamente artificiais, mais precisamente, associações de
membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da ameaça
de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado
(HABERMAS, 2003, p. 25).
Acontece que o modo como a Jurisprudência dos Valores aborda a questão
não se mostra eficiente para evitar o ativismo judicial, mas este pode ser constatado
de maneira diferente. Ao buscar fundamentos para a decisão em valores tidos como
absolutos, os quais constituiriam os princípios norteadores da aplicação do direito, é
inevitável uma apropriação subjetiva destes valores por parte do intérprete. Tais
valores serão condicionados, em sua explicitação, pela historicidade do juiz, uma
vez que este os interpreta para compreendê-los.
A simples suposição de que tais valores existem e servem de ponto de
partida para a construção da ordem jurídica, sem que haja a devida
institucionalização destes no direito, quando evocados para legitimar uma decisão,
esta será sempre calcada em argumentos de valores, os quais assumem maior
importância que os argumentos de direito, como se estes valores, que no final serão
a expressão arbitrária do julgador, estivessem acima da política que institui o direito.
Desta maneira, as decisões não serão propriamente jurídicas, mas políticas em
sentido estrito.
A partir da necessidade que se observa de efetivar a constituição acaba-se
por possibilitar, através de posturas calcadas no método moderno, decisões de certo
modo ativistas, posto que eivadas de subjetivismo inconsciente, quando se pensa
poder agir intersubjetivamente através de algum método. O que aqui chamamos de
ativismo da Jurisprudência dos Valores é o resultado de um processo interpretativo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
295
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
que se estrutura de um modo que não consegue romper com a metafísica
transcendental, na medida em que a busca de efetivação da constituição, ao
pressupor para esta um fundamento último, possibilita decisões que extrapolam o
próprio sentido da constituição.
Acaba-se por proceder com a constituição de modo a concebê-la
racionalmente aprioristicamente, alvejando delimitar sua aplicação no caso concreto.
Observa-se a não superação da cisão entre teoria e prática, o que acaba, na
verdade, por acarretar na conformação do caso fático a uma possibilidade que se
encaixe ao que o intérprete entende que esteja de acordo com o que entende por
constituição ou seus fundamentos.
O ativismo decorre de um problema metodológico ligado tanto a não
superação da metafísica transcendental como à compreensão inautêntica que se
tem da constituição, sendo que esta é concebida como o fundamento último do
direito, o que acaba por encobrir a tradição e promover sua estruturação de modo a
se tornar o elemento legitimador de qualquer decisão. Porém não se problematiza o
que é a constituição ou seus princípios na sua historicidade, mas busca-se
concatenar a decisão do caso concreto pelo que se concebe, subjetivamente e a
priori, por constituição. Esta não se mostra como a possibilidade de devolver o
mundo prático ao direito, mas sim como a supremacia da teoria, sendo a regra mais
importante de todas e que deve reger as demais e todas as relações sociais.
O ativismo estadunidense mostra-se atrelado ao problema de como aplicar a
constituição, que acaba por se colmatar à tradição do ‘common law’ em que os
juízes buscam, no caso concreto, dar a melhor interpretação para a Constituição. Já
no caso alemão a melhor interpretação para a constituição é designada antes
mesmo de sua aplicação, num processo metódico. Podemos observar que o
ativismo brasileiro tem especificidades que o distingue destes dois já tratados, como
passamos agora a explicitar.
2.3
Ativismo judicial à brasileira
A proeminência da jurisdição constitucional, que passa decidir questões
político-sociais, antes restritas a esfera política, ocorre no âmbito do Estado
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
296
A jurisdição constitucional...
Democrático de Direito o qual deve estar vinculado à ideia de Constituição dirigente
e também a ideia de força normativa da Constituição30. Assim, é necessária uma
mudança da postura metodológica, para pós-positivista, no tocante a fundamentação
das decisões judiciais. Sobre esse contexto Rafael Tomaz de Oliveira (2008, p. 68)
afirma,
(...) esse caráter incisivo da figura do juiz que passará a intervir, no limite
entre política e direito, nas questões envolvendo o acesso à justiça e nas
questões envolvendo a concretização dos direitos fundamentais, deixa
sempre a possibilidade de que sua decisão não possa ser controlada pelos
meios democráticos de legitimação, o que levaria a possíveis
arbitrariedades judiciais.
No Estado Democrático de Direito, não se pode admitir que as decisões
judiciais sejam discricionárias, por isso é necessário buscar meios para impedi-las. E
o limite contra discricionariedades está na fundamentação (pela principiologia da
Constituição), pois o juiz, na tomada de decisão deverá optar pela resposta correta,
ou seja, conforme à Constituição. “É a possibilidade efetiva de respostas corretas
que serve como blindagem contra ativismos/discricionariedades” (STRECK, 2007, p.
388).
Assim, o ativismo judicial exsurge no momento em que o magistrado não
decide dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, agindo de forma
discricionária, questão perpassada portanto, pelo problema hermenêutico de
interpretação da Constituição.
30
(...) a força normativa da Constituição não reside, tão- somente, na adaptação inteligente a uma
dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se
assenta na natureza singular do presente ( individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a
Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição
transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a
disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de
todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar
a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converterse-á em força ativa se fizerem-se presente, na consciência geral – particularmente, na consciência
dos principais responsáveis pela ordem constitucional - , não só a vontade de poder (Wille zur
Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). (HESSE, 1991, p. 19).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
297
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
2.3.1
Interpretação da Constituição ou hermenêutica constitucional?
