A linguagem e a realidade: a ação praticada por meio das palavras

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A linguagem e a realidade: a ação praticada por
meio das palavras. Análise do primeiro
capítulo do livro Gênesis1
Maria Inês Caminitti
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Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os atos de fala, sua taxinomia, segundo os filósofos John Langshaw Austin (1911 – 1960) e John Rogers Searle (1932) e
analisar os tipos presentes no primeiro capítulo da primeira parte do livro Gênesis, da
Bíblia Sagrada, intitulado “Primeira narrativa da criação”. Para Austin, ato de fala é toda
ação que é realizada pelo dizer, acontece pelo uso de um performativo e indica que se
realiza uma ação na emissão de um proferimento, desde que se obedeça a certos critérios. Segundo Searle, produzir um enunciado é fazer um ato ilocucionário e qualquer
emissão realiza um ou mais atos ilocucionários. Na análise realizada, a maioria dos atos
performativos encontrados foram, conforme Austin, dos tipos implícito e exercitivo, e,
segundo Searle, do tipo diretivo. A metodologia usada na realização deste artigo foi a
revisão bibliográfica e a análise de corpus.
Palavras-chave: Ato de fala. Austin. Searle. Ato ilocucionário. Gênesis.
Orientadora: Silvana Zamprôneo. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua
Portuguesa da Universidade Paulista (UNESP/FCL-CAr). Mestre em Linguística e Língua Portuguesa e
graduada em Letras pela mesma instituição. Professora dos cursos presenciais de Letras e Pedagogia do
Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>.
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Licenciada em Letras pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <macaminitti@
yahoo.com.br>.
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1. INTRODUÇÃO
“A linguagem é um refinamento, no princípio era a ação.”
(WITTGENSTEIN apud VILELA, 1999, p. 460)
“A significação de uma palavra é seu uso na linguagem.”
(WITTGENSTEIN, 1975, p. 32)
“Deus disse: ‘Faça-se a luz!’. E a luz foi feita.”
(GÊNESIS, 1:3)
J. L. Austin foi quem elaborou a teoria sobre os atos de fala, influenciado
diretamente pela visão que Wittgenstein tinha da linguagem. Classificou
os proferimentos em constatativos, que descrevem ou relatam coisas do
mundo e em performativos, explícitos ou implícitos, que não descrevem o
mundo físico, mas referem-se às ações que os enunciados possuem em sua
estrutura e que podem expressar uma intenção, uma ordem, um desejo etc.
Posteriormente, Searle apresentou críticas relacionadas à teoria de Austin,
mas baseou-se nela para escrever a sua própria teoria, apresentando uma
taxinomia alternativa e visão diferenciada para os atos de fala Este trabalho
aborda a teoria dos filósofos citados para mostrar que existem diferenças
significativas na forma como interpretam a intenção encontrada nos atos
de fala. A análise dos atos performativos encontradas no primeiro capítulo
da primeira parte do livro Gênesis, do Antigo Testamento foi realizada
segundo as teorias de Austin e Searle.
Para explicitar o assunto, o presente artigo foi escrito em quatro
seções que tratam do surgimento da teoria dos Atos de Fala, dos atos
constatativos e performativos, performativos explícitos e implícitos, verbos
performativos, tipos de atos performativos para Austin e para Searle e da
análise dos atos performativos encontradas no livro Gênesis, do Antigo
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Testamento. Para o embasamento teórico do presente estudo, além dos
autores já citados, foram pesquisados Ilari e Geraldi (1995), Vilela (1999)
e Mora (1996).
2. SURGIMENTO DA TEORIA DOS ATOS DE FALA
Na obra “Quando dizer é fazer. Palavras e ação”, Austin (1990)
afirma que durante muito tempo os filósofos achavam que as declarações
apenas serviam para descrever um estado de coisas ou simplesmente para
manifestar um fato. Para os gramáticos contemporâneos as sentenças
nem sempre eram empregadas para fazer declarações, pois poderiam ser
utilizadas em perguntas, exclamações, ordens, desejos e concessões.
Há uma sutil diferença entre “sentença”, “declaração” e “proferimento”,
e a definição entre eles é necessária para a melhor compreensão deste texto.
Para o tradutor dessa obra, pode-se definir “sentença” como uma unidade
linguística, possuidora de estrutura gramatical e significado, “declaração”
como sendo o uso que se faz da sentença, para afirmar ou negar algo,
verdadeiro ou falso e “proferimento” é a emissão concreta e particular
de uma sentença, em determinado momento e por determinado falante.
Ferrates Mora nos apresenta a sua concepção de proferimento:
Usa-se este termo como tradução da palavra inglesa utterance, de
ampla circulação entre filósofos da linguagem que se interessam
especialmente pelo que foi chamado de “atos de fala” ( J. L. Austin, John R. Searle, H. P. Grice e outros). ‘Proferimento’ se define
então como ‘a ação de dizer’, isto é, o que se faz ao proferir no sentido de dizer ou articular palavras. Pode-se usar também o termo
‘dizer’ como substantivação do verbo ‘dizer’: o dizer, um dizer e,
no plural, dizeres, os dizeres. [...] Não fica sempre claro se o proferimento, o ato de fala, o ato de dizer, o dizer, etc., é efetivamente este
ato ou é o resultado deste ato ou ambos. (MORA, 1996, p. 2385).