O termo, hermenêutica constitucional, apesar de ser amplamente utilizado
pela comunidade jurídica, recebe críticas ao seu uso. Pois como adverte Lenio Luiz
Streck (2008, p. 308),
Entendo, ademais, que não é mais possível falar de uma “hermenêutica
constitucional” específica, porque isto leva à recuperação (ou à armadilha)
da velha hermenêutica clássica (método). Dito de outro modo, admitir a
existência de uma hermenêutica constitucional é ver /entender a
hermenêutica como mera técnica, recuperando com isso, a superada
relação sujeito-objeto (S-O) da filosofia da consciência.
No mesmo sentido, as críticas de Friedrich Müller (1999, p. 68-69) aos
métodos ou técnicas de interpretação. Para ele, “as regras tradicionais de
interpretação não podem ser isoladas como “métodos” autônomos por si. Tais regras
dirigem-se a toda e qualquer norma jurídica: porque cada norma jurídica tem o seu
texto da norma (...)”. Demonstrando a impossibilidade de se ter um método
autônomo para a interpretação da Constituição.
Entretanto,
Inocêncio
Mártires
Coelho
(2003,
p.
90),
defende
a
especificidade de uma hermenêutica constitucional, no seguinte sentido
Destarte, a Constituição – enquanto objeto – determina a escolha do
método próprio para seu conhecimento, método esse que, por sua vez ao
ser manejado pelo intérprete, vai “criando” seus objetos hermenêuticos, num
processo aberto e infinito (...).
É evidente ainda entre alguns juristas a permanência/ não superação da
relação sujeito-objeto, a qual é incompatível com o caráter hermenêutico necessário
após o deslocamento do pólo de tensão entre os poderes em direção a jurisdição
constitucional. E, as duas revoluções copernicanas do século XX - a tomada da
filosofia pela linguagem (linguist turn) resultando na derrubada do esquema sujeitoobjeto e, no direito público, o constitucionalismo com caráter dirigente e
compromissório que trouxe para dentro dos textos constitucionais direitos políticosociais - acarretam o aumento da “dimensão hermenêutica do direito”.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
298
A jurisdição constitucional...
2.3.2
Especificidades do caso brasileiro – interpretação da Constituição e
ativismo judicial
Feitas as considerações sobre a experiência alemã e norte-americana, as
quais nos permitiram desenvolver um conceito de ativismo judicial, passaremos à
análise das especificidades do caso brasileiro.
No Brasil, o ativismo judicial não se caracteriza somente pela discussão
sobre a implementação de direitos fundamentais, mas também pelo pronunciamento
quanto a questões políticas, sociais nos quais muitas vezes tem-se por
ultrapassados os limites da atividade jurisdicional.
Ao exacerbar os limites da atividade jurisdicional, o magistrado ao decidir,
não se baseia em argumentos de direito, mas em suas convicções pessoais, em sua
consciência31.
Tal postura evidencia a permanência de posturas pragmatistas-decisionistas
incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, com a ideia de Constituição
dirigente, com o aumento da dimensão hermenêutica do direito e com a necessária
mudança da postura metodológica, para pós-positivista, no tocante a fundamentação
das decisões judiciais.
Como afirma Lenio Streck (2010, p. 96), “A superação do positivismo implica
enfrentamento do problema da discricionariedade judicial ou, também poderíamos
falar, no enfrentamento do solipsismo da razão prática.”32
Já para Luís Roberto Barroso (Constituição..., 2011), o ativismo judicial
estaria ligado “a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na
31
Em recente entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, o Ministro Luiz Fux ao ser
questionado “Mas o sr. nesse ponto também pretende ser estritamente técnico?” Respondeu: “Eu
julgo sempre de acordo com a minha consciência, e acho que estou fazendo o melhor. Eu sou
humano. Se eu errar, vou errar pelo entendimento. Eu sou sensível aos direitos fundamentais da
pessoa humana.” Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/894627-debaixo-da-toga-dejuiz-tambem-bate-um-coracao-diz-fux.shtml>. Acesso em: 16 abr. 2011.
32
“Pois, de efetivo, a hermenêutica se apresenta nesse contexto como um espaço no qual se pode
pensar adequadamente uma teoria da decisão judicial, livre que está, tanto das amarras desse
sujeito onde reside a razão prática, como daquelas posturas que buscam substituir esse sujeito
por estruturas ou sistemas. Nisso talvez resida a chave de toda problemática relativa ao
enfretamento do positivismo e de suas condições de possibilidade.”
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
299
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço
de atuação de outros Poderes.”
As objeções tecidas sobre a expansão do Poder Judiciário em Estados
constitucionais, conforme Barroso (Judicialização..., 2011), não enfraquecem a
importância dos juízes nas democracias modernas. Para ele, o fenômeno do
ativismo possui uma face positiva, “o Judiciário está atendendo as demandas da
sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento.”
As experiências históricas não nos possibilitam dizer se o ativismo judicial é
positivo ou não. O ativismo é sempre uma intervenção discricionária no sentido
forte33, e, neste contexto, é de extrema importância o estabelecimento de
parâmetros de legitimidade de intervenções judiciais no âmbito da política e da
sociedade.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Enrique Ricardo Lewandowski, ao
se manifestar sobre o ativismo judicial, em palestra proferida na Escola de Direito da
Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, no ano de 2009, que foi transcrita no
artigo “O protagonismo do Poder Judiciário na era dos direitos”, pretendeu
demonstrar que o chamado ativismo judicial seria não um “ativismo”, mas sim, um
protagonismo do Poder Judiciário, o que se deve simplesmente à entrada na era do
direito.
Segundo o autor,
Na era dos direitos, o grande protagonista é, sem dúvida nenhuma, o Poder
Judiciário. Por isso, ao invés de “ativismo judicial” ou “ativismo do Supremo
Tribunal Federal”, prefiro utilizar a expressão “protagonismo” do Supremo
33
“Devemos evitar uma confusão tentadora. O sentido forte de poder discricionário não é
equivalente à licenciosidade e não exclui a crítica.” DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a
Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 52. “Dworkin fala em três sentidos
para o termo discricionariedade: um sentido fraco; um sentido forte; e o sentido limitado. O sentido
limitado oferece poucos problemas para sua definição.Significa que o poder da autoridade à qual
se atribui poder discricionário determina-se a partir da possibilidade de escolha entre duas ou mais
alternativas. A esse sentido, Dworkin agrega a distinção entre discricionariedade em sentido fraco
e discricionariedade em sentido forte, cuja determinação é bem mais complexa do que a
discricionariedade em sentido limitado. A principal diferença entre os sentidos forte e fraco da
discricionariedade reside segundo Dworkin, no fato de que em seu sentido forte a
discricionariedade implica incontrolabilidade da decisão segundo um padrão antecipadamente
estabelecido. Desse modo, alguém que possua poder discricionário em seu sentido forte pode ser
criticado, mas não pode ser considerado desobediente.” (TOMAZ DE OLIVEIRA, 2008, p. 28).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
300
A jurisdição constitucional...
Tribunal Federal e/ou, também, em conjunto, “protagonismo do Poder
Judiciário”, como um todo, neste limiar do século XXI. Por quê? Porque nos
estamos entrando na era do direito. (LEWANDOWSKI, 2009, p. 78)
Frise-se que a expressão “era dos direitos” foi extraída de uma entrevista
concedida por Norberto Bobbio, na qual o jurista italiano procurou apontar as etapas
da construção do Estado Democrático de Direito, e de como passaram os
governados à também terem direitos frente ao Estado, sendo o “Estado dos
cidadãos”34.
Portanto, ante ao Estado Democrático de Direito, a existência de uma
Constituição dirigente e da força normativa da Constituição é incompatível que se
tenha decisões judiciais discricionárias, pois, tem-se o direito fundamental a uma
resposta correta, constitucionalmente.
Podemos então expressar um ativismo brasileiro com contornos bem
delimitados e diferentes do que se observa nos Estados Unidos e na Alemanha.
Enquanto que nestes dois países o ativismo está ligado, resguardadas as
diferenças, à manutenção e efetivação de direitos fundamentais, especialmente os
individuais, onde se busca adequação constitucional – apesar dos riscos –, no Brasil
o ativismo se mostra como um fenômeno oposto. O nosso ativismo acaba por coibir
os direitos fundamentais ao proceder o STF em esferas nas quais não lhe foi
atribuída competência constitucional, sendo que não se verifica em seus
fundamentos, pelos seus defensores, a manutenção dos direitos fundamentais, mas
sim a possibilidade de infringi-los em razão do que a Corte entende por motivos de
relevância social. Nossos ministros agem como legisladores, sendo que não
34
“O primado do direito (ius) sobre a obrigação é um traço característico do direito romano, tal como
este foi elaborado pelos juristas da época clássica. Mas trata-se, como qualquer um pode
comprovar por si, de diretos que competem ao individuo como sujeito econômico, como titular de
direitos sobre as coisas e como capaz de intercambiar bens com outros sujeitos econômicos
dotados da mesma capacidade. A inflexão a que me referi, e que serve como fundamento para o
reconhecimento dos direitos do homem, ocorre quando esse reconhecimento se amplia da esfera
das relações econômicas interpessoais para as relações de poder entre príncipe e súditos, quando
nascem os chamados direitos públicos subjetivos, que caracterizam o Estado de direito. É com o
nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o
ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só tem deveres e não
direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano direitos privados.
No Estado de direito, o individuo tem em face do Estado, não só direitos privados,mas também
direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” (BOBBIO, 2004, p. 77-78).
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
301
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
possuem legitimidade para tanto e nem há autorização constitucional para tanto.
Acabam não observando a Constituição e até mesmo procedendo à alteração de
seu texto a pretexto de conformá-la às mudanças sociais. Uma resposta correta é a
que se constrói levando em consideração a Constituição, sendo que uma
compreensão autêntica do direito nos permite expor que seu vínculo primordial é
com a garantia dos direitos fundamentais individuais, por se tratar de um mecanismo
de limitação do poder, sendo que limita até mesmo o poder do órgão responsável
por sua interpretação.
Enquanto que nos Estados Unidos e Alemanha há fortes críticas e receios
em relação ao ativismo judicial, o qual se mostra mais contido que o brasileiro, aqui
tem-se percebido pouca censura por parte da comunidade jurídica e uma propensão
a se consolidar e estruturar a compreensão errônea de que ao STF cabe decidir qual
a melhor forma de aplicar a constituição, ao passo que lhe cabe garanti-la e efetivála, porém não possui legitimidade para expressar seu sentido e seus limites, ao
passo que deve obedecer também a estes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de um balanço final dos principais resultados deste trabalho de
pesquisa, é importante ressaltar que nosso fio condutor foi dado pelo objetivo de
diferenciar – em termos teóricos claros – judicialização de ativismo judicial. Ficou
demonstrado, por todo o exposto, que enquanto o ativismo judicial está
umbilicalmente associado a um ato de vontade do órgão judicante, a judicialização
de questões políticas ou sociais não depende desse ato volitivo do poder judiciário
mas decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da
própria crise da democracia, que tende a produzir um número gigantesco de
regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc.) e que
encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões
cujo deslinde envolve um ato de jurisdição constitucional.