Para Austin (1990), “[...] uma sentença não é uma declaração, mas
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a sentença é utilizada para fazer uma declaração” e pelos insuficientes
critérios gramaticais disponíveis, os filósofos e os gramáticos não teriam
como obter a dimensão exata da diferença que existe entre uma pergunta
e uma ordem, por exemplo. As sentenças que esses estudiosos aceitavam
indiscutivelmente como declarações eram gramaticalmente bem
construídas, entretanto, alguns começaram a questionar se eram ou não
verificáveis quanto a seu valor de verdade e a perguntar qual o seu real
motivo de existência, se seriam realmente “declarações”.
Nos muitos proferimentos que pareciam declarações, foi observado
que não tinham, ou tinham parcialmente, o intuito de registrar ou
transmitir informação direta a respeito dos fatos. Era possível ultrapassar
os limites da gramática tradicional e constatar, conforme o uso de
determinadas palavras, a circunstância em que a declaração foi realizada,
as restrições às quais estava sujeita etc. - mais do que somente descrever
a realidade relatada. Para Austin (1990), as declarações, verdadeiras ou
falsas, eram proferimentos constatativos e não meras descrições.
Acontece aí uma revolução filosófica da doutrina e do método
utilizado até então para formular essa concepção. Austin, em seus estudos
das contribuições deixadas pelo positivista lógico Ludwig Wittgenstain,
apresenta-nos uma nova e distinta forma de ver a linguagem e mostra que
por meio desta é possível praticar ações. Surge, então, a Teoria dos Atos
de Fala.
3. ATOS CONSTATATIVOS E
PERFORMATIVOS, PERFORMATIVOS
EXPLÍCITOS E IMPLÍCITOS,
VERBOS PERFORMATIVOS
Atos constatativos, contrários aos atos performativos, são aqueles
que descrevem ou relatam coisas do mundo, ações ou acontecimentos e
podem ser analisados sob o ponto de vista da verdade ou da falsidade.
Como exemplo, podemos citar as sentenças: “Batizei a criança com o nome
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de Ana”, “Eu jogo futebol”, “A Terra gira em torno do sol”, “A mosca caiu na
sopa”.
Observa-se que as frases acima são afirmações, descrições ou relatos
que podem ser avaliados sob o critério da veracidade.
Segundo Ilari e Geraldi (1995, p. 70), “[...] a oposição entre realizar
verbalmente uma determinada ação e narrá-la é central na linguagem
humana” - e, entre os enunciados performativos e os constatativos, existem
diferenças claramente observadas. Já sobre as sentenças performativas, os
autores nos dizem o seguinte:
[...] para dar conta da significação das frases performativas, a
noção de condições de verdade não basta. Um enunciado performativo pode ser coroado de sucesso ou não, pode surtir ou
não os efeitos desejados, mas não é em si mesmo nem verdadeiro
nem falso: não é uma informação; é um ingrediente de um ato
que se realiza verbalmente. (ILARI; GERALDI, 1995, p. 74).
Assim, uma nova visão das sentenças das línguas foi formulada, e as
frases que relatavam algo e que somente possuíam a função de informar
passaram a ser analisadas como aquelas que se opunham às frases em que as
ações verbais indicavam que ações estavam sendo praticadas no momento
da fala.
Tomemos algumas sentenças que compreendem atos de fala ou
proferimentos performativos, em que ações são praticadas no momento
da fala:
“Aceito-te como meu legítimo marido.”
“Condeno-te a vinte anos de prisão.”
“Batizo-te com o nome de Ana.”
“Ordeno que você saia.”
“Eu te perdoo.”
As sentenças acima não se revelam verdadeiras ou falsas, pois, ao
serem proferidas nas circunstâncias apropriadas, os atos que estariam sendo
praticados no momento da fala não são apenas descritos ou declarados,
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mas estão sendo literalmente executados. Determinadas sentenças são,
na verdade, ações, ou seja, o dizer realiza um ato. A teoria formulada
por Austin, segundo Vilela (1999, p. 460, “[...] não estuda a estratégia
por parte do falante ou do ouvinte em ordem à construção do discurso,
aponta antes para a própria função comunicativa do discurso considerada
como actividade”. Vilela, (1999, p. 460) ainda nos diz a respeito dos atos
de fala:
Aqui os enunciados não são o objecto, mas os meios para se
atingir algo. O locutor, ao realizar um enunciado numa situação de interação, constrói um tipo de acto social, com uma
determinada força ilocutiva e um dado conteúdo proposicional. É essa a razão porque são chamados actos de fala.
Pode-se encontrar proferimentos, cujos verbos usualmente
encontrados estão na primeira pessoa do singular do presente do indicativo
da voz ativa, enquadrando-os na categoria dos performativos explícitos.
Austin denominou este tipo de sentença ou proferimento de “sentença
performática”, “proferimento performativo” ou somente “performativo”,
derivado do verbo inglês “to perform” (realizar). Podemos dizer, então, que
os atos performativos são enunciados que, obedecendo a certos critérios,
como, por exemplo, tempo e voz verbal, indicam, além da sua descrição,
relato ou constatação, a realização da ação. O falante não descreve ou
afirma a realização de uma ação, mas realiza-a de fato no exato momento
em que faz o pronunciamento da sentença.
Apesar de ser a principal ocorrência para a realização de um ato,
não basta somente o proferimento das palavras para que este aconteça:
a situação em que ocorre o proferimento deve ser apropriada para a sua
concretização, e também se faz necessário que todos os envolvidos realizem
certas ações, físicas ou mentais. Assim, segundo Austin (1990, p. 26):
[...] para eu batizar um navio é essencial que eu seja a pessoa escolhida para fazê-lo; no casamento (cristão) é essencial para me
casar que eu não seja casado com alguém que ainda vive, que
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é são e de quem não me divorciei [...] e uma doação não se realiza caso diga ‘Dou-lhe isto’, mas não faça a entrega do objeto.
Austin também constatou que uma ação pode ser realizada sem a
utilização do proferimento performativo explícito, mas as circunstâncias
apropriadas continuam sendo indispensáveis. Como exemplo, podemos
citar as frases “Proibido fumar!” ou “Feche a porta!”, em que o verbo não
está na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa,
assim como “Curva perigosa!” e “Cão feroz!”, que não possuem nenhuma
palavra relacionada ao ato que executam. Essas sentenças equivalem
a dizer “Eu proíbo que você fume”, “Eu ordeno que feche a porta”, “Eu
te advirto que a curva é perigosa” e “Previno-o que o cão é feroz e pode
atacar”. Trata-se de performativos implícitos. Por esses exemplos, é possível
observar que em todo proferimento que seja um performativo implícito, é
possível realizar a sua ampliação e obter-se uma forma na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo, na voz ativa.
O performativo implícito, denominado “primitivo” por Austin
(1990), é uma forma reduzida do performativo explícito que pode,
contudo, ser gerador de ambiguidade, pois na sentença “Estarei lá” não é
possível saber se é uma ameaça, uma advertência ou uma promessa.
Assim, Austin (1990, p. 69) conclui:
As formas primitivas ou primárias dos proferimentos conservam,
neste sentido, a “ambigüidade”, ou “equivoco”, ou o “caráter vago”
da linguagem primitiva. Tais formas não tornam explícita a força
exata do proferimento. [...] A linguagem em si, e nos seus estágios,
não é precisa, nem explícita, no sentido que demos a esta palavra.
O performativo explícito, por sua vez, é aquele cujo objetivo é
deixar clara a intenção em se fazer tal pronunciamento, observando-se
as condições ou circunstâncias que tornarão possível a sua concretização
que Austin (1990) intitula de “condições de felicidade”, ou seja, as
ações só poderão ser concretizadas com sucesso em determinado lugar,
num espaço de tempo delimitado, com as pessoas certas que tenham
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realmente a intenção de que, ao se pronunciarem as palavras, concretizese a ação indicada por elas. O próprio Austin (1990, p. 31) nos diz que
“[...] se violarmos uma das regras [...] – isto é, se proferirmos a fórmula
incorretamente, ou se as pessoas não estão em posição de realizar o ato,
[...] [o ato] não se realiza com êxito, não se efetua, não se concretiza.”
Na evolução da linguagem, o performativo explícito, segundo
Austin (1990, p. 69), “[...] deve ter se desenvolvido posteriormente
a certos proferimentos mais primários, muitos dos quais são já
performativos implícitos [...]”. Estes, um tanto ambíguos, vagos e próprios
de uma linguagem mais primitiva, não demonstravam a força exata do
proferimento. Houve, portanto, uma sofisticação da linguagem, quando,
devido ao desenvolvimento da sociedade, uma linguagem clarificada
tornou-se necessária, revelando um ato de grande criatividade por parte
do falante e de significado altamente preciso, tornando claro o que foi dito.
A “força” do proferimento, a partir de então, foi ampliada. Conforme nos
diz Vilela (1999, p. 461), “[...] os enunciados têm (ou podem ter) certa
força, um determinado poder”. Essa força é o que Austin denomina “força
ilocucionária”. São forças ilocucionárias: ordem, pedido, promessa etc.
Alguns recursos linguísticos mais primitivos podem ter suas funções
melhor desempenhadas pelos performativos explícitos, no entanto, são
freqüentes na língua. Os exemplos a seguir foram citados por Austin
(1990, p. 70-71) e são recursos linguísticos que configuram performativos
implícitos:
1- Modo
O uso do modo imperativo transforma o proferimento em uma
ordem, exortação, permissão, concessão etc.:
- “Feche-a, faça-o”, assemelha-se a “Ordeno-lhe que feche”.
-“Feche-a, eu o faria”, assemelha-se a “Aconselho a fechá-la”.
- “Feche-a, se quiser”, assemelha-se a “Permito que a feche”.
- “Feche-a, se tiver coragem”, assemelha-se a “Desafio-o a fechá-la”.
2- Tom de voz, cadência, ênfase
Vai atacar-nos! (aviso)
Vai atacar-nos? (pergunta)
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Vai atacar-nos!? (protesto)
Reproduzimos este aspecto da língua falada por meio de sinais de
pontuação, mas estes podem ser insuficientes.
3- Advérbios e Expressões Adverbiais
Podemos atenuar ou aumentar a força de um proferimento utilizando
advérbios e expressões adverbiais:
- “Eu o farei” - “Eu o farei provavelmente” (força atenuada).
-“Eu o farei” – Eu o farei sem falta” (força aumentada).
4- Partículas conectivas
São utilizadas como recurso especial para indicar um nível de maior
sutileza:
“Insisto que ...” – com mais sutileza ficaria “contudo, insisto que ...”
“Concluo que ...” – com mais sutileza ficaria “portanto, concluo que ...”
“Admito que ...” – com mais sutileza “dessa forma, admito que ...”
5- Elementos que acompanham o proferimento
São os gestos ou atos cerimoniais não-verbais que podem acompanhar
os proferimentos (piscar de olhos, sinais, dar de ombros, franzir o cenho
etc.).