Do mesmo modo, foi nossa preocupação demonstrar – na linha do que vem
sendo denunciado por Lenio Streck – que a ideia de ativismo judicial não foi
recepcionada com o devido cuidado pela comunidade jurídica nacional. Para isso,
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
302
A jurisdição constitucional...
fizemos uma incursão na experiência americana da interpretação da Constituição,
tendo como fio condutor a obra de Christopher Wolfe que demonstra como o modelo
interpretativo reinante em terras estadunidenses saiu do âmbito de um originalismo
interpretacionista para desaguar num modelo de jugde made Law, bem à moda do
realismo jurídico, e todas as implicações político-sociais que daí deriva. É importante
notar como que essa atitude voluntarista do judiciário estadunidense não se
encontra livre de oposição. Ao contrário, há uma série de contendas políticas que
envolvem cada período interpretativo e que acaba por levar a uma discussão mais
profunda sobre o papel do judiciário no âmbito da sociedade norte-americana.
Por outro lado, também a experiência alemã da chamada jurisprudência dos
valores, representa algo que pode ser considerado “ativismo” judicial. Todavia, ao
contrario das posturas mais extremadas do jugde made Law estadunidense, os
adeptos da jurisprudência da valoração procuravam encontrar, em alguma essência
jurídica fora do “texto” da lei ou da constituição, uma referência de justiça. Tudo isso
num contexto em que, como consta do artigo 20, seção III da Lei Fundamental de
Bonn, procurava-se afirmar uma vinculação do juiz não apenas à lei, mas também
ao Direito. Este “deslizar-se” da lei em direção ao direito – diferença entre jus e Lex –
acabou por propiciar o surgimento desse tipo de argumento voltado à identificação
de valores, no momento de interpretação da Constituição.
No Brasil, entretanto, o que se experimenta é uma espécie de simbiose –
altamente explosiva – do modelo de jurisprudência da valoração alemã com o
ativismo judicial estadunidense (como fica clara nas posições de Luis Roberto
Barroso), o que tende a gerar uma série de problemas para a interpretação da
Constituição de 1988.
Se,
no
contexto
histórico
do
surgimento
da
CF/88,
foi
importe
constitucionalizar direitos fundamentais e algumas outras matérias estratégicas
tornando-as, portanto, judicializáveis, vivenciamos agora um momento em que
precisamos ter clareza sobre o que é, realmente, resultado de um movimento de
judicialização (da política ou das relações sociais) e o que representa uma postura
ativista por parte do poder judiciário que, no Brasil, tende às vezes a formular textos
novos para as normas Constituicionais (lembramos, aqui, da Rcl. 4335-AC e do caso
Cesare Batisti, nos quais o STF, verdadeiramente, criou um novo texto para o art.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
303
Rafael Tomaz de Oliveira e outros
52, X e para a alínea “g” do inciso I do art. 102, ambos da CF). A judicialização,
quando mantida em níveis aceitáveis pode até ser benéfica para a sobrevivência
democrática das instituições e para a garantia efetiva do pacto constitucional. Já o
ativismo representa sempre uma autorização indevida do judiciário na esfera da
política. Sempre há uma boa causa a ser defendida por um juiz ativista. O problema
é que, num contexto de pós-modernidade onde tudo se torna relativo, a
determinação do bom e do mal, tornou-se ainda mais complicada. Como diz
Guimarães Rosa – pela boca de Riobaldo, nosso filósofo do Sertão – “querer demais
o bem e de incerto jeito, pode se estar fazendo o mal por principiar”. Assim, se é
uma boa causa que queremos, optamos pela defesa intransigente da democracia e
dos direitos fundamentais. Isso significa: menos ativismo e mais interpretação!
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306
A competência ambiental dos entes...
A COMPETÊNCIA AMBIENTAL DOS ENTES FEDERATIVOS
PÓS LEI COMPLEMENTAR 140/11 EM FACE DO ARTIGO 23
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NO CASO DA USINA DE
BELO MONTE
ENVIRONMENTAL COMPETENCE OF FEDERAL ENTITIES AFTER LC 140/11 ON ARTICLE 23 OF
THE FEDERAL CONSTITUTION THE CASE OF THE HIDROELETRIC OF BELO MONTE
Ana Cláudia da Silva Carvalho1
Ellen Cristine Santos Ferreira2
Eduardo Biacchi Gomes3
Resumo
O presente trabalho tem por escopo a nova Lei Complementar 140/11, que
regulamentou o art. 23 da Constituição Federal, seus incisos III, VI, VII e parágrafo
único. A Lei complementar em questão, visa à cooperação entre os entes
federativos relativamente a matéria ambiental, com intuito de alcançar o disposto no
art.225 da Constituição Federal. Sendo assim, será analisada factualmente a
condição da Hidrelétrica de Belo Monte, cuja construção interferirá no curso natural
do rio Xingu: havendo um grave dano ambiental quem será responsabilizado, já que
anteriormente à Lei Complementar 140/11 a competência seria do IBAMA? Em face
desta problemática, também se quer questionar, qual deverá ser o comportamento
juridicamente aceitável do Estado e Municípios afetados por esse potencial impacto
ambiental? Até que ponto, sobre a ótica constitucional, o Estado do Pará poderá
interferir nas questões relativas à Usina de Belo Monte? Terá o Estado autonomia
administrativa para interferir nas decisões tomadas pelo município em face da
Usina? Diante das primícias constitucionais suprapostas, é importante e necessário
à delimitação da competência fiscalizatória, além de verificar se esta competência
traz em seu bojo a competência legislativa ainda que seja apenas relativa as
questões administrativas.