6- As circunstâncias do proferimento
As circunstâncias e o contexto em que ocorre o proferimento são
importantes para a interpretação das palavras.
Os recursos citados podem gerar equívocos e serem até usados
com outras intenções, como, por exemplo, a insinuação. Uma forma de
acabar com tais ambiguidades é utilizar os performativos explícitos ou
usar em conjunto alguns ou todos os elementos mencionados (itens 1 a
6) para impedir que equívocos aconteçam. Austin (1990, p. 73) nos diz
que “[...] a existência e até mesmo o uso dos performativos explícitos não
resolvem todas as nossas dificuldades”, pois estes podem ser confundidos
com sentenças descritivas (ou constatativas). É arriscado distinguir se
são ou não são performativos explícitos, pois a ambivalência (os aspectos
radicalmente diferentes) pode surgir, como, por exemplo, em “Aprovo”,
que pode ter o significado performativo de dar aprovação ou o significado
descritivo de estar a favor de algo.
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Segundo Austin (1990), ainda existem os casos em que as emoções e
desejos são transformados em sentenças, e tais sentimentos são expressos,
muitas vezes, de forma ambivalente, ou se beneficiam dessa ambivalência.
Como exemplo, podemos observar as frases seguintes:
- “Agradeço.” (performativo)
-“Sou grato” (semidescrição)
- “Sinto-me grato” (relato)
Em relação aos verbos performativos, ou seja, verbos que, quando
usados na primeira pessoa do singular, revelam o tipo de ato performativo,
Austin (1990) afirma que é difícil elaborar uma lista de verbos performativos
explícitos. Ele, em seus estudos, seleciona os verbos “comportamentais”,
que dizem respeito a reações e comportamentos alheios e que expressam
atitudes e sentimentos. Podem ser divididos em performativos explícitos
(ou puros), não puros e descritivos. Para tornar clara a distinção entre
eles, citamos os exemplos seguintes, utilizados pelo próprio Austin (1990,
p. 77): “Peço desculpas – performativo explícito ou puro”, “Lamento –
Performativo Não-Puro” e “Arrependo-me – descritivo”.
A frase “Tenho a honra de [...]” é considerada uma frase de
cortesia e estas, por não necessitarem ser sinceras, não são consideradas
performativos.
Nos performativos, a palavra somente está adequada à ação quando
ela é a própria ação verbal, ou seja, dizer algo é fazer algo, é realizar uma
ação. Observa-se que as classificações dos verbos performativos não podem
ter exatidão e somente ao observamos como eles estão sendo empregados
é que poderemos saber a que tipo pertencem.
4. TIPOS DE ATOS PERFORMATIVOS
Austin (1990) distingue três tipos de atos performativos: o
locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário.
Para clarificar o que é um ato locucionário, Austin (1990) distingue
primeiramente o que é um ato fonético, um ato fático e um ato rético: o
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primeiro resume-se na simples emissão de certos ruídos; o segundo consiste
no proferimento de ruídos organizados de tal forma que os reconhecemos
como vocábulos conformados gramaticalmente; o último é a utilização de
tais vocábulos, com sentido e referência.
Citemos alguns exemplos utilizados pelo próprio Austin (1990, p. 86):
Ato fático: “Ele disse: _ ‘O gato está sobre o tapete’”
Ato rético: “Ele disse que o gato estava sobre o tapete”
Ato fático: “Ele disse: _ ‘Saia’”
Ato rético: “Ele me mandou sair”
Cabem, ainda, mais algumas considerações sobre os atos fonético e
fático: na realização de um ato fático realiza-se também um ato fonético;
na realização do ato fático estão presentes o vocabulário, a gramática e
também a entonação; o ato fático pode ser completamente imitado, não
só o proferimento em si, mas também a entonação, gestos etc.
O ato rético é também chamado de “discurso indireto”, no qual,
segundo Austin (1990, p. 87):
[...] sentido e referência (nomear e referir) são aqui atos acessórios
realizados ao realizar-se o ato rético. [...] Do mesmo modo, [...]
podemos realizar um ato fático que não seja um ato rético, embora o inverso não seja possível. Assim podemos repetir as observações de uma pessoa, ou murmurar repetidamente alguma frase,
ou podemos ler uma sentença sem saber o sentido das palavras.
Ao utilizarmos a fala dessa forma estamos realizando um ato
locucionário, ou seja, estamos somente dizendo algo.
Quando sabemos que o objetivo que se pretende alcançar ao realizar
um proferimento é advertir, sugerir ou ordenar, prometer estritamente ou
somente anunciar que pretendemos fazer algo, estamos realizando um
ato ilocucionário, ou seja, um ato está sendo realizado um ato ao se dizer
algo.
No ato de se dizer uma sentença realiza-se o ato locucionário. A
ação realizada por meio de um enunciado é o ato ilocucionário. O ato
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perlocucionário se refere aos efeitos ou consequências causados nos
ouvintes por meio do que foi dito, ou seja, os efeitos causados sobre os
seus sentimentos, pensamentos ou ações. Observemos os exemplos a
seguir, citados por Austin (1990, p. 90):
Ato locucionário (são os sons pertencentes a um vocabulário e a
significação no sentido tradicional, observando as regras gramaticais;
referem-se apenas ao gesto de proferir o enunciado):
Ele me disse “Atire nela!” querendo dizer com “atire” atirar e
referindo-se a ela por “nela”.
Ato ilocucionário (um ato é realizado ao proferir o enunciado, neste
caso, uma ordem): Ordeno atirar nela.
Ato perlocucionário (um efeito e/ou um sentimento é produzido no
ouvinte que, neste caso, pode ter sido medo, raiva, espanto etc.):
Ele me obrigou a atirar nela.
Para Austin (1990, p. 119), “[...] a verdade ou falsidade de uma
declaração não depende unicamente do significado das palavras, mas
também do tipo de atos que, ao proferi-las, estamos realizando e das
circunstâncias em que os realizamos”, ou seja, a situação que envolve um
proferimento é muito importante. É neste momento que, até certo ponto,
as palavras utilizadas e seus significados podem ser compreendidos e as
forças ilocucionárias são articuladas. Ainda, segundo Austin (1990, p. 120)
“[...] em geral, o ato locucionário, como o ato ilocucionário, é apenas uma
abstração: todo ato lingüístico genuíno é ambas as coisas de uma só vez”.
Mora (1996, p. 1437) nos diz o seguinte sobre o assunto:
[...] Na análise de Austin, é fundamental a ideia das chamadas “forças
ilocucionárias” [...] O estudo detalhado de atos ilocucionários levou
Austin a sustentar que há diversos tipos de “força” implicados nesses
atos. Essas forças são de alcance e gênero muito diversos e podem,
embora provisoriamente, articular-se em grupos ou classes. Um ato
ilocucionário pode ter, por exemplo, uma força “expositiva” – que é a
que possuem os proferimentos antes chamados de “constativos” (como
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os que consistem em afirmar, negar, declarar, descrever, testemunhar
etc.) -, ou uma força “comissiva”, que é a que possuem proferimentos
que consistem em prometer, consentir etc., ou uma força “vereditiva”,
que é a que possuem proferimentos que consistem em arbitrar, julgar
(na qualidade de juiz) etc., ou uma força “behabitiva” [...], que é a que
possuem proferimentos que consistem em pedir perdão, agradecer,
dar as boas-vindas, desafiar etc. Nenhuma dessas “classes” de proferimento deve ser tomada como estabelecendo um campo perfeitamente delimitado; [...] podem existir outras “forças ilocucionárias”,
e, [...] as que já foram citadas se entrecruzam, frequentemente,
suscitando problemas de “jurisdição” ao ser comparadas entre si.
Austin (1990) distingue cinco classes de proferimentos em função
de sua força ilocucionária:
1- Vereditivos – pronúncia de um veredicto sobre determinado
assunto, tendo o seu conteúdo a possibilidade de ser verdadeiro ou falso;
como exemplo, pode-se citar: “absolvo”, “classifico”, “analiso”, “coloco”,
“determino”, “descrevo”, “qualifico”, “condeno”. “[...] consistem em emitir
um juízo, oficial ou extra-oficial, sobre evidências ou razões quanto
ao valor ou ao fato, na medida em que estes são passíveis de distinção.”
(AUSTIN, 1990, p. 124)
2- Exercitivos – caracterizam-se pelo exercício de poderes, direitos
ou influências, ou seja, ordena-se que algo seja realizado de determinada
forma, e, consequentemente, autoriza-se ou não que certos atos aconteçam,
como, por exemplo: “ordeno”, “revogo”, “advirto”, “voto”, “lego”, “anuncio”,
“escolho”, demito”, “recomendo”, “veto”, “suplico”, “mando”, “declaro
aberta”, “declaro encerrada”.
3- Comissivos – comprometem o falante a cumprir o que prometeu
ou assumiu. Podemos incluir também a adesão (tomar partido), que revela
certa imprecisão no ato que está sendo praticado. Possuem conexão com os
vereditivos, que nos comprometem a realizar ações, e com os exercitivos,
que nos comprometem com as consequências de um ato. Podemos citar
como exemplos: “prometo”, “pretendo”, “adoto”, “farei”, “consinto”, “me
pronuncio por”, “tomo partido”, “sou a favor de”.
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4- Comportamentais – referem-se às atitudes e comportamento
social, adotados diante da conduta e do destino de outros. Como exemplos,
podemos citar: “abençoo” e “amaldiçoo” (expressam desejo), “felicito”,
“me compadeço” e cumprimento-o” (expressam solidariedade), “critico”,
“aplaudo”, “aprovo” e “apóio” (expressam atitudes), “seja bem vindo” e
“boa sorte” (para saudações), “desafio-o”, “duvido que” e “protesto” (para
desafios), “peço desculpas”, “agradeço”.
5- Expositivos – de difícil definição, esclarecem como as palavras
estão sendo utilizadas quando opiniões são expressas e sua condição de
fidelidade ao pensamento do falante. Citemos alguns exemplos: “afirmo”,
“nego”, “declaro, “observo”, “menciono”, “replico”, “informo”, “argumento”,
“respondo”, “explico”, “formulo”, concordo”, “exemplifico”.
Austin (1990, p. 131), em suma, diz que “[...] o vereditivo é um
exercício de julgamento, o exercitivo é uma afirmação de influência ou
exercício de poder, o comissivo é assumir uma obrigação ou declarar uma
intenção, o comportamental é a adoção de uma atitude e o expositivo é o
esclarecimento de razões, argumentos e comunicações.”.