Palavras-Chave: Direito Constitucional. Lei Complementar 140/11. Usina de Belo
Monte.
Abstract
This article is based on the Complementary Law 140/11, which was edited to
regulate the article 23 of the Federal Constitution, in its items III, VI and VII and sole
paragraph. The main content of the referred items is related to the cooperation
1
2
3
Acadêmica do 10˚ período do curso de direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná –
PUC. E-mail: <[email protected]>.
Acadêmica do 9˚ período do curso de direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC.
E-mail: <[email protected]>.
Orientador. Professor Doutor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC. E-mail:
<[email protected]>.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
307
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
between federal entities in respect of environmental law, to fulfill the requirements of
article 225 of the Constitution. Therefore, we will discuss the Belo Monte’s
hydroelectric construction case, which interferes directly in the Xingu River’s natural
flow, causing a serious environmental harm. Who will be responsible now, if before
the Complementary Law 140/11 those responsible were IBAMA? Besides, we also
want to ask what procedure the state and the county would have to follow, that could
be legally acceptable according to the potential environmental impact? To what
extent, on the constitutional perspective, the state of Pará may interfere in matters
relating to the Belo Monte hydroeletric? The state would be capable to have
administrative autonomy to interfere in decisions took by the county in the face of
the hydroeletric? Given the constitutional pilars mentioned above, it is important to
limit the surveillance competence and verify if this competence includes the
legislative competence even though it evolves only administrative matters.
Keywords: Constitutional
Hydroeletric.
Law.
Complementary
Law 140/11.
Belo
Monte
Sumário: Introdução. 1. Usina de belo monte uma síntese contextual. 2. Competência dos
entes federativos antes e depois da lei complementar 140/11 em face do art. 23
da constituição federal. 2.1. Competência em matéria ambiental dos entes
federativos antes depois da Lei Complementar 140/11. 2.2. A Lei Complementar
140/11 e a produção de efeitos. 3. Usina de Belo Monte sob a perspectiva da Lei
Complementar 140/11. Referências.
INTRODUÇÃO
Com a nova Lei Complementar 140 de 08 de dezembro de 2011, a qual
objetiva a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
na questão da competência ambiental administrativa em relação à proteção das
paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate a poluição
em qualquer de suas formas e a preservação das florestas da fauna e da flora.
É entendido que a lei supracitada trouxe celeridade aos processos
ambientais em decorrência da descentralização do poder administrativo em
conceder e autorizar a construção de empreendimentos que tenham impacto direto
no meio ambiente, assim, todos os processos e licenciamentos que se encontravam
estagnados na administração – por conta que só poderia ser a União competente
para dar parecer – agora já não mais, devido ao poder de polícia ser competência
comum entre os entes federativos.
É fundamental ressaltar que esta novíssima estrutura de organização
acarreta num processo de reformulação das ações e das atribuições da
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
308
A competência ambiental dos entes...
administração pública, uma vez que para qualquer modelo de empreendimento têm
os entes federativos competência para autorizar seu desenvolvimento.
Ocorre que, é perceptível que alguns Estados e municípios do Brasil não
possuem estrutura técnica para analisar um empreendimento, o que pode acarretar
um possível e irreparável dano ambiental.
Contudo, é notório que para a execução desta lei complementar há
necessidade de uma intensa fiscalização sobre os entes federativos, para que o
meio ambiente não venha a sofrer com um impacto de degradação relevante, não
ficando claro na lei em questão se haverá de alguma forma uma fiscalização, seja
por um órgão criado para tal fim, seja pela uma fiscalização mútua entre os entes.
Ainda, cabe ressaltar que no caso da Usina de Belo Monte há necessidade
de analisar a competência ambiental, para ter conhecimento de quem será
competente para licenciar e autorizar novos licenciamentos. Com o RIMA – Relatório
de Impacto Ambiental – elaborado por uma empresa contratada pela Eletrobrás em
2009, fica demonstrado que a construção da Usina de Belo Monte trará um impacto
ambiental imenso, pois os afetados não serão apenas os moradores que residem na
região da Volta Grande do Xingu, mas também a fauna e a flora, ou seja, toda a
biodiversidade circundante; consequentemente ocasionando alterações abruptas no
clima influenciando inclusive a agricultura.
No atual momento legislativo brasileiro pairam indagações a respeito da
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da Lei Complementar 140/11, vez que
pode ser constatada flagrante inobservância ao princípio constitucional da
autonomia, como no caso do artigo 9º, inciso XIV, “a” da referida lei em face do
art.18 da Constituição Federal. O artigo 23 da Constituição Federal Brasileira é claro
ao trazer a figura da competência comum entre a União, os Estados, Municípios e
Distrito Federal no tocante as matérias de direito ambiental e ainda em seu
parágrafo único afirma que em leis complementares fixariam normas para a
cooperação proporcionando equilíbrio no desenvolvimento e bem estar em âmbito
nacional.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
309
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
1
USINA DE BELO MONTE: UMA SÍNTESE CONTEXTUAL
A Usina de Belo Monte, um projeto de planejamento energético brasileiro,
consiste na construção de uma central hidrelétrica que estará localizada na bacia
hidrográfica do Rio Xingu, nas proximidades do município de Altamira, Belo Monte
do Pontal, e 12 (doze) comunidades indígenas que vivem em reservas ambientais na
região, Estado do Pará – PA4.