Para Searle (1995), os atos ilocucionários podem ser classificados
em assertivos, diretivos, compromissivos, expressivos e declarações, e
importantes diferenças podem ser observadas entre os proferimentos,
existindo a atuação e o entrecruzamento de mais de uma força ilocucionária
em cada um deles. Citemos as três dimensões significativas, consideradas
por Searle como as mais importantes dentre as doze dimensões que
menciona em sua obra, nas quais os atos ilocucionários diferem uns dos
outros quanto:
1- ao propósito ou motivo ilocucionário do ato, sendo este uma parte
integrante da força ilocucionária;
2- à correspondência da linguagem com o mundo ou vice-versa
(as asserções, descrições e explicações estão na primeira categoria e as
promessas, pedidos, comandos, juramentos estão na segunda);
3- aos estados psicológicos do falante expressos na realização do
ato ilocucionário e que revelam a condição de sinceridade do ato ao
expressarem uma crença, uma promessa ou jura, uma ordem, um desejo,
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um pedido de desculpa ou arrependimento, uma intenção, um prazer.
Segundo Searle (1995), a classificação dos atos ilocucionários
proposta por Austin constitui excelente base para discussão, mas
apresenta pontos fracos passíveis de profunda revisão quando apenas
sugere cinco categorias como um conjunto de resultados estabelecidos e
apresenta somente a taxinomia de verbos ilocucionários, mas não de atos
ilocucionários. Ainda para Searle (1995, p. 14), Austin apresenta “[...] uma
classificação de espécies de atos ilocucionários, que dois verbos quaisquer
não sinônimos devem marcar diferentes atos ilocucionários”. Apresenta as
seguintes críticas contra a teoria de Austin:
- nem todos os verbos catalogados por Austin são sequer verbos
ilocucionários. “[...] ter a intenção nunca é um ato de fala; expressa uma
intenção normalmente, mas nem sempre o é.” (SEARLE, 1995, p. 15);
- não existe princípios ou conjunto de princípios, claros e consistentes
que sirvam de base para a classificação proposta por Austin;
- como não há princípios claros e consistentes e persiste a confusão
entre atos ilocucionários e verbos ilocucionários, acontece a sobreposição
entre as categorias, e muitas são compostas, em seu interior, por partículas
de outras;
- há, no interior de certas categorias, tipos de verbos muito
diferentes; os verbos “afrontar”, “desafiar” e “contestar” aparecem ao lado
de “agradecer” e todos são comportativos;
- nem todos os verbos pertencentes a cada classe atendem as
definições oferecidas, mesmo que analisados de forma vaga, como quer
Austin. “Nomear”, “designar” e “excomungar” não são simplesmente o
proferimento de uma decisão, favorável ou não, a certa linha de ação.
Para Searle (1995, p. 18):
[...] há uma confusão persistente entre verbos e atos, nem todos os verbos são verbos ilocucionários, há sobreposição demais entre as categorias, muitos dos verbos catalogados nas categorias não satisfazem a definição dada para a categoria, e, o que
é mais importante, não há princípio consistente de classificação.
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Searle (1995) propõe, então, uma taxinomia alternativa, explicada a
seguir:
1- Assertivos – comprometem o falante com a verdade da proposição
enunciada; podem ser caracterizados literalmente como verdadeiros
ou falsos. Como exemplo, citamos “gabar-se”, “reclamar”, “concluir”,
“constatar”, que são assertivos e estão relacionados com o interesse do
falante. Relacionando-os com a classificação de Austin, contêm a maioria
dos seus expositivos e muitos dos vereditivos.
2- Diretivos – são tentativas de levar o ouvinte a fazer algo. Podem ser
tentativas muito tímidas (convidar a fazer algo ou sugerir que se faça algo)
ou muito intensas e claras (insistir que se faça algo). Podemos citar como
exemplo: “pedir”, “convidar”, “ordenar”, “mandar”, “suplicar”, “pleitear”,
“rezar”, “rogar”, “permitir”, “aconselhar”, “afrontar”, “desafiar” e “contestar”
considerados por Austin como comportativos. Além desses, muitos dos
exercitivos de Austin também são diretivos. “Perguntas são uma subclasse
dos diretivos, pois são tentativas, por parte de F, de levar O a responder,
isto é, a realizar um ato de fala.” (SEARLE, 1995, p. 21).
3- Compromissivos – comprometem o falante, em graus variáveis,
a cumprir a ação prometida. É a única definição de Austin que Searle
aceita e acata sem modificações, exceto pelos muitos verbos classificados
como compromissivos que absolutamente não pertencem a esta classe. Os
compromissivos comprometem o falante a fazer algo. Já os diretivos têm
como motivo um pedido e tentam levar o ouvinte a fazer algo, sem obrigálo ou comprometê-lo a isso.
4- Expressivos –expressam sentimentos e estado psicológico.
Podemos citar como exemplos: “agradecer”, “congratular”, “desculpar-se”,
“dar pêsames”, “dar as boas vindas”. É importante ressaltar que na realização
dos expressivos a verdade do que foi dito está pressuposta. Searle (1995,
p. 23) exemplifica-nos dizendo que “[...] quando eu me desculpo por ter
pisado em seu pé, não é meu propósito alegar que seu pé foi pisado, nem
fazê-lo ser pisado.”
5- Declarações – produzem uma situação externa real e nova. Searle
(1995, p. 26) dos dá o seguinte exemplo: “se realizo com sucesso o ato de
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declarar um estado de guerra, então estamos em guerra”. Nas declarações,
a linguagem tenta corresponder ao mundo.
Para Searle (1995), produzir um enunciado é fazer um ato
ilocucionário, e qualquer emissão realiza um ou mais atos ilocucionários.