O projeto, cujas obras começaram em março de 2011, possui quatro
canteiros estratégicos, com estruturas independentes e obras simultâneas: Sítio
Pimental – eixo principal; canal de derivação com 20,5 km de extensão; Bela Vista, e
Belo Monte5.
A estimativa da concessionária Norte Energia S/A - NESA, responsável pela
construção do empreendimento, é de 8 (oito) anos para a conclusão total das obras,
sendo que a primeira turbina está prevista para funcionar ainda em março de 2016.
A usina, quando da sua conclusão, terá a capacidade de geração de energia
de 11.233,1 MW, com 4.571MW médios de energia assegurada, ficando área de
alagamento estimada em 516 km2, “dos quais quase a metade corresponde ao leito
natural do Rio Xingu”6.
O processo de licenciamento para a construção da Usina de Belo Monte
tramita no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
- IBAMA sob nº 02001.001848/2006-75:

Em 2009 foi protocolada para análise o Estudo de Impacto
Ambiental - EIA

Em 2010 foi concedida a Licença prévia à NESA.

Em janeiro de 2011, o IBAMA concedeu a licença de Instalação (LI)
dos canteiros de obras, sendo esta suspensa em 25 de fevereiro
de 2011 por decisão judicial da Justiça Federal no Pará.
4
5
6
Conheça a UHE Belo Monte – Cartilha. Disponível em> <http://www.blogbelomonte.com.br/wpcontent/uploads/2011/12/Cartilha_portugues_.pdf>. Acesso em: 19 maio 2012 , às 14:16.
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Monte%20-%20Fatos%20e%20Dados%20-%20POR.pdf>. Acesso em: 19 maio 2012 às 14h.
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
310
A competência ambiental dos entes...

Em 01 de junho de 2011 foi concedida nova licença de instalação
(LI).
Para seu pleno funcionamento, a Usina de Belo Monte necessitará da
concessão da Licença de Operação, que é autoriza o enchimento do reservatório e o
início da geração de energia pela Usina.
2
COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERATIVOS ANTES E DEPOIS DA LEI
COMPLEMENTAR 140 EM FACE DO ART. 23 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL
A Constituição Federal traz em seus artigos 22, 23 e 24 espécies de
competência, entre elas, as relativas à matéria de direito ambiental: privativa,
comum, e concorrente respectivamente.
A Lei Complementar 140/11 veio regulamentar o artigo 23 em seus incisos
III, VI e VII, e parágrafo único:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições
democráticas e conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e
os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e
de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de
suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a
cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar
em âmbito nacional.
A competência comum disposta no artigo 23 supra é “(...) denominada
cumulativa ou paralela, é a exercida de forma igualitária por todos os entes que
compõem uma federação, sem a exclusão de nenhum” (BELTRÃO, 2003, p. 8).
Segundo José Afonso da Silva (1995), tal competência é
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
311
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
material ou administrativa, uma vez que possui precipuamente natureza
executiva, não autorizando, atividade legiferante alguma. Logo, corresponde
a implementação das diretrizes política e preceitos concernentes à temática
ambiental.
Ainda, a competência comum está inserida indiretamente no artigo 225 da
Carta Magna, que versa sobre matéria ambiental, quando elenca incumbências ao
“Poder Público” em seu caput, § 1º e incisos. O Poder Público é, neste caso, a
representação dos Estados, Municípios, Distrito Federal e União (BELTRÃO, 2003,
p. 9).
A regulamentação trazida pela Lei Complementar 140/11 tem a finalidade,
segundo o legislador, de promover a cooperação entre os entes federados
relativamente às ações administrativas decorrentes da competência comum e
instituídos pela própria Constituição, tais como: licenciar, fiscalizar, multar interditar,
embargar e poder de polícia (PETERS; PIRES, 2001, p. 34). Tais ações estão
dispostas no Capítulo III, da lei em comento, fundamentadas no artigo 3º e incisos
da mesma norma legal.
A competência comum prevista no artigo 23 da Constituição foi fragmentada
quando da atribuição a cada ente federativo das atividades a serem desenvolvidas,
relativamente às ações elencadas no artigo 7º, 8º e 9º da Lei Complementar
140/2011; passando assim, a ter o caráter de competência privativa por matéria
(MUKAI, 2012).
O artigo 7º da Lei Complementar 140/11 indica as ações a serem
desenvolvidas pela União, bem como a delimitação territorial de sua competência
para formular, executar e fazer cumprir (art. 7º, I). Igualmente ocorrem com os
artigos 8º, 9º e 10º da mesma lei, no que tange aos Estados e Municípios.
2.1
Competência em matéria ambiental dos entes federativos antes e
depois da Lei Complementar 140/11
A Lei 6.938 de 1981, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente,
também sofreu alterações por conta da Lei Complementar 140/11 referente à
matéria de competência administrativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e dos órgãos estatuais; especialmente nas
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
312
A competência ambiental dos entes...
questões de licenciamento e autorização para construção e desenvolvimento de
empreendimentos com impacto ambiental.
Antes da Lei Complementar 140/11, a Lei 6.938 com redação dada pela lei
7.804 de 1989, trazia a competência ambiental administrativa conforme segue:
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais,
considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes,
sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de
prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do
Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter
supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.
§ 1º - Os pedidos de licenciamento, sua renovação e a respectiva
concessão serão publicados no jornal oficial do Estado, bem como em um
periódico regional ou local de grande circulação.