A força ilocucionária indica a direção entre o conteúdo proposicional
e a realidade: nos assertivos, a direção é palavra-mundo; nos diretivos
e compromissivos a direção é mundo-palavra, nos expressivos não há
direção, mas esta é pressuposta. Para realizar uma emissão, é preciso que já
exista a direção. No caso das declarações, a direção é produzida no sucesso
da realização do ato. Finalmente, o autor conclui a discussão dizendo-nos
o seguinte:
A conclusão mais importante a ser tirada dessa discussão é a
seguinte. Não há, como Wittgenstein (numa interpretação possível) e muitos outros alegaram, um número infinito ou indefinido de jogos de linguagem ou usos da linguagem. Pelo contrário, a
ilusão de que os usos da linguagem são ilimitados é gerada por
uma enorme falta de clareza sobre o que sejam os critérios que permitem distinguir um jogo de linguagem de outro, um uso da linguagem de outro. Se adotamos o propósito ilocucionário como a
noção básica para a classificação dos usos da linguagem, há então
um número bem limitado de coisas básicas que fazemos com a linguagem: dizemos às pessoas como as coisas são, tentamos levá-las a
fazer coisas, comprometemo-nos a fazer coisas, expressamos nossos
sentimentos e atitudes, e produzimos mudanças por meio de nossas emissões. Frequentemente, fazemos mais que uma dessas coisas
de uma só vez, com a mesma emissão. (SEARLE, 1995, p. 45-46).
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5. ANÁLISE DOS ATOS PERFORMATIVOS
NO LIVRO GÊNESIS, DO ANTIGO TESTAMENTO
Propusemos-nos a analisar os atos performativos encontrados
no primeiro capítulo da primeira parte do Gênesis, contido no Antigo
Testamento, intitulado “Primeira narrativa da criação”, segundo as teorias
de Austin (1990) e Searle (1995).
Foram encontrados os atos performativos “Faça-se a luz” (GÊNESIS,
1:3), “Faça-se um firmamento entre as águas, e separe êle umas das outras”
(GÊNESIS, 1:6), “Produza a terra verdura, ervas que contenham semente e
árvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie, e o fruto contenha
a sua semente” (GÊNESIS, 1:11), “Façam-se luzeiros no firmamento dos
céus para separar o dia da noite; sirvam eles de sinais e marquem o tempo,
os dias e os anos; e resplandeçam no firmamento dos céus para iluminar
a terra” (GÊNESIS, 1:14), “Produzam as águas uma multidão de seres
vivos, e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento dos céus”
(GÊNESIS, 1:20), “Frutificai [...] e multiplicai-vos, e enchei as águas do
mar, e que os pássaros se multipliquem sobre a terra” (GÊNESIS, 1:22),
“Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos,
répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie”. (GÊNESIS, 1:24),
“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” (GÊNESIS, 1:26)
e “Frutificai [...] e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai
sobre os peixes do mar, sobre os pássaros dos céus e sobre todos os animais
que se arrastam sobre a terra” (GÊNESIS, 1:28), nos quais nota-se a
presença de verbos no modo imperativo. Após sofrerem a ampliação (ou
transformação) em atos de fala explícitos, obtivemos, respectivamente:
“Eu ordeno que a luz seja feita”, “Eu ordeno que um firmamento entre as
águas seja feito e ordeno também que este [o firmamento] separe umas
das outras”, “Eu ordeno que a terra produza verdura, ervas que contenham
semente e árvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie e ordeno
também que o fruto contenha a sua semente”, “Eu ordeno que sejam
feitos luzeiros no firmamento dos céus para separar o dia da noite, que
sirvam de sinais para marcar o tempo e que resplandeçam no firmamento
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dos céus para iluminar a terra”, “Eu ordeno que as águas produzam uma
multidão de seres vivos e ordeno também que voem pássaros sobre a terra,
debaixo do firmamento dos céus”, “Eu ordeno que frutifiquem [os seres
marinhos] e encham as águas do mar, e ordeno também que os pássaros
se multipliquem sobre a terra”, “Eu ordeno que a terra produza seres vivos
segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens,
segundo a sua espécie”, “Eu ordeno que façamos o homem à nossa imagem
e semelhança” e “Eu ordeno [ao homem] que frutifique, multiplique-se,
que domine os peixes do mar, os pássaros dos céus e todos os animais que
se arrastam sobre a terra”. Todos são proferimentos do tipo implícito ou
primitivo, que é a forma reduzida do performativo explícito (cujo verbo
está na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa).
Segundo a sua força ilocucionária, para Austin (1990) são proferimentos
do tipo exercitivo, cuja característica principal é o exercício de poder,
a ordem, em que uma decisão é tomada e algo deve ser realizado, deve
acontecer. Para Searle (1995) são proferimentos do tipo diretivo, cuja
função é levar o “ouvinte” a fazer algo.
Também foram encontradas as sentenças “Que as águas que estão
debaixo do firmamento se ajuntem num mesmo lugar, e apareça o elemento
árido” (GÊNESIS, 1:9) e “Que ele [o homem] reine sobre os peixes do
mar, sobre os pássaros dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda
a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra” (GÊNESIS,
1:26), que são sentenças do tipo optativa, ou seja, exprimem os desejos
do enunciador. Temos o presente do subjuntivo como tempo verbal, que
revela um desejo presente que se realizará no futuro. Para Searle, é um
ato de fala do tipo expressivo, em que a vontade do falante está expressa
e o desfecho pode ser positivo ou negativo, cuja concretização não é
controlável pelo falante. Neste caso específico, o agente (Deus) detém o
poder de realizar tudo que deseja, ou, segundo a teoria de Austin (1990),
possui condições de felicidade totais, levando-nos à conclusão de que o
desejo expresso é plenamente realizável.