§ 2º Nos casos e prazos previstos em resolução do CONAMA, o
licenciamento de que trata este artigo dependerá de homologação do
IBAMA.
§ 3º O órgão estadual do meio ambiente e o IBAMA, esta em caráter
supletivo, poderão, se necessário e sem prejuízo das penalidades
pecuniárias cabíveis, determinar a redução das atividades geradoras de
poluição, para manter as emissões gasosas, os efluentes líquidos e os
resíduos sólidos dentro das condições e limites estipulados no
licenciamento concedido.
§ 4º Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis - IBAMA o licenciamento previsto no caput deste
artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto
ambiental, de âmbito nacional ou regional.
Art. 11. Compete ao IBAMA propor ao CONAMA normas e padrões para
implantação, acompanhamento e fiscalização do licenciamento previsto no
artigo anterior, além das que forem oriundas do próprio CONAMA.
§ 1º A fiscalização e o controle da aplicação de critérios, normas e
padrões de qualidade ambiental serão exercidos pelo IBAMA, em caráter
supletivo da atuação do órgão estadual e municipal competentes.
Não seria exagero afirmar que o IBAMA era detentor de uma grande parcela
de poder administrativo para licenciar e fiscalizar os empreendimentos com impactos
ambientais em todos os âmbitos da federação, ideia esta que pode ser abstraída do
art. 10 e parágrafo, art. 11, § 1º, da Lei 6.938/81.
Cabe ainda ressaltar que em algumas das atividades suprapostas, o IBAMA
figurava em caráter supletivo na atuação do órgão estadual e municipal competente.
Com a entrada em vigência da Lei Complementar 140/11, o art. 10 e § 1º
foram parcialmente modificados e seus parágrafos 2º, 3º e 4º revogados:
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
313
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva
ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar
degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.
o
§ 1 Os pedidos de licenciamento, sua renovação e a respectiva concessão
serão publicados no jornal oficial, bem como em periódico regional ou local
de grande circulação, ou em meio eletrônico de comunicação mantido pelo
órgão ambiental competente.
§ 2o (Revogado).
§ 3o (Revogado).
§ 4o (Revogado).
A nova redação conferida ao artigo 10º retirou a competência ambiental
administrativa do IBAMA para licenciar supletivamente junto ao órgão estadual,
trazendo apenas a informação de que haverá a necessidade de licenciamento
ambiental nas atividades lá dispostas.
Outrossim, o legislador deixou em aberto no caput do dispositivo a
identificação do órgão licenciador competente e no qual tramitará o processo de
licenciamento, visto que para tanto, a sua identificação deverá ser analisada a Lei
6.938 conjuntamente com a Lei Complementar 140/11.
Já a “fiscalização e o controle da aplicação de critérios, normas e padrões de
qualidade ambiental” antes “exercidos pelo IBAMA, em caráter supletivo da atuação
do órgão estadual” e municipal competentes previsto no § 1º da Lei 6.938 foi
revogado, não mais cabendo ao IBAMA esta atividade.
Diante desta análise, conclui-se que a União através do IBAMA, perdeu um
percentual significativo relativamente à competência ambiental administrativa em
face dos Estados Municípios e Distrito Federal.
O artigo 10° da Lei 6.938 de 2011 deve ser analisado conjuntamente com 7º
8º, 9º e 10º da Lei Complementar 140/11 para fins de identificação do início e limites
da competência dos entes federativos:
Art. 7º. São ações administrativas da União: (...)
XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e
atividades:
a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país
limítrofe;
b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma
continental ou na zona econômica exclusiva;
c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas;
d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas
pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
314
A competência ambiental dos entes...
e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados;
f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos
de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das
o
Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar n 97, de 9 de
junho de 1999; (...)
o
Art. 8 São ações administrativas dos Estados: (...)
XIII - exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja
atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida
aos Estados;
XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou
empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou
potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar
o
o
degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7 e 9 ;
XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou
empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de
conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção
Ambiental (APAs); (...)
o
Art. 9 São ações administrativas dos Municípios: (...)
XIII - exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja
atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida ao
Município;
XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas
nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das
atividades ou empreendimentos:
a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local,
conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio
Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza
da atividade; ou
b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município,
exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); (...)
Art. 10. São ações administrativas do Distrito Federal as previstas nos arts.
º
8 e 9º.
Embora a Lei Complementar 140/11 tenha sido produzida com a finalidade,
dentre outras, de descentralizar a atuação da fiscalização e licenciamento, antes
restringida ao IBAMA e ao Órgão Estadual competente, a redação dos artigos que
normatizam esta vontade do legislador dá margens para interpretações restritivas ou
extensivas.
Isto se dá pelo simples fato da redação dos dispositivos serem genéricas,
como se observa no artigo 9°, XIII, quando o legislador dá o poder de exercer a
fiscalização e não regula os casos onde incidirá tal atribuição.
Acredita-se que estas e outras questões encontradas na Lei Complementar
140/11 poderão ser alvo de regulamentações ou interpretações judiciais, criando-se
assim uma pacificação sobre os casos.
Ainda a Lei Complementar em comento traz algumas disposições
importantes para o processo ambiental-administrativo, como a impossibilidade de
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
315
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
competência concorrente para o licenciamento, artigo 13 e a existência das
competências supletivas e subsidiárias entre os entes federativos nos casos
descritos nos artigos 15 e 16.