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Obtivemos, ainda, a sentença:
Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as
árvores frutíferas contendo em si mesmas a sua semente, para que vos
sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todos os pássaros
dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja um sopro
de vida, eu dou toda a erva verde por alimento. (GÊNESIS, 1:29).
Trata-se de um proferimento explícito ou puro, cujo verbo está na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa e o
objetivo é deixar clara a intenção do falante, observando-se as condições
ou circunstâncias que tornarão possível a sua concretização. Nesta
situação, a concretização é plena. Segundo a sua força ilocucionária, para
Austin (1990) é um proferimento do tipo expositivo, cuja característica
principal é expor o pensamento do falante e declarar verdadeiramente o
compromisso que será cumprido (de dar ao homem tudo que está sobre a
terra). Para Searle é uma declaração assertiva, ou seja, o locutor realiza um
proferimento que está relacionado com a verdade que ele próprio expressa
(condição de sinceridade) e uma nova realidade passa a existir.
6. CONCLUSÃO
No decorrer da pesquisa para a realização deste artigo, uma nova
concepção sobre a linguagem, do ponto de vista filosófico, foi sendo
delineada. As teorias propostas por Austin e Searle não são antagônicas,
mas mostram que os dois filósofos visualizam a linguagem sob prismas
diferentes. Austin propôs uma nova significação para os enunciados,
denominando-os atos de fala, na qual a linguagem denota ação e pode
ser interpretada de diferentes formas. Searle, apesar de criticá-lo,
principalmente pelo fato de classificar os atos de fala baseando-se nos
verbos ilocucionários e não nos atos ilocucionários, construiu a sua teoria
tendo por base a teoria de Austin e introduz novas idéias sobre o assunto.
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Para Austin a linguagem não apenas descreve os atos, mas realiza-os e é
dotada de muitas dimensões.
As teorias apresentadas possibilitam que olhemos para os
proferimentos além do sentido literal das palavras e nos mostram que o
contexto em que acontecem [os proferimentos] são muito importantes
para que os compreendamos. No tão citado exemplo “Você pode me passar
o sal?”, é possível observar a existência do ato locucionário (enunciado
com determinado sentido ou referência), do ato ilocucionário (o falante
atribui uma determinada força ao conteúdo proposicional, que neste caso
pode ser um pedido ou até uma ordem) e o perlocucionário (os efeitos
causados no ouvinte pelo enunciado).
A linguagem é indispensável para que as pessoas se relacionem com
o mundo, e foi por meio dela que o mundo se fez, conforme revelou a
análise realizada na pequena parte do livro Gênesis, contido na Bíblia
Sagrada. Se as condições de felicidade são requisitos para que sejam
concretizadas as ações propostas nos atos ilocucionários, o enunciador
dos proferimentos estudados, dentro da visão mitológica da criação do
mundo, possui a capacidade total para realizar todas as proposições com
uma simples ordem.
Conclui-se este trabalho com o proferimento realizado por Austin
(apud OTTONI, 2002), em 1958, no Colóquio de Royaumont:
Acredito que a única maneira clara de definir o objeto da filosofia é dizer
que ela se ocupa de todos os resíduos, de todos os problemas que ficam
ainda insolúveis, após experimentar todos os métodos aprovados anteriormente. Ela é o depositário de tudo o que foi abandonado por todas
as ciências, em que se encontra tudo o que não se sabe como resolver.
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REFERÊNCIAS
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Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 136 p.
GÊNESIS. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico de São Paulo. 8.
ed. São Paulo: Ave Maria, 1966, p. 53–54.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. 2921 p.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 1838 p.
ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica: brincando com a gramática. 5. ed. São Paulo:
Contexto, 2003/2004. 206 p.
DICCIONARIO DE FILOSOFÍA (E-J). Tradução de José Ferrater Mora e Maria Stela
Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2001. v. 2. 1621 p.
_______. (K-P). Tradução de José Ferrater Mora e Maria Stela Gonçalves. São Paulo:
Loyola, 2001. v. 3. 2419 p.
OTTONI, P. John Langshaw Austin e a visão performativa da linguagem. Revista
DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. n. 1, v.
18. São Paulo: 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-44502002000100005>. Acesso em: 08 nov. 2010.
SEARLE, John R. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos da fala. 1. ed.
Tradução de Ana Cecilia G. A. de Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 294 p.
VILELA, Mario. Gramática da língua portuguesa: gramática da palavra gramática da
frase gramática do texto/discurso. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1999. 518 p.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. 207 p.
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Title: The language and the reality: the action practised by mean of the words.
Author: Maria Inês Caminitti.
ABSTRACT: The aim of this article is to present the speech acts, their taxonomy,
according to the philosophers John Langshaw Austin (1911 - 1960) and John Rogers
Searle (1932) and to analyze the types found in the first chapter of the Book of Genesis,
of the Holy Bible, intitled “The first creation narrative”. Speech act, by Austin, is all
action that is performed by saying, it happens by the use of a performative and indicates
that it performs an action when issuing an utterance, privided that it obeys certain
criteria. According to Searle, to produce an utterance is to produce a illocutionary
act and any emission does one or more illocutionary acts. In the performed analysis,
most of the performative acts, as the theory of Austin, were the implicit and exercitive
types. According to Searle, was of the directive type. The used methodology in the
accomplishment of this article, was the bibliographical revision and the analysis of
corpus.
Keywords: Speech Act. Austin. Searle. Illocutionary Act. Genesis.
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