2.2
A Lei Complementar 140/11 e a produção de efeitos
As novas regras legais trazidas pela Lei Complementar 140/11 somente
passarão a produzir efeitos nos processos de licenciamento e autorização iniciados
a partir da sua vigência, sendo que os processos em andamento continuarão sendo
regidos pelas normas anteriores. Essa disposição pode ser encontrada no artigo 18
da Lei Complementar 140/11.
Ainda, quanto à produção de efeitos, a Lei Complementar traz uma condição
suspensiva para a alínea “h” do inciso XIV do art. 7º e para a alínea “a” do inciso XIV
do art. 9º conforme o parágrafo 3º:
Art. 18. Esta Lei Complementar aplica-se apenas aos processos de
licenciamento e autorização ambiental iniciados a partir de sua vigência.
o
o
§ 1 Na hipótese de que trata a alínea “h” do inciso XIV do art. 7 , a
aplicação desta Lei Complementar dar-se-á a partir da entrada em vigor do
ato previsto no referido dispositivo.
o
o
§ 2 Na hipótese de que trata a alínea “a” do inciso XIV do art. 9 , a
aplicação desta Lei Complementar dar-se-á a partir da edição da decisão do
respectivo Conselho Estadual.
o
§ 3 Enquanto não forem estabelecidas as tipologias de que tratam os
o
o
§§ 1 e 2 deste artigo, os processos de licenciamento e autorização
ambiental serão conduzidos conforme a legislação em vigor.
Para os demais casos, a Lei Complementar 140/11 já produz efeitos desde a
sua publicação, o que ocorreu em 09 de dezembro de 2012.
3
A USINA DE BELO MONTE SOB PERSPECTIVA DA LEI
COMPLEMENTAR 140
A partir da análise dos efeitos da Lei Complementar 140/11 sobre o
ordenamento jurídico ambiental, conclui-se o que o IBAMA continua sendo o
responsável pela fiscalização, e licenciamento ambiental referente à Usina de Belo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
316
A competência ambiental dos entes...
Monte, uma vez que o seu processo de licenciamento foi iniciado no ano de 2009,
junto ao órgão.
A questão é que, sendo o IBAMA um órgão federal e neste caso competente
para exercer todas as ações administrativas, não ocorrerá durante a execução de
suas obras conflito de competência comum entre o Estado e o Município vez que
neste caso, a competência é da União, conforme o artigo 18 caput da Lei
Complementar 140/11.
Portanto, o IBAMA é competente para fiscalizar, conceder licenças
necessárias para a continuidade da execução da obra, inclusive para conceder a
Licença de Operação (LO).
Mas, o que acontecerá após o término das obras? Quem será o responsável
pelas ações administrativas em face do empreendimento?
A localização da Usina de Belo Monte é um fator que desperta
questionamento quanto a um possível conflito de competência, no caso de um novo
processo de licenciamento ambiental: ela está situada na imediação do município de
Altamira – embora muitos outros municípios e comunidades indígenas sejam
afetados por sua construção – no Estado do Pará.
Em face do tamanho da obra, é natural que subjetivamente, tenha-se
despertado o interesse do Estado do Pará, do Município de Altamira e da União em
ser sujeito das ações administrativas elencadas na Lei Complementar 140/11.
Destacam-se três fatores Usina de Belo Monte:

Obra de grande impacto ambiental e social na região;

Localizada e desenvolvida em terras indígenas;

Afeta mais de um município do Estado do Pará.
Analisando os fatores acima, conclui-se que a Usina de Belo Monte possui
características que poderiam ser fundamentos contundentes para a eleição da
competência de qualquer dos entes federativos, sejam a União, Estado e Município,
especialmente ante a ausência de especificidade de ações constantes nos artigos 8º
e 9º da referida Lei Complementar.
Face à novidade da Lei Complementar 140/11 e de suas generalidades
quanto as ações; das discussões na seara da doutrina jurídica estarem ainda como
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional
317
Ana Cláudia da Silva Carvalho e outros
quem “ensaia a dança” e de não haver nenhum posicionamento jurisprudencial
sobre a questão, conclui-se através de uma interpretação sistemática, que a União
no caso da Usina de Belo Monte, é quem teria a competência ambiental
administrativa para ser sujeito das ações e do cumprimento dos objetivos dispostos
norma legal.
REFERÊNCIAS
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<http://www.blogbelomonte.com.br/wp-content/uploads/2011/12/Cartilha_portugues_.pdf>
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ambiente a partir da ordem constitucional de 1988. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, n. 40, 159 jul./set., 2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 19
maio 2012, às 22:00h
BRASIL. Lei 6.938/81. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm>.
Acesso em: 20 maio 2012, às 15h.
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br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp140.htm>. Acesso em: 20 maio 2012, às 15h.
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2011. Disponível em: <http://www.epe.gov.br/leiloes/Documents/Leil%C3%A3o%20Belo
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Canal
Norte
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Disponível
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<http://www.youtube.com/watch?v=
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CARLI, Vilma M. Inocêncio. A Obrigação Legal de Preservar o Meio Ambiente.
Campinas: ME Editora e Distribuidora, 2004.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed., rev., atual. e ampl.
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MUKAI, Toshio. A lei complementar 140, 8 de dezembro de 2011, que fixa diretrizes
para a cooperação entre os entes federativos em matéria ambiental. Disponível em:
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PETERS, Edson Luiz; PIRES, Paulo de Tarso de Lara. Manual de Direito Ambiental:
Doutrina, Legislação Atualizada, Vocabulário Ambiental. Curitiba: Juruá, 2001.
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A competência ambiental dos entes...
